terça-feira, 8 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20216: Tabanca Grande (486): Manuel Viegas, algarvio de Faro, ex-fur mil, CCAÇ 1587 (Cachil, Empada, Bolama e Bissau, 1966/68)... Senta-se à sombra do nosso poilão, sob o nº 798. Padrinho: José António Viegas, régulo da Tabanca do Algarve.


Lisboa > T/T Uíge > 30 de junho de 1966 > CCAÇ 1587 > Partida para o TO da Guiné. O primeiro da esquerda é o fur mil Manuel Viegas, novo membro da Tabanca Grande. Ao fundo, vê-se a ponte sobre o rio Tejo, na véspera de sua inauguração (em 6 de agosto de 1966).

Foto (e legenda): ©: Manuel Viegas (2019). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ]


1. Mensagem do nosso camarada José António Viegas, um dos régulos da Tabanca do Algarve,  membro da Tabanca Grande, ex-fur mil do Pel Caç Nat 54, tendo passado por vários "resorts" turisticos erm 1966/68  (Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole e, o mais exótico de todos, a Ilha das Galinhas, na altura,  colónia penal):

Data: segunda, 7/10/2019 à(s) 16:17
Assunto: Pedido de inscrição no blogue

Pede-me o meu Camarada,  ex-Furriel Manuel Rosa Viegas, para aderir ao blogue pelo qual junto alguns dados.

"Manuel Rosa Viegas, ex-Furriel da Companhia de Caçadores,  nº 1587, Empada , Catió e ilha do Como, entre 1966 e 1968-

"Junto envio uma foto actual  [, acima , à esquerda], e outra do dia do embarque no Uige em 30 de julho de 1966. "Sou o 1º da esquerda",diz ele. "De futuro contarei algumas histórias desta viagem á Guiné.  Cumprimentos. Manuel Viegas".


2. Comentário do editor Luís Graça:


Obrigado, Zé Viegas. E obrigado, Manuel Viegas, por quereres vir engrossar as fileiras da Tabanca Grande. 

Vejo pela página do Facebook que o nosso novo membro da Tabanca Grande, a quem reservei o nº 798, é algarvio de Faro, Andou na escola Escola Secundária Tomás Cabreira, e trabalhou na hotelaria, na Quinta do Lago.

Devidamente apadrinhado pelo Zé Viegas, o Manel fica muito bem sentado, à sombra do nosso poilão, para mais sendo o único representante, ao fim de mais de 15 anos de existência do nosso blogue, da CCAÇ 1587 (!!!)....

De facto, temos menos de meia dúzia de referências a esta subunidade, e até agora não havia quem a representasse. De acordo com os elementos disponíveis na nossa base de dados (*), sabemos o seguinte a respeito da CCAÇ 1587:

(i) teve como Unidade Mobilizadora o RI 2 (Abrantes);

(ii) o Comandante foi o cap mil inf Pedro Eurico Galvão dos Reis Borges;

(iii) embarcou em 30 de junho de 1966, no T/T Uíge, e regressou em 9 de maio de 1968;

(iv) Síntese da atividade operacional:

Em 6 de agosto de 1966, foi colocada em Cachil, a fim de efectuar uma Instrução de Adaptação Operacional com a CCAV 1484 e seguidamente efectuar a rotação com esta subunidade.

Em 8 de setambro de 1966, assumiu a responsabilidade do referido subsector de Cachil, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 1860.

Em 20 de novembro de 1966, por troca com a CCAÇ 1423, iniciada a 21 de Novembro de 1966, assumiu a responsabilidade do subsector de Empada, com um pelotão destacado em Ualada, no sector do mesmo Batalhão e depois do BART 1914.

A partir de 29 de novembro de 1967, tomou parte na Operação Quebra Vento, com vista à construção do destacamento de Gubia, guarnecido por um dos seus pelotões, a partir de 24 de dezembro de 1967.

Em 24 de janeiro de 1968, foi rendida no subsector de Empada pela CCAÇ 1787, tendo seguido, temporariamente, para Bolama, a fim de efectuar a segurança e protecção da visita presidencial.

Em 13 de fevereiro de 1968 foi colocada em Bissau, na dependência do BCAÇ 2384, onde substituiu a CCAÇ 2313 na segurança e protecção das instalações e das populações.

De 8 a 15 de maio de 1968, após chegada parcelar da CCAV 1615, foi rendida sucessivamente por esses efectivos, recolhendo então a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

(v) Tem História da Unidade [Caixa nº. 70 – 2.ª Div/4.ª Sec. do Arquivo Histórico Militar, Santa Apolónia – Lisboa]

Este resumo também consta do Livro do Estado-Maior do Exército – Comissão para o Estudo das Campanhas de África 1961-1974, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, 7.º Volume, Tomo II Guiné, pág. 358.

Camarada, Manel Viegas, ficamos à espera das tuas fotos e memórias. Muita saúde e longa vida, para poderes usufruir da nossa amizade e camaradagem, aqui na terra, que no céu (dos amigos e camaradas da Guiné) esse privilégio  já está garantido... (**).

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Notas do editor:


Guiné 61/74 - P20215: Parabéns a você (1690): Luís Mourato Oliveira, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20203: Parabéns a você (1689): Artur Conceição, ex-Soldado TRMS da CART 730 (Guiné, 1965/67) e Inácio Silva, ex-1.º Cabo Apontador de Armas Pesadas da CART 2732 (Guiné, 1970/72)

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20214: Efemérides (311): Convite para a cerimónia do Dia Municipal do Combatente, a realizar no 11 de Outubro, às 11 horas, na Praça dos Heróis do Ultramar, em Fânzeres - Gondomar (Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548)

C O N V I T E




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Nota do editor

Último poste da série de 3 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20201: Efemérides (310): A libertação do meu camarada e amigo Arrifana aquando da Operação Mar Verde em Novembro de 1970 (Abel Santos, ex-Soldado At da CART 1742)

Guiné 61/74 - P20213: Notas de leitura (1224): História das Tropas Pára-Quedistas Volume IV, é dedicado à Guiné e tem como título História do Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12; responsável pela redação e pesquisa Tenente-Coronel Luís António Martinho Grão; edição do Corpo de Tropas Paraquedistas, 1987 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
Esta saga sobre os paraquedistas na Guiné aparece redigida sob um documento muito contido, factual, sem enxúndia nem pompa. Mas há os picos de orgulho, e justificados. Caso daqueles dias de Agosto de 1968, em Gandembel, esta tropa especial lança-se num ataque aos guerrilheiros do PAIGC, este procura ripostar, quatro homens tombam, mas a força resiste, repele os guerrilheiros.
E escreve-se: "Cai a noite quando, quase no limite das suas forças, chegam a Gandembel. Transportam os seus feridos e mortos e algumas centenas de quilos de material de guerra capturado. Formados na parada do quartel, sombras cambaleantes curvadas pelo dor e exaustão, escutam o seu comandante de pelotão que pede voluntários para bater na madrugada próxima toda a zona onde se tinham desenrolado os combates. Perfilando-se orgulhosamente, olhos cintilando nas faces cavadas, cansaço vencido, todos avançam como se fossem um só homem".
Esta a história de 11 anos de uma força especial cujo desempenho foi crucial para a luta que se travou nas matas e bolanhas da Guiné.

