quinta-feira, 5 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18488: (Ex)citações (335): a crítica "agridoce" de Mário Beja Santos ao meu livro "Guiné-Bolama, história e memórias" (Fernando Tabanez Ribeiro)


Fernando Tabanez Ribeiro [, foto que nos enviou o autor, e que será proximammete apresentado como membro da nossa Tabanca Grande, nº 770]


Capa do livro de Fernando Tabanez Ribeiro, "Guiné-Bolama, história e memórias" (Lisboa: Âncora Editora, 2018, 224 pp.)


1. Sobre o autor, Fernando Tabanez Ribeiro:

(i) nasceu em Coimbra a 11 de Junho de 1946;

(ii) viajou para a Guiné Portuguesa ainda na primeira infância, onde fez a escola primária e o antigo primeiro ciclo dos Liceus na modalidade de ensino particular, em Teixeira Pinto (Canchungo) e Bolama;

(iii) voltou à Metrópole para concluir o ensino secundário em Coimbra e seguidamente, o curso de Engenharia Química (1971) do Instituto Superior Técnico em Lisboa;

(iv) cumpriu o serviço militar na Armada entre 1971 e 1973, tendo sido mobilizado para a Guiné como oficial imediato de uma Lancha de Fiscalização Grande (LFG), navio patrulha das águas territoriais e dos principais rios da Província, durante a guerra colonial;

(v) o conhecimento da sociedade na Guiné e particularmente em Bolama, nestes dois períodos marcantes da sua vida, em criança e na fase adulta, analisado à luz da nossa histórica presença naquele território, está na origem deste livro;

(vi) regressado à Metrópole em 1973, desempenhou a sua actividade profissional na área da indústria alimentar como engenheiro, consultor e gestor, em Portugal e na R. P. Angola, encontrando-se hoje aposentado.

Fonte: Adapt. de Âncora Editora


2.  Mensagem do nosso leitor e camarada Fernando Tabanez Ribeiro, com data de 29 de março último:

Prezado Professor Luis Graça , editor do Blogue LG & Camaradas:

Dirijo-me a si deste modo, já que em breve formalizarei a minha inscrição no V/ Blogue, um ambicioso projecto que constitui hoje precioso acervo de documentação para a História da Guiné e da Guerra do Ultramar.

Apresento-me: sou o Fernando Tabanez Ribeiro, ex-militar miliciano da Armada em comissão de serviço na Guiné (1971/73) com o posto de 2º Ten. da Reserva Naval (Classe de Marinha) e autor do livro "Guiné-Bolama. História e memórias", da Âncora editora, recentemente vindo a público(26 Fev. 2018).

Digo-lhe ao que venho: o meu livro foi objecto de recensão por Mário Beja Santos nas colunas do V/ Blogue (Parte 1 em 15 Março seguida de Parte 2 em 26 Março), o que me leva a solicitar a divulgação do texto (em Anexo) no mesmo espaço. É o meu contraditório e,  de algum modo, uma crítica à crítica de MBS.

Antecipadamente grato pela V/ atenção envio cordiais saudações

Fernando Tabanez Ribeiro

3. "Guiné – Bolama, história e memórias" e a crítica de M. Beja Santos

por Fernando Tabanez Ribeiro

Li com muita atenção a análise crítica (Parte 1 e 2 do Blogue) de Mário Beja Santos [, MBS,]  do meu livro Guiné-Bolama (*), o que à partida, vindo de quem vem, me deixa lisonjeado, para mais, quando nos diz que leu atentamente tudo e por duas vezes. E mais satisfeito fico, ao constatar que o “Guiné-Bolama” justifica a pormenorizado exame de três páginas que dele faz MBS. Se o livro o não merecesse, certamente não perderia tempo com ele. Só por isso, o livro algum mérito terá.

A critica de MBS é “agridoce”, porventura mais acre do que doce, mas não me surpreende, pois tenho a noção de que, alguns dos factos e temas abordados, podem ser discutíveis e até mesmo objecto de alguma polémica. E ainda bem que assim é.

Comecemos pelo lado “doce” do mail introdutório à sua crítica, quando refere a “ternura e o saudosismo” da minha descrição e a compara com Fernanda de Castro, nome grande das nossas letras. Concordo em que este aspecto saudosista seja comum a ambos, o que muito me honra. No entanto, a minha vivência e da Mariazinha em África foram forçosamente diferentes, dadas as mudanças operadas na sociedade colonial, desde os anos vinte até aos anos cinquenta do meu tempo. A paisagem, no que se refere à “exotismo e à sedução”, continuaria a ter o mesmo efeito aos olhos do europeu, mas em relação ao “desconhecido” já não e ao paternalismo muito menos, porque entretanto muita coisa se passou na Guiné. Essa mudança tem a ver com Velez Caroço, Sarmento Rodrigues e principalmente ...trinta anos de aceleração do tempo histórico.

Há uma enorme diferença de grau quanto ao paternalismo das nossas visões, a dela e a minha. Apesar do longo caminho para a integração social que ainda faltava percorrer, a verdade é que a relação entre o patrão europeu e os criados indígenas (que continuavam a existir no meu tempo), não era a mesma e na escola, entre professores e alunos e de condiscípulos entre si, também não. Mas, no essencial estou de acordo com MBS neste ponto e havendo acordo, não há polémica.

Passemos agora ao lado acre da crítica propriamente dita, quando MBS começa por se interrogar (referindo-se a mim): “ ...a que público,em que sala de conversa ele se põe para falar de uma História da Guiné aos solavancos, glosando descrições já referenciadas em inúmeras obras, tudo contado até à
exaustão, tudo documentado e conhecido? Não se consegue entender.” E questiona-se sobre a razão porque “não relevei documentação científica recente acerca do que era a Guiné quando lá chegaram os portugueses, da literatura de viagens e das janelas para a presença portuguesa na Senegâmbia
no séc XVI, a exemplo do historiador guineense Carlos Lopes e José Silva Horta e Eduardo Costa Dias que constituem um património da historiografia luso-guineense de valor incalculável”, … e “não compreende a minha preocupação em voltar ao assunto da escravatura”. No entender de MBS, a descrição que faço do ciclo da escravatura é “consabida até à exaustão”, nada nos ensina de novo, rematando com Vitorino Magalhães Godinho [, VMG,], onde o essencial está dito e explicado.

A isto, eu limito-me a dizer: Valha-me Deus! É sabido que se escreveram milhares de livros e textos sobre História de Portugal, os quais necessariamente se reportam aos mesmos factos (não há outros). É óbvio que a esmagadora maioria destes autores se repetem de algum modo, na medida em que nos contam a mesma coisa de forma mais ou menos interessante, consoante o talento de cada um e a respectiva interpretação dos factos. Mas, basicamente dizem-nos o mesmo ou parecido. É certo que há autores inovadores, embora poucos, a começar por Fernão Lopes, a que todos os outros recorrem se querem falar acerca da crise de 1383-85 e a acabar modernamente, como muito bem diz MBS, em Magalhães Godinho, o “Papa” da economia e sociologia dos Descobrimentos e da Colonização, igualmente uma referência, pelo novo tipo da abordagem que faz da Expansão.

Quanto à Guiné, também André Álvares de Almada, António Carreira e Teixeira da Mota, além de outros em aspectos mais pontuais, são inovadores. São por isso fontes do conhecimento histórico. Mas haverá sempre muito para dizer, quanto mais não seja para efeitos de divulgação ou enquadramento de realidades sociais que se pretendem explicar, como modestamente pretende ser o “Guiné-Bolama”.

