sábado, 4 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17931: Recortes de imprensa (90): A Guiné na revista Panorama (1946, 1954) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 16 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
Atenda-se à prosa de exultação sobre a colonização da Guiné, há um cuidado imenso em brandir algumas datas bem convenientes, eram uma fórmula segura para abafar silêncios, nesta prosopopeia nunca se diz que foi preciso esperar pelo século XX para ter uma presença efetiva, mas mesmo assim deixando muitas regiões sem conhecer branco.
A convenção Luso-francesa de 1886 foi bem generosa com os portugueses, deu-lhes uns bons palmos de terra onde nunca tinham posto os pés e os franceses, com astúcia e blandícia, subtraíram a Portugal a região de Casamansa, onde se estava presente, numa boa atmosfera de negócios.
A história da Guiné está carregada de silêncio, só agora é que começa a ganhar linearidade e a ser confrontada com as civilizações africanas envolventes. Mas mais vale tarde do que nunca...

Um abraço do
Mário


A Guiné na revista Panorama (1946, 1954)

Beja Santos

Não é a primeira vez que aqui se faz referência à revista Panorama. A partir de 1941, apareceu como a principal publicação do Secretariado da Propaganda Nacional, fazia eco dos eventos do regime, das belezas regionais, incluindo as imperiais, publicava contos e não se cansava de exaltar o património natural e construído. Foi obra de António Ferro, rodeou-se de um conjunto significativo de artistas plásticos e fotógrafos de primeira plana, tinha um grafismo bem modernista, era uma linha avançada da revolução cultural segundo o Estado Novo.


A Guiné merece um conjunto de referências na Panorama. Circunscrevemo-nos a duas. Em 1946, temos as comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné. O artigo é de Carlos Parreira, dá-nos um conjunto de notas que nos permite perceber como se visualizava a Guiné e a sua história:

“Nuno Tristão descobre em 1446 o rio Geba, a que Cadamosto, o Veneziano Célebre, chama, mais tarde, rio Grande. Surpreendem-no os Nalus, e massacram-no, com mais 20 dos seus companheiros. É pouco mais ou menos nessa época que Lançarote, escudeiro do mesmo Príncipe, funda a primeira companhia colonial. Começa, então, o tráfico de escravos. Decorrem dois anos. O dito escudeiro envia os seus navios à Guiné, e em 1461 as ilhas de Cabo Verde são colonizadas com os indígenas dos nossos domínios do continente africano. A primeira cidade portuguesa que se instala no Rio Grande de Buba, em Guinala, fundam-na um punhado de monges, em 1584. Em 1588 constroem-se as fortificações de Cacheu, o Forte e a Igreja de Buba, as aldeias de Bolola e de Geba. Mais três anos ainda, e surge Farim. Só muito mais tarde, em fins do século XVII, é que são construídas a Fortaleza e a Feitoria de Bissau. É a Companhia de Cacheu e Cabo Verde que as torna possíveis. Estamos no século XIX. Nessa época procura a Grã-Bretanha, por todos os meios, apoderar-se de Bolama. Resolve o conflito, a favor de Portugal, a arbitragem do Presidente Grant.

Em 1879, subtrai-se a Guiné aos laços administrativos, que até então a prendiam a Cabo Verde, e passa a ser uma Província.

Em 1910, ainda é necessário manter na colónia um regime misto, da administração civil e militar. Tribos guerreiras povoam a Guiné, dispostas a não abdicarem da sua atrabiliária independência… Em 1910 toda a Guiné é um acervo de ódios, fermentando contagiantes rebeliões, entre a matula indígena que a povoa. Nenhuma sorte de segurança podem esperar, para as suas vidas, de obreiros pertinazes, os núcleos europeus, que lá se instalaram. Perspetivas de assaltos, de ataques sem quartel, ululando todas as imaginativas de crueldade. Ora é neste preciso instante que o Destino criou a figura enorme de Teixeira Pinto. Foi com este homem que a pacificação da Guiné passou a constituir para Portugal, uma das mais ardorosas gestas de heroísmo".

Sabe-se hoje que as coisas não se passaram rigorosamente assim, logo Nuno Tristão não chegou ao rio Geba, para começar. E nas entrelinhas dizia-se que a presença portuguesa era pouco menos que uma quimera. Artigo profusamente ilustrado por belas fotografias de Mário Novais. Estamos em 1954, Salazar discursa em 6 de Dezembro na Assembleia Nacional sobre o tratado luso-brasileiro, a Panorama dedica um volumoso número a tudo quanto é Portugal e Brasil e todas as nossas parcelas do império. O texto apologético é minguado, mais fantasioso do que histórico:
“Outrora, a esta terra cortada de canais, olhavam-na como um inferno de vida e de morte - sobretudo de morte. O emigrante de raça branca tinha de enfrentar a hostilidade do clima, as doenças e a animosidade voluntariosa dos naturais. No decorrer dos anos porém, pacificou-se o indígena, procedeu-se a obras de saneamento, criou-se uma estrutura sanitária eficaz e completa.

Lenta e seguramente, no lugar da legenda de abandono e de mágoa, surgiu uma nova e mais verdadeira imagem da Guiné: a imagem de uma terra acolhedora e fértil, progressiva e civilizada. A benéfica mudança respeitou, contudo, a caraterística fisionomia guineense. Como outrora, ainda hoje tumultuam, nas ruas das cidades, os representantes de 12 diversíssimas raças negras; idiomas bárbaros ressoam à nossa volta. A paisagem humana não mudou; como não mudaram também, as longas planícies matizadas, a humidade quente, as plantações de milho e de mancarra. As longas filas de bambu. Apenas, com a civilização, nasceram aglomerados urbanos, cimentou-se uma cultura; rasgaram-se mais de três mil quilómetros de estradas, que substituindo vantajosamente os tortuosos e incómodos caminhos do mato, permitiram a ocupação efetiva da província”.

Artigo profusamente ilustrado, como se verá.

A beleza do tarrafo



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Nota do editor

Último poste da série de 28 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17912: Recortes de imprensa (89): A Guiné na revista Panorama, pelo escritor Castro Soromenho, 1941 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17930: Bravo Oscar Alfa November Oscar India Tango Echo Charlie Alfa Mike Alfa Romeo Alfa Delta Alfa Sierra. STOP. Echo Sierra Tango Oscar Uniform Charlie Alfa November Sierra Alfa Delta Oscar. STOP. Victor Oscar Uniform Delta Oscar Romeo Mike India Romeo. STOP.


Código Fonético Internacional



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Guiné 61/74 - P17929: (D)o outro lado do combate (16): O Rodrigo Rendeiro, depois de regressar a Bissau, terá fornecido preciosas informações à FAP , permitindo a localização (e bombardeamento) das bases do PAIGC em Morés e Dandum, segundo Maria José Tístar, autora de "A PIDE no Xadrez Africano: conversas com o inspetor Fragoso Allas", Lisboa, Colibri, 2017 (pp. 191/192)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > BCAÇ 506 > Abril de 1964 > Da esquerda para a direita: (i) o alf mil António Pinto; (ii) o Mário Soares, comerciante de Pirada e "agente duplo";  (iii) o alf méd médico (e grande intérprete do fado de Coimbra) Luiz Goes (1933-2012( ; e (iv) e o alf mil Spencer.

Foto (e legenda): © António Pinto (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segunda a historiadora Maria José Tístar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017, pp. 191/192), o comerciante Rodrigo José Fernandes Rendeiro deu à FAP ou à "aviação militar" indicações muito precisas (e preciosas...) sobre a localização das bases do PAIGC em Morés e de Dandum. 

Recorde-se que ele passou lá, na base do Morés, duas semanas, em setembro de 1963, entre depois de ter sido "capturado" pela guerrilha em Porto Gole, e levado para o Senegal.  Pelo caminho conheceu comandantes da guerrilha como o Caetano Semedo (, (Baroudulo), Osvaldo Vieira (Morés), Mamadu Indjai (Fajonquito / Olossato), Lourenço Gomes (Samine / Senegal), Pedro Pires (Dacar, Senegal).

