terça-feira, 14 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17971: (De) Caras (99): Saia uma sandocha de "cabrito pé de rocha, manga di sabe" (Vitor Junqueira, ex-alf mil, CCAÇ 2753, Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim / K3, Mansabá, 1970/72; médico reformado, Pombal)

1. Já não temos notícias, desde 23 de setembro de 2011, há seis anos (!), do nosso camarada Vítor Junqueira (ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753, Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá, 1970/72), hoje médico, reformado, e a viver em Pombal.  Foi o organizador do II Encontro Nacional da Tabanca Grande, em 2007, em Pombal.


Ele tem 64 referências no nosso blogue e escreveu alguns dos nossos melhores postes...  Em 30 de novembro de 2010 disse-nos, numa nota deixada na caixa de comentários (*) que estava bem de saúde e "conectado"... Sabemos pelo seu gosto pelas viagens, ou não fora ele, noutras vidas, oficial da marinha mercante. É seguramente um  daqueles nossos camaradas que já deu várias vezes a volta ao mundo...

Lembrei-me dele e, sem pedir-lhe licença, vou republicar aqui um dos textos mais saborosos que ele nos deixou e que os nosso "periquitos" (os membros da Tabanca Grande entrados nos anos mais recebtes) têm também o direito (e a obrigação) de conhecer...

Já na altura, considerei a história da sandocha de "cabrito pé de rocha, manga di sabe" como  uma daquelas histórias dos nossos encontros e desencontros com aqueles povos amigos e hospitaleiros da Guiné, que um dia teria de figurar na antologia do nosso blogue!...  (Ele não me chegou a mandar, e ainda bem, a receita do "cabrito pé de rocha, manga di sabe"). (**)


2. Cabrito pé de rocha, manga di sabe

por Vítor Junqueira


Quando a minha Companhia [, a CCAÇ 2753,] aterrou em Bissau, após uns dez dias de viagem no velho N/M T/T (era mais ou menos esta a sigla para navio motor  de transporte de tropas) Carvalho Araújo (#), fomos acolhidos no cais do Pidjiguiti por malta que eu não conhecia de lado nenhum, que soltava uns piu-piu esquisitos cuja razão de ser não entendia. 

Soube ali que eram os choferes, velhinhos, das camionetas que nos haveriam de conduzir ao destino. As viaturas, alinhadas em coluna ao longo do cais, estavam a ser carregadas enquanto as entidades superiores tratavam da papelada. Até ao desembaraço da Companhia, e enquanto carrega, não carrega, os piu-piu acossavam-nos de todos os lados. Comecei a ficar enervado e com apetite!

Naquela zona portuária, que se poderia chamar marginal da Amura, existiam umas tabernas semelhantes às que poderíamos encontrar em qualquer lugar do Portugal de então: um garrafão de cinco litros ou um ramo de louro pendurado na frontaria, e uma tabuleta com os dizeres "casa de pasto, vinhos e petiscos".

Seriam para aí umas quatro da tarde quando entrei numa delas. Pela primeira vez na vida dirigi-me a alguém de outra... etnia. A situação era nova para mim e um pouco estranha. Meio tonhó, perguntei num português escorreito e pausado a uma negra, com estatura de bisonte, que se encontrava sentada num mocho do lado de dentro do balcão:
– Boa tarde, minha senhora, tem alguma coisa de que possa fazer uma sandes?
– Tem. Tem sim. Olha, tem cabrito pé de rocha, tem...
– Cabrito?
– Sim, cabrito, é muito bom. Ainda está quente.

Virou-me as costas e dirigiu-se para um canto da baiúca de onde regressou com um pequeno tacho de barro na mão contendo uns pedacitos de carne guisada, com bom aspecto e um cheiro capaz de fazer um morto babar-se. Perguntou-me o que queria beber e falou-me em coisas estranhas, Fanta, Coca-qualquer-coisa... Pedi uma laranjada.

Ali fiquei encostado ao balcão a vê-la rasgar a carcaça e nela acomodar o conduto. Ia magicando com os meus botões o quanto as aparência iludem. Aquela mulher enorme era um monstro de simpatia, nos gestos, no brilho do olhar, na doçura da voz. Acho que começou ali a minha paixão pela Guiné. Serviu-me com delicadeza numa pequena mesa de pinho, carunchosa e coxa, que só se mantinha de pé porque estava encostada à parede.

Comi. E que bem me soube. Ao fim de tantos dias a comer a lambeta de bordo, que nem era má, mas à qual o balanço do navio retirava todo o requinte, aquele petisco caiu-me que nem ginjas. Paguei em escudos, recebi o troco em pesos e saí animado com a perspectiva das vindouras patuscadas de cabrito pé de rocha que já se perfilavam no meu horizonte de expedicionário. Fosse parar aonde quer que fosse, não faltaria caça daquela, pois se até na cidade se encontrava ao dispor... Aquele cabrito era mesmo delicioso. E o apelido pé de rocha? Devia estar relacionado com o habitat do animal. Altas montanhas com os picos cobertos de neve, pensei eu. O Kilimanjaro devia ficar ali perto, provavelmente.

Juntei-me ao resto da guerra, a quem dei conta das minhas descobertas e lá vou com a tropa toda, sob um altíssimo astral, direito ao AGRBIS (eu sabia lá o que isso era!). À nossa espera estava um hangar, sem portas, sem janelas, sem luz e com milhões de mosquitos, gordos e ferozes. Nos oito dias seguintes dormimos em cima dos ferros das camas porque colchões também não havia para distribuir. E quanto à bianda, ração de combate ao almoço, ração de combate ao jantar. Sobremesa, sempre à base de mancarra que umas garotas apareceram por ali a vender dentro de uns penicos que transportavam à cabeça.

O problema maior era a água. Na altura grassava uma epidemia de cólera no território pelo que nos aconselharam a beber só água engarrafada. Resultado, ao terceiro dia estava não só falido, como via as dívidas a acumularem-se. É que a única água engarrafada disponível que havia era a Perrier, usada no tratamento do whisky, que eu comprava a oitenta mil réis cada garrafa, no bar dos oficiais do Depósito de Adidos que ficava ao lado. Escusado será dizer que, por essa razão ou outra qualquer, houve caganeiras monumentais.

E eis que recebo guia de marcha para ir comandar os destacamentos de Safim e João Landim.

Força instalada, faço o reconhecimento da zona e concluo que no que respeita a infra-estruturas de apoio como tasca, restaurante, animação (batuque e bajudas), posso considerar-me um homem de sorte. Tenho ao dispor um fundo de maneio e o seu parente, o inevitável saco azul. Agora sim, tinha qualidade de vida. Permitíamo-nos comer quase à la carte. Além disso, por ali não se ouviam tiros. Perfeito...

É neste contexto que, estando um dia a bater uma galharda sesta, sou acordado subitamente por um militar que me vem perguntar se pode ir lá fora dar um tiro com a G3...
– A quem? – perguntei.
– Não sei bem de que se trata – diz ele – É um gajo da população que está ali à porta de armas a pedir que vá alguém à tabanca abater uma peça de caça.
– Alto e pára o baile – disse eu, meio desconfiado. – Quem lá vai sou eu.

Visto os calções num ápice, enfio os chinelos, pego na canhota que tinha dependurada à cabeceira da cama e, todo nervoso, antecipando um presunto de gazela para o tacho, dirijo-me ao cavalo de frisa que servia de porta de armas.