Tomemos como exemplo, o que MBS escreve no seu excelente trabalho, de parceria com Francisco Henriques da Silva, intitulado “Da Guiné portuguesa à Guiné-Bissau – Um Roteiro” (principalmente na sua 1ª parte dedicada à História da Guiné e tratada com grande pormenor), em que é tudo (ou quase), mais ou menos “consabido”, consoante o grau de conhecimentos dos respectivos leitores. Devo confessar que o li com muito agrado e que lá aprendi muita coisa que desconhecia ( por ignorância minha e não porque seja novidade o que lá vem descrito), embora não me tenha socorrido dele para o meu trabalho. 

Considero por outro lado que o “Roteiro” e o “Guiné-Bolama”, se dirigem a leitores com interesses diferentes, o primeiro para iniciados que queiram aprofundar o seu conhecimento global sobre a Guiné e o segundo de carácter mais superficial e numa perspectiva especialmente direccionada para
Bolama. Já agora, aproveito para me penitenciar pelo facto de, no meu livro, ter referido o “Roteiro” apenas na Bibliografia, sem uma palavra especial no miolo do texto, como de facto merecia.

Não sou historiador, nem sociólogo, tão pouco escritor, o que não me coíbe de ter opinião.E foi porque entendi que a minha vivência na Guiné e particularmente em Bolama durante a derradeira fase da época colonial deveria ser partilhada com os outros, que decidi escrevê-la, tanto mais que o desconhecimento do cidadão comum em relação à Guiné é enorme, o que é compreensível.  E o que sabem sobre a Guiné, confina-se normalmente à Guerra Colonial de que há ainda memórias vivas e pouco mais. O meu propósito limitou-se a transmitir ao leitor comum alguma coisa do que sei, e não a especialistas (a esses nada tenho para ensinar), exceptuando a descrição à lupa que faço de Bolama e da pequena comunidade colonial bolamense da década de 1950 que poderá, essa sim, ter algum interesse como contribuição sociológica confinada à micro-história e se perderia, não fosse este registo.

Aqui,  MBS é parco em encómios, limitando-se a referir a “ternura com que falo da rapaziada”.

Correndo o risco de me repetir, direi que a minha proposta foi apenas e tão somente, a de traçar um bosquejo histórico do que foi a Guiné Portuguesa, como apareceu e evoluíu ao longo do tempo, para a partir daí, dotar o leitor do enquadramento indispensável à compreensão do que foi, representou e como entrou em declínio Bolama, uma criação sui generis da nossa colonização, ao fim e ao cabo, o objectivo central a que me proponho. E nas palavras de um crítico que muito prezo, fi-lo “ ... sem renegar o passado da Guiné Portuguesa e pondo o dedo nas feridas coloniais, nas da transição e nas actuais ...”

É ainda nesta perspeciva de abordagem genérica do quadro histórico da Guiné que eu justifico a omissão dos nomes de Carlos Lopes, Silva Horta e Costa Dias, investigadores de referência de primeira linha no âmbito das “sociedades pré-coloniais da Senegâmbia e das trocas civilizacionais ocorridas com a presença portuguesa no séc. XVI”, como muito bem refere MBS. Trata-se de estudos claramente do domínio de especialistas e investigadores e que se situam para além do nível de divulgação, como é o caso de “Guiné-Bolama”.

E aqui, volto a lembrar uma vez mais, que o meu objectivo central é Bolama.

Se já em relação a outros temas estruturantes, MBS considera que me alonguei de mais, então se entrasse em linha de conta com todos estes aspectos... nem daqui a dois anos acabaria de escrever o livro.De qualquer modo aqui fica o mea culpa pelo facto de não ter citado estes autores, ao menos na Bibliografia, a qual, enferma ainda de outras lacunas (reconheço).

Do exposto, espero que MBS tenha ficado com uma ideia de qual é a “sala de conversa em que me situo” e por conseguinte qual é o “público” a que me dirijo (não é a ele com certeza, que é um especialista).

Outro ponto: Discorrer sobre a escravatura como tema fulcral do quadro histórico da Guiné colonial parece-me inevitável, ou não fosse este período a principal razão de ser da nossa presença na Guiné ao longo de três séculos e meio, ou seja, muito mais de metade de um total de cinco séculos, desde os
Descobrimentos até à Independência. Aqui, para além de ser criticado pelo tema “consabido até à exaustão”, também o sou por ter, pretensamente, “desassombrado” o esclavagismo português face ao de outras potências europeias. Uma tal asserção só pode ter a ver com o facto de eu ter enfatizado
a justificação do nosso pioneirismo nesse campo, no que teria sido entendido como uma defesa do nosso esclavagismo, ou por ter analisado o sistema com os óculos da época em que isso aconteceu e não pelos critérios de hoje, ou por ter associado ao negócio os irmãos étnicos dessas vítimas, realçando a sua coparticipação no tráfico a par dos negreiros ou ainda porque importa condenar,
avant tout, o colonialismo português, independentemente dos contextos em que se insere.

É certo que MBS também não rejeita a minha análise, antes se limita a referir que tudo foi dito e explicado por VMG, sendo por isso redundante voltar a falar nisso, “remexendo em matéria consabida” como ele diz. Eu não penso assim e entendo que é, e continua a ser, um dever imperativo insistir na cabal e correcta clarificação desta questão central, até porque desse modo, estou também a defender o meu país. Alexandre Sousa Pinto no Prefácio do “Guiné-Bolama” está em sintonia com isto, o que me faz sentir confortável. Não sou inocente, na medida em que há autores (MBS pensa que são “fantasmas” mas eu afirmo-lhe que eles existem e não são poucos), que continuam a iludir muita gente com informação tendenciosa, ou ideologicamente retorcida a ponto de subverter a verdade e que estão apostados em classificar o nosso colonialismo, incluindo a vertente esclavagista, como sendo o pior de todos, ou dos piores. 

Penso que são benvindas todas as contribuições no sentido de valorizar a análise do tema com verdade, imparcialidade e distanciamento a fim de pôr termo a tais equívocos. Daí a minha intransigência nesse ponto, bem explícita desde logo na dedicatória do meu trabalho, quando afirmo: Dedico este livro a Bolama, à Guiné Portuguesa e ao meu país. Não incluo MBS neste rol, mas que a sua posição de omitir o tema, alegando que “Há dezenas de anos que está tudo dito sobre o assunto”, não ajuda muito, lá isso é verdade.

MBS considera ainda que a minha narrativa do quadro histórico da Guiné, é feita “aos solavancos”e aqui terá alguma razão; eu próprio me apercebi disso, obrigando-me a reformular o texto por forma a minimizar o defeito. Isso decorre da minha tentativa de conciliação da abordagem temática (mais clara e elucidativa) de certos assuntos, sem perder o fio cronológico dos acontecimentos, igualmente importante. O discurso ganha em clareza mas admito que tenha custos (os tais “solavancos”).

A 2ª Parte da recensão nada nos traz de novo. Que é matéria mais que conhecida, o não envolvimento da PIDE no assassinato de Amílcar Cabral e o papel de Sekou Touré, as várias hipóteses goradas visando a Independência da Guiné, assim como a triste sucessão de golpes, confrontações, a luta pelo
poder, a venalidade, etc, que continuam a marcar o quotidiano do cidadão comum desde a Independência até hoje, a justificar o desencanto dos guineenses, dando exemplos de vários autores e trabalhos onde tudo isso vem explicado.

Eu por mim, continuo a achar que faz sentido a abordagem destes assuntos, ainda que a traços largos, para assim fechar o quadro histórico da realidade em que se insere Bolama, tanto mais que o faço por palavras minhas.Falei da Guiné antes de Bolama e voltei a falar dela depois da Bolama “moribunda” que antecede a Independência, procurando caracterizar a Guiné nos seus aspectos mais conspícuos. 