O documento que ele assinou em Dacar, declarando a sua adesão ao PAIGC, só podia ter sido feito para lisonjear os seus captores. (*)

Em Dacar, com liberdade de movimentos, acabou para fugir para a Gâmbia e depois regressar a Bissau, com a ajuda de informadores da PIDE bem como das embaixadas da Suíça e da Inglaterra. Na altura a Suiça representava os interesses de Portugal no Senegal.

O inspector Fragoso Allas nunca contactou pessoalmente o Rendeiro. Tanto quanto se lembra ele, enquanto informador, acha que devia estar ligado ao posto de Farim. Mas era mais lógico que fosse o posto de Bafatá, já que o Rendeiro vivia em Bambadinca.

O supracitado livro, que só folhei na FNAC, utilizou o nosso blogue como fonte, por mais de uma vez (vi referências à batalha de Guidaje e ao nosso saudoso Daniel Matos (1949-2011), um dos "marados de Gadamael", ex-fur mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74.

No índice onomástico do livro, deparei-me logo com um erro: o comerciante Rodrigo José Fernandes Rendeiro vem referido como citado na pág. 216, quando devia ser nas pp. 191/192, donde retirei a informação supra.

Acrescente-se que outro informador da PIDE/DGS, melhor conhecido da opinião pública, e ao mesmo tempo informador do PAIGC, era o António Mário Soares, estabelecido em Pirada, na fronteira com o Senegal. Contrariamente ao Rendeiro, que terá tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua ligação à PIDE/DGS,  o António Mário Soares ficou na Guiné independente mas terá "caído em desgraça" e sido expulso do país, um ano e tal depois, em novembro de 1975, segundo a fonte que estamos a citar, a investigadora Maria José Tístar. (***)

2. Sobre o Fragoso Allas, encontrei algumas valiosas notas biográficas, anexas à notícia do do lançamento do livro da doutora Maria José Tístar, no portal Dos Veteranos da Guerra do  Ultramar - Angola, Guiné, Moçambique, 1959-1975. (Curiosamente,  no livro não há um  CV tão detalhado como o do portal Ultramar Terraweb.)

Com a devida vénia aos camaradas que editam o Ultramar Terraweb, faço aqui um pequeno resumo do CV do homem que foi um dos braços direitos do general Spínola, em 1971/73, no CTIG:

(i) António Fragoso Alas nasceu em 1934, em Reguengos de Monsaraz, distrito de Évora;

(ii) em 1956/57 faz o COM (Curso de Oficial Miliciano), em Mafra,  na Escola Prática de Infantaria;

(iii) aspirante a oficial milicano, é colocado no RI 2, em Abrantes;

(iv) em meados de 1957 oferece-se como voluntário, em regime de rendição individual, para uma comissão especial de quatro anos integrado na guarnição normal do Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG);

(v) integra, a partir de 1957, a 4.ª Companhia de Caçadores Indígena, aquartelada em Bolama;

(vi) já como alferes miliciano, vai formar e comandar, em Bedanda, em setembro de 1959, o 1.º Pelotão da 4.ª Companhia de Caçadores Indígena;

 (vii) em final de 1960, é promovido a tenente miliciano; e em outubro de 1961 regressa à Metrópole;

(viii)  em abril de 1962 ingressa nos quadros da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), sendo  colocado nos serviços centrais,  em Lisboa;

(ix) em abril de 1963 é chefe-de-brigada da delegação da PIDE em Angola;

(x) no final de 1968, já inspector-adjunto, é colocado em Kinshasa como "adido comercial" na missão portuguesa junto da embaixada espanhola;

(xi) em 13 de julho de 1971 é transferido para Bissau, tomando possse como chefe da subdelegação da Guiné da Direcção-Geral de Segurança (DGS);

(xii) em 10 de setembro de 1973 é transferido para a delegação  da DGS, em Lourenço Marques, Moçambique; menos de três meses, em finais de novembro de 1973, é  transferido para os serviços centrais da  DGS, em Lisboa;

(xiii) em 24 de abril de 1974 está de volta a Moçambique e, em 10 de junho de 1974, está em Luanda, para logo regressar a Lisboa, em 6 de julho desse ano;

(xiv) a seguir aos acontecimentos do 28 de setembro de 1974,  emigra para a Rodésia;  em 1978 instala-se na África do Sul, em Joanesburgo, como empresário.
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Notas do editor:

(*) Vd. 30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. 2 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17926: (D)o outro lado do combate (15): continuação da odisseia do Rodrigo Rendeiro que acabou por regressar a Bissau, com um salvo-conduto do consulado da Suíça em Dacar, que o levou até à Gâmbia...

(***) Vd. 31 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17920: (D)o outro lado do combate (14): a odisseia do português, da Murtosa, Rodrigo Rendeiro: uma viagem atribulada, de cerca de mil km, de 3 a 26 de setembro de 1963, de Porto Gole, onde tínha um estabelecimento comercial e era casado com uma senhora mandinga, de linhagem nobre, Auá Seidi, e tinha cinco filhos,até ao Senegal (Samine, Ziguinchor e Dacar), unindo ocasionalmente o seu detino ao do PAIGC... Relatório, assinado por ele, mas de autenticidade duvidosa...

Guiné 61/74 - P17928: Notas de leitura (1010): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (7) (Mário Beja Santos)

Chegada dos aviadores a Bolama em 1925  
Foto: Com a devida vénia ao Blogue Bernardino Machado


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
A correspondência oriunda do gerente da filial de Bolama, nas décadas de 1910 e 1920, não esconde as desavenças entre republicanos, o nepotismo e o arrivismo, a troca de papéis entre os protagonistas que vão da política para o comércio, da vida militar para a de fazendeiro.

Foi durante a organização da documentação deste período que encontrei um ofício datado de 16 de Fevereiro de 1923 onde se apresenta a Companhia de Fomento Nacional, que tinha a sua sede na Aldeia do Cuor, regulado onde vivi 17 meses consecutivos.

Há 50 anos intrigava-me aqueles panos monumentais de pedra perdidos dentro da natureza bravia, mesmo a beijar o Geba Estreito. Esse mistério está dilucidado, resta saber como esta empresa deu lugar a outra dentro do Cuor, a Sociedade Agrícola de Gambiel, onde trabalhou o professor Armando Zuzarte Cortesão, cuja cama em ferro herdei, dádiva do régulo Malâ Soncó. Coisas da vida...

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (7)(*)

Beja Santos

O relatório de 1922, ano em que o governador é já o Tenente-Coronel Velez Caroço, anuncia uma certa lufada de ar fresco quanto aos termos da governação, mas não esconde as graves dificuldades económicas e financeiras e o permanente caos administrativo.

De uma forma sintética, o gerente da filial de Bolama aborda diferentes pontos. Sobre a vida económica e financeira do município de Bolama, fala das poucas receitas e da necessidade de auxílio do governo; em contrapartida, o estado da Fazenda Pública revela desafogo devido ao aumento das contribuições, incluindo o do imposto de palhota. Quanto a vias de comunicação para o interior, reporta que falta completar a estrada que liga S. João a Jabadá (sede da circunscrição civil de Quínara) e dá conta que se tem em vista a construção de uma ponte de alvenaria que ligue aquela região à de Geba, daí deduzindo que ficaria Bolama ligada ao continente; falando das estradas, diz que não são macadamizadas por falta de pedra e que as valetas não têm escoante. Pela primeira vez refere-se ao Governador, Tenente-Coronel Velez Caroço:

“Continua a merecer os encómios dos europeus residentes nesta província. Pena é que a sua ação, entravada muitas vezes porque questiúnculas políticas locais, não se estende, como seria para desejar, a todos os serviços públicos por forma a que os diversos ramos da atividade colonial tivessem o desenvolvimento necessário para bem da província”.