Lá estava o homem. Pareceu-me inofensivo. Pediu-me que o seguisse, enquanto, num crioulo que eu já começava a entender, me explicava que se tratava de um cabrito pé de rocha que andava por ali a vaguear. Nisto aponta para o cocuruto de uma árvore e diz:
– Pessoal, olha ali. Por favor mata ele...

Fiz um único disparo. Aos meus pés caiu um bruto babuíno (macaco-cão) que devia pesar para aí uns trinta quilos. 

Dispensei a minha quota-parte da caçada! (##)

Vítor Junqueira (***)

[Revisão / fixação de texto: LG]
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Notas do autor:

(#) Esta foi a última viagem do Carvalho Araújo. De Lisboa para Bissau, navegou notavelmente adornado a estibordo. No regresso, ouvi dizer que chegou pelo seu pé a Cabo Verde, tendo sido depois rebocado até ao seu destino final.

(##) Voltei a comer cabrito pé de rocha, muitos meses depois e, desconhecendo a ementa, numa acção de Psico. Outra delícia! Um dia destes mando a receita.
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Notas do editor:

(*) 30 de novembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7363: Que é feito de ti, camarada ? (1): Prakistou, diz o Vitor Junqueira, mas não desconectado

(...) Pois, meus caros, eu prakistou, mais ou menos bom de corpo, de cabeça, dirão vocês e, não é verdade que ande por aí, meio perdido, meio desconectado. Estou convosco todos os dias, normalmente mais do que uma vez por dia! Aprecio a matéria dada, revejo-me nalguma prosa e, tacanho que sou, apenas pressinto na verve a corda lírica, vibrante e fácil, dom de apenas alguns tertulianos. (...)

(**) Vd. poste de 11 de novembro de  2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): "Cabrito pé de rocha, manga di sabe" (Vitor Junqueira)

(***) Último poste da série > 24 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17901: (De)Caras (99): o comandante do BCAV 2868 (Bula, 1969/70), o ten cor cav Carlos José Machado Alves Morgado, mais o com-chefe António Spínola, em Pete, em 9/11/1970 (Victor Garcia, ex-1º cabo at cav, CCAV 2639, Binar, Bula e Capunga, 1969/71)

Guiné 61/74 - P17970: Parabéns a você (1340): César Dias, ex-Fur Mil Sap Inf do BCAÇ 2885 (Guiné, 1968/70); Jacinto Cristina, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3546 (Guiné, 1972/74) e Maria Arminda Santos, ex-Tenente Enfermeira Paraquedista (1961/1970)



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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17963: Parabéns a você (1339): José Manuel Lopes, ex-Fur Mil Art da CART 6250 (Guiné, 1972/74)

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17969: Lembrete (28): Para os camaradas da 23ª hora: termina à meia-noite o prazo de inscrição para o 34º almoço-convívio, em Algés, da Magnífica Tabanca da Linha... O vice-régulo Manuel Resende estava audivelmente feliz, ao telefone, há um bocado: com 72 inscrições, ía-se entrar para o livro dos recordes do Guiness!... Atenção, malta, que o cabrito do "Caravela de Ouro" é da Serra, certificado, não é o "cabrito pé de rocha, manga di sabi" que alguns de nós comemos, em sandocha, no mercado de Bandim...

72 magníficos e magníficas já estavam inscritos às 20h00 de hoje para o próximo almoço/convívio da Tabanca da Linha, 5ª feira, dia 16, às 13h00, no restaurante "Caravela de Ouro", em Algés (*)...

O Manuel Resende, vice-régulo da Tabanca da Linha, estava hoje, às 20h00, audivelmente feliz pelo número de inscrições recebidas até então... Disse-nos ele que já "tínhamos batido o recorde do Guiness" com tantos amigos e camaradas da Guiné a preparar-se para dar à língua e ao dente, daqui a 3 dias, no "Caravela de Ouro, em Algés...

Ele garante (e o régulo Jorge Rosales certifica, de papel passado) que  cabrito no forno do "Caravela de Ouro" é mesmo da  Serra (com maiúscula), assado no forno, não é  nem cabrão,  nem "cabrito  de rocha, manga di sabi", que alguns de nós provámos em sandocha, em Bissau.... e até chorámos por mais!... 

Melhor, de facto, só o do "Caravela de Ouro", em Algés!
Afinal de contas, este país, em geral, e esta tabanca, em particular, estão longe de querer fechar as portas...

Os retardatários ainda têm uma hora, a 23ª, para se inscreverem... Repete-se a informação há dias publicada no nosso blogue (**):

Guiné 61/74 - P17968: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 2: A recruta no Porto


José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74. Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo hoje autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção). Senta-se debaixo do poilão da Tabanca Grande no lugar nº 756.


Fotos: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O autor em Amarante, onde vive hoje, reformado como bate-
chapas. 
1. Prosseguimos a pré-publicação do próximo livro do nosso camarada José Claudino Silva, de quem o nosso editor recebeu hoje a seguinte mensagem:

Estás à vontade para o que quiseres publicar em relação ao que te enviei.

Só irei publicar o livro no próximo ano. Consegui um excelente preço por exemplar e tenho um amigo a corrigir-me o texto, o  que ainda demora uns dias.

Logo que o livro esteja pronto vou propor fazer apresentações por todo o país nos eventos organizados pelas várias associações.A  minha real prioridade é, através dessa ideia, viajar e aproximar o quanto possível todos os ex-combatentes. Se vendo ou não algum livro é irrelevante.

Quero conhecer histórias como a minha e só assim o poderei conseguir. Nestes últimos tempos percebi que cada classe hierárquica tem uma visão diferente da guerra colonial e quero ao meu jeito verificar as discrepâncias que noto nos vários relatos.
Será o meu contributo para memória futura.

Um enorme abraço. Claudino


2. Resposta do nosso editor:

Obrigado, José Claudino,  pela tua rápida resposta às minhas dúvidas sobre o que publicar ou não da versão (ainda em revisão) do teu terceiro livro. O que estamos a fazer é um pré-publicação da versão que me mandaste (119 pp., com cerca de 70 pequenos capítulos).

Já foram publicados bastantes livros de autores que são membros da nossa Tabanca Grande. E praticamente todos editados  primeiro no blogue (nalguns casos, depois...), num série.  Esse facto não lhes retirou leitores, antes pelo contrário. O que é importante é fazer a promoção do livro, aqui e através de sessões de lançamento em vários pontos do país, nos nossos encontros. Podes contar connosco para isso e não só: se precisares de alguém para te escrever um prefácio ou fazer a apresentação do livro podes contar comigo e outros camaradas da Tabanca Grande.

Parabéns por já teres um editor, ou um gráfica, que te apresentou um orçamento em conta. Fazes bem em mandar fazer uma boa e completa revisão de texto, aspeto que muitas vezes é descurado por quem publica pela primeira vez, ou em editoras que te obrigam a pagar a parte a revisão de texto.  Nada é mais desagradável, para quem compra um livro, do que ver um texto, em papel (ou em suporte digital...) demasiado "gralhado".. Uma coisa é uma gralha ou outra que escapa ao revisor de texto. Outra coisa, é teres erros de ortografia, sintaxe, pontuação, formatação, impressão, etc.