Um abraço do
Mário


História das tropas paraquedistas na Guiné (2)

Beja Santos

“História das Tropas Paraquedistas Portuguesas”, Volume IV, é dedicado à Guiné e tem como título História do Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12, é responsável pela redação e pesquisa o Tenente-Coronel Luís António Martinho Grão, edição do Corpo de Tropas Pára-Quedistas, 1987.

A segunda parte da obra, que vamos analisar, coincide com o período entre 1968 e o termo das hostilidades, 1974. Spínola irá introduzir alterações na política do emprego operacional das tropas do BCP 12. Como se escreve no documento, “às missões de combate helitransportadas, de curta duração e sob comando directo do seu comandante, irão suceder-se as operações em que os militares pára-quedistas se vão manter durante períodos muito dilatados em áreas distintas do seu aquartelamento em Bissau, em missões de reforço de tropas de quadrícula”. Em Agosto de 1968 assume o comando da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné/BA 12 o Coronel Tirocinado Piloto-Aviador Diogo Neto.

Enuncia-se a atividade operacional entre Junho de 1968 a Dezembro de 1971, destaca-se a criação dos Comandos Operacionais, onde se vão integrar uma ou mais companhias do BCP 12. Tem destaque a operação Júpiter, que se estendeu por quatro períodos, desde Agosto até Dezembro de 1968. Atua-se nas regiões de Guileje, Mejo, Gandembel e Porto Balana, sob o comando do COP 2, cuja missão era a de reorganizar o dispositivo das forças aquarteladas. No final do primeiro período da operação Júpiter estas tropas paraquedistas tinham causado ao PAIGC 33 mortos, um prisioneiro e um número incontrolável de feridos, com a apreensão de grandes quantidades de armamento, os paraquedistas sofreram dois mortos, um ferido grave e dois ligeiros, e as tropas em quadrícula sofreram dois feridos graves. São descritas as sucessivas fases desta operação e a resposta do PAIGC, logo com um poderoso ataque contra Gandembel. No dia 11 de Setembro, das 20 horas desse dia até às 5 horas do dia seguinte, rebentaram na área do aquartelamento de Gandembel mais de 500 granadas de morteiro 120, 82 e de canhão S/R. Desde as 3h30 da manhã, tentaram o assalto ao aquartelamento, após rebentar as redes de arame-farpado com torpedos bengalórios; repelido, voltou por mais duas vezes à carga, houve mesmo grupos suicidas que tentaram ultrapassar as últimas defesas das nossas tropas, só ao amanhecer é que os atacantes retiraram, e os paraquedistas lançaram-se na sua perseguição. Segue-se um ataque a Guileje e de novo a Gandembel. Os atos de coragem praticados pelas tropas paraquedistas e pelos militares da CCAÇ 2317 mereceram destacadas citações individuais. A campanha de Gandembel, extenuante, chegará ao fim em Dezembro, o COP 2 será extinto, encerrando-se a operação Júpiter. Em 1969 é criado o CAOP 1, com sede em Teixeira Pinto, aposta-se no Chão Manjaco, cujas populações concediam escasso apoio ao PAIGC. Sucedem-se as operações Aquiles 1, Titão, Orfeu, Talião, Adónis, na operação Jove é capturado o capitão cubano Pedro Rodriguez Peralta. A par da intervenção em Teixeira Pinto, o corredor de Guileje merecia destaque na atividade operacional do BCP 12, a operação Crocodilo Negro foi um enorme sucesso, em 17/18 de Janeiro de 1970, na região de Porto Balana.

Sucedem-se as operações enquanto as companhias paraquedistas intervêm no CAOP 1, no COP 6 e 7, irão ganhar fôlego operações helitransportadas.

O documento, com o título “A Escalada”, reporta a atividade operacional entre Janeiro de 1972 a Dezembro de 1973. O novo comandante da unidade, a partir de Dezembro de 1969 foi o Tenente-Coronel Paraquedista Sílvio Araújo e Sá que manifestou reticências ao modo como estavam a ser utilizadas as tropas paraquedistas. “Em sua opinião, o comandante do BCP 12 deveria dispor sob seu comando directo e em permanência, de duas Companhias de Pára-quedistas. Só assim seria possível lançar operações frequentes e rápidas nas áreas mais sensíveis do teatro de operações, devolvendo às tropas pára-quedistas as suas verdadeiras características operacionais de forças de intervenção”. Mas Spínola não o ouviu. Merecem realce a operação Mocho Verde, realizada na região do Sara, os paraquedistas entraram na chamada “Barraca de Mantém” após uma aproximação apeada de cerca de 15 km. Recuperaram-se 12 elementos de população e apreendeu-se um número significativo de material. A operação mais importante realizada pelo BCP 12 durante o ano de 1972 teve o nome de código “Muralha Quimérica”, e decorreu na região de Unal-Guileje. Para esta operação convergiram três companhias de paraquedistas, duas companhias de comandos africanos, três companhias de caçadores e um grupo especial COE. Dispersou-se temporariamente a força inimiga e apreendeu-se um número impressionante de armamento.

Segue-se a descrição das operações em 1973, até que se chegou à grande ofensiva lançada pelo PAIGC em torno de Guileje e Guidage. As tropas paraquedistas foram lançadas em Gadamael-Porto e atuaram para contrair o cerco de Guidage. O aqui se relata é hoje matéria desenvolvida em diferentes livros, o dado mais significativo é o comportamento admirável dos paraquedistas na defesa de Gadamael e as missões de patrulhamento que posteriormente desenvolveram até interromper a pressão sobre Gadamael-Porto.

O derradeiro capítulo é dedicado à extinção do batalhão, desvelando a atividade operacional entre Janeiro a Maio de 1974. Em Janeiro o comando do BCP 12 passa a ser assegurado pelo Tenente-Coronel Pára-quedista António Chumbito Ruivinho. Os paraquedistas vão participar na operação Gato Zangado 1, sobre o controlo operacional do CAOP 2, que decorrer na região de Bajocunda-Copá-Canquelifá. A última operação militar das forças paraquedistas foi a denominada “Obstáculo Hermético”, levada a cabo entre Abril e Maio na região de Canquelifá. Chegara-se se ao fim da guerra, em Agosto as tropas paraquedistas regressaram a Portugal. As instalações do BCP 12 passaram então a ser utilizadas pelas tropas do Exército que aguardavam transporte de regresso a Portugal. No dia 13 de Outubro de 1974 findou a presença militar das tropas paraquedistas na Guiné, o Capitão Albuquerque Pinto fez a entrega a um representante do PAIGC de todas as instalações do BCP 12. Em 15 de Outubro do mesmo ano um decreto-lei do Conselho dos Chefes de Estados-Maiores das Forças Armadas consumou a extinção legal do BCP 12. Assim se encerravam 11 anos de vida e presença efetiva das tropas paraquedistas na Guiné.