Faz ainda um reparo, nomeadamente a falta de rigor quando digo que AC teria sido expulso por Melo e Alvim. É um aspecto que pouco afecta a narrativa do curso dos acontecimentos mas, o rigor acima de tudo e terá razão MBS, pois não duvido da credibilidade das suas fontes.

MBS termina com ainda com dois reparos à melhor obra que, do meu ponto de vista se produziu até hoje sobre a História da Guiné (1879-1926) de Armando Tavares da Silva [ATS]. Acontece que, precisamente à hora de concluir este meu arrazoado, acabo de tomar conhecimento dos esclarecimentos dados pelo professor ATS sobre este assunto...e mais não digo. (**)

A “decepção” de MBS acerca do meu livro “Guiné-Bolama” é precisamente a mesma que para mim representou a sua recensão.

Fernando Tabanez Ribeiro
_____________

Notas do editor:

(*) Vd.postes de:


26 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18460: Notas de leitura (1052): “Guiné-Bolama, História e Memórias”, por Fernando Tabanez Ribeiro; Âncora Editora, 2018 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18487: (D)o outro lado do combate (24): estudo sociodemográfico: o caso do bigrupo do cmdt Quintino Gomes (1946-1972) (Jorge Araújo)



Foto nº 1 > Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > Estrada Xime-Bambadinca > Ponta Coli  22 de Abril de 1972 > Local do combate com o bigrupo do PAIGC, comandado por Mário Mendes (1943-1972). A cor vermelha indica as posições dos elementos do bigrupo. A linha azul refere a distribuição das NT, após o início da emboscada dirigida às duas viaturas em que nos fazíamos transportar.


Foto nº 2 > Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Imagem da progressão de uma força da CCAÇ 12, a 3 Gr Comb. (do camarada Luís Graça), no subsector do Xime, na época das chuvas. Foto do ex-fur mil at inf Arlindo Roda, com a devida vénia. Poste P10209.


Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue desde março de 2018



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > UM NOVO OLHAR SOCIODEMOGRÁFICO DE UM BIGRUPO > O CASO DO BIGRUPO DO CMDT QUINTINO GOMES (1946-1972) 

1. INTRODUÇÃO


Em Dezembro de 2016 apresentei no fórum da «Tabanca Grande» – P16865 – aquele que foi considerado o primeiro estudo sociodemográfico de um bigrupo de guerrilheiros, com o título «Mário Mendes (1943-1972) - O último Cmdt do PAIGC a morrer no Xime».

A vontade, o interesse e a motivação para a realização deste estudo, nascera há quatro décadas e meia atrás, naquele já longínquo «22 de Abril de 1972», sábado, e que no mesmo dia, mas do ano seguinte (1973), correspondeu ao Domingo de Páscoa. E a principal razão estava ligada ao meu "baptismo de fogo", e ao do meu Gr Comb (o 4.º) da CART 3494, episódio dramático ocorrido no lugar designado por «Ponta Coli», na estrada Xime-Bambadinca, local onde diariamente cada um dos 3 Gr Comb, em regime de rotação, desempenhava a missão de garantir a segurança a pessoas e bens, civis e militares, em trânsito de ou para Bissau, por via marítima.

Aí aconteceu o primeiro grande combate da CART 3494, em que estiveram frente a frente, a uma distância de escassas dezenas de metros, um efectivo de 20 operacionais, mais 2 condutores e o picador Malan Quité [NT], e um bigrupo reforçado do PAIGC, superior a cinquenta unidades que, agindo de surpresa como seria espectável, e habitual, nos procurou aniquilar. Alguns dias depois, soube-se que tinha sido o bigrupo do Cmdt Mário Mendes. [Vd, foto nº 1, acima].

Desse combate resultaram dezassete feridos, entre graves e menos graves, e um morto, o meu/nosso camarada furriel Manuel Rocha Bento (1950-1972), natural da Ponte de Sor, a nossa única baixa em combate. Eu saí ileso, o mesmo acontecendo aos condutores das duas viaturas e mais dois operacionais do meu Gr Comb.

Do outro lado, ainda não consegui apurar as consequências de tamanha ousadia.

Quatro semanas após ter organizado e comandado aquela emboscada na «Ponta Coli», voltaríamos a estar com Mário Mendes e o seu grupo, em novo frente a frente, desta feita na Ponta Varela (zona mítica do Xime), em 25 de Maio de 1972, 5.ª feira, quando este se preparava para realizar nova "aventura". Aí Mário Mendes viria a morrer, por intervenção de elementos da CCAÇ 12 (ex-CCAÇ 2590) [, vd.foto nº 2 , acima], na acção «Gaspar 5», em que participaram seis Gr Comb [três da CART 3494 e três da CCAÇ 12], tendo-lhe sido capturada a sua Kalashnicov, bem como três carregadores da mesma e documentos que davam conta do calendário das "acções" a desenvolver naquela zona pelo seu bigrupo. [vidé P12232 + P9698].

Foi a partir desse(s) palco(s) do TO, onde se praticava o "jogo da sobrevivência", durante o qual se fazia apelo à superação permanente, ou transcendência, individual e grupal, que no meu processo cognitivo emergiram um certo número de questões/ interrogações, por exemplo:

"Quantos e quem eram aqueles que tinham estado à minha/nossa frente, e se puseram em fuga passados 15/20 minutos? Quais os seus nomes? Onde nasceram? Que idade tinham? Há quantos anos andavam naquela vida? Como viviam e de que se alimentavam?... Ou seja, alguns enigmas da guerra."

Algumas das respostas consegui obter, justamente, naquele primeiro estudo.

Hoje, passados quinze meses após a realização desse primeiro trabalho, volto de novo ao fórum para apresentar/partilhar um segundo estudo, concretizando, deste modo, uma promessa que formulei a mim mesmo de o fazer logo que encontrasse uma amostra semelhante à do primeiro. E isso aconteceu… e ainda bem!

Assim, utilizando a mesma metodologia do primeiro caso, este novo estudo tem como universo o bigrupo do Cmdt Quintino [Amisson] Gomes (1946-1972), morto em combate, em Fevereiro de 1972, nos arredores de Empada, região de Quínara, ao tempo da CCAÇ 3373, "Os Catedráticos de Empada", ou seja, três meses antes do Cmdt Mário Mendes (1943-1972).



2. QUINTINO [AMISSON] GOMES, CMDT DE BIGRUPO EM ACÇÃO NA REGIÃO DE QUÍNARA


O presente estudo sociodemográfico sobre o bigrupo do Cmdt Quintino Gomes nasce por ramificação da investigação que tenho vindo a realizar a propósito do "relatório relacionado com as operações militares na Frente Sul", acções efectuadas na região de Quinara e de Tombali, durante o último trimestre de 1969, uma vez que nele é referido o seu nome.

Soube que Quintino Gomes era Cmdt do bigrupo do PAIGC e que actuava no Sector de Cubisseco de Baixo, tendo por missão, até meados de 1969, controlar a estrada de Nhala, que passa em Uana, antigo quartel das NT, em direcção a Mampatá.

Quintino Gomes nasceu em 1946 [desconhece-se o dia e o mês], na vila de Empada, na região de Quinara. Era casado. Em 1962 aderiu ao PAIGC, com 15/16 anos, como aconteceu com muitos outros, de que é exemplo o caso de Mário Mendes, desde quando deu início à sua actividade na guerrilha. Era Cmdt de bigrupo, pelo menos desde 1966, ano que foram elaboradas pelo organismo de Inspecção e Coordenação do Conselho de Guerra as listas [mapas] das FARP referentes à constituição dos bigrupos existentes em cada Frente, conforme demonstra o exemplo abaixo, onde consta o nome de Quintino Gomes e de mais trinta e três elementos.