Informa-se Lisboa que o governo vai adquirir a propriedade urbana e rústica da Empresa Comercial de Bijagós para aí instalar oficinas navais, tribunal e residência de alguns dos seus funcionários. E estando a falar de serviços públicos, desembesta sobre comportamentos estimados por negligentes e obtusos:

“Na magistratura desta comarca existe um elemento de valor, Dr. Horácio Baptista de Carvalho, Delegado do Procurador da República; porém, o juiz Dr. Pedroso de Lima, criatura pouco inteligente, cretina e pirrónica por princípio e feitio, é algo prejudicial às causas que correm pela sua vara. Quando alguém se admira dos seus estranhos despachos, responde invariavelmente: ‘Recorra!’. Como se um recurso não custasse atualmente muito dinheiro e não representasse, quase sempre, prejuízos grandes, devido à demora que estas questões costumam levar nas instâncias superiores. Numa acção que a nossa agência de Bissau intentou, só tem criado embaraços, não revelando a menor consideração pelo nosso banco. Em compensação, desejaria entrar para o serviço do mesmo, como Contencioso, e queria que, como Juiz, de que muito se envaidece, lhe fossem concedidas regalias excecionais para as pouquíssimas transferências que têm efetuado para Coimbra e Cabo Verde, quando, pela sua parte, no diz que respeito a Lisboa, não dá o menor interesse a esta filial, pois a mesada e as suas economias são pagas naquela cidade por intermédio da Casa Gouveia que pouco ou nada lhe leva de prémio”.

E se surpreende a forma desaforada que usa com o juiz, a mesma linguagem se estende ao que se passa nas alfândegas:

“À testa dos serviços alfandegários encontra-se um sujeito que até hoje se ignora se é europeu se cabo-verdiano, chamado Fernando Oliveira, criatura sem simpatias de ninguém, nem sequer dos seus correligionários democráticos. Foi este senhor que, como principal fator, influiu no espírito de Tribunal Administrativo, Fiscal e de Contas da Província da Guiné, composto na sua maior parte, entre os quais o nosso Juiz, de pessoas pouco propensas a interpretarem conscientemente a letra do contrato entre o nosso banco e o Estado, para indeferir o requerimento desta filial que pedia a isenção de direitos aduaneiros para a entrada na província das suas notas Chamiço, conforme estava em expresso no dito contrato. Por este motivo tivemos de recorrer para o Concelho Colonial, esperando que ali nos dêem um despacho favorável”.


Igualmente de forma sintética expende considerações sobre a agricultura, indústria e permutas. Diz que o principal ramo da agricultura indígena continua a ser o da mancarra (a produção promete ser superior à do ano pretérito), auspicia uma melhor produção de arroz, com preços muito superiores aos do ano anterior. Esclarece que os indígenas cultivam em muito pequena escala milho miúdo aqui conhecido pelo nome de milho preto. E ajuíza surpreendentemente:

“A palmeira que, sem esforço e auxílio do indígena, produz bastante coconote, se fosse beneficiada, ainda que de longe em longe produziria muito mais, vindo assim dar maior valor à riqueza desta colónia. Mas o indígena, mercê das quantias fabulosas que lhe dão pelos seus produtos, é rico, e portanto pouco se preocupa com isso.

A agricultura do europeu resume-se em plantações de coleiras e árvores frutíferas, mas estas tentativas esbarram quase sempre na falta de capitais, não obstante, pelo nosso banco, tem sido facultado ao governo da província um crédito destinado ao fomento agrícola, de 134 contos. Ao que parece, tão pouco cuidado tem merecido ao mesmo governo aquele crédito, para o fim a que é destinado, que o chamam a si, escriturando-o como receita do Estado, sob a rubrica ‘Receita Eventual’. Sobre este caso temos instantemente trocado correspondência com a direção dos serviços da Fazenda a fim de, por indicação da nossa sede, fazerem a reposição daquela importância, visto não lhes ter sido dada aplicação. Mas os nossos esforços até ao presente ainda nenhum êxito obtiveram”.

Também refere que não há indústrias na Guiné, o que há é uma tentativa de fabrico de sabão, pouco prometedora, e volta a surpreender-nos:

“O indígena não se dedica a qualquer espécie de indústria, limitando-se apenas ao fabrico das suas esteiras e adornos para seu uso. Quando a permutações com o gentio, esclarece que as principais são feitas com a mancarra, o coconote, o arroz, e numa escala mais diminuta com cera, borracha e gergelim, tudo trocado por dinheiro".

É a remexer nos dossiês desta época que este pobre escriba foi alvo de uma grande emoção. É necessário explicar porquê.

Quem põe os olhos nestas montanhas de papel e procura os aspetos mais salientes das informações que seguem de Bolama para Lisboa sobre a vida da província, viveu 17 meses consecutivos, entre 1968 e 1969, como responsável militar por dois destacamentos no regulado do Cuor. Sucede que aqui chegou em 4 de Agosto de 1968, e logo na manhã seguinte, no seu primeiro patrulhamento, por recomendação do furriel mais antigo, Zacarias Saiegh, foi conhecer Aldeia do Cuor, qualquer coisa como cerca de sete quilómetros distantes de Missirá, sede do principal destacamento.

Fez-se o percurso sem nenhum incidente, era visível tratar-se de caminhos ao abandono, entregues à natureza. De um lado, imensa vegetação, belos palmares, e do outro uma vegetação rala que permitia ver à distância do outro lado do rio Geba, que ali corre em leito estreito até Bafatá, e nessa distância o Furriel Saiegh ia explicando ao novel comandante que havia para ali terras fertilíssimas, mesmo pelos caminhos que estavam a percorrer houvera seguramente riqueza agrícola, que a guerra interrompera. E assim se chegou a Aldeia do Cuor.

Ficou uma sensação de assombro para toda a vida, pois percorrera-se aqueles quilómetros todos a ver a natureza verde, luxuriante, uma barreira de palmeiras de um lado e do outro um desafogo de panorama, alguém comentou que andariam certamente por ali gente de Mero e Santa Helena nos seus cultivos, e inopinadamente emergia do capim uma enorme construção em pedra, parecia pano de fortaleza, o novel comandante, um tanto azamboado, percorreu pelos diferentes lados aquele maciço de alvenaria, ninguém explicou do que se tratava, era empreendimento antigo, votado há muito ao abandono, nada tinha a ver com a guerra. Em Missirá, ninguém deu explicação satisfatória para tão invulgar construção, a pedra é escassa naquele território, fora seguramente trazida para construção reluzente. Mas que construção?

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Carta de Bambadinca > Escala 1/50 mil (1955) > Detalhe, posição relativa de Aldeia do Cuor, na margem direita do Rio Geba Estreito; a norte, ficava o regulado do Cuor (onde havia 3 destacamentos das NT e milícias: Finete e Missirá, Fá Mandinga).
Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)

E o enigma persistiu, até que de repente apareceu um documento no Arquivo Histórico do BNU datado de 16 de Fevereiro de 1923, papel timbrado da Companhia de Fomento Nacional, com sede na rua Augusta n.º 176 - 2.º, Lisboa, mas quem escrevia fazia-o de Aldeia do Cuor. Desvendava-se o segredo, o primeiro, pois como se adiantará a dita Companhia de Fomento Nacional terá dado lugar a outra empresa, a Sociedade Agrícola do Gambiel, porventura, ainda não se encontraram provas concludentes nessa associação. O que para o caso interessa é que aquele alferes miliciano descobria, cerca de 50 anos depois o nome da exploração agrícola respeitante àqueles paredões de pedra acastanhada, como reza no documento que ora tem nas mãos:

“Exploração na Guiné situada na circunscrição civil da Bafatá, ocupando em parte os regulados do Cuor, Joladu e Mansomine, fazendo sede no lugar denominado Aldeia de Cuor, à margem do rio Geba”. (**)

(Continua)

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Notas do editor

(*) Poste anterior de 27 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17908: Notas de leitura (1008): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 9 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14337: Notas de leitura (689): A minha querida Aldeia do Cuor! (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17927: Parabéns a você (1335): Tenente General Pilav António Martins de Matos, ex-Tenente Pilav da BA 12 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17923: Parabéns a você (1334): Abílio Magro, ex-Fur Mil Amanuense do CSJD/QG/CTIG (Guiné, 1973/74)

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17926: (D)o outro lado do combate (15): continuação da odisseia do Rodrigo Rendeiro que acabou por regressar a Bissau, com um salvo-conduto do consulado da Suíça em Dacar, que o levou até à Gâmbia...