Um "Pára" ferido em combate aguarda a evacuação

Canhão S/R B-10 apreendido durante a operação Muralha Quimérica

Enfermeira do PAIGC capturada pela CCP 121
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Nota do editor

Poste anterior de 30 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20190: Notas de leitura (1222): História das Tropas Pára-Quedistas Volume IV, é dedicado à Guiné e tem como título História do Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12; responsável pela redação e pesquisa Tenente-Coronel Luís António Martinho Grão; edição do Corpo de Tropas Paraquedistas, 1987 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20205: Notas de leitura (1223): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (26) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 – P20212: Guiné, da escravatura à carne para canhão - Os escravos e os combatentes, (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 
  
Os escravos e os combatentes

Li, recentemente, o livro, cujo autor é o meu camarada ranger, 1º Curso de 1973, António Chaínho, ex-alferes miliciano e antigo combatente em Angola, onde descreve literalmente o mundo negro da escravatura.


“A escrava Domingas”, uma negra trazida de uma sanzala na foz do rio Zaire, Angola, é uma das personagens principais, senão a principal, da narrativa que sinteticamente espelha o soberbo poder exercido pelo homem sobre pessoas indefesas que eram simplesmente utilizados pelo poder da sua força física e as mulheres obsequiosas duplamente usadas para os prazeres sexuais dos mais poderosos. 


Domingas foi comprada num lote de escravos, ao todo nove, sendo o seu destino o morgado de São Mamede, Vale do Sado, quando decorria o século XVIII. Claro que, tal como os seus outros camaradas da inferida caminhada, sofreu as amarguras da crueldade de uma atroz escravidão por parte de donos sem escrúpulos, maliciosos, miseravelmente déspotas e que usufruíam da sua condição senhorial para atingir infinitos objetivos.

Investiguei o tema escravos na Guiné. Andei por trilhos, agora desarmadilhados, e deparei-me com a fundação de uma tal Companhia do Cacheu que no século XVII terá sido determinante para a comercialização de escravos. Naquele local controlava-se, olho por olho, o negócio. As caravelas portuguesas levavam tecidos, barras de ferro, muitas bugigangas, álcool, de entre outras mordomias, e aí executavam a troca direta, recebendo escravos, pimenta de entre outros objetos de valor. 

Para se efetuar o respetivo comércio havia os intermediários que eram, naturalmente, os armadores e os régulos. Havia, também, os lançados, homens brancos, sendo que alguns deles tinham a origem judia que interferiam, à socapa, no tráfico e que atuavam no negócio à revelia das autoridades ali existentes.

A curiosidade desta demanda remete-nos para as queixas que tanto os capitães-mores como os comerciantes mais fortes, que partilhavam os dividendos do comércio de escravos, lançavam àqueles que, para eles, atuavam à margem das regras legais impostas pelas próprias autoridades oficiais.

Este pequeno introito sobre o comércio inicial de escravos no Cacheu, transporta-nos para séculos posteriores, ou seja, para a guerra na Guiné, século XX, na qual fomos atores forçados. A 23 de janeiro de 1963, na região de Tite, iniciaram-se as ações da guerrilha, estendendo-se depois a todo o território, sendo que a luta armada só terminou em 1974, mercê da Revolução dos Cravos, o 25 de Abril.

E se o PAIGC revelou-se como o partido da revolução no solo guineense, na Metrópole, em Lisboa, a capital do Império, os senhores da guerra enviavam um outro tipo de escravos para o cenário da peleja, os chamados carne para canhão.

Creio, conscientemente, que o termo carne para canhão não é um ímpeto deselegante, e nem tão-pouco o deverá ser. Pelo contrário, ele reflete uma realidade conhecida por todos os camaradas. Isto porque enviar jovens para as frentes de combate com uma arma na mão cujo estatuto era matar para não morrer, significava que os nossos soldados, muitas das vezes, davam o corpo às balas numa pura e simples veracidade que eles, meninos e moços, se apresentavam para os teores da ferocidade da guerra como “miúdos” indomáveis que literalmente resvalavam para a meteórica expressão denominada como carne para canhão.


Se os escravos, vendidos aos lotes para patrões de outros continentes, o europeu nomeadamente, sendo o lote das mulheres melhor taxado, a condição física dos homens passava por monotonizar minuciosas visualizações, isto é, o conhecer da força, a doutrina da composição de toda a massa muscular, as doenças africanas, a saúde dos dentes, vistorias às partes íntimas, de entre outras malazengas, nós, eternos camaradas e antigos combatentes, éramos a tal carne para canhão, onde os aspetos físicos que cada um apresentava pouca ou nenhuma importância teria para uma missão deveras agressiva.

Falamos, e é verdade, de sistemas e de conteúdos completamente diferentes, melhor, de sistemas sob uma ancestral matéria humana conhecida nos séculos XVII e XX, contudo, os elos que unem os antigos combatentes resvalam para restos de uma escravatura que se propagou no tempo num agreste terreno de batalha chamado Guiné.

Este entrosar de realidades observadas, em séculos diametralmente diferentes, volto a referir, é somente o reavivar de histórias passadas, sendo o conflito da Guiné um dado real por todos nós conhecido.

Escravos para além de combatentes? Admitamos um pouco que sim! Não fomos “vendidos” em lotes, nem tão-pouco sujeitos a humilhações humanas, ou motivo para notórias vistorias corporais, mas sim atirados sem dó nem piedade para Batalhões, Companhias ou Pelotões onde o fator da morte estava sempre iminente.

Factualidades de um tempo sem tempo, camaradas!


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

1 DE OUTUBRO DE 2019 > Guiné 61/74 - P20194: Blogues da nossa blogosfera (111): os alentejanos de pele escura: "Ribeira do Sado, / Ó Sado, Sadeta, / Meus olhos não viram / Tanta gente preta." (Blogue Comporta - Opina, 2/1/2010)

Guiné 61/74 - P20211: In Memoriam (351): António Leal Faria (c. 1942-1966), ex-alf mil SG, AB3, Negage, Angola, natural de Torres Novas e antigo seminarista, capturado e executado pela FNLA, na sequência de acidente com DO 27, em Ambrizete, em 24/3/1966... O seu corpo, tal com o dos seus restantes companheiros de infortúnio, não foi resgatado.




Caricatura do António Leal Faria, feita por ele próprio, no livro do curso do 1º ano do seminário dos Olivais, diocese do Patriarcado de Lisboa, 1959/60...




Excertos do livro do curso do 1º ano do seminário dos Olivais, 1959/60,  cujo lema, em latim, era "Adveniat Regnum Tuum" (que venha a nós o vosso reino). Cortesia de Arcílio Marteleira, Lourinhã. 