Como reforço do acima exposto, no "Relatório da Comissão de Inspecção das FARP para a Frente Sul e Leste", datado de 21 de Maio de 1969, e assinado por Pedro Ramos, consta que, após reunião de 9-3-69 (Bigrupo de Quintino Amisson Gomes e de Pana Djata), "este bigrupo que se encontra estacionado a uns quilómetros do antigo quartel inimigo [NT] de nome Uana (Tabanca) tem como missão de controlar a estrada de Nhala, que passa em Uana em direcção a Mampatá. Na primeira formação do bigrupo, este perdeu uma AK[-47]. A última operação efectuada foi em 15-2-69 no aquartelamento de Nhala. O último contacto com o Comando do sector foi em Janeiro de 1969. Com o Comando da Frente nunca tiveram contactos no lugar de estacionamento. A última reunião do Comissário Político do bigrupo com os combatentes teve lugar no dia 28-2-69. O comandante do sector, o camarada Iafal Camará, declarou que tem reunido com os combatentes sempre no fim de cada mês".




Citação: (1969 [05-21]), "Relatório da Comissão de Inspecção das FARP para a Frente Sul e Leste", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/ fms_dc_40080 (2018-3-15) (p. 12/37; com a devida vénia à Fundação Mário / Casa Comum / Arquivo Amílcar Cabral)).


Ainda no que concerne ao Cmdt Quintino Gomes, o "Relatório sobre o Sector de Cubisseco de Baixo", elaborado por José [Eduardo] Araújo (1933-1992), datado de 10 de Dezembro de 1971 e enviado a Amílcar Cabral (1924-1973), refere que […] "Tive uma impressão muito boa do camarada Quintino Gomes, comandante do sector, que tem rara "particularidade" de nunca ter visto o Secretário-Geral, facto que lamenta. Da opinião de toda a gente trata-se de um bom camarada. Escreve razoavelmente, o que significa que tem algum grau de instrução primária [3.ª classe]".




Citação: (1971), "Relatório sobre o Sector de Cubisseco de Baixo", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40043 (2018-3-15) (p. 11/23; com a devida vénia).


Dois meses depois deste relatório, em [?] Fevereiro de 1972, Quintino Gomes morreria em combate na vila que o viu nascer – Empada.

Em 25 de Fevereiro de 1972, em carta enviada a Marga, nome de guerra de  "Nino" Vieira (1939-2009), em resposta às suas missivas de 11 de Janeiro e 15 de Fevereiro [1972], Amílcar Cabral (1924-1973) lamenta a morte do Cmdt Quintino Gomes nos seguintes termos: […] "Mas os camaradas têm que ter muito cuidado nos ataques, para não acontecer o que se passou em Empada no último ataque [que teria sido antes de 15Fev'72]. Lamento muito a perda do camarada Quintino Gomes que era dos nossos melhores combatentes e quadros do Partido. Discutiremos na próxima reunião da Direcção a tua proposta para que seja considerado herói".





Citação: (1972), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net /11002/fms_dc_34493 (2018-3-8)


Entretanto, no passado domingo, 4 de Março de 2018, numa feliz coincidência para a conclusão deste trabalho, o jornal  Correio da Manhã publica uma entrevista com um camarada (não identificado, mas certamente o da foto abaixo) da CCAÇ 3373, "Catedráticos" (Empada, Mai'71 a Mai'72), conduzida pela jornalista Fernanda Cachão.



No contexto desta narrativa, e como elemento de validação da data da morte do Cmdt Quintino Gomes, citamos a seguinte passagem: […] "Foi no mês de Fevereiro desse ano [1972], tínhamos feito uma operação em que apreendemos muito material de guerra – e feito também mortos e feridos -, e tal como à ida regressámos já de noite. Fomos atacados por canhões sem recuo e foguetões ["GRAD"]. Tínhamos chegado ao aquartelamento em Empada, e foi terrível". […]


Em função deste depoimento, não me é difícil aceitá-lo como elemento factual relacionado com o episódio da morte do Cmdt Quintino Gomes. Será que esta é também a opinião do fórum do jornal Correio da Manhã ?





Imagem do camarada [não identificado] da CCAÇ 3373 (Empada e Bissau, 1971/73), entrevistado pela jornalista Fernanda Cachão, do Correio da Manhã, e publicada em 4.3.2018, em http://www.cmjornal.pt/mais-cm/domingo/detalhe/uma-mina-levou-a-perna-ao-furriel-rente-ao-joelho? ref=HP_Ticker CMAoMinuto, com a devida vénia.






3. RESULTADOS DO ESTUDO

A partir dos dados contidos na lista acima [mapa], que consideramos como os casos da investigação ou a "amostra de conveniência", procura-se compreender melhor quem estava do outro lado do combate. Com este propósito, procedemos à organização de alguns desses dados referentes a cada um dos sujeitos constituintes do "bigrupo de Quintino Gomes", sobre os quais pretendemos retirar conclusões.

Para o efeito, esses dados foram agrupados quantitativamente e apresentados em quadros estatísticos de frequências (caracterização da amostra por idade: a de nascimento e a de adesão ao Partido) e de quadros de variáveis categóricas em relação aos restantes elementos (ano de adesão ao PAIGC e idade e anos de experiência cumulativas ao longo do conflito).





Quadro 1 – distribuição de frequências em relação ao ano de nascimento dos elementos do bigrupo de Quintino Gomes (n-34)


Da análise ao quadro 1, verifica-se que os anos de nascimento com maior percentagem são dois: 1941 e 1945 (14.7%) com 5 casos cada, seguido de 1947 (11.8%), com 4 casos, e 1934, 1942 e 1944 (8.9%), em terceiro, com 3 casos cada.

Quando analisado por períodos, verifica-se que o maior número de casos (n-16) estão os nascidos entre 1943 e 1947 (47.1%) (grupo central), entre 1933 e 1942 (n-13= 38.2%) (grupo dos mais velhos), e entre 1948 e 1952 (n-5=14.7%) (grupo dos mais novos).




Quadro 2 – distribuição de frequências em relação à idade de adesão ao PAIGC dos elementos do bigrupo de Quintino Gomes (n-34)


Da análise ao quadro 2, verifica-se que a idade com maior percentagem de adesão ao Partido é 16 anos, com 7 casos (20.6%), seguida dos 17 e 21 anos, com 4 casos cada (11.8%). As idades de 18, 19, 22 e 23, com 3 casos cada, valem no seu conjunto 35.2%.

Quando analisada a adesão ao Partido por períodos, verifica-se que o maior número de casos (n-14) estão entre as idades de 14 e 17 anos (41.2%) (mais novos), seguido pelos grupos de idade média, entre os 18 e 21 anos, e idade superior, entre os 22 e 30 anos (mais velhos), com 10 casos cada (29.4%).

Analisada a adesão ao Partido entre os 18 e 23 anos, os valores apontam para uma maioria relativa com 16 casos (47.1%), seguida por 14 casos nas idades inferiores (41.2%) e somente quatro casos nas idades superiores (11.7%).




Quadro 3 – distribuição de frequências em relação ao ano de adesão ao PAIGC dos elementos do bigrupo de Quintino Gomes (n-34)



Da análise ao quadro 3, verifica-se que o ano onde se registou maior adesão ao PAIGC foi 1963 com 11 casos (32.4%), seguido de 1962, com 10 casos (um dos quais Quintino Gomes) (29.4%). O ano de 1964 foi o terceiro com 7 casos (20.6%)

Quando analisada a partir da soma dos dois primeiros anos (1962 + 1963), anos de preparação e início do conflito, a percentagem sobe para 61.8% (n-21).