Papel timbrado do PAIGC, com sede em Bissau, Guiné "Portuguesa", secretariado geral, delegação no Senegal, B.P. 2319 - Dakar.


I. Afinal havia ou há, no Arquivo Amílcar Cabral, mais duas referências ao Rendeiro, de  seu nome completo, Rodrigo José Fernandes Rendeiro,  o comerciante que alguns de nós conhecemos em Bambadinca (e com quem incluive convivemos, algumas vezes, entre 1969 e 1971). 

Eis o comentário que o Jorge Araújo, [, vd. fóto à direita], nosso colaborador permanente, ex-fur mil op esp, CART 3494 (Xime, Enxalé e Mansambo, 1972/74), colocou no poste P17920 (*),


Certamente que me cruzei com o Rendeiro, em Bambadinca, entre 1972 e 1974, mas nunca privei com ele.


Quanto ao solicitado pelo Luís, aqui vai o que consegui apurar nos «Arquivos», citando o seu conteúdo e referindo as respectivas fontes.

1. Em texto assinado por Pedro Pires, dactilografado em impresso timbrado do PAIGC, datado de Outubro de 1963, refere-se o seguinte: 

“Timóteo e Rendeiro – De facto foram à Gambia. O Rendeiro deve ter seguido para Bissau. O Timóteo voltou a Dakar. Tentou entrar, às escondidas, no lar por duas vezes. Penso que ele continua em Dakar. Estou à procura de uma pequena informação que falta para ir à “Sureté” [Segurança].

Eles devem ter tido contactos com os elementos da URGP [Union des Ressortissants de la Guinée Portugaise ou UNGP – União dos Nativos da Guiné Portuguesa]. Penso isso pelos panfletos que têm saído ultimamente.

Soube que o Timóteo disse à prima que não saiu de livre vontade. Que foi obrigado a sair”.

Fonte: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36579


2. No relatório manuscrito e 
 assinado por Pedro Pires, datado de 26 de outubro de 1963, é referido o seguinte:  

“Timóteo e Rendeiro – tudo o que aconteceu foi devido a informações incompletas vindas do interior.

Depois de algumas averiguações soube que tiveram contacto com 4 cabo-verdianos que trabalham pela [para a] PIDE e que estes foram ao Consulado da Suíça e conseguiram salvo-condutos para os dois e pagaram-lhes as passagens para a Gâmbia. Tenho o nome dos cabo-verdianos e do local onde se reuniam”. 

Fonte: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41413

 II. Comentário de LG:

No mesmo relatório, do Pedro Pires, de 26 de outubro de 1963, há um  ponto interessante que merece também ser reproduzido, porque vem esclarecer qual o verdadeiro estatuto que o PAIGC queria dar a pessoas como o Rodrigo Rendeiro: o de "refugiados políticos", civis, distinto da figura do "desertor", militar (!)... Diga-se, "en passant", que a expetativa do Pedro Pires, de ter muitos desertores portugueses, saiu gorada,,,































Transcrição, revisão e fixação de texto (LG):

"2. Refugiados portugueses - O problema dos refugiados portugueses deve ser estudado com as autoridades senegalesas. Se continuar como está, será muito maçador para o Lourenço [Gomes], além do tempo que tem de estar fora do seu posto, [o] que é muito prejudicial para nós.

Parece-me que há grandes possibilidades de deserção de soldados portugueses para o Senegal,  mas teremos possibilidades materiais de os manter no Senegal ? Não seria bom ver o que pensa[m], nesse sentido, as autoridades senegalesas ? 

Não seria possível manter os desertores no mato, criando uma base só para esse fim ?

Quanto aos desertores, espero que me digam o que devo fazer com eles.  Será necessário façam uma declaração para ser distribuída no interior ? Ou uma declaração para ser distribuída à presse [imprensa] ? Enfim, mandem-me  instruções.

Quanto aos desertores, tratam-se do alferes miliciano Fernando Vaz e do sargento miliciano  Fernando Fontes.

Disseram-me  que só na 4ª feira, poderão continuar a ouvir os desertores e o Lourenço" (...)


Quanto ao nosso Rendeiro, ele parece não ter voltado para Porto Gole... Pelo menos em 1966, já não estava lá, a avaliar pelo comentário do nosso camarada José  António Viegas (ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Porto Gole e Ilha das Galinhas, 1966/68):

"Em Porto Gole nos anos em que lá estive, entre 1966/68,  havia a Casa Gouveia em que estava à frente um cabo.verdiano que se chamava Albertino que vivia com a mãe. Em frente havia outra casa comercial de um tal João, que me parece que era de Braga, esse sim jogava com o pau de dois bicos. Ainda cheguei a ter discussões com ele na altura da compra do arroz, que ele pagava o preço do arroz limpo pelo mesmo preço do arroz com casca, além da pesagem que era sempre a enganar.

"Se bem que raramente via pagamento em dinheiro,  era a troca por folha de tabaco e outros géneros que os Balantas necessitavam . Depois de sair de lá,  acho que a tropa o prendeu,  não voltei a ter mais informação. " (*)


Ainda estou por descobrir quando é que ele se fixou em Bambadinca... (Em 1963, não me parece que tivesse casa ou loja em Bambadinca, a avaliar pelas memórias do nosso camarada Alberto Nascimento) (**). De qualquer modo, o Rendeiro foi à luta e teve que reconstruir a sua vida. Como muitos outros comerciantes e colonos (metropolitanos, cabo-verdianos, sírio-libaneses...) de quem pouco ou nada a História fala... Temos a obrigação também de lhes dar "voz"...

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Guiné 61//74 - P17925: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (4): Homenagem, por iniciativa da Embaixada de Portugal, aos nossos mortos, no cemitério de Bissau, ontem, dia 1 de novembro







Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério > Talhão da Liga dos Combatenets > 1 de novembro de 2017 > 

Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2017) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de ontem, do nosso amigo e camarada Patrício Ribeiro, um antigo "filho da Escola" [leia-se: fuzileiro da Marinha Portuguesa], radicado na Guiné-Bissau há 4 décadas, fundador e diretor da empresa Impar Lda,  


Bom dia, desde Bissau (*)

Junto algumas fotos que tirei hoje no cemitério de Bissau.

Conforme convite da nossa Embaixada (ver em baixo)

As campas estavam pintadas e arranjadas.  Foram benzidas por um padre.

Estavam os nossos militares da cooperação militar, adido militar e funcionários da nossa Embaixada , o representante da Liga dos Antigos Combatentes, assim como alguns empresários portugueses que cá exercem a sua actividade.

Abraço
Patricio Ribeiro
impar_bissau@hotmail.com


2. Convite da embaixada de Portugal na Guiné-Bissau, para cerimónia na capela da Liga dos Combatentes em 1/11/2017

Transmito a seguinte mensagem que me foi transmitida pelo

Sr. Adido da Defesa Sr. Coronel José Morgado

CONVITE PARA CERIMÓNIA NA CAPELA DA LIGA DOS COMBATENTES

Caríssimos,

No dia 1 de Novembro (4ª feira), pelas 09H30, na Capela da Liga dos Combatentes (cemitério de Bissau), terá lugar uma cerimónia simples mas significativa, em honra dos nossos combatentes que pereceram na República da Guiné-Bissau.