Obrigado pela tua generosidade. Prometo que vais ter leitores desta tua série, atentos, interessados e críticos, se bem que solidários e generosos.  Um alfabravo do editor LG


4. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 2:  A recruta [no Porto]

[O autor faz questão de não corrigir as transcrições das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. Por outro lado, respeitamos a vontade do autor de, aparentemente, não seguir o Acordo Ortográfico em vigor. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Prátia", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, que o criou. ]


2º Capítulo: A RECRUTA

No dia 4 de Janeiro de 1972 escrevia a primeira carta como soldado.

“Isto aqui é bestial a comida até nem é muito má. Não devo ir a casa pois não me deram a farda”- Para no dia 10 escrever. “Agora já sei marchar, se não, o alferes manda dar-me uma carecada. Ai o meu cabelinho já o tenho curto de mais e ele ainda acha que está grande!” Sem dramas, acrescentava: “O papel que meti para sair por amparo familiar não vale nada. Paciência tenho de gramar 3 anos.”

Interessante, foi a frase da minha avó, quando me viu fardado pela primeira vez;
Ai Dino! O que te fizeram!

Logicamente, 15 dias depois já me apetecia dar um tiro, ou pôr uma bomba naquela merda toda, só que ainda não sabia disparar. Nem fazer bombas. Também a comida, que entretanto mudara de nome para rancho, já não era tão boa. Felizmente, dia 21 ia haver uma festa no quartel e eu ia estar de faxina, na cozinha.

Após um mês de recruta, mais precisamente no dia 8 de Fevereiro [de 1972], um pouco melancólico, escutava, à noite, a canção “Mais dans la lumière” de Mike Brant, um cantor pop de origem israelita que viveu entre o sucesso e a tragédia (suicidou-se em Abril de 1975 com apenas 28 anos,em Paris).. Mesmo não sendo fã dele, naquele tempo era bastante famoso e o título agradava-me. Embora não soubesse francês, consegui saber que significa. “Mas na luz”. Se a música era sobre a luz, a minha vida tinha tudo para nos próximos anos, ser muito escura.(**)

Ser recruta na cidade do Porto foi muito interessante. Mais de metade dos meus camaradas de armas nunca tinham saído das suas aldeias e eu, que já tinha visitado o Porto muitas vezes, acabei por ser o guia de alguns. Escusado será dizer que os locais, aonde mais os levava, eram locais de má fama; mas quem acabou por ter má fama fui eu. Já havia quem me considerasse um autêntico gigolô. Que culpa tinha eu de conhecer o Porto, da Via Norte à Rua Escura? E mais. Pagarem-me um café, ou uma gasosa, por os guiar até lá. Eu nem bebidas alcoólicas bebia. Se queria algum favor, de uma das mulheres, tinha de pagar como os outros. Excepto a Luísa, mas essa gostava mesmo de mim!

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. primeiro poste da série > 11 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17961: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 1: Aprovado para todo o serviço militar

(**) "Mais dans la lumière", de Mike Brant

Letra (aqui com a devida vénia)

L'ombre étend son manteau
Et ton corps est déjà bien plus chaud
Et je vois dans tes yeux
Une larme, un aveu.

Mais dans la lumière
Tes yeux crient bien plus fort
Je t'aime, je t'aime, je t'aime, je t'aime.

Mais dans la lumière
C'est une arène d'or où
Je me bats au corps à corps.

Mais dans la lumière
Tes yeux crient, je t'adore
Je t'aime, je t'aime, je t'aime, je t'aime.

Mais dans la lumière
C'est une eau bleue qui dort où
Je me baigne encore

La nuit revient bientôt
Pour éteindre le feu de ma peau
Et mon sang n'est plus fou
Car tes yeux sont trop doux-

Mais dans la lumière
Tes yeux crient bien plus fort
Je t'aime, je t'aime, je t'aime, je t'aime-

Mais dans la lumière
C'est une arène d'or où
Je me bats au corps à corps.
Òù je me bats au corps à corps,
Je t'aime, je t'aime, je t'aime, je t'aime.

Mais dans la lumière
Tes yeux crient bien plus fort, je t'aime
Je t'aime, je t'aime, je t'aime.

Mais dans la lumière
C'est une arène d'or où
Je me bats au corps à corps.

Mais dans la lumière
Tes yeux crient bien plus fort
Je t'aime, je t'aime, je t'aime, je t'aime
Mais dans la lumière-

Autor: Renard Jean
Compositeur: Renard Jean
Editor: Editions Des Alouettes,Amplitude Editions Musicales
Para saber mais:

Guiné 61/74 - P17967: Álbum fotográfico de Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil, CCAÇ 4740 (Cufar, dez 72 / jul 73) e Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, jul 73 /ago 74) (22):A população de Cufar


Foto nº 1 > Casamento balanta: o fotógrafo à esquerda da noiva


Foto nº 2 >  Dia de festa na tabanca: vai um cigarrada para todos



Foto nº 3 > Debaixo do poilão


Foto nº 4 > Pesca (1)


Foto nº 5 > Pesca (2) [ou balanta a trabalhar na bolanha com o "kebindé"  ?]


Foto nº 6 > A lavadeira Sábado com o seu bebé


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 4740 > 1973 > População de Cufar

Fotos (e legendas): © Luís Mourato Oliveira (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Mais fotos do álbum do Luís Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro, que foi alf mil inf, de rendição individual, na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar, 1.º semestre 1973) e, no resto da comissão, comandante do Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, 1973/74).

São fotos da população. O nosso camarada António Graça de Abreu, que lá esteve . de fins de junho de 1973 a princípios de abril de 1974, descreve Cufar nestes termos, no seu "Diário":


(...) " Cufar, 26 de Junho de 1973

Adapto-me, moldo-me a um novo quotidiano ingrato. Podia ser pior, pode sempre ser pior.

Estou no sul da Guiné em zona de muita guerra. Os guerrilheiros continuam a dispor de boas hipóteses para vir a Cufar chatear quem cá vive, de resto, eles também não moram longe. De momento creio que têm mais com que se preocupar mas qualquer dia voltam cá, de certeza.

Em Cufar não existe propriamente um quartel, as instalações militares são pouco mais do que uma dezena de pequenas casas separadas umas das outras, vivemos praticamente misturados com a população o que é uma vantagem em caso de flagelação. Os africanos, das etnias balanta, beafada, mandinga, fula coexistem com a tropa, nem muito, nem pouco amigos. São frequentes pequenos sarilhos entre as NT e as gentes da terra mas sem gravidade, cada um trata de si". (...) (**).

Não encontro no diário do António Graça de Abreu nenhum referência ao Luís Mourato Oliveira. mas um e outro chegaram a estar juntos em Cufar (em junho/julho de 1973), o Abreu a chegar (a 25 de junho) e o Oliveira a partir, umas semanas depois.

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(**) Vd.  2 de fevereiro de  2012 > Guiné 63/74 - P9437: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (7): Andava-se de sintex, com motor de 50 cavalos, no Cumbijã, nas barbas do PAIGC... e fazia-se esqui aquático no Cacine...