1. Notícia transcrita do blogue Acidentes de Aviação Militar > 28 de novembro de 2016 > Dornier DO 27 > 




(...) 24 de março de 1966

Despenha-se em Ambrizete,  Angola, devido a falta de combustível, o DO-27-A3 com a matrícula FAP 3465 e o número de fabricante 369.

A tripulação,  composta pelo Furriel Piloto António Macedo Matias da Silva, o Tenente  Pilo
to Manuel Fernandes Moreira, o Alferes Miliciano SG António Leal Faria, o 2º Sarg. SG Bernardino Conceição Mesquita da Silva e o civil Manuel Pedrosa,  é capturada e posteriormente executada pelos captores.

Este blogue, Acidentes da Aviação Militar, e a única fonte, encontrada na Neta, que refere, com algum pormenor, este acidente

Não sabemos quem é o seu autor. Tem
justamente como missão "recordar todos que fazendo de voar a sua suprema paixão deram a vida por esse amor. Neste blogue tentaremos dar a conhecer, com os pormenores possíveis, todos os acidentes, envolvendo pilotos  nacionais, ocorridos com aviões militares portugueses e estrangeiros, desde o início do século XX até aos dias de hoje".

Sabemos que o ten mil pil Manuel Fernandes Moreira era natural de Arcos de Valdevez, foi   mobilizado pela BA 7 [, Base Aérea nº 7, São Jacinto], pertencia em 1966 à AB3 {Aéródromo Base nº 3,Negage, Angola].

O fur mil pil António Matias da Silva e o 2º srgt SG Bernardino Conceição Mesquita da Silva também eram da AB3 (Negage), mas não conseguimos apurar a sua naturalidade. Também nada sabemos do civil Manuel Pedrosa.

Sabe-se que os corpos não foram resgatados.  E presume-se que tenham sido capturados e executados por forças da FNLA.


2. Quanto ao  António Leal Faria, alferes miliciano SG, da AB3 (Negage), sabemos que  era natural de Assentis,  Torres Novas. 

Há dias, em conversa com o meu amigo e conterrâneo Arcílio Marteleira, que também ele esteve na Guiné, entre 1964 e 1966, como alferes miliciano SAM, vim a descobrir que um dos seus colegas e amigos, da turma do 1º ano do seminário dos Olivais, 1959/60, tinha sido justamente o António Leal Faria, do qual se dizia que teria desaparecido na Guiné durante a guerra colonial.

Infelizmente o Arcílio não sabia das circunstâncias trágicas em que ele morreu, não na Guiné mas em Angola, às mãos dos seus captores. Fazia anos a 10 de janeiro. Terá morrido com 24 ou 25 anos.

Para ser oficial miliciano SG da Força Aérea, o Leal Faria deve ter saído do seminário aos 18 anos, talvez no fim do ano letivo de 1960/61, e ter-se oferecido de imediato como voluntário para a FAP. 

Tanto no Exército como na Força Aérea, serviram milhares de graduados e especialistas, 1ºs cabos, furriéis, sargentos, alferes e capitães milicianos durante a guerra colonial de 1961 a 1974, saídos dos seminários diocesanos e das ordens religiosas (franciscanos, dominicanos, etc.). 

Em muitas companhias, no TO da Guiné, quer de quadrícula quer de intervenção, bem como nas tropas especiais (, nomeadamente, comandos e paraquedistas), havia um boa proporção de graduados, que estudaram em seminários... Bem na Base Aérea nº 12 (Bissalanca).

O seminário na época,no Estado Novo, foi um verdadeiro "ascensor social" para os jovens, sobretudo do meio rural e das vilas e cidades do interior sem acesso em ensino liceal. Não há estudos sobre eles, os ex-seminaristas que fizeram a guerra colonial, apenas algumas obras literárias e testemunhos. 

Temos no nosso blogue mais de três de dezenas de referências ao descritor "seminário".

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Nota do editor:

Último poste da série > 24  de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20173: In Memoriam (350): António Manuel Carlão (1947-2018): Testemunho de Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52

domingo, 6 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20210: Blogues da nossa blogosfera (111): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (27): Palavras e poesia


Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.

UMA ANDORINHA DO ÁRCTICO

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


Abri as janelas do meu peito
a uma andorinha do Árctico
trazia um sonho no bico
sonho que eu perdi não sei onde nem quando
não sei se na vida errando
não sei se dentro de ti.
Vinda das auroras de frescura
trazia em cada asa um poema
e um abraço de ternura
no cortante gume de um dilema.
Abri o peito a uma andorinha do Árctico
e com abraços quentes como tâmaras
fundimos nosso enlace num poema.
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Nota do editor

Poste anterior de 10 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19570: Blogues da nossa blogosfera (109): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (26): Palavras e poesia

Último poste da série de 7 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19756: Blogues da nossa blogosfera (110): O livro "Imagens e Quadras Soltas", de JERO e Manuel Maia, no Blogue da Tabanca do Centro (José Eduardo Reis Oliveira)

Guiné 61/74 - P20209: Blogpoesia (638): "Sou filho de Adão", "Guidinha padeira" e "Valor da paz", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Sou filho de Adão

Como os demais.
Sou filho de Adão.

Sinto fome e frio
Se não como e não me agasalho.
O medo me ataca, de vez em quando.

Minha chave é a alegria com sabor de liberdade.
Nada compro e nada dou
Que não tenha utilidade.
Volta e meia dá-me a saudade dos bons tempos de criança.
Mal eu sabia para o que vinha.
O que eu queria era ser grande.
Para ver como era o mundo.

Com certezas e muitas dúvidas,
Aprendi a viver com pouco.
Errei nalgumas encruzilhadas.
Se pudesse voltava atrás.
Tive sorte e tive azares.
Me contento com o que tenho.
Não choro o que perdi.
Apesar de tudo, foi bom como vivi…

Berlim, 29 de Setembro de 2019
14h52m
Jlmg

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Guidinha padeira

Vivia na santa.
No pé de um monte.
Santa Quitéria.
Cada manhã, de canasta à cabeça,
Cheio de pão, vinha a pé,
Vendendo o pão,
Até Varziela.
Uma linda senhora.
Vestia de escuro.
Os olhos luziam.
Sorria para todos.
Com muito respeito,
- Bom dia, Guidinha!
Subia as escadas, em Pedra Maria.
Ali tinha a filha e dois netos queridos.
Eu era um deles.
A minha madrinha.
Que eu tanto queria.
A outra, a Delfina.
Também cá não está.
Me dava uma “bica”,
Um pão saboroso.
E muitos beijinhos
Que eu guardo no peito.
Beijinhos de Avó.
Mais doces não há…

Berlim, 30 de Setembro de 2019
10h9m
Jlmg

********************

Valor da paz

Orvalho de luz e calor a raiar ao sol.
Brisa suave que inebria feliz, os rostos carregados de sombra, por debaixo da cruz, no calvário da vida.
Promessa cumprida ao alcance de todos, basta querer e partir.
A arma serena e eficaz que vence e apaga as feridas do ódio que a guerra deixou.
A taça-troféu de alguém que sofreu e venceu.
Bandeira de esperança, desfraldada ao vento, saudando quem chega feliz, extenuado da luta.
Um mar de bonança, abarrotado de peixes, onde vale a pena pescar.
Uma praia de sol, regada de ondas e espuma do mar.
Caravela imponente, de mastros erguidos e velas ao vento, sulcando oceanos, à volta do mundo.
Planície de verde, regada de sol, celeiro abundante que o Outono encherá.
Fonte incessante de água pura e fresquinha onde todos podem beber.