A cerimónia terá uma pequena missa, seguida pelo ato simbólico de deposição de uma coroa de flores no monumento erigido em honra dos nossos combatentes.

Após a deposição da coroa far-se-á um minuto de silêncio em honra dos nossos combatentes.

Assim, fica aqui o convite para quem tiver a disponibilidade e pretenda participar neste evento.

Se tiverem conhecimento de alguém que gostaria de participar, mas não está na lista de destinatários, agradeço que divulguem.

Com os melhores cumprimentos,
Tiago Bastos
Delegado
Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal
Conselheiro Económico e Comercial
Embaixada de Portugal na Guiné-Bissau e Embaixada de Portugal no Senegal (não residente)


Embaixada de Portugal em Guiné-Bissau
Av. Cidade de Lisboa, C. Postal 276, 1021 Bissau Codex
M. EMB.: +245 966 990 029 M: +245 966 495 613
tiago.bastos@portugalglobal.pt

www.portugalglobal.pt
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P17924: Os nossos seres, saberes e lazeres (238): Mais uma vez os velhinhos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)

© Adão Cruz

1. Em mensagem do dia 29 de Outubro de 2017, o nosso camarada Adão Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), enviou-nos este texto que, com muito humor e ironia, descreve um quadro comportamental de pessoas de idade avançada, "os velhinhos", como lhes chama.


Mais uma vez os velhinhos

Adão Cruz

Aqui há uns tempos atrás escrevi um texto intitulado “os velhinhos”, o qual transcrevo de seguida, a fim de dar sequência ao que hoje, sobre o mesmo tema, vos quero dizer. 
Desta forma, tento fazer um enxerto de encosto, ou melhor, um enxerto de garfo entre este texto e o que hoje vivi à hora do almoço. 

 “Há vários restaurantes clássicos e tradicionais no Porto, aos quais acorrem, sobretudo ao Domingo, as terceira e quarta idades. 
Como é óbvio, também por lá ando. Odeio a velhice mas nunca os velhinhos, um pouco na mesma linha de que odeio as religiões mas nunca os que as professam. 
Por vezes convido o meu filho Marcos, não só porque gosto de estar com ele, mas também como contrapeso. Empresta-me um certo arejo de mais novo, e permite-nos discorrer sobre filosofias da vida para as quais nos estaríamos marimbando se não fosse a garrafinha à nossa frente, às vezes duas. 

Hoje fui sozinho a um desses restaurantes comer um cozidinho à portuguesa. Ia eu a meio da orelheira quando eles, os velhinhos, começaram a chegar. Bem alinhados nas roupas e nos arranjos, eles e elas, mais elas do que eles, numa derradeira tentativa de exumar alguns restos de juventude. 
Logo à cabeça, um antigo colega meu do Hospital de Santo António, que por acaso operara em tempos idos a minha irmã, e logo atrás a sua própria irmã, que fora minha colega de curso. Que ternura! Quem os viu e quem os vê! O suficiente para eu parar de roer a unha, do porco, claro, e abrir os arquivos neuronais de há trinta ou quarenta anos atrás. Quase me apetecia chorar se não fosse as couvinhas estarem-me a saber tão bem. 
Logo a seguir, uma senhora de média idade, com ar de Senhora de Fátima, pedia uma mesa para seis. Podia ser aquela que estava mesmo à minha frente, disse o empregado. 
Logo entraram dois de terceira idade, mais um de quarta idade, e, um tanto atrasados, uma outra senhora de meia idade, também com ar de Nossa Senhora de outra coisa qualquer, amparando um velhinho a arrastar-se, de braços trémulos no ar, como que a dizer “Dominus Vobiscum”. Uma cena provavelmente comum no Reino dos Céus. 
Dizia um dos de terceira idade, carteira a tiracolo, calça pelo meio da perna e sapatilhas brancas da moda: então, o que escolhem? Ao que respondeu o outro, de quarta idade, a quem uma lufada de vento havia tombado definitivamente para o lado esquerdo: comida mole, comida mole. 

Tomei o meu cafezinho e pedi a conta. Nesse preciso momento, sentou-se na mesa ao lado um sujeito dos seus oitenta e muitos, torcendo a face com aquele esgar esquisito que denuncia a puta da dor das artroses, todo vestido a condizer, certamente ao gosto da filha ou da neta e não da mulher, que Deus provavelmente já havia chamado à sua Divina Presença. 
No meio da confusão, o empregado colocou a minha factura na mesa do velho, ao que ele reagiu vociferando: Que caralho é isto? Eu ainda nem pedi nada! 

É preciso vir a estes sítios para sentirmos a ternura da velhice. Odeio a velhice, mas cada vez mais me sinto pateticamente encantado com o mundo dos velhos, a sua profunda poesia e a dramática coreografia da antecâmara da morte”

Hoje, dia 29 de Outubro, lá estava eu no meu lugarzinho no centro da primeira sala do “Caetano”, quando começam a entrar os velhinhos da terceira e quarta idades. Uma verdadeira enchente, quase parecia uma peregrinação. Não sei qual a causa de tal invasão, mas talvez o facto de a hora ter mudado lhes tenha feito sentir que tinham mais uma hora de vida. 
Um verdadeiro caos que pôs os empregados à nora, a servirem aos gritos e a trocarem peixe por carne e entradas por saídas. Nunca tal barafunda eu vi. 

Gostaria de descrevê-los a todos mas é impossível. Um deles, com muitos em cima dos oitenta, de calção e mochila às costas, presa apenas pela asa esquerda e que o fazia pender para esse lado, pendência que ele equilibrava com a bengala na mão esquerda, caminhava quase afoitamente em frente. Dizia o provável filho que o seguia atrás: 
- Sempre em frente, cuidado com o degrau. 
Respondia o velhinho: 
- Sempre em frente, cuidado com o degrau. Mas se não fosse, de imediato, o filho deitar-lhe a mão à alça da mochila bem que ele batia com o nariz no chão. 
Logo de seguida, outro pai velhinho com um andarilho em cada mão. Dizia-lhe o presumível filho: 
- Cuidado com o degrau. 
- Eu sei, respondeu o pai, mas se não fosse a rápida mão do filho a arrepanhar-lhe a gola do casaco, lá ia o almoço no dia em que a hora mudou. 
Um outro velhinho, de braço dado com a filha ou nora, era delicadamente arrastado ao longo da sala. Ao passar junto à minha mesa que ficava mesmo em cima do trajecto, embateu com uma cadeira que estava um pouco desalinhada. 
Olhou-me com a ferocidade que a idade lhe permitia e atacou: 
- Que grande merda. 
Uns passos adiante, alguns neurónios lhe devem ter dito que não foi correcto. Voltou a cabeça na minha direcção, e com um esgar em forma de sorriso emendou: 
- Desculpe. 

Eu ia a meio do pernil, quando uma velhinha muito pequenina e curvada, a passar para a quinta idade, acompanhada pela filha - desta vez era mesmo filha porque as caras eram iguais - alta, quase velha e de mini-saia na fronteira do arrojo, me desejou bom apetite, com um sorriso do tamanho da filha que tinha uns saltos dos sapatos do tamanho da mãe. 

Já eu tinha na frente o cafezinho, quando entram três irmãs, bem perto dos noventas, discutindo entre elas se o cozido teria orelheira e focinho. Se não tivesse iriam para o robalo. 
Sentaram-se atrás de mim e a conversa continuou, desta vez à volta do tintol. Um quarto, meia, ou uma? 