Guiné 61/74 - P17966: Agenda cultural (605): Apresentação do livro "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor", de Paulo Cordeiro Salgado, dia 16 de Novembro de 2017, pelas 15h00, na Messe de Oficiais, Praça da Batalha, Porto



APRESENTAÇÃO DO LIVRO "GUINÉ, CRÓNICAS DE GUERRA E AMOR", DE AUTORIA DO NOSSO CAMARADA PAULO CORDEIRO SALGADO, DIA 16 DE NOVEMBRO DE 2017, PELAS 15H00, NA MESSE DE OFICIAIS, PRAÇA DA BATALHA, PORTO

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1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 11 de Novembro de 2017:

Meu Caro Carlos Vinhal,
Com um abraço, envio-te a notícia que coloquei no facebook.
Teu camarada e amigo
Paulo Salgado

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Praça da Batalha
Com a devida vénia a Torrada e Meia de Leite


Por diligência do Sr. Coronel Belchior, o meu livro "Guiné - Crónicas de Guerra e Amor"[1] será apresentado na messe dos Oficias no Porto. 

A apresentação será feita pelo meu Amigo Dr. Amaral Bernardo, médico do HGSA, que também esteve na Guiné como médico militar e, mais tarde, como cooperante comigo no mesmo projecto de formação de quadros guineenses. 

Este evento decorrerá na messe de oficiais, à Rua Alexandre Herculano, n.º 68, Porto, no dia 16.11. 2017, às 15 horas. 

Conto convosco, estimáveis amigos.
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Notas do editor

[1] - Vd. postes de:

22 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16747: Agenda cultural (522): No passado dia 17 de Novembro de 2016, foi apresentado no Porto, no Auditório da "Fundação Portugal África", o livro "Guiné Crónicas de Guerra e Amor" da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721 (Carlos Vinhal)

30 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16894: Notas de leitura (915): “Guiné, Crónicas de Guerra e Amor”, da autoria de Paulo Salgado, Lema d’Origem Editora, 2016 (1) (Mário Beja Santos)
e
2 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16907: Notas de leitura (916): “Guiné, Crónicas de Guerra e Amor”, da autoria de Paulo Salgado, Lema d’Origem Editora, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17952: Agenda cultural (604): Hoje, às 18h30, na Fundação Calouste Gulbenkian, no Auditório 2, sessão de lançamento da obra "Médicos e Sociedade: Para uma História da Medicina em Portugal no século XX" (Lisboa: By the Book, 2017, 863 pp.)....A obra foi superiormente coordenada por A. L. Barros Veloso, e tem cerca de 4 dezenas de autores, um dos quais o nosso editor Luís Graça (capítulo 04: "Ricardo Jorge e a modernização da Saúde Pública" , pp. 18-33)

Guiné 61/74 - P17965: Notas de leitura (1014): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

Aqui se põe termo às considerações sobre uma obra de leitura obrigatória para quem pretenda conhecer a montagem e o funcionamento das redes de informações a cargo da PIDE/DGS em Angola, nos países limítrofes, entre 1963 e 1970, e na Guiné, entre 1971 e 1973, 

Fragoso Allas foi protagonista cimeiro de tais atividades. Vemo-lo como alferes e tenente miliciano na Guiné, mais de quatro anos. Em 1962 ingressa na PIDE, depois de lhe ter sido recusada a carreira militar. A convite do inspetor São José Lopes vai para Angola, instala nova cifra e dá vida a um sistema de informações que envolve os dois Congos e a Zâmbia. É nessa fase de notoriedade que lhe determinam que deve ir para a Guiné, Spínola é muito insistente.

Renova a rede de informações, aproveita os comerciantes que se deslocam pelo Senegal e pela Guiné Conacri. Diz categoricamente que a PIDE na Guiné não foi minimamente havida e achada no assassinato de Cabral. Finda a sua comissão, vê as suas férias interrompidas, precisam do seu talento em Moçambique. Segue-se o 25 de Abril e mais tarde a fuga para a África do Sul.
Livro de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


De leitura obrigatória: o diretor da PIDE/DGS na Guiné, no tempo de Spínola, na primeira pessoa (3)[1]

Beja Santos

António Fragoso Allas permanece na Guiné de meados de 1971 a Setembro de 1973, Spínola regressa em Agosto, Allas não aceita o convite de Bettencourt para ficar, diz-se exausto, fizera uma longa comissão na Guiné no período que antecede a eclosão da guerrilha, ingressa na PIDE, segue para Angola e daqui para a Guiné. Supusera vir desfrutar de uns meses de descanso. Mas em Março de 1974 é-lhe comunicado que devia assumir imediatamente o seu novo posto, Moçambique.

Todo este percurso consta do livro “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar, Edições Colibri, 2017.

A sua presença na Guiné foi aqui observada com detalhe. Não é despiciendo tudo quanto ele vai fazer em Angola, logo em 1963, a convite do inspetor São José Lopes. Aqui se inicia uma longa conversa sobre a reorganização da rede de informações, em postos de fronteiras cruciais, com a colaboração de alguns comerciantes e explica porquê:  

“Os guerrilheiros vindos dos países vizinhos entravam no território nacional e, mais tarde ou mais cedo, precisavam de comprar coisas, desde uns fósforos até mercurocromo para as feridas. Se o comerciante era pessoa que estava atenta e quando alguém lhe dizia isto é para os que estão lá, logo se começava a saber algo. Esse próprio comerciante podia chegar a tornar-se a cabeça de uma rede de informadores, dado que ele estava em condições de fazer favores ou fornecer qualquer coisa aos guerrilheiros, que depois nós compensávamos, pagando as coisas fornecidas ou patrocinando-lhe algum favor. No Leste de Angola, os madeireiros sabiam muita coisa. Eles tinham as serrações instaladas no mato. O importante é que eles tinham assalariados africanos e estes, mais tarde ou mais cedo, quando se estabelecia alguma confiança, falavam e começavam a ser ponto de ligação com o outro lado”.

Allas recebera uma importantíssima missão: melhorar a qualidade das informações, intensificar as relações com as autoridades dos países vizinhos onde isto podia ser feito, caso do Congo-Kinshasa ou na Zâmbia. O entrevistado detalha o seu trabalho, o trabalho com a rede de Léopoldville, a criação de corpos auxiliares (o antecedente dos “Flechas”), o que se sabia sobre a FNLA, o MPLA e a UNITA, as operações para intimidar a Zâmbia, grande apoiante do MPLA. E depois Kinshasa, havia que dividir para reinar, estimular o ódio de Mobutu pelo Congo-Brazzaville, deixá-lo intimidado com os catangueses instalados em Angola.

Mesmo depois de Mobutu ter cortado relações com as autoridades portuguesas, as coisas mudaram a partir de 1969, o tirano de Kinshasa propunha às autoridades portuguesas de Angola que convidassem Holden Roberto para visitar Angola e negociar com ele o pagamento a fazer pelos portugueses de todas as contas decorrentes da guerra conduzida pela FNLA contra o MPLA. E Fragoso Allas observa: “Se tivesse sido aceite o plano de Mobutu não teria sobrado um MPLA vivo”.