Ouvindo Rachmaninoff, Rapsodia
Berlim, 5 de Outubro de 2019
9h56m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20188: Blogpoesia (637): "O acabar do dia", "Luminoso amanhecer de Setembro Outunal" e "Cicatrizes", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sábado, 5 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20208: Os nossos seres, saberes e lazeres (358): Montechoro, Albufeira, Lagos, Sagres (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Se Lagos é surpreendente por se sentir à vista desarmada que há preservação do património, e ali se sente o peso da História, a costa recortada que nos leva a Sagres é seguramente um dos deslumbramentos que o Algarve oferece como valioso recurso da sua natureza prodigiosa. O que singulariza esta costa é a sua plena dissociação do Algarve agrícola, um completo dramatismo de falésias e escarpas, de pedregulhos lançados sobre as águas, fica a imaginação a funcionar se não houve aqui uma fratura, uma separação dilacerante num Jurássico qualquer. E depois a surpresa do arranque da costa vicentina, pela sua imponência, os seus escalvados, parecem quilhas de medonhos transatlânticos. E de novo nos fica a certeza de que não há viagem que sempre dure porque a viagem nunca acaba, o que pode acabar é a resignação do viajante, a perda de curiosidade, de se aventurar a outras terras e a outras gentes. Nestas escarpas e penedias sente-se perfeitamente que a viagem a Portugal é infindável, a grande marca da nossa identidade.

Um abraço do
Mário


Montechoro, Albufeira, Lagos, Sagres (3)

Beja Santos

Prossegue a viagem entre Lagos e Sagres, logo paragem na Ponta da Piedade, para desfrute de uma enfiada de escarpas e falésias, pressente-se que junto do mar a areia é muito fina, contraste com todas estas vertentes dramáticas, recortes sucessivos, despenhamentos de pedra, como se este Algarve, milhões de anos atrás, se tivesse despegado de um outro continente. É de facto um outro Algarve, com praias de renome como Luz, Burgau ou Figueira. Saltita-se pela terra batida em busca de detalhes insólitos, recantos anichados, alcovas, praias secretas. Eis o resultado obtido.






É uma versatilidade de paisagens em que sobressaem os tons da rocha, róseos, cresce uma vegetação rala própria das dunas, a natureza reage bem e segura as suas areias, momentos há em que podemos imaginar que houve para aqui castelos que se afundaram no mar. E quando alcançamos a Costa Vicentina tudo se altera, basta confrontar.





Alguém faz o reparo de que parece que chegámos às falésias de Dover, alturas a pique, em contraste com uma ondulação que tenta largos grupos de surfistas, e assim se chega a Sagres, muda o dramatismo das panorâmicas, tudo como se de Lagos a Sagres fosse pedra caprichosa, a correr, com esfarelamentos, para a água. Agora a pedra ganha outra densidade, a altura de grandes transatlânticos, é uma costa de rochedos.




Em frente à Ponta de Sagres, veio à memória do viandante o final da obra “Viagem a Portugal”, de José Saramago, ele elogia a saga da viagem e a sageza do viajante, pode haver intermitência na viagem, mas ela nunca acaba, tem a ver com a nossa motivação, o gosto da aventura e da descoberta, como ele diz, o que se vê de manhã não é o que se vê de tarde, o que se vê no outono não é o que se vê na primavera, há a luz e a sombra, há o gosto por perguntar, ali em Sagres andava uma guia a falar na Escola de Sagres, ali se reunia, dizia a senhora, o Infante com os seus navegadores, cartógrafos, peritos na arte de marear, homens do ofício de conhecer a viagem pelas estrelas. Tudo não passa de um mito, não há um só documento sobre esta escola, nada abona um cenáculo de mestres e descobridores em Sagres. É um dos aspetos que marca a viagem até este belíssimo extremo associado à epopeia que foi o projeto henriquino, aqui se franqueou a porta para um Portugal imperial, e é aqui que se conclui uma viagem iniciada há escassos dias em Montechoro para comunicar com gente que se ama e que vive num outro extremo da Europa.

Bendita é a viagem que nos faz suspirar pela próxima!
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20185: Os nossos seres, saberes e lazeres (357): Montechoro, Albufeira, Lagos, Sagres (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20207: (Ex)citações (359): Uma noite nos braços de Vénus, três semanas por conta de Mercúrio... Relembrando o fino humor do "alfero Cabral"...


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (1969/71) > "Cinco séculos de história te contemplam!", terá proclamado o "alfero Cabral", perante o anónimo e estupefacto fotógrafo...  Em tronco, nu, o "alfero Cabral", é o segundo a contar da esquerda para a direita, na segunda fila... De pé, e sem cachimbo...

A foto chegou clandestinamente à metrópole. E faz parte hoje do precioso álbum fotográfico do Jorge Cabral, ex-brilhante advogado e  melhor criminalista, reformado, depois que o senhorio lhe aumentou a renda  do escritório  de 400 para 6 mil euros... É uma das milhares de vítimas da "gentrificação" de Lisboa... O país, depois de perder o Império, está em vias de perder a cabeça, isto é, a capital do ex-Império...

Foto:  ©: Jorge Cabral  (2013). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ]


1. Em matérias como as "doenças sexualmente transmissíveis" (ou, como diria o nosso grande médico do séc. XVIII, Sanches Ribeiro, de Penamacor, "males de amores"), temos aqui, na Tabanca Grande, alguns catedráticos, do José Ferreira ao "alfero Cabral"... São peritos em falar de "esquentamentos" (sic), com elegância, elevação de espírito, competência, devoção,  imaginação, didatismo, profissionalismo e,  sobretudo, com muito fino humor, que é coisa que às vezes nos faz falta..., muita falta.

A propósito do tema, ainda hoje, volvido mais de meio século, do fim da guerra e da mobilização de um milhão de  homens para os vários de teatros de operações no longínquo ultramar, temos as mais diversas opiniões e reações dos ex-combatentes quando se fala dos "ditos cujos"... Convenhamos que, em tratando-se de maleitas nas "partes baixas",  não é de boa educação falar delas em público, para mais num blogue que é lido por toda a gente, lá em  casa, da avó ao neto (*).