Sabia-me bem estar ali mais algum tempo, mas a minha mesa que era de três estava a ser precisa. 
Um após outro, uma após outra, entrelaçados de filhos, netos e artroses, os velhinhos entravam aos magotes, como eu nunca vi, em direcção ao sacrossanto altar das tripinhas e do cozido do “Caetano”. 

Eu sei lá, era tal a balbúrdia que os empregados perderam a postura e até me debitaram metade do que eu consumi. Não incluíram a segunda caneca de tinto nem o pão nem o bagaço, mas puseram na conta uma sopa que não comi. Costumo sempre corrigir as contas, mas desta vez, dada a confusão, calei-me. 
Ficou ela por ela.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17922: Os nossos seres, saberes e lazeres (237): Em Drumlanrig Castle, o esplendor dos jardins escoceses (7) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17923: Parabéns a você (1334): Abílio Magro, ex-Fur Mil Amanuense do CSJD/QG/CTIG (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Novembro de 2016 > Guiné 61/74 - P17921: Parabéns a você (1333): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto do BCAÇ 4513 (Guiné, 1973/74)

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17922: Os nossos seres, saberes e lazeres (237): Em Drumlanrig Castle, o esplendor dos jardins escoceses (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 24 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
Quando se encontram dois ingleses, a conversa arranca sempre à volta das condições meteorológicas ou do que se está a passar nos respetivos jardins.
Propor a ingleses um passeio a uma casa senhorial não levanta quaisquer obstáculos, quem não quer visitar salões vistosos e bibliotecas com imensas fotografias da família e até membros da corte, passeia-se pelos jardins. Foi o caso da escolha turística do dia, Drumlanrig Castle, houve quem suspirasse de alívio quando soube que a riquíssima coleção do duque de Buccleuch e Queensberry ainda não estava aberto ao público, foram todos para os jardins, magistralmente tratados. É o culto do jardim, árvores, arbustos, espécies exóticas, não será por acaso que o mais inacreditável da floricultura mundial tem sempre exemplares em qualquer ponto do Reino Unido.
Foi o dia mais económico do viandante, era o seu aniversário, foi alijado de despesas...

Um abraço do
Mário


Em Drumlanrig Castle, o esplendor dos jardins escoceses (7)

Beja Santos

A companha pregou uma surpresa ao viandante, após as suas abluções, foi tomar o pequeno-almoço e encontrou este cartão de parabéns, era dia de aniversário. Não é sobre o evento que vos quero falar mas sim sobre o fenómeno destes cartões que fervilham nas relações sociais: parabéns, boas festas, congratulações pelos mais desvairados motivos. Não há papelaria em todo o Reino Unido onde não se encontrem em variedade estes cartões, que recorrem sobretudo ao humor. Na contínua complexidade multicultural em que ali se vive, há séria discussão sobre o que se deve mandar na festa natalícia, chega-se ao cúmulo de falar no nascimento de Jesus, nada de presépios, nada de estrelas de Belém, muito menos reis magos e pastores enternecidos, para não ofender as outras religiões… É debate para durar, mas há um grupo sólido que se está perfeitamente nas tintas e celebra de acordo com as suas convicções. No caso do viandante, beneficiou de uma tirada de boa disposição. Recebeu este cartão, e agradeceu a toda a gente. E o dia foi muito feliz, marchou-se para Drumlanrig Castle, alguém retivera uma frase do viandante que se mostrara interessado em conhecer a coleção de arte do Duque Buccleuch e Queensberry, uma sumptuosidade onde constam um Da Vinci, artistas como Gainsborough, Reynolds e Rembrandt. À entrada, deu-se a má notícia que a coleção não estava disponível ao público, só em pleno Verão, mas se o viandante vinha à procura do Da Vinci, este, desde que fora roubado e recuperado, podia ser visto na Galeria Nacional, em, Edimburgo, a virgem com o menino e a roca de fiar. Fica o consolo de adquirir a imagem na loja, para todos verem que vale a pena sempre ir à procura de Da Vinci.




Pois bem, não há coleção de arte, mas pode mirar-se este belo edifício e passear pelos magníficos jardins. Com todas as suas alterações, Drumlanrig Castle pertence à família do duque há mais de 600 anos. Paga-se à entrada, entra-se pelos jardins que se dispõem em terraços como se fossem socalcos. A primeira impressão é muito forte, há teixos com mais de 300 anos a separar o jardim de instalações que tanto são a casa de chá como os estábulos.



Estamos entre a Primavera e o Verão, para um português assombra este verde húmido, não há qualquer sinal de verdura fanada, não há sol suficiente para estafar o verde vivo, são jardins formais, laboriosos jardineiros limpam, cortam e recortam, usam a topiária, são espaços harmónicos, mais adiante vamos encontrar jacintos bravos e coisa rara de ver papoilas nepalesas.


Quando se entra nos jardins de Drumlanrig Castle dão-nos um roteiro, há muito para ver: jardins dos bosques, das rochas, com plantas, jardins que parecem jardins alpinos, aqui e acolá rododendros vistosos, parecem árvores, azálias, há mesmo um jardim de Inverno e uma estufa vitoriana, cascatas, espaço para que as crianças andem entretidas. Foi uma visita cativante, depois veio o bichinho da fome, a companha partiu ordenadamente para a sala de chá… e que sala de chá!


Pelo caminho, deu-se uma espiada pelo que fora a quinta desde a chegada das máquinas. O viandante observou que um bom número de visitantes parava diante desta viatura que deve ter dado brado no seu tempo, pode-se perceber porquê, e também pensar como os britânicos estiveram na vanguarda da mecanização agrícola.


Não se vão mostrar as delícias da pastelaria nem confeitaria, e ninguém duvidará que havia ali comezainas para todos os paladares, até refeições ligeiras, sumos naturais e inevitavelmente o chá. O que mais empolgou o viandante foi a opulência dos cobres, e o que se mostra é uma minoria, havia muita gente espalhada pelas mesas, deu algum trabalho esperar que uma mesa vagasse e houvesse tempo para mostrar os tachos de outros tempos. E com o estômago satisfeito, a companha regalada atravessou campos e vales até chegar a Moffat.




O viandante avisou a companha que amanhã vai vadiar sozinho, mete-se num autocarro quase às cegas, e bate umas aldeias. Como aqui se mostra do que se passou, ele cultiva pormenores como este, uma bela ferragem a encimar a bandeira da porta, um indício de que neste lugar aparentemente insignificante por aqui passou Arte Nova, que os descendentes dos primitivos proprietários não desdenham. E fazem bem.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 25 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17903: Os nossos seres, saberes e lazeres (235): De Eskdalemuir para Dumfries, à procura de Robert Burns (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 27 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17909: Os nossos seres, saberes e lazeres (236): Alguns dos últimos trabalhos de pintura do nosso camarada e amigo Dr. Adão Cruz

Guiné 61/74 - P17921: Parabéns a você (1333): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto do BCAÇ 4513 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17911: Parabéns a você (1332): Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Guiné, 1970/72) e Cor Inf Ref Luís Marcelino, ex-Cap Mil, CMDT da CART 6250/72 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17920: (D)o outro lado do combate (14): a odisseia do português, da Murtosa, Rodrigo Rendeiro: uma viagem atribulada, de cerca de mil km, de 3 a 26 de setembro de 1963, de Porto Gole, onde tínha um estabelecimento comercial e era casado com uma senhora mandinga, de linhagem nobre, Auá Seidi, e tinha cinco filhos,até ao Senegal (Samine, Ziguinchor e Dacar), unindo ocasionalmente o seu detino ao do PAIGC... Relatório, assinado por ele, mas de autenticidade duvidosa...



Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o  Rio Geba ao fundo, e a saída para leste (no sentido de Bafatá)... Em primeiro plano, lado nordese do quartel e um dos abrigos, sobranceiros à tabanca, e a morança do comerciante português Rodrigo Rendeiro, do outro lado do arame farpado... Ficava do lado direito, quando se subia, vundo de Bafaté e do rio Geba,  a famosa rampa de acesso ao quartel e posto administrativo de Bambadinca.