As autoridades portuguesas rejeitam, o circuito informações em Kinshasa não perdeu importância, a PIDE colaborou nas operações em Brazzaville, era imprescindível desestabilizar o regime de esquerda, chegou mesmo a propor-se a operação Bikini, o Governo de Caetano rejeitou a participação portuguesa, havia o receio de que Mobutu pretendesse ocupar Cabinda. Com minúcia, Allas expõe o seu relacionamento com as figuras gradas as informações zairenses, como se constituíra a rede de espiões em Brazzaville, dá conta do relacionamento entre as autoridades portuguesas e a UNITA, contactos que se estabeleceram na zona Leste, em 1972 e explica:  

“Os aspetos mais importantes, para os interesses portugueses, em todo este processo de conversações resume-se em três pontos: Em primeiro lugar, a obtenção de informações sobre a atividade do MPLA e da FNLA na zona militar Leste e dados referentes às bases e meios do MPLA na Zâmbia. Em segundo lugar, conseguir que a UNITA atue contra o MPLA e a FNLA, sobre coordenação do comando militar português e nas áreas determinadas por este. Esta coordenação conduziu a resultados dignos de menção. Em terceiro lugar, a não intervenção das forças da UNITA contra as tropas portuguesas, as quais, por sua vez não interfeririam com os guerrilheiros daquele movimento quando atuavam nas zonas que tinham atribuídas para a execução de ações devidamente autorizadas para comando português. Em troca desta colaboração por parte da UNITA, as autoridades portuguesas comprometiam-se a satisfazer duas solicitações de Savimbi: o fornecimento de diverso material (medicamentos, sementes, material escolar básico, animais de raça caprina) e, além disso, a assistência de um médico militar português a Savimbi, doente na mata, o que foi concretizado em 2 de Dezembro de 1972”.

É este o inspetor da PIDE a gozar de prestigioso currículo que é chamado para a Guiné, pelo seu trabalho receberá um prestigiante louvor.

Já vimos que as suas férias foram interrompidas, é enviado para Moçambique em 1974. Fala-se do apoio discreto dado por Baltazar Rebelo de Sousa à GUMO (Grupo Unido de Moçambique), cuja figura de proa era Joana Simeão, havia que cooperar no estreitamente de relações entre Portugal e a República da África do Sul e fala-se no plano ALCORA, Allas apresenta-o:  

“O plano ALCORA tinha interesse porque permitia a compra de importante material de guerra. Estão a dizer que era muito importante mas só o era por este lado. Nós comprávamos aviões C-130 e T-6 de treino à República da África do Sul que ali tinham chegado ao fim da vida e nós transformávamo-los em aviões de combate”.

Fala-se a seguir na operação Coliflower, organizada por militares rodesianos. Quando detetavam um grupo da ZANU registavam nos mapas da grande sala de operações e enviavam os helicópteros Alouette III. A seguir iam no seu encalço, dividindo-os em pequenos grupos até os exterminar completamente.

Era previsível que Fragoso Allas assumisse o cargo de diretor da DGS em Moçambique, entretanto dá-se o 25 de Abril, em Maio o General Costa Gomes manda-o prender Jorge Jardim na Beira, aqui descobriu que Jardim nada tinha a ver como fomentador das manifestações contra os militares, além disso não estava na Beira, encontrava-se em Lisboa.

A conversa deriva para o desmantelamento da PIDE, inicialmente supusera-se o aproveitamento da PIDE em África como polícia de informações militar, mas tudo estava em derrisão, os Flechas já tinham fugido para a Rodésia. Segue-se a operação Zebra que tinha finalidade de deter na sua quase totalidade os quadros da direção e investigação da extinta DGS. Allas recebe guia de marcha para Angola, descreve o clima convulsivo que se vive em Luanda. Spínola demite-se após os acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, Fragoso Allas, via Madrid, ruma para a África do Sul, dedicou-se a negócios. Anos mais tarde, passou a visitar Portugal.

O livro inclui um anexo fotográfico e um anexo documental bastante interessante. Doravante, não se pode estudar as redes de informações instituídas pela polícia política do antigo regime sem consultar este imprescindível trabalho.
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Nota do editor

[1] - Vd. postes de:

30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)
e
6 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17940: Notas de leitura (1011): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17956: Notas de leitura (1013): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (8) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17964: Manuscritos(s) (Luís Graça) (129): o deus-sol ou... quem disse que uma imagem vale mil palavras ?...






Lourinhã > Praia da Areia Branca > 11 de novembro de 2017 > Das 17h59 às 18h02 > Pôr do sol  >

Fotos (e legenda) : © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


O deus-sol

por Luís Graça (*)


Quem disse que uma imagem vale mais 
do que mil palavras ?
Quem o disse, com tanta segurança,
é porque  conhece o poder da imagem
mas não o poder da palavra.
Uma e outra digladiam-se.
Uma e outra são armas e podem ser letais.
Mas entre a imagem e a palavra
eu tomo o partido da palavra.

Sou um compulsivo espetador do pôr do sol...
Confesso: é uma adição, 
o espetáculo do pôr do sol,
mesmo que seja uma treta: 
o gajo volta aparecer-nos, todas as manhãs,
depois de nos pregar a partida da noite, do breu, das trevas...
O gajo vai dar uma volta,
enquanto nos manda  fazer xixi e cama,
ao mesmo tempo que tomamos consciência
da nossa humana fragilidade:
somos seres circadianos,
com um delicada cronobiologia,
e sobretudo tememos a noite,
como o diabo, dizem, teme a cruz...

O sol dá-nos tanga, 
vai dar um volta,
vai bronzear os gajos e as gajas esculturais,
nossos vizinhos, 
nas praias que ficam na ponta mais a oeste,
enquanto nós, a leste,  afiamos as facas e os punhais.
A noite é má conselheira,
a noite é criminosa,
a noite é a cama de todos os pesadelos,
de todas as insónias,
de todas as matanças,
de todas as conspirações...
Mas é o sol, afinal,  que alimenta a vida e a morte,
a coragem e a perfídia.
E também o sonho.
E os poetas malditos.
Por mim, confesso a minha secreta adição:
não perco um pôr do sol, na praia...
E tenho dificuldade em viver na montanha
onde o sol se põe atrás de outra montanha...

Todos, de resto, temos uma adição,
do sexo às caminhadas,
do "shopping" às redes sociais,
das "slot-machines" ao álcool,
dos psis à escrita...
Mas o pôr do sol é um espetáculo tão esmagador
que ficamos sem palavras...

É difícil legendar a imagem de um pôr do sol, 
sem dizer trivialidades,
lugares-comuns,
frases feitas...
Mais: é difícil arranjar mil palavras
para contrapor a uma imagem.
Achamos que uma imagem se basta a si própria,
mas é pura ilusão.
Sem os teus olhos, sem os teus óculos,
nunca saberás ler
uma imagem.

Os poetas desistem de fazer poemas ao pôr do sol...
É mais fácil adorá-lo, ao sol, como um deus.
E um deus não precisa de adjetivos,
porque é um fenómono metasíco total.
Um deus, como o sol, é o conteúdo e o continente.
O sol é o puro deleite e o puro terror.

Luís Graça,
Praia da Areia Branca, 11 de novembro de 2017
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(...) Confesso que sou um adorador do sol. Venero o sol como um deus. Devo a vida ao sol. Perturbam-me os eclipses, totais ou parciais do sol. Extasio-me com o pôr do sol, e não tanto com o nascer. Sei que o sol é um dado adquirido. Mas um dia, daqui a alguns milhões de anos, o sol apaga-se. Pensava-o imortal: quando descobri, aos catorze ou quinze anos, que um dia o sol vai morrer, tornei-me ateu.