Para amenizar as leituras neste dia de feriado (em que se comemora o fim de 700 anos da nossa gloriosa monarquia), nada como ir desencantar algumas das "estórias cabralianas" que, em tempos idos, alegraram as noites de tédio da Tabanca Grande, há dez anos atrás!... E eu proponho esta, as "Trompas de Falópio" que, traduzido em crioulo de Fá Mandinga e Missirá, queriam  dizer "Trombas do Lopes" (**)... 

O "alfero Cabral" e os seus rapazes do Pel Caç Nat 63, do Nanque ao Lopes,  são figuras impagáveis que já ficaram gravadas na memória dos últimos soldados do Império...



Estórias cabralianas: as Trombas do Lopes


por Jorge Cabral


O Amoroso Bando das Quatro (***) deixou-nos muitas saudades. Mas que noite agradável ... até sonhámos com elas. Só que ainda nem três dias haviam passado, já recebíamos tratamento à fortíssima infecção que nos atingira o dito e adjacências. 

Graças à Penicilina, o caso seria em breve esquecido, pois afinal tinham sido apenas ossos do ofício, os quais segundo alguns até mereceram a pena... Porém, e estranhamente, os sintomas começaram a surgir nos africanos, soldados e milícias, os quais não tinham usufruído da benesse.

Só então o Alfero ficou preocupado. Ora se nos mandam agora numa operação! Que vergonha! Avançaremos de pernas abertas como se fossemos da Cavalaria no tempo dos cavalos?

Mas como é que a moléstia teria chegado aos Africanos? Mesmo sem poder contar com o investigador Nanque que continuava preso em Bambadinca, o Alfero acabou por descobrir. Reconstituída a noite do Amor, constatou que as damas se tinham ausentado durante meia hora para comer. Fora, então.

E quem? Óbvio suspeito, Preto Turbado, soldado Bijagó, de quem se dizia, que às vezes aliviava os maridos fulas do débito conjugal. Chamado, confessou. Naquela noite oferecera às visitantes a bianda, e à sobremesa... acontecera. Depois contagiara algumas das mulheres dos militares, as quais por sua vez, contaminaram os fidelíssimos maridos...

O assunto era grave. Que fazer perante aquela verdadeira pandemia? Como tratar as mulheres e ao mesmo tempo dissipar as dúvidas sobre o seu comportamento sexual?
Naquele tempo e para aquele Alfero, tudo era possível. Resolveu reunir todos os africanos, soldados, milícias e respectivas mulheres, proibindo os brancos de assistirem, com uma única excepção – o enfermeiro Alpiarça.

E a todos, pregou o mais absurdo discurso da sua vida. Ainda hoje se lembra dos olhos esbugalhados do Alpiarça... Falou de gonococos trazidos pelo vento, das infecções do útero e das trompas de Falópio... Tratamento imediato, frisou, e nada de mezinhas. Claro que perceberam muito pouco, mas ficou com a certeza que no futuro se protegeriam do vento Blenorrágico...

Na semana seguinte, encontrava-se no bar de oficiais em Bambadinca. Conversava e bebia o seu quarto uísque, quando o foram chamar para ir ao Posto de Socorros. Lá foi. Médico, Furriel e Cabo rodeavam um casal de Missirá, o milícia Suma Jau e a mulher. Não os percebiam. Eles queixavam-se das... “Trombas do Lopes”.

O Alfero ouviu e muito sério informou:
- É fula, quer dizer, esquentamento.

Parece que o Furriel apontou no seu caderno de sinónimos...

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de outubro de  2019 > Guiné 61/74 - P20195: (Ex)citações (358): Fernando Calado, camarada de Bambadinca, gostei de ler o teu poste... Também eu escrevia cartas diárias, com muitas páginas, para a minha namorada... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


(***) Vd. poste de 24 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1696: Estórias cabralianas (21): O Amoroso Bando das Quatro em Missirá (Jorge Cabral)

Guiné 61/74 - P20206: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte III: recebido em Bissau, pelos camaradas do BAC 1, de braços abertos, na noite de 12/5/1969


A Conferência de Berlim sobre a Partilha de África (1884), em gravura da época.  Imagem do domínio público. Cortesia da Wikipedia



RECORDAÇÕES E DESABAFOS DE UM ARTILHEIRO > Parte III: recebido em Bissau, pelos camaradas do BAC 1, de braços abertos, na noite de 12/5/1969

por Domingos Robalo (*)

[, Foto à direita: Domingos Robalo:

Tabanca da Linha > Domingos Robalo.
Foto de Manuel Resende (2019)


(i) tem página no Facebook desde março de 2009 e administra também o grupo Artilharia de Campanha na Guiné-BAC1/-GAC7;

(ii) filho de militar, foi fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71;

(iii) vive em Almada, está ligado à Universidade Sénior Dom Sancho I, de Almada, onde faz voluntariado, desde julho de 2013, como professor da disciplina de "Cultura e Arte Naval";

(iv) trabalhou na Lisnave;  é praticante de golfe;

(v) e passou a integrar a Tabanca Grande, com o nº 795, desde 21 de setembro último]






Guiné > Bissau > Chegada do T/T Niassa, em 12/5/1969. Fotogramas de vídeo da RTP, de 15/5/1969,  de 1'  17'', disponível aqui, em RTP Arquivos. Com a devida vénia...

Se é verdade que o cais da Rocha estava repleto de militares em parada, não tem menos significado a presença dos seus familiares que lhes vêm dar um abraço. Para uns foi o último abraço, foi uma despedida antecipada de uma vida que havia de ser curta para alguns.

O navio “Niassa” dá o seu toque que está pronto para a largada. Os soldados apinham-se do lado de estibordo para um último aceno, alguns mais afoitos sobem pela mastreação, há lágrimas nos olhos de quem parte e inconformismo nos rostos de quem fica.

Saímos a barra a tentar disfarçar as nossas lágrimas. Os nossos entes queridos já estão para trás e em frente temos o oceano. Vamos desbravá-lo como o fizeram os nossos antepassados, os nossos nautas, que trouxeram para Portugal aquelas terras que agora nos incumbia defender.

Porém, a política internacional, terminada a 2ª Guerra Mundial, tinha decretado na ONU, o direito dos povos à sua independência. Era esta aceitação por parte do nosso poder político que não estava a ser aceite e nos estava a obrigar a defender chão onde portugueses tinham relações comerciais, de amizade e familiares, desde o século XV. A conferência de Berlim [, 1884/1885,]  também obriga Portugal a ter outra atitude para com as populações dos territórios que ocupava.

Estamos a bordo do navio de passageiros, até então designado por “paquete”, chamado “Niassa”.
Não posso deixar aqui de referir, as condições degradantes e sub-humanas da forma como os nossos soldados iam alojados. Camas e camas encimadas sem condição digna, denotando uma autêntica falta de humanidade para com estes jovens agora feitos soldados, em ambiente insalubre e muito pouco ventilado.

A juventude do meu país estava disponível para lutar pela sua Pátria, mas a Pátria não lhes retribuía com dignidade essa entrega. À época, a pobreza do interior do país refletia-se no baixo nível de conhecimento e cultural de toda esta juventude. Para uma grande maioria, saíam das suas aldeias pela primeira vez.