Quadro 4 – distribuição de frequências em relação à idade verificada ao longo do conflito, contados após a adesão individual ao PAIGC, no caso dos elementos do bigrupo de Quintino Gomes (n-34)


Da análise ao quadro 4, e partindo da hipótese meramente académica de que o bigrupo se manteve constante ao longo do conflito, pelo menos até Fevereiro de 1972, data da presumível morte de Quintino Gomes, este teria, então, vinte e cinco/seis anos [sombreado castanho]. Os restantes elementos teriam a idade referida na linha [sombreado verde] do ano de 1972.




Quadro 5 – distribuição de frequências em relação ao número de anos de experiência na guerrilha ao longo do conflito, contados após a adesão ao PAIGC, no caso dos elementos do bigrupo de Quintino Gomes (n-34).

Da análise ao quadro 5, e partindo da hipótese meramente académica apresentada no quadro anterior, Quintino Gomes teria, no mínimo, nove anos de experiência na guerrilha [sombreado castanho], bem como de outros nove combatentes. Os restantes elementos teriam os anos de experiência referidos na linha [sombreado verde] do ano de 1972.




Quadro 6 – Elementos sociodemográficos de comparação entre os sujeitos do estudo – Quintino Gomes (n-34) e Mário Mendes (n-38) – a partir das variáveis categóricas em análise, para efeito da elaboração de conclusões.


4. CONCLUSÕES


Partindo da análise aos resultados apurados, apresentados nos quadros acima, procedemos à elaboração de um último quadro (o 6.º), este comparativo entre os dois comandantes de bigrupos, considerados como os "casos" da investigação (Quintino Gomes e Mário Mendes).

Da análise ao quadro supra concluímos:

(i) a diferença de idade entre ambos era de 3 anos, sendo Quintino Gomes o mais novo, nascido em 1946;

(ii) nasceram em locais diferentes, separados por dois rios importantes da Guiné: o Rio Geba e o Rio Grande de Buba; Mário Mendes mais a Norte (Região do Oio - Frente Norte); Quintino Gomes, mais a sul (Região de Quinara - Frente Sul);

(iii) ambos aderiram ao PAIGC no mesmo ano (1962): Quintino Gomes, com 15/16 anos, e Mário Mendes, com 18/19 anos; morreram em combate dez anos depois, também no mesmo ano (1972), com uma diferença de três meses entre si; cada um deles teria, aproximadamente, o mesmo tempo de experiência como combatente;

(iv) quanto às lideranças: Quintino Gomes foi Cmdt de um grupo de guerrilheiros com média de idades mais alta (28.1/34, em 1972), quando comparada com a do grupo do Cmdt Mário Mendes (27.9/38, em 1972);

(v) quanto às idades: a maioria dos elementos do grupo de Quintino Gomes eram mais velhos que ele (n-20=58.8%) em comparação com os mais novos (n-9=26.5%); por outro lado, a maioria dos elementos do grupo de Mário Mendes eram mais novos que ele (n-22=57.9%), enquanto os mais velhos eram metade dos mais novos (n-11=28.9%).

Caso surja outra oportunidade de investigação semelhante, prometo realizá-la e partilhar no fórum os seus resultados.

À vossa consideração.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

26MAR2018.
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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18448: (D)outro lado do combate (23): "Plano de operações na Frente Sul" (Out-dez 1969) > Ataque a Bolama em 3 de novembro de 1969 - II (e última) Parte (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P18486: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XXVi: Gabu, set 67 / fev 68, gozando as delícias da "tabanca do Morteiros", alcunha do alf mil Azevedo, cmdt do Pel Mort 1191, alentejano de Évora


Foto nº 2 >  1968


Foto nº 3  > Janeiro de 1968


Foto nº 4 >  26 de dezembro de 1967


Foto nº 5 >  Janeiro de 1968 


Foto nº 6 > Janeiro de 1968


Foto nº 7 > 21 de janeiro de 1968


Foto nº 7A > 21 de janeiro de 1968


Foto nº 8 > 21 de janeiro de 1968


Foto nº 9 > 21 de janeiro dwe 1968



Foto nº 10 > Janeiro de 1968


Foto nº 11 > Janeiro de 1968


Foto nº 12 > Fevereiro de 1968

Foto nº 13 > Dezembro de 1967.


Foto nº 1 > Setembro de 1967

Guiné > Região de Gabu  > Nova Lmago  >  CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69).



Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), e que vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado [, foto atual à direita]. (*)


Guiné 1967/69 - Álbum de Temas > T033 – A Tabanca do Morteiros

I - Anotações e Introdução ao tema:


A – História do Sector L3 – Nova Lamego – Parte I:

INTRODUÇÃO:

Vou dar início à história do meu batalhão no sector L3 de Nova Lamego.

Para isso vou servir-me, porque já não preciso de escrever mais nada, dumas páginas do meu livro – não editado – onde já desde 2010 contava esta fase da minha história.

O teor e a forma de escrever e exprimir-me pode parecer estranho, mas isto passa-se em vários meses e até anos – 2010 a 2015 -, e em cada momento a nossa vida muda e também o humor e a forma de encarar tudo isto.

Vou mandar as fotos que já recolhi da minha vivência em Nova Lamego com o comandante do Pelotão de Morteiros 1191, que esteve em Nova Lamego entre abril de 1967 e março de 1969, às ordens do BCAÇ 1933 e depois do BCAV 1915].

O alf mil Azevedo   tinha uma casa e uma vida independente de todos os outros. Fiz uma boa amizade, com este alentejano, vindo de Évora, no centro do Alentejo. Fui-me deliciando com os seus petiscos que ele próprio fazia na sua casa, a que passei a chamar sempre de a Tabanca do Morteiros’ e era para lá que ia quando me era possível, pois não faltava nada lá na sua Tabanca. Ele era independente e acho que nunca saiu de Nova Lamego, pelo menos nos 5 meses que lá passei.


B - Fotos do tema T033 – Imagens da Tabanca do Morteiros no Gabu:

Legendas e numeradas de f1 a f13

F01 – Este era o edifício em pedra e cimento, sede de comando do Pelotão de Morteiros 1200, comandado pelo Alferes Miliciano Azevedo. Ele aparece na foto, na porta de entrada e comigo nas cavalitas, eu era uma pena nas mãos daquele homem. Esta primeira foto data do mês de Setembro, quer dizer que ao fim de menos de uma semana eu já tinha ali um amigo. Ele também precisava de mim, dada a minha função, ele já estava lá quando chegamos e sabia do antecedente que dependia muito de eu lhe facilitar a vida, ou não.

F02 – As fotos não estão por ordem cronológica, por isso esta já é de data bastante posterior. Por ali se vê que não falta nada em termos de condição de vida, cozinha, cama , mesa e roupa lavada, um rapaz negro como criado, ar condicionado – entenda-se ventoinhas – frigorifico, arca, estereofonia, só faltava mesmo era a TV e um Telemóvel última geração. Na foto está o Azevedo, eu ao lado, e também o Furriel Rocha, o tal algarvio que já falei que foi ali cair de paraquedas, e não queria outra vida, pois não fazia nada. A foto data já dos inícios de 1968.

F03 – Uma foto a descansar sobre uma rede que também ele lá tinha, para dormir a sesta. Era uma forma de passar os tempos livres. Datada também de Janeiro de 1968.