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Portal Casa Comum > Instituição:Fundação Mário Soares

Pasta: 07075.147.042 [Clicar aqui para ampliar]

Título: Relatório sobre o ingresso de Rodrigo Rendeiro no PAIGC

Assunto: Relatório assinado por Rodrigo Rendeiro, remetido ao Secretário Geral do PAIGC, sobre a sua saída de Porto Gole até ao ingresso no PAIGC.

Data: Quinta, 26 de Setembro de 1963

Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios XI 1961-1964.

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Tipo Documental: Documentos

Direitos:
A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Arquivo Amílcar Cabral > 04. PAI/PAIGC > Relatórios/Directivas


Citação:
(1963), "Relatório sobre o ingresso de Rodrigo Rendeiro no PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41411 (2017-10-30)


Transcrição:

Dacar, 26 de setembro de 1963

Relatório ao Exmo. Sr. Secretário do PAIGC sobre a minha saída de Porto Gole, até ao ingresso nas fileiras nacionalistas (PAIGC)

No dia 3 de setembro de 1963, cerca das 7 horas da tarde, chegou a Porto Gole para libertação desta pequena vila da Guiné, dita Portuguesa, uma força nacionalista comandada pelo camarada Caetano Semedo,  e que não encontrou resistência por parte da população civil, visto esta comungar da mesma ânsia de liberdade do jugo colonialista português comandado por Salazar.

Quando o camarada Semedo chegou à minha casa comercial, convidou-me para abrir a porta da residência, com palavras e gestos corteses, o que logo me cativou e mais ainda fez luz no meu espírito[:] que os nacionalistas combatem por, e com, um ideal elevado, ou seja, a independência da sua terra do jugo capitalista e opressão salazarista, e não são indivíduos de baixos instintos, como diz a propaganda imperialista.

O camarada Semedo sabia perfeitamente que eu tinha conhecimento da sua base em [Baradoulo e não Barradul, vd. mapa de Mamboncó], povoação biafada, a 10 km de Porto Gole, e que da minha loja partia[m] os abastecimentos para os seus camaradas de luta. O meu empregado José Duarte Pinto era o responsável dos civis militantes em Porto Gole, [e] a quem eu dizia sempre que estivesse tranquilo, que da minha parte jamais haveria traição alguma, não só por viver na Guiné, dita Portuguesa, onde labutava [h]á vinte anos, mas também por encontrar nessa Guiné a mulher, de raça mandinga, e os nossos  cinco filhos, que são a minha principal família.

O camarada entendeu, como eu estava colaborando com eles, e para não sofrer [represálias](*) da parte das autoridades portuguesas, levar-me para a base de[ Baradoulo, e não Barradul] e depois para lugar seguro. Assim começou a minha viagem até à fronteira do  Senegal, passando pelas bases de Mansodé [, a sudoeste de Mansabá] e Morés, onde estive 14 dias, sendo tratado com todos os pergaminhos (sic) de delicadesa por parte do camarada Osvaldo Máximo Vieira e de seus camaradas de luta.

Parti do Morés no dia 17 do corrente, pelas 4 horas da tarde, para a fronteira do Senegal, jantando na povoção de [Fajonquito, a sul do Olossato] (**), comandada pelo camarada Mamadu Indjai, pessoa de trato afável que me dispensou todas as atenções. Depois de jantar nesta base, partimos para a povoação de Lete [, ou melhor, Leto, a sudoeste do Tancroal], onde cheguei aproximadamente às 3 horas da madrugada do dia 18. Descansámos nesta povoação até cerca das 4 horas da tarde. Donde partimos para a travessia [do rio Cacheu e não do rio Farim...] que já se fez de noite, devido à vigilância duma vedeta colonialista. 

Cerca das duas horas da manhã [, do dia 19,] chegámos à povoação fronteiriça de Jiribã [e não Giribam], já [no] Senegal, onde descansámos até  às 7 horas da manhã. De seguida partimos para [Ierã, em português, e não Eran], onde o guia nos antecedeu, partindo para Samine [, a leste de Ziguinchor, capital de Casamansa, e não Zinguichor]. Devido a má interpretação deste guia, as autoridades senegalesas tomaram-nos {por] prisioneiros de guerra, pelo que fomos detidos e algemados. 

À nossa chegada, o camarada Lourenço [Gomes], responsável do Partido em Samine, protestou junto das autoridades senegalesas, fazendo-as ver que não éramos prisioneiros mas sim refugiados que vínhamos pedir asilo no seio do PAIGC. Então fomos desalgemados e conduzidos ao lar dos camaradas,  onde almoçámos. Após o almoço seguimos para Ziguinchor, ainda detidos,  onde o camarada Lourenço [Gomes] nos antecedeu para tratar da nossa [libertação](***). 

Mas em Ziguinchor,  ainda durante [os] 4 dias [em]  que lá estivemos, continuámos detidos,  devido a [má] comunicação, com a gendarmaria, de Samine [e de] Ziguinchor, como prisioneiros. Após estes 4 dias, saímos de Ziguinchor para Dacar no dia 23, onde chegámos somente por volta das 8 horas da noite do [dia] 25, devido a uma avaria na viatura que nos transportava.

Como os nossos camaradas de Dacar, que têm como responsável o camarada [Pedro] Pires, não soubessem da nossa chegada, tivemos que dormir na prisão até  ao dia seguinte.  Depois de termos contacto como o camarada [Pedro] Pires, este dirigiu-se ao ministério do Interior, tratou dos nossos interesses e fomos postos em liberdade. Dirigi-me para o lar dos camaradas, onde me encontro desde o dia 25 do corrente.

Com o vivo protesto de saudações para o nosso partido, e que a nossa luta contra os colonialistas portugueses alcance em breve o seu fim.

[Assinatura, legível] Rodrigo Rendeiro,


 Revisão, fixação de texto e notas: Luís Graça

*No original, repressões; **  No original, Feijão Quito; *** No original, liberdade.


Parte final do relatório, datilografado, de 2 páginas, com a assinatura do comerciante português Rodrigo Rendeiro, datado de Dacar, 26 de setembro de 1963... 


1. Das vezes (duas ou três, pouco mais) que estive na sua casa, em Bambadinca, convidado para os seus famosos almoços de frango de chabéu, em geral aos domingos ou feriados, entre julho de 1969 e março de 1971, ele nunca me falou desta "odisseia" nem muito menos do seu passado de eventual militante ou simpatizante do PAIGC. 

Nem poderia falar, obviamente,  estando na presença de militares portugueses, alferes e furriéis milicianos aquartelados em Bambadinca (CCAÇ 12, CCS/BCAÇ 2852, CCS/BART 2917...), com quem gostava de conversar, aproveitando para matar saudades de Portugual e da sua terra, Murtosa,  e, eventualmente, saber coisas da tropa e da guerra...

Só muito mais tarde, depois do 25 de Abril, é que alguns de nós viemos a saber que o Rendeiro tinha sido  "informador" da PIDE/DGS (*), e que inclusive teria tido problemas na terra da sua amada esposa, Auá Seidi, mandinga, de linhagem nobre, e dos seus queridos filhos. (Sou testemunha do amor que ele tinha aos filhos, embora ele nunca os tenha apresentado  a n+os, tal como nunca nos mostrou a esposa).