Nunca liguei ao sol na Guiné. Ou melhor: odiei-o, com um ódio de morte. Não tinha o mar, no interior, no mato, para me deslumbrar com o nascer e o pôr do sol. Além disso, detestava o sol porque havia guerra, e penosas operações que nos levavam à desidratação e, "in limine", à morte. Odiei o sol na Guiné, razão por que sempre preferi a noite. Dormia de dia, sempre que podia. E, quando morrer, e se eu ainda puder escolher, quero morrer ao pôr do sol. Ainda não escrevi o meu testamento vital, mas quero lá pôr essa cláusula. Minha querida Chita, não posso morrer na tua/nossa Quinta de Candoz, onde o sol se põe às cinco da tarde, emparedado pelas montanhas. (...)

Guiné 61/74 - P17963: Parabéns a você (1339): José Manuel Lopes, ex-Fur Mil Art da CART 6250 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17954: Parabéns a você (1338): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2790 (Guiné, 1970/72) e Jorge Araújo, ex-Fur Mil Op Esp da CART 3494 (Guiné, 1971/74)

domingo, 12 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17962: Blogpoesia (537): "Entro no mar...", "As minhas sombras..." e "Assombramento...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Foto: © Carlos Vinhal


1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Entro no mar...

Como Pablo Neruda na sua Isla Negra,
entro no mar, pensando na metáfora do Universo.
Que nos contém e nos abraça.

******

Abraço as ondas ternas num vaivém constante.
Me deleito na suavidade da sua água tépida.
Mergulho meu corpo leve
e saboreio a doce sensação da intimidade.
Meus pés na areia ocultos,
agradecem o grato alívio que o mar lhes dá.
Olho ao longe a linha ténue do horizonte infindo.
Escorre-me na pele a frescura da água que me banha a mente.
Poiso minhas pálpebras para que os olhos sonhem.
Outra galáxia se abre à frente
onde, radioso, o belo mora em plenitude.
Me enlevo olhando tantas cores bailando.
Desenham formas tão belas, nunca meus olhos viram.
Se não viesse da noite o frio,
Quereria aqui ficar eternamente...

Ouvindo Maria João Pires tocando Mozart
Berlim, 7 de Novembro de 2017
7h45m
Jlmg

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As minhas sombras…

Há tanto, começou a viagem.
Vai longa. Se perde no tempo.
São imensas as sombras na sepultura.
Umas de longe. De ouvir falar.
Pelo jornal e rádio. Televisão, internet, depois.
Outras, muitas, de ao pé de mim.
Os meus vizinhos, onde nasci.
Ali bem ao sol. Na linda encosta.
Depois cresci. Me fiz ao mundo.
Os vejo a todos.
Lhes oiço o falar. As suas vozes.
O seu sorrir.
Eram tão puros. Pobreza enorme.
Com tão pouco viviam.
Eram felizes.
Me ponho a contá-los.
Tantas centenas.
Todos com nome.
Tanto me deram.
Ainda vivo deles.
Há muitos anos.
As minhas sombras benignas.
Das outras, não,
Todas esqueci…

Berlim, 8 de Novembro de 2017
8h15m
Jlmg

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Assombramento…

Assombrado, deixo-me levar nas asas do sonho, pelo mundo fora.
Por desertos e pradarias.
Oásis e recantos de maravilhas.
Vou na busca da felicidade,
Essa mágica sereia estonteante, tão esguia e fugidia.
Busco a paz da consciência e a alegria abrasadora da harmonia.
Quero banhar-me no mar sossegado da mansidão.
Atrair a mim a serenidade inebriante da beleza iluminada.
E como uma estrela refulgente permanecer ao alto apaixonado pela grandeza do universo.
Sou amante da vida que me foge.
Arde fogo no meu peito com as labaredas do infinito…

Ouvindo, concerto n.º 1 por Hélène Grimaud ao piano
Amanheceu cinzento e gelado
Berlim, 11 de Novembro de 2017
8h24m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17937: Blogpoesia (536): "A Terra e o Sol...", "Aquela força..." e "Cantos e recantos...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

sábado, 11 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17961: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 1: Aprovado para todo o serviço militar




















Ontem e hoje: o José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74. Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um  "homem que se fez a si próprio", sendo hoje autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção). Senta-se debaixo do poilão da Tabanca Grande no lugar nº 756. (*)

Fotos: © José Claudino da Silva (2017).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Vamos começar a publicar uma nova série, da autoria do José Claudino da Silva, com excertos das memórias que ele deixou registadas nas cartas que trocou com a futura esposa, ao longo da sua comissão de serviço no CTIG (1972/74). 

Em 18 de outubro último, ele já tinha concorado com "a publicação de alguns episódios do livro 'Em Nome da Pátria', com a seguinte ressalva: "O que estiver a negrito mesmo que contenha erros vou manter inalterado pois quero ser fiel ao que escrevi há 45 anos. No restante agradeço alguma revisão que seja necessária."

Originalmente o livro era para se chamar  "Em Nome da Pátria"... Alguém, do nosso blogue, o nosso crítico literário Mário Beja Santos, alertou-o para o facto de esse título já estar registado (Em nome da Pátria: Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa,  da autoria de João José Brandão Ferreira: Lisboa, Livros d'Hoje, 2009,  608 pp.; prefácio do prof Adrinao Moreira).

Então ele e nós pensámos em outros títulos possíveis...Por exemplo, "O Que Te Aconteceu, Soldado ?!... Acabou por comunicar-nos a sua últimna decisão: " Mudei o nome para: 'AI DINO! O QUE TE FIZERAM! Foi uma frase que me disse a minha avó quando me viu fardado pela 1ª vez."

E assim vai ser... esperando nós que ninguém, outro Dino, lhe roube o título... [O subtítulo, a usar no blogue, é da nossa responsabilidade: Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74)... Naturalmente é demasiado comprido e obstruso para um livro.).

Vamos começar então a publicar as suas memórias, não na íntegra (, porque ele vai querer editar e vender o livro em papel, falta-lhe apenas escolher a editora...), mas através de uma seleção de capítulos, feita pelo próprio... Temos, para já, disponíveis, os seguintes capítulos, num total de 20 páginas:  1, 6, 13, 16, 20, 23, 30, 41, 50, 63.

Entretanto, no mesmo dia (22 de outubro último) ele decidiu "enviar a versão completa já com uma primeira revisão" e a seguinte observação:  "Ando a tentar encontrar um preço menos oneroso que a Chiado Editora para publicar o livro".

Esta "versão definitiva" tem data de 7 de outubro último: são 7 dezenas de capítulos, 119 pp, incluindo imagens. Temos que esclarecer ainda se ele nos autoriza a fazer a pré-publicação, na íntegra, deste seu "manuscrito" (ainda com o título "Em Nome da Pátria")... Se sim, é um privilégio que ele concede aos seus camaradas da Guiné, esperando em contrapartida os seus comentários,  generosos sem deixar de ser críticos. (LG)


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capº 1: Aprovado para todo o serviço militar


POR AQUILO QUE JÁ LI SOBRE A GUERRA COLONIAL, NAS ANTIGAS PROVÍNCIAS ULTRAMARINAS, PARECE-ME QUE A MINHA GUERRA FOI OUTRA.

A MINHA GUERRA FOI ESCRITA NA ÉPOCA. POR VEZES, HORA A HORA.