Ao fim da manhã do dia 12 de maio, o navio “Niassa” está ao largo de Varela,  aguardando a ida a bordo da Autoridade Marítima. Ao fim da tarde do mesmo dia está a acostar ao cais de Bissau.

Sacos e malas prontas para o desembarque, empurrão daqui e dali todos queria olhar pela borda para verem gentes que não estávamos habituados a ver. Mas, o que se vê ali é chocante; não estávamos habituados, nem tínhamos sidos preparados para tal.

“Pretos” em tronco nu, calças, calções, ou camisas rasgados e a disputa pelas moedas que alguém começou por deitar para o cais. Fazia lembrar as festas das aldeias em que os rebuçados eram lançados para o terreiro e a miudagem em completo atropelo procurava apanhar alguns.

Sou dos últimos militares a desembarcar, por ser de rendição individual e por o meu destino ser o quartel da BAC 1 [Bataria de Artilharia de Campanha nº1, sediada junto ao QG (Quartel General)].

Cai a noite e dou comigo dentro de uma carrinha com destino à BAC1. Mal tínhamos percorrido 300 metros a carrinha parou e imobilizou-se. Cinco minutos depois estávamos rodeados de milhares de velas empunhadas por mãos de gente africana, homens, mulheres e crianças, com a cabeça coberta com véu semelhantes ao que a minha mãe e avós usavam quando participam nas procissões na terra. Olhando bem através da janela, as fisionomias pareciam-me todas iguais. Eu não conseguia diferenciar a feição das pessoas. Rezavam o terço e as ave-marias como se estivessem em Fátima [, na  procissão das velas de 12 para  13 de Maio]. Ficámos imobilizados no meio da procissão cerca de meia hora. Homens de olhar sério e compenetrado, mulheres com o véu branco na cabeça seguiam em silêncio alternadamente aos cânticos.

Chego finalmente ao aquartelamento da BAC1, onde me espera um quarto com cama feita.
Sou recebido por Furriéis e Sargentos e Oficiais que me aguardavam com amizade e simpatia. Ainda hoje me encontro com alguns desses meus camaradas, o Mendes, o Glória, o Faro, o Chaves, o Correia, o Mendes de Almeida e outros tantos, e até o meu Comandante, à altura o Capitão M. Soares.

Nunca deixei de lhes ficar grato pela calma que me transmitiram na civilidade que senti naquela receção. No fundo eu estava a render um camarada que lhes era muito querido. Senti a responsabilidade da amizade que tinham para com aquele camarada. Ainda hoje sinto que não os deixei ficar mal e não deixei de olvidar a camaradagem e amizade que sempre me dispensaram.

(Continua)
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Vd. poste de 26 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20178: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte I: Apurado para todo o serviço militar

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20205: Notas de leitura (1223): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (26) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
A BVAC 490 retirou da ilha do Como, vem bastante mal tratada, fica em Bissau até partir para Farim e redondezas, em maio.
Era incontornável a referência a Armor Pires Mota, um diarista do Como, a ele nos iremos socorrer nas etapas seguintes.
Mas ao sair do Sul havia uma referência, brejeira e burlesca, inescapável, saída da pena de um grande escritor, José Martins Garcia, aquele alferes miliciano que deixou um romance brilhante "Lugar de massacre", continuamente a ser estudado em instâncias universitárias.
Tudo se passa entre Catió e o Cachil, e por vezes as fraquezas dos homens até permitem ir à procura de um responsável inexistente...

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (26)

Beja Santos

“Todo o pessoal louvado,
pouco tempo descansámos.
Noutra saída, novamente
para Farim abalámos.

De novo metidos ao mar
no Vouga, Lanchas e Dragão,
todo o nosso Batalhão
irá ao cais atracar.
Vamos nós aquartelar
no quartel amuralhado.
Onde o Batalhão é formado, havendo grande reunião
e pelo Comandante da operação
todo o pessoal é louvado.

Em Bissau a passear,
para ver as matulonas
mas elas são tão mazonas
que à tropa não querem ligar.
Levando o tempo a andar,
as solas dos sapatos estragamos.
Muitas vezes chegámos
a faltar à comida.
Com esta tão boa vida,
pouco tempo descansámos.

Os médicos inspeccionaram
para ver os que estavam capazes.
Tivemos muitos rapazes
que para a guerra não abalaram.
Eu fui um dos que cá ficaram
junto a quem estava doente,
pois ficou cá muita gente,
que estava muito mal,
mas quase todo o pessoal
noutra saída, novamente.

Ao mês de Maio se chegou
e os batelões foram carregar.
Com os rebocadores a puxar,
pelo mar se navegou.
Muitos dias se demorou
porque grande carrada levámos.
Para muito tempo nos destinamos,
enfrentando sempre a morte,
e ansiosos por melhor sorte,
para Farim abalámos.”

********************

Vamos despedir-nos em grande dessa batalha do Como, temos um vate, um cronista, um diarista que por ali andou e deixou páginas de indelével impressão. Trata-se do “Tarrafo”, de Armor Pires Mota. Logo no Como, em 15 de janeiro:  
“Quando o sol, suavemente, se aconchegou vermelho no seio verde e agitado das ondas do mar, a distância que nos separava da ilha tão falada, era pouca, a indispensável para não quebrar a surpresa. E o barco ancorou, durante a noite estrelada, ao sul. Em cada rosto, em cada palavra, havia a incerteza do dia seguinte e o perigo do desembarque, pois há tempos que a tropa não punha ali os pés (…). E fez-se a noite do primeiro dia, escura e cheia de medos e fantasmas. Qualquer folha ou fruto caindo das árvores ou bulindo no chão, qualquer sapo saltitando, caindo no abrigo, lembrava um passo estranho que arrepiava. Em frente, na mata, separada de nós por uma pequena bolanha encharcada, duas ou três fogueiras crepitavam cinicamente.”

No mês seguinte, 8 de fevereiro, deixa estas considerações no seu diário: 
“A manhã correra bem. Os bandidos foram levados de rompão na tabanca grande de Cauane. E de lá trouxemos um crucifixo, cujo Cristo tinha um braço despregado. Uma explosão súbita de granada atroou os ares. Que seria, que não seria? Mas, logo, gritos de dor magoaram os ouvidos. Era o Quítalo que, alucinado, corria, a manquejar, gemendo, rosto mascarado de sangue e lama, peito ensanguentado e sem uma das mãos, enquanto a outra apresentava apenas dois dedos esfacelados. Correram a ampará-lo. Parecia uma visão terrível, um homem de calvário. A armadilha, que ele costumava montar todas as tardes para os terroristas, hoje, traiu-o, disparando-se-lhe nas mãos. Junto do buraco aberto pela explosão, pedaços de carne, terra avermelhada de sangue, uma alpercata desfeita, e, mais ao largo, o barrete e farrapos da farda”.