Dando como certo o relato destes acontecimentos, mas pondo em causa a "sinceridade" do Rendeiro que, de um dia para o outro, se vê "apanhado" pela teia do PAIGC, os dados biográficos a seu respeito batem certo com o que  dele conhecíamos:

(i) o seu nome completo era Rodrigo [José[ Fernandes Rendeiro, natural da Murtosa, onde de resto iria falecer, tendo o seu funeral ocorrido em 10/9/2011, conforme relato do nosso camarada Leopoldo Correia, de quem era amigo desde os tempos da Guiné (##);

(ii) em Bambadinca, tratávamo-lo simplesmente pelo apelido, Rendeiro; era um homem discreto, polido, magro de cara, moreno, que pouco falava de si; e eu da sua terra, só conhecia a ria de Aveiro e o ensopada de enguias, tinha lá ido de comboio em 1963, com 16 anos numas férias grandes;

(iii) em Banmbadinca era nosso vizinho e, de certo modo, nosso "protegido"; além disso, tinha negócios com a tropa (aluguer de viaturas para transporte de material);

(iv) em 1963, o Rendeiro já estava na Guiné há 20 anos, ou seja desde os seus 17 anos; deve ter emigrado, portanto, em plena II Guerra Mundial (c. 1942/1943), e pelas nossas contas deve ter nascido por volta de 1925/1926, e não em 1920, como eu supunha, teria portanto 44 anos quando eu conheci em Bambadinca;

(v) tal como consta do seu "depoimento" acima transcrito, casou com uma senhora, de etnia mandinga /(, de seu nome Auá Seidi), de que tinham 5 filhos (à data dos acontecimentos);

(vi) nesse ano de 1963 deve ter nascido o seu filho Rodrigo Fernandes que viria a morrer, aos 53 anos de idade,  em 24 de abril de 2016 (, conforme notícia necrológica que encontrámos na Net); residia em Pardelhas, Murtosa, e era "irmão de Maria Libânia, Joaquim Carlos, Joana Maria, Álvaro Henrique, João Herculano, Maria Paula e Hilário, todos com os apelidos Fernandes Rendeiro,  e de Ana Maria Fernandes Rendeiro Bernard, já falecida" [, licenciada em direito, procuradora da República, em Lisboa];

(vii) o comandante Caetano Semedo, aqui citado, devia ser da família de  Inácio Semedo (,conhecido agricultor de Bambadinca, velho nacionalista, de quem Amílcar Cabral foi padrinho de casamento,  e foi um dos históricos do PAIGC); é uma história a aprofundar, com mais tempo e vagar...

2. Tenho dúvidas sobre a "vontade sincera e espontânea" do Rendeiro em pedir a adesão ao PAIGC e ficar em Dakar. Ele terá sido "obrigado" pelas circunstâncias a "colaborar" com o o PAIGC... Era comerciante em Porto Gole, em 1963, e vivia das boas relações com a população indígena, mas também não podia dar-se ao luxo de entrar em rota de colisão com as autoridades portuguesas. Afinal, a Guiné era a sua segunda terra e era lá que ele queria criar os seus filhos e dar-lhes um futuro.  

Lendo com atenção o documento que  acima se transcreve, parece-nos que o comteúdo e a forma não poderiam ser da lavra do Rendeiro... Alguém quis (talvez o "camarada Caetano Semedo" pou talvez o Lourenço Gomes, que estava no Senegal) mostrar bom serviço ao secretário-geral do PAIGC. A "conquista" de Porto Gole  e a "adesão" de um comerciante branco à "luta de libertação" eram dois "grandes roncos", em meados de 1963, com seis meses de guerra...

O documento está escrito em bom português, com um erro ou outro de ortografia, que corrigimos, mas é seguramente muito melhor do que o português da maior parte dos comandantes operacionais do PAIGC.

O Rendeiro, casado com uma senhora mandinga, de linhagem nobre, devia ser pessoa considerada pelos militantes e simpatizantes do PAIGC, e pela população indígena em geral. No relatório é citado o famigerado Mamadu Indjai, mandinga, que irá pôr o setor L1 (Bambadinca) a ferro e fogo em meados de 1969... Acredito que, por razões de sobrevivência, o Rendeiro tenha sido obrigado a colaborar no abastecimento da guerrilha da base de Barradul, a 10 km a norte  de Porto Gole.

Só o seu amigo (e nosso camarada) Leopoldo Correia (##), a par dos seus filhos (que devem viver em Portugal, na Murtosa), pode esclarecer este período obscuro e dramático da vida do Rendeiro. Ele regressou a casa, mas não sabemos quando. E provavelmente nessa altura deve-se ter estabelecido em Bambadinca onde eu e outros camaradas o conhecemos em meados de 1969.

Enfim, mais um episódio para a série "(D)o outro lado do combate" (###). Pode ser que o Jorge Araújo, nosso colaborador permanente e conhecedor do Arquivo Amílcar Cabral,  queira e possa acrescentar ainda  novos dados sobre este caso. O Jorge teve ter tido oportunidade de conhecer o Rendeiro, em Bambadinca, nos anos em que esteve no Xime, Enxalé e depois Mansambo (entre 1972 e 1974).

Também a nossa amiga Maria Helena de Carvalho, filha do Pereira do Enxalé, é capaz de saber algo mais sobre esta história. O Rendeiro, em Porto Gole, e o Pereira,no Enxalé, eram amigos e talvez amigos... O Pereira fixou-se em Bissau, com a família, em 1962. O Reneiro ficou. Não haveria muitos mais brancos em redor, no início da década de 1960.


3. Tentando reconstituir (e estimar o tempo de) o percurso feito pelo  Rendeiro (e a sua escolta), calculamos que ele terá feito cerca de mil km, de Porto Gole (partida a 4/9/1963) a Dacar (chegada a 25/9/1963). É uma estimativa grosseira, com base nas estradas de hoje.

O Rendeiro fez pelo menos 160 km a pé, de Porto Gole até à fronteira senegalesa, entre Bigene e Guidaje:

(i) partiu de Porto Gole no dia 4 de setembro, possivelmente logo de manhã, passando pela base de Mansodé e chegando ao Morés possivelmente no dia seguinte;

(ii) aqui ficou 14 dias, partiu no dia 17, pelas 4 horas da tarde, a caminho da fronteira;

(iii) jantou na povoção de Fajonquito, a sul do Olossato;

(iv) depois do jantar, partiu para a povoação de Leto, a sudoeste do Tancroal, aonde chegou aproximadamente às 3 horas da madrugada do dia 18;

(v) descansa nesta povoação até cerca das 4 horas da tarde do dia 18,  partindo de seguido para a travessia do rio  Cacheu, o  que já se fez de noite, para ilkudir vigilância da marinha portuguesa;

(vi) cerca das duas horas da manhã  do dia 19, chegou à povoação fronteiriça de Giribam, já no Senegal; aqui descansou até  às 7 horas da manhã;

(vii) partiu depois, em viatura, para Ierã e Samine onde foi detido pela gendarmaria;

(viii) depois do almoço, seguiu para Ziguinchor, onde ficou mais 4 dias detido;ix)

(ix) esclarecida a sua situação e o seu novo estatuto, seguiu de Ziguinchor para Dacar no dia 23, aonde chegou somente por volta das 8 horas da noite do dia 25, devido a uma avaria na viatura que o transportava (, a ele e à sua escolta).

Em resumo, as forças do PAIGC levariam normalmente entre  4 a 5 dias, do centro da Guiné (Porto Gole, na margem direita do rio Geba) até à fronteira (,corredor de Sambuiá), fazendo uma média de 30/40 km por dia. Um ferido grave, levado para o hospital de Ziguinchor, morreria fatalmente pelo caminho,,,
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(...) Infelizmente já não está entre nós, pois foi sepultado na sua terra natal [, Murtosa,] em 10/09/2011, tendo eu assistido ao funeral e tido contacto com toda a " ínclita geração", os filhos de Fernandes Rendeiro / Auá Seide, da qual só tenho a dizer bem. A que estudava em Coimbra, era licenciada em direito e era magistrada: faleceu também há cerca de 5 anos. Era juíza do Ministério Público em Lisboa. (...)

/###) Último poste da série > 25 de outubro de  2017 > Guiné 61/74 - P17905: (D)o outro lado do combate (13): Jovens recrutas do PAIGC... (Jorge Araújo)