TODOS OS CAPÍTULOS SE BASEIAM NO QUE ESCREVI ENTRE O DIA 4 DE JANEIRO DE 1972 E O DIA 9 DE JUNHO DE 1974. NESSE PERÍODO, ENVIEI, POR ESCRITO, E SÓ PARA UMA PESSOA, MAIS DE 400.000 PALAVRAS, UMA MÉDIA DE 450 PALAVRAS DIÁRIAS.

COMEÇOU… ASSIM!
CICA  1 - Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas

Foi ali, junto ao Palácio de Cristal, um local paradisíaco, que comecei a minha luta "Em Nome da Pátria".


1º Capítulo: APROVADO PARA TODO O SERVIÇO MILITAR

Entre o dia 27 de Junho de 1970 e o dia 17 de Outubro de 1974, fui apenas um número, e os números são insensíveis. Afinal, são apenas 1.358 dias, ou 32.592 horas. Em minutos, apenas 1.955.520 e uns míseros 117.331.200 segundos. Pois bem, durante cento e dezassete milhões, trezentos e trinta e um mil e duzentos segundos, eu deixei de ser José Claudino da Silva e passei a ser o 158532/71.

Se acreditam que, de facto, os números são insensíveis, não leiam mais, mas em contrapartida, se já foram apenas um número, e, se por qualquer razão, o vosso possa ter afinidades com o meu, venham comigo.

É pela ordem cronológica das cartas que escrevi, há 45 anos, para a dona Maria Amélia Moreira Mendes que faço o relato do que vivi na guerra colonial. A primeira carta foi escrita no dia 4 de Janeiro de 1972. A última no dia 9 de Junho de 1974. No dia 10 do mesmo mês, recebi um dramático telegrama.

Em momento algum me passou pela cabeça fugir, para evitar a tropa. Fervoroso admirador do Major Alvega e da guerra aos quadradinhos, nos anos 60 do século XX, estava longe de pensar, quando assentei praça nas forças armadas do meu país, que iria mesmo participar numa guerra real.
Filho duma mendiga que tinha mais cinco filhos, a viver com a minha avó e uma prima que dependiam de mim para sobreviver, enviarem-me para a guerra colonial. Qual filme, o regresso do soldado Ryan, foi um crime que deveria ter sido julgado pelo tribunal dos direitos humanos.

Passei a pertencer às forças armadas em 27 de Junho de 1970, mas só tive a real noção de que não era meu dono no dia 3 de Janeiro de 1972.Durante estes meses, já a minha avó e eu vivíamos numa espécie de tortura psicológica e, sempre que o carteiro trazia uma carta, a minha avó, analfabeta, dizia-me:
– Dino, chegou uma carta, deve ser da tropa.

Acreditem! Foi uma libertação a chegada do dia em que assentei praça; a espera tinha acabado, eu ia mesmo para a tropa. Talvez não fosse para a guerra. Afinal, eu não era lá muito corajoso.

(Continua)
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Notas do editor:


18 de outubro de  2017 > Guiné 61/74 - P17875: Tabanca Grande (449): José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART /BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74, escritor, natural de Penafiel, a residir agora em Amarante... Passa a ser o novo grã-tabanqueiro nº 756

17 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17868: O nosso livro de visitas (195): José Claudino da Silva, ex-1º cabo condutor auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74, autor do livro de ficção "Desertor 6520" (Lisboa, Chiado Editora, 2016, 418 pp.)

Guiné 61/74 - P17960: O poemário de Mário Vitorino Gaspar: Ler poesia faz bem ao cérebro e a minha proposta de leitura para hoje é... (2): "O Morteiro", paródia do poema "Lágrima", de Guerra Junqueiro (1888), da autor desconhecido, possivelmente alferes do CEP, que esteva na Flandres em 1917


"O Morteiro" é uma paródia ao poema  'A Lágrima', de Guerra Junqueiro, incluído no 'Relatório de combate de 9 a 12 de Abril de 1918 - Lembranças', caderno manuscrito por Raul Pereira de Araújo, alferes de artilharia, transmontano,  sobrevivente da Batalha de La Lys. 

O autor do poema é desconhecido, mas foi seguramente escrito por um alferes.

Como escreveu Guilhermina Mota, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbram (2006, p. 92): " Muitos dos poemas de guerra são de autores desconhecidos (...). É provavelmente o caso de "O morteiro". Não restará dúvida, porém, pelo que se depreende da leitura, que foi escrito por um alferes. Pelo que, se os versos não pertencem ao nosso relator [,o alferes de artilharia Raul Pereira d'Araújo], com eles devia sentir forte identificação. Neles, não é a qualidade literária que mais importa, mas sim a manifestação do sentir. Através de uma critica verrinosa, o autor deixa entrever uma grande desilusão com as patentes superiores, insinuando a sua inépcia, a sua tibieza, o seu diletantismo, destacando no "velho solar antigo" a sua origem de classe."

Raul Pereira de Araújo [, foto à esquerda, acima, reproduzido da Ilustração Portugueza. II série, n.° 596 (23 de Julho de 1917), p. 651, cit por Guilhermina Mota, 2006]:

(i) nasceu em Trás-os-Montes, na vila de Mesão Frio, em 15 de Janeiro de 1892;

(ii) ali fez a instrução primári,  rumando depois à cidade do Porto,  onde completaria,  no Liceu Rodrigues de Freitas o "Curso Complementar de Sciencias,com inglez", em 1912;

(iii) assentou praça em 15 de Janeiro de 1913, tendo feito a recruta no Regimento de Infantaria 23, em Coimbra, em cuja Universidade se encontrava a estudar;

(iv) concorreu à Escola de Guerra, no ano lectivo de 1914-1915, tendo terminado o curso em 1916;

(v) foi depois promovido a aspirante a oficial, e colocado no Regimento de Artilharia 7, em Viseu, tendo passado antes pela Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, a fazer o curso de tiro.

(vi) promovido a alferes de artilharia, em 28 de maio de 1917, parte no mês seguinte parte para França para integrar o Corpo Expedicionário Português, tendo sido colocado na 3ª  Bateria do 2.° Grupo de Baterias de Artilharia.

(vii) viive os meses seguintes nas trincheiras da Flandres e encontrava-se na frente em 9 de abril de 1918, quando se deu a Batalha de La Lys;

(viii) foi um dos sobreviventes da batalha de La Lyz, traumática para o exército português e para o país, ao ponto de ter chegado  a ser descrita na época como o "Novo Alcácer-Quibir"...

Fonte: MOTA, Guilhermina -  Batalha de La Lys: um relato pessoal. "Revista Portuguesa de História" t. XXXVIII (2006) pp.77-107


1."O morteiro", paródia à "Lágrima" de Guerra Junqueiro
(Mota, 2006, pp. 104-107)


Noite de frio intenso, uma trincha escavada,
Lúgubre, sepulcral, agoirenta... e mais nada,
Trincheira onde a morte apanha vis pancadas
Em banquetes de sangue arrancado em ciladas
Na trincha oposta, onde o boche reina e impera
Em rasgos e expansões de forte besta-fera.
Um oficial audaz, olho do batalhão,
Descobriu, dum morteiro grosso, a posição,
Maquinismo feroz que se cumpre o dever,
Ao perto e ao longe tudo faz estremecer.