F04 – Numa sala com todas as comodidades, os roncos pendurados nas paredes, cartazes de férias, não falta nada. Eu estou mais uma vez de Oficial de Dia, e pelos vistos devo ter escorregado pois tenho um penso no braço, de certeza nem me lembro de que foi aquilo. Só sei que estamos no dia 26 de Dezembro de 1967, um dia depois do Natal de 67. A cabeça já está toda rapada, pois foi por indicação dele, que andava sempre careca, e fiz isso depois de uma praga de piolhos que apanhei e assim acabei com tudo de uma só vez.

F05 – Uma brincadeira à entrada da Tabanca do Morteiros. Não sei se ele não me deixava entrar? Janeiro de 68.

F06 – Fumando o meu cigarro, à entrada da Tabanca do Morteiros. Eu fumava não por vício, mas por prazer da boca, nunca travei o fumo, por isso mais tarde optei pelos puros – os charutos Cubanos, foram mais de 15 anos, mas nunca me viciei e assim hoje não fumo. Data de Janeiro 68.

F07 – Fui dar uma volta pelas ruas na Bicicleta do Azevedo, junto à sua residência oficial, ele tinha boas instalações naquela terra que havia alguma coisa que se aproveitava, pelo menos o clima era mais quente mas mais seco. Data 21Jan68.

F08 – Na comezaina na Tabanca do Morteiros, em camisola interior o nosso ten SGE Albertino Godinho, Chefe da Secretaria, e o homem do confiança do nosso comandante. Veja-se os olhos do miúdo empregado, a olhar para os pratos. Será fome ou apetite? 21 de janeiro de 68.

F09 – Nós os dois num repasto na hora do almoço, ainda fardado, acho que me lembro que eram uns ovos escalfados com chouriça, acompanhado de cerveja. Aquilo era um restaurante 5 estrelas e uma Michelin. Nova Lamego,  21 jan 68

F10 – Na mesma Tabanca, o nosso médico ten Carlos Parreira Pinto Cortez, e sua esposa, sempre presente em toda a nossa estadia em Nova Lamego. Havia condições para isso. Também eram convidados para a Tabanca. Eles estão a arregalar os olhos por me verem a beber, não sei, mas pelos risos deve ser isso. Nova Lamego,  jan 68.

F11 – Na mesma Tabanca, agora também com o Furriel Rocha – cuidado com o enorme membro dele,  nunca o vi nem tive curiosidade, mas ele nunca andou de calção curto, teria medo de a ‘coisa’ sair fora do calção? Lá estava eu deitado a dormir a sesta, com música de fundo, mas sempre de olho alerta. Nova Lamego, jan 68.

F12 – O Alferes Azevedo com o seu boné, à porta da sua Tabanca, e eu a conduzir o seu Jeep, pois ele tinha direito a essa Mordomia – Era ‘El Comandante’! -. Também tive umas lições de condição neste jipe. Nova Lamego,  fev 68

F13– No jipe do Morteiros, na porta da sua Tabanca, ainda no ano de 1967. Andava a dar as primeiras lições no seu jipe.  Nova Lamego,  dez 67.

Em, 05-03-2018

Virgílio Teixeira

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BATCAÇ1933/RI15/Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SET67 a 04AGO69».
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Nota do editor:

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18485: Bibliografia de uma guerra (88): Entender o pan-africanismo para melhor conhecer a guerra em África (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2018:

Queridos amigos,
Os historiadores da descolonização portuguesa quando descrevem o pano de fundo em que germinaram os movimentos independentistas das colónias portuguesas privilegiam a formação ideológica desses quadro, designadamente em Lisboa, entre o pós-guerra e o fim da década de 1950, não esmiuçando a atração sentida, por muitos desses líderes, pelo fenómeno do pan-africanismo e as suas especificidades.
Julião Soares Sousa, na sua biografia de Amílcar Cabral, teve a preocupação de contextualizar como pai do fundador do PAIGC encontrou na fórmula da unidade Guiné-Cabo Verde uma resposta aos movimentos federativos que estavam a surgir em plena África Ocidental, em que a Guiné-Conacri e o Senegal se envolveram, embora tenha sido sol de pouca dura.
Vejo como da maior utilidade este olhar em relance sobre a germinação do pan-africanismo para melhor se entenderem que os ventos da história também sopraram de feição para catapultar o independentismo à ação direta. Como aconteceu, e com os resultados conhecidos.

Um abraço do
Mário


Entender o pan-africanismo para melhor conhecer a guerra em África (1)

Beja Santos

Em 1959, a renomada coleção "Que Sais-Je?" publicava um volume sobre o pan-africanismo. Vale a pena relê-lo, de forma sumária, para melhor conhecer o pano de fundo de tudo quanto veio acontecer no continente africano a partir dos anos 1950 e o seu impacto, direto e indireto, na organização dos movimentos independentistas das colónias portuguesas. Mais útil se torna a leitura se se tiver em consideração que a Conferência de Bandung ocorrera escassos anos antes. Esta conferência teve um papel simbólico ao manifestar solidariedade africo-asiática, depois, como se verá, o pan-africanismo seguiu a sua própria via, ocorreram acontecimentos vertiginosos sobretudo quando o Gana se tornou independente em Maio de 1957. Recorde-se que no final da II Guerra Mundial os únicos estados independentes africanos eram o Egito, a Libéria, a União Sul-Africana e a Etiópia. Depois da independência do Gana foi um corrupio de independências, a Líbia, o Sudão, Marrocos, a Tunísia e a Guiné-Conacri e previa-se logo para 1960 o Togo, os Camarões, a Serra Leoa e a Nigéria, bem como a Somália.

Em Julho de 1958, em Cotonou (Benim) o tema do pan-africanismo agitou-se no congresso constitutivo do Partido do Reagrupamento Africano. O pan-africanismo era já tema recorrente noutras conferências, nos motins de Léopoldville, no nascimento da união Gana-Guiné-Conacri, na criação da Federação do Mali… O mínimo que se pode dizer é que este fenómeno político tornara-se numa das forças mais importantes da vida africana.

No entanto, o pan-africanismo não nasceu em África, veio do Sul dos Estados Unidos e das Antilhas Britânicas, o que pareceu gerar confusões de ter havido um pan-africanismo britânico ou até mesmo um pan-africanismo francês. Houve sonhos à volta desta unidade que se previa para toda a África mediante federações de Estados diferentes, falava-se na época mesmo nos Estados Unidos de África. O tempo se encarregou de desfazer ilusões e equívocos, de todas essas tentativas federativas só ficou uma, a Tanzânia.

No início o pan-africanismo não passa de uma pura manifestação de solidariedade entre os negros de origem africana das Antilhas Britânicas e dos Estados Unidos da América. O pioneiro dos pioneiros foi Sylvester Williams, um advogado de Trinidad, que chegou a ser conselheiro dos chefes bantos da África Meridional. Em 1900, aquando da exposição universal de Paris, Williams tomou a iniciativa de convocar para Londres uma conferência para protestar o açambarcamento de terras africanas pelos europeus. Foi nesta reunião que pela primeira vez se soletrou a palavra pan-africanismo. Por esse tempo, desenhava-se nos Estados Unidos um movimento de emancipação de negros, é preciso encontrar a sua origem antes mesmo da guerra de Secessão (1861-1865), no movimento abolicionista. Pouco antes do fim da guerra da Secessão, o Congresso de Washington votou a emenda que permitiu abolir a escravatura em todo o território norte-americano. Os vencidos, os Estados do Sul, tinham um sistema económico inteiramente baseado na plantação e na mão-de-obra escrava. Libertos, sem qualquer formação técnica, nem utensílios, sem ajuda nem apoios de qualquer ordem, os antigos escravos viveram tempos extremamente penosos. Os brancos do Sul discriminaram-nos da vida política, foram os anos de terror em que pontificava o Ku-klux-klan.
É nesta atmosfera que vai emergir W. E. Burghardt du Bois, doutor da universidade alemã de Heidelberg, professor de sociologia na universidade Atlanta, um aristocrata.

 W. E. Burghardt du Bois

Os seus livros destinavam-se a uma elite intelectual negra. O norte-americano Booker Washington, fundador da National Business League era o mentor da ideia de que os negros, desprezados pelos brancos, deviam lançar-se nos negócios, de forma independente, o que mereceu o aplauso dos brancos do Sul, a iniciativa falhou enquanto a popularidade de du Bois crescia, este subordinou o problema do negro americano ao grande ideal do pan-africanismo, o problema era a cor, mas o combate dos negros não era nem nas Antilhas nem em África era nos Estados Unidos. Em 1908, com a ajuda dos brancos liberais, du Bois fundou a National Association for the Advancement of Coloured People, uma sociedade que juntava os elementos brancos hostis à segregação racial e os negros que se opunham ao programa de Booker Washington. A história veio confirmar que du Bois tinha um elevado sentido premonitório, foi um verdadeiro visionário. Ele preconizava coisas como esta, em 1920, acerca da mudança da carta política africana:  
“É evidente que, com vista ao desenvolvimento da África Central, o Egito deve ser livre e independente, na mesma via que leva a uma Índia livre e independente, enquanto Marrocos, a Argélia e a Tunísia e Trípoli devem manterem-se ligadas à Europa e modernizar-se na independência”.
A ligação dos negros americanos com as suas origens africanas é obra de du Bois. De facto, o movimento de repatriamento dos negros para a Libéria foi sobretudo animado pelos brancos e tomou uma dimensão de deportação dos negros que os Estados do Sul desejavam desembaraçar-se.

Outra figura a considerar é Marcus Garvey, um jamaicano demagogo, uma espécie de messias negro que extorquiu dinheiro aos seus seguidores para financiar os seus projetos delirantes. Fundou a Universal Negro Improvement Association com o objetivo de unir todos os negros num só povo, opunha ao racismo branco um verdadeiro racismo negro e fundou a sua própria igreja, a African Orthodox Church em que os anjos eram negros e o diabo branco. Durante um meeting monstro que teve lugar em 1920 no Liberty Hall de Nova Iorque, Garvey lançou a sua famosa “Declaração dos Direitos dos Povos Negros do Mundo”, preconizou o progresso de todos os negros a África, a mãe pátria. Mas tudo acabou mal.

Esse livrinho de que aqui temos vindo a fazer referência enumera os primeiros congressos pan-africanos desde 1919 até ao importante V Congresso Pan-Africano de 1945, que se realizou em Manchester, nele estiveram presentes Kwame Nkrumah, o primeiro dirigente do Gana, e George Padmore, importante conselheiro de Nkrumah, bem como Jomo Kenyatta, que virá a ser o senhor todo-poderoso do Quénia.

 Kwame Nkrumah, o primeiro dirigente do Gana

As resoluções deste congresso denunciavam sobretudo as divisões territoriais de África, a exploração económica colonial destinada a desencorajar a industrialização. Dirigiu-se uma declaração às potências coloniais referindo claramente a Carta do Atlântico e a necessidade de pôr termo ao colonialismo.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18464: Bibliografia de uma guerra (87): Walt, por Fernando Assis Pacheco (1937-1995), jornalista, tradutor, escritor e poeta (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18484: (Ex)citações (334): Beja Santos, em “observações” ao Post P18465 de 29 de Março, ultrapassando uma simples questão de compreensão ou interpretação do que está escrito no meu livro “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)”, procura desvalorizar o trabalho pondo em causa a sua eventual classificação como obra “historiográfica” (Armando Tavares da Silva)

1. Mensagem do nosso amigo e grã-tabanqueiro Armando Tavares da Silva, historiador, com data de 3 de Abril de 2018, rebatendo algumas observações do nosso confrade Mário Beja Santos:

Caros Grã-tabanqueiros

Beja Santos (BS), em “observações” ao Post P18465 de 29 de Março[1], ultrapassando uma simples questão de compreensão ou interpretação do que está escrito no meu livro “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)”, procura desvalorizar o trabalho pondo em causa a sua eventual classificação como obra “historiográfica”. Assinalo porém, para quem desconhece, que aquele livro já foi apreciado pela Academia Portuguesa da História que o distinguiu com o “Prémio Fundação Calouste Gulbenkian 2016, História da Presença de Portugal no Mundo”.

Por outro lado BS faz uma observação relativamente a uma eventual falha da minha parte por não ter dado atenção ao quotidiano da Guiné visto por outros (refere o livro de Francisco Tabanez Ribeiro, livro posterior ao meu, e que, evidentemente, eu nunca poderia ter lido ou referido...). E continua, lançando a ideia de que “desajeitadamente” trago para discussão outros temas para “criar confusão”.

É evidente que esta “conversa” com BS não está a conduzir a qualquer fim útil e, por outro lado, também não interessa aos grã-tabanqueiros, não só pelo tom adoptado, como também pela dificuldade de ser ajuizada por a generalidade não ter lido o trabalho em toda a sua extensão. E por isso, por mim, aqui a encerro.

Mas como BS pretende que venha a público neste blogue um pequeno excerto do mesmo, designadamente o “Epílogo” (precisamente as três últimas páginas de um total de 825 páginas de texto), eu tenho o maior interesse em proporcionar a todos os grã-tabanqueiros a possibilidade da sua leitura, pelo que a seguir se reproduzem. Para complemento junto imagens de acontecimentos referidos naquele texto que tiveram lugar num tempo em que a Guiné vivia num clima de paz. Finalizo fazendo notar que, relativamente ao contido no último parágrafo sobre a quebra deste clima de paz, me refiro unicamente aos acontecimentos que tiveram lugar em Bissau em 1891, 1894 e 1915, e não a quaisquer outros.

Armando Tavares da Silva

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Beja Santos faz uma leitura e uma interpretação incorrectas do que está escrito em "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)". Nunca aí se disse ter havido na Guiné “uma espécie de luta de classes entre o Governo/administração e os comerciantes”, ou mencionado algo que pudesse ser considerado uma tal “luta de classes”. Quanto a “alguns levantamentos”, faço-lhe ainda notar uma diferença que convém ter bem presente: o que “aconteceu na luta armada” é uma coisa, e o que “motivou a luta armada” é uma coisa totalmente diferente.

Mas vejamos o que está escrito na obra mencionada. O que nela se escreve, por exemplo, pela mão de Manuel Maria Coelho, é que uma “chamada política da colónia” tinha separado em dois grupos os seus habitantes, “nativos ou emigrados, quer da metrópole, quer principalmente de Cabo Verde, compreendidos os funcionários públicos e até os militares”. Podiam classificar-se “simplesmente [por] patriotas e antipatriotas”. Acrescenta Manuel Maria Coelho: “Aqueles eram os que se sentiam orgulhosos por que a Guiné seja, efectivamente e inegavelmente uma colónia inteiramente portuguesa; e estes – os antipatriotas – os que se sentiam morder de raiva por a nação portuguesa, o governo, não continuarem à mercê das condescendências e das tolerâncias de quem exercia na Guiné um poder tão extenso e tão profundo, que as vidas dos cidadãos, e principalmente das autoridades, estavam pendentes das intrigas, dos ódios e das aspirações desordenadas desses ambiciosos sem escrúpulos”.