Eis que passa um general com seu estado-maior,
Tenentes, capitães e creio que um major
E, ao saber que existia ali a posição,
Caiu sobre os joelhos e disse: - Perdão!
Consente-me que passe; sabes que é preciso
Dar exemplo ao soldado, fingir o sorriso,
Para que ele veja em mim virtude, um nobre exemplo
De guerreiro d' outrora. Mas eu te contemplo
Com o maior respeito; nunca te fiz mal.
É certo que por vezes do Quartel-General,
Em notas irritantes cheias de iniquidade,
Ordeno muito tino, muita actividade,
Mas nada mais; já vês portanto que o meu crime
É bem banal e encerra apenas, ele exprime
A pretensão sabuja de mostrar tesura
Que não tenho, confesso. Mas a morte é dura
E eu não quero morrer; por isso tem paciência,
Esparge sobre mim um pouco de clemência
Que a minha cobardia, com respeito e agrado,
Te dirá sempre: mil vezes muito obrigado.

E o morteiro feroz com seu enorme bojo...
Sorriu... tremeu de raiva... e cuspiu com nojo.

Passa depois o chefe de certa brigada,
Muito pressuroso e proa alevantada,
E, ao conhecer a história do grosso morteiro,
Deixou de ser um chefe... para ser sendeiro
Titubeou, vacilou, perturbou-se e caiu.
Depois de um silêncio enorme quando sentiu
Reanimar-se, disse assim: - Morteiro amigo!
Eu tenho, em Portugal, velho solar antigo
Cheio de raridades ao mais alto preço!
Pois bem, deixa-me passar, eis o que te peço,
Dez minutos somente de tréguas na guerra
E prometo-te levar-te para a minha terra.
Para no meu solar servires de ornamento
Em rico salão nobre e cheio de espavento
E, se um dia morrer, hei-de deixar escrito
Que tu foste a mais nobre arma deste conflito,
E assim atestarás depois à eternidade
Como nós espalhamos a...Fraternidade!


E o morteiro feroz com o seu norme bojo
Sorriu... tremeu de raiva... e cuspiu com nojo.



Aproximou-se então um cachapim tonante,
Com ar superior, nojento, revoltante.
Imensas ordenanças quais tristes jumentos,
Carregam com mil mapas e regulamentos
Mas, ao saber ali da triste aparição,
Ficou desnorteado e gaguejou então:
- Com a minha inteligência eu posso num momento
O kaiser derrubar e o próprio firmamento!
Com um papel e um lápis, arte, génio e manha,
Eu faço derruir num ápice a Alemanha!
Olhando bem para mim, assim de frente a frente
Vê-se logo que eu tenho um cérebro potente!
E, para corroborar tudo isto, afinal,
Olhai-me bem e vede as palmas e o braçal.
Pois palmas e braçal tudo isto eu dou, morteiro!
Se prometeres deixar-me o meu corpinho inteiro
E eu dou-te mais ainda planos de extermínio
Para espalhares a dor, a dor e o teu domínio
E se não estás contente ainda, paciência,
Só posso dar-te mais e minha inteligência
E assim poderás tu encher a tua pança
À custa de mil bifes e da própria França.

E o morteiro feroz, com seu enorme bojo
Sorriu... tremeu de raiva... e cuspiu de nojo.


De súbito um alferes, que tudo tinha visto,
Assoma na trincheira como um imprevisto,
Vem nervoso, colérico, d'olhos em brasa,
O seu olhar crepita, fere, mata, abrasa.
E, meditando assim em tanta vilania
Que por ali passava em todo aquele dia,
Estremece, febril; e, como um furacão,
Dirige-se para a linha todo em convulsão
E, quando chega ali, subindo ao parapeito,
Assim fala ao morteiro descobrindo o peito:
- Que pena a minha Pátria, terra de brasões,
Agasalhar em si canalhas e poltrões!
Nunca julguei em terra de heróis e guerreiros
Pudesse haver assim tamanhos embusteiros!
Nunca, jamais, em tempo algum sequer um dia
Pensei de Portugal em tanta covardia,
Nunca julguei que em campo de heróis e façanhas
Pudessem aparecer sabujices tamanhas!
Que nunca ninguém saiba os crimes deste dia,
Que eu não quero viver em tanta porcaria,
Por isso, ó morteiro, te peço bem do fundo,
Dispara um tiro só, leva-me do mundo.

E o morteiro bojudo, o morteiro audaz
Expediu um pesado... e matou o rapaz.

[Revisão e fixação de texto: LG]


2. Poema original, "A Lágrima", de Guerra Junqueiro, datado de 1888 [, texto recuperado aqui]



Manhã de Junho ardente. Uma encosta escavada, 
Sêca, deserta e nua, à beira d'uma estrada. 

Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha, 
Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha. 

Sôbre uma folha hostil duma figueira brava, 
Mendiga que se nutre a pedregulho e lava, 

A aurora desprendeu, compassiva e divina, 
Uma lágrima etérea, enorme e cristalina. 

Lágrima tão ideal, tão límpida, que ao vê-la, 
De perto era um diamante e de longe uma estrêla. 

Passa um rei com o seu cortejo de espavento, 
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento. 

- "No meu diadema, disse o rei, quedando a olhar, 
Há safiras sem conta e brilhantes sem par, 

"Há rubins orientais, sangrentos e doirados, 
Como beijos d'amor, a arder, cristalizados. 

"Há pérolas que são gotas de mágua imensa, 
Que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa. 

"Pois, brilhantes, rubins e pérolas de Ofir, 
Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir 

"Nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema, 
Vendo o Globo a teus pés do alto do teu diadema!" 

E a lágrima deleste, ingénua e luminosa, 
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa. 

Couraçado de ferro, épico e deslumbrante, 
Passa no seu ginete um cavaleiro andante. 

E o cavaleiro diz à lágrima irisada: 
"Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada! 

"Far-te hei relampejar, de vitória em vitória, 
Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória! 

"E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro, 
Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro. 

"E assim alumiarás com teu vivo esplendor 
Mil combates de heróis e mil sonhos d'amor!" 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa, 
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa. 

Montado numa mula escura, de caminho, 
Passa um velho judeu, avarento e mesquinho. 

Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro: 
Grandes arcas de cedro, abarrotadas d'oiro. 

E o velhinho andrajoso e magro como um junco, 
O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco, 

Vendo a estrêla, exclamou: "Oh Deus, que maravilha! 
Como ela resplandece, e tremeluz, e brilha! 

"Com meu oiro em montão podiam-se comprar 
Os impérios dos reis e os navios do mar, 

"E por esse diamante esplêndido trocara 
Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!" 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa, 
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa. 

Debaixo da figueira, então, um cardo agreste, 
Já ressequido, disse à lágrima celeste: 

"A terra onde o lilaz e a balsamina medra 
Para mim teve sempre um coração de pedra. 

"Se a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso, 
O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso. 

"Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos, 
Ouvi trinar, gorgear a música dos ninhos. 

"Nunca junto de mim ranchos de namoradas 
Debandaram, cantando, em noites estreladas... 

"Voa a ave no azul e passa longe o amor, 
Porque ai! Nunca dei sombra e nunca tive flor!... 

"Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d'água, 
Cai na desolação desta infinita mágoa!" 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa, 
Tremeu, tremeu, tremeu... e caíu silenciosa!... 

E algum tempo depois o triste cardo exangue, 
Reverdecendo, dava uma flor côr de sangue, 

Dum roxo macerado, e dorido, e desfeito, 
Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito... 

E ao cálix virginal da pobre flor vermelha 
Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...