No relatório da sindicância de que tinha sido incumbido por António José de Almeida (1917), na qual que se incluía a abertura de um “rigoroso inquérito sobre a vida pública da província para assim se esclarecerem tantas e tão variadas queixas que chegavam ao Ministério das Colónias”, o mesmo Manuel Maria Coelho escreve que no decorrer dessa sindicância apercebera-se do clima de intriga política e de interesses das várias facções de que se compunha a sociedade guineense. Verificara que a presença do elemento cabo-verdiano desempenhava aí grande influência. Era o pano de fundo sobre o qual tudo se tinha passado e que em parte o explicava (as operações de Teixeira Pinto em Bissau em 1915 e o seu rescaldo, incluindo as acusações que a este foram dirigidas). Entre esta presença Manuel Maria Coelho ressalta a do secretário-geral, Sebastião José Barbosa. E escreve: “Sebastião Barbosa é de Cabo Verde, ilha do Fogo [...] e como quase todos os cabo-verdianos, do Fogo, principalmente, não têm o menor amor a Portugal, procurando todos os que pela Guiné se encontram, com raras excepções, tomar conta desta província, de cuja administração se apoderaram e que querem conservar em seu poder como colónia de Cabo Verde, porque a não consideram colónia portuguesa”.

Vejamos ainda o que disse o governador Oliveira Duque relativamente às operações em Bissau em 1915: para as iniciar teve de “lutar fortemente contra más vontades, que encontrei até em funcionários altamente colocados, más vontades que atribuía e ainda atribuo ao desejo de que as coisas se mantivessem no pé de soberania fictícia em que estavam, e outras provenientes de animosidades pessoais conta o capitão Teixeira Pinto”. E sobre as acusações que a este foram dirigidas, escreve Oliveira Duque: “A reputação de cada um está na Guiné à mercê dos nossos inimigos Cabo-verdianos, Guineensese e também índios que, conjuntamente com alguns, raros, europeus pretendem fazer da Guiné um feudo para seu exclusivo usufruto, o que vejo com pesar que cada vez mais se aproxima do seu desiderato”. Mas recuemos a 1891 e vejamos o relato dos graves acontecimentos de Bissau desse ano, das diligências tendentes a compreender e explicar a sua origem e a subsequente procura da paz e harmonia, relato que está cheio de referências a “intrigas”, e procuremos a sua razão de ser. Estes acontecimentos foram precedidos e desenrolaram-se no clima de hostilidade entre as duas tribos papeis da ilha de Bissau, Intim e Antula. Ora o governador Gonçalves dos Santos estava convicto de que estas hostilidades se deviam às ”intrigas dos habitantes da praça”, que “formando dois partidos” entre os beligerantes ”alimentavam a guerra”. O mesmo governador dirá que “o gentio branco e mulato (filhos da ilha do Fogo, principal colónia em Bissau) estão [...] mancomunados com os gentios e grumetes para nos desrespeitarem e desacatarem a autoridade; e os estrangeiros colaboram neste vil procedimento”, fim para que se serviam de “intrigas de toda a ordem”. E na procura de nomes dos instigadores do clima de desconfiança, um grumete afirma que “se fossem só portugueses e não do Fogo os que estavam na praça, não havia nunca guerra, nem com os grumetes, nem com Intim”. Pode perguntar-se: houve aqui algum “levantamento”?

A terminar mencionemos as palavras de Vellez Caroço no seu relatório de 1921-22 referindo-se aos problemas e dificuldades que teve de enfrentar para fazer “o saneamento” da província. Com a “compreensão nítida do presente” e a “visão segura do futuro” escreve Vellez Caroço: “Cairei, prestando um serviço ao meu país, sacrificar-me-ei servindo a República, porque o embuste, a falsidade e o despotismo jamais voltarão a imperar na Guiné, e a obra metódica e persistente da desnacionalização desta rica província, que dia a dia se ia afirmando, teve aqui o seu termo. Como governador assim o espero, e como patriota assim o desejo”.

Vellez Caroço tocava aqui num ponto que outros que o antecederam já tinham sentido: a tentativa surda de afastamento da colónia da esfera de influência portuguesa. Ainda no mesmo relatório escreve Vellez Caroço: “Hoje já é vulgar ouvir na Guiné, entre o elemento cabo-verdiano, que nós somos estrangeiros”. E pergunta: O que seria se “por qualquer motivo esta colónia amanhã deixasse de estar debaixo do domínio português?” Por considerar que “a obra de desnacionalização [da] colónia era lenta, mas era contínua e persistente”, tornava-se necessário actuar para que não se continuasse a dizer que a Guiné portuguesa era “uma colónia de Cabo Verde”. E para isso era preciso mais atenção dos “compatriotas metropolitanos”, para que para a Guiné “lancem as suas vistas […] e para aqui venham trabalhar”. E, a propósito, nota que “o nativo da Guiné tem tantos direitos como o natural de Cabo Verde, e na sua colónia, até tem mais. Auxiliemo-los, pois, nesta simpática empresa. Façamos do guineense um cidadão português com plena consciência dos seus direitos e correlativos deveres”. Era um desejo patriótico do governador, porventura difícil de atingir.

Para finalizar e voltando às considerações de Beja Santos em que refere o “projecto de independência de que Amílcar Cabral foi a bandeira”, creio poder dizer ter esse projecto terminado com os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980. É bom perguntar-se: que motivação esteve na base destes acontecimentos e quais foram as suas consequências?

E os “grandes comentadores” que dislates é que cometem? É preciso é não ir atrás deles...

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PS: Veja-se o meu Post P17819 de 3-10-2017[2] no qual estas questões são afloradas e se constata que Beja Santos nos comentários à obra acima referida resumiu a duas linhas a presença de Manuel Maria Coelho na Guiné, na prática olvidando um período de tempo e de acção reflectidos em quase dois capítulos desta obra.

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Por ocasião das Comemorações de V Centenário da Descoberta da Guiné

Foto 1 - Durante a visita do Secretário de Estado Ruy de Sá Carneiro, os felupes ouvem as palavras do Governador Sarmento Rodrigues (3 de Fevereiro de 1947) 
(In Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Número Especial, Outubro 1947)


Durante a visita do Chefe do Estado General Craveiro Lopes, Maio de 1955

Foto 2 - À chegada, passando revista à guarda de honra
Foto 3 - Dando entrada em Bissau

Foto 4 - Depois das boas-vindas, manifestação em Bissau

Foto 5 - Em Bafatá, entregando medalhas comemorativas 
(In: M. Henriques Gonçalves, “Jornadas na Guiné”, Lisboa 1955) 
(Digitalizações de exemplar na minha posse)


Por ocasião do VIII Centenário da Tomada de Lisboa

Foto 6 - O Chefe do Estado Marechal Carmona, recebendo os régulos da Guiné no Palácio de Belém (31.05.1947) (Diário de Notícias, 1.06.1947)

Foto 7 - Os régulos da Guiné, ostentando os seus albornozes e montando cavalos brancos, seguidos pelos guerreiros fulas, descendo a Avenida da Liberdade, no fecho do “Cortejo Histórico” comemorativo do VIII Centenário da Tomada de Lisboa (1.06.1947) (Diário de Notícias, 2.06.1947)
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Notas do editor:

[1] - Vd. poste de 29 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18465: (Ex)citações (332): Comentário do historiador Armando Tavares da Silva ao Poste 18460: Notas de leitura (1052) de Mário Beja Santos

[2] - Vd. poste de 3 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17819: Historiografia da presença portuguesa em África (95): A intriga política na Guiné, 1915-1917 (Armando Tavares da Silva, historiador)

Último poste da série de 3 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18481: (Ex)citações (333): Danças e contradanças da “clara certidão da verdade” (Mário Beja Santos)