Armor Pires Mota
Estamos a 24 de fevereiro, regista o seguinte queixume:
“Há quarenta dias que o mundo para nós é incerteza da hora seguinte a devorar-nos a fronte atormentada. O mundo para nós é de luta, uma terra de sangue e fogo. Há refeições em branco, porque nada apetece senão a paz, o regresso. Há pesadelos e estonteamentos, cansaço. Uma grande parte da tropa está já inoperacional”.

O último texto do Como data de 15 de março:  
“A guerra esconde-nos as estrelas e faz-nos selvagens. Um tecto feito de troncos de palmeira, coberto de meio metro de terra, pesa, dói-me e sinto-me um condenado num exílio. Enfim, um abrigo à prova de morteiro, porque, de vez em quando, eles nos pregam uns sustos valentes. Tem 60 dias o meu abrigo. Da seteira larga olho, apreensivo, o dia seguinte, a mata densa e cheia de segredos”.
Nesse domingo houvera missa ao cair da noite, e ele despede-se dizendo: “Deus desceu à guerra para a paz”.
Só retomará o seu diário no mês de maio.

É importante voltar à história da unidade, sabemos que o BCAV 490 veio do Como em muito mau estado, estadeou em Bissau, cabe-lhe a partir de maio, com sede em Farim, proteger eixos como Cambajú – Sitató – Cuntima ou Canhamina – Canjabari – Junbembem. As atividades do PAIGC tinham-se alargado, excediam largamente o Oio. Ao BCAV 490 caberá a ocupação territorial da área da sua responsabilidade, irá mover-se entre Barro – Bigene – Farim – Cuntima, ocupando posições em Jumbembem e Cuntima, Binta, Bigene, Barro e Guidage. A seu tempo voltaremos a “Tarrafo”, de Armor Pires Mota. Iremos é despedir-nos da região Sul e nomeadamente de Cachil, o tal aquartelamento onde se posicionaram forças portuguesas depois da batalha do Como.

Temos à nossa disposição um importante escritor, José Martins Garcia, de um dos contos de “Morrer devagar”, de 1979, há para ali notáveis parágrafos brejeiros, onde o vitríolo mais mordaz é prática frequente:
“Na vila de Catió, lá para o Sul, onde a mosquitagem crescia delirante na estação das chuvas, o Batalhão de Caçadores tinha agora novo comandante, o Tenente-Coronel Galvão, um ser tratável, quase bondoso, um tanto sentimental, um tudo-nada neurasténico antes de se lançar nos uísques. O antigo comandante, o insuportável Tenente-Coronel Barradas, cuja paranoia crescera na proporção directa do entupimento dos tímpanos, havia sido afastado do activo, finalmente. E não deixara saudades aos militares nem aos civis respeitáveis do burgo.
Respeitáveis civis em escasso número, acrescente-se. Havia um comerciante transmontano, o único civil português totalmente branco da vila, o Barreiros, pequenino e rijo como um ouriço, que vendia arroz, aliás vianda, e amendoim, aliás mancarra, mais peixe seco e pano para blusas, saias e calções, e também vinho, aguardente e mistelas exóticas. (…) Os Fulas viviam quase todos em Priame, a um quilómetro de distância, sob autoridade feudal de João Bacar Jaló, Alferes de segunda linha do Exército Português. Os Nalus haviam desertado na totalidade. Só os Balantas adornavam as tardes rápidas de Catió, caindo bêbados de aguardente de cana e elevando ao crepúsculo uns risos lamentosos que os cães vadios, sarnosos, chagados, seguiam uivando horas a fio.

José Martins Garcia
No começo da guerra, em 1963, ordens e contraordens haviam produzido em Catió desusados movimentos de ida e volta. Um estratega iluminado decidira-se pela ocupação minuciosa das redondezas, fragmentando o batalhão, dispersando as companhias, fragmentando companhias, dispersando os pelotões, fragmentando pelotões, dispersando secções. O resultado foi desastroso, pois todas as ligações se mostravam extremamente complicadas, tanto por via rádio, como por via terrestre ou marítima, sucedendo-se às minas as emboscadas e às emboscadas as flagelações, com abundantes morteiradas alta noite. Confirmada a inoperância do iluminado estratega, logo lhe sucedeu um comandante de ideias diametralmente opostas, o qual, para demonstrar que a união faz a força, mandou recolher a Catió, com armas e bagagens, o batalhão que o antecessor havia disseminado. (…) Em Catió, onde os ataques nocturnos foram, por alguns anos, relativamente escassos, ouviam-se muito bem os rebentamentos das morteiradas vizinhas, desferidas contra Bedanda, Cachil, Ganjola e, mais raramente, Priame, ali mesmo ao fim da recta de um quilómetro, onde João Bacar Jaló, senhor de muita mancarra e de sete mulheres, valia, com a milícia Fula, por um exército inteiro. (…) O ataque à ilha de Como, onde posteriormente se instalaria a chamada Companhia do Cachil, nunca foi registado por cronistas. (…) O Cachil erguera-se, porém, nas imaginações. No passado recente, quando o surdo Tenente-Coronel Barreiros comandava o batalhão de Catió, a ameaça que mais insistentemente se lhe desprendia da boca era:
- Olha lá, ó militar! Queres ir prò Cachil?... 
Depois, quando o convivente Tenente-Coronel Galvão tomou conta daquela recalcada guarnição, logo um problema bicudo lhe veio pousar sobre a secretária: o Capitão Lourenço, comandante da companhia do Cachil, fora declarado incapaz para qualquer serviço militar, por conjugação de questões pulmonares com uma psicose verdadeiramente depressiva. (…)

Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água, diante dos olhos crédulos e incrédulos. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o Capitão Clemente, oficial de cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da Administração, um ‘padeiro’. O Capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do Tenente-Coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino da companhia, encarregando-o, ao mesmo tempo, mui honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos.

- Mas, meu comandante – gaguejou o Capitão Clemente – , logo agora, que a minha mulher veio para cá…
- Mas você fica lá só uns dias, homem! Há meses que não se ouve um tiro para aquelas bandas…
O Capitão Clemente partiu desmoralizado e começou a portar-se mal diante da escolta que o acompanhou ao cais, chegando ao ponto de gemer de voz embargada:
- Agora é que não torno a ver a minha mulher nem os meus filhos.

(…) O jantar foi servido ao ar livre, sob um poilão gigantesco. As escassas lâmpadas, tão débeis como o rumorejar irregular da geradora eléctrica, mais concentravam do que dispersavam os temores. (…) Mais tarde, quando deu as boas noites aos alferes e se fechou no quarto, voltaram-lhe à memória as fábulas incertas, tão incertas quanto divulgadas em terras da Guiné: dezenas de mortos e feridos, a cavalaria a atolar-se, a artilharia a esquivar-se, a infantaria a imolar-se. Tudo por uma questão de estratégia, ou por falta dela, na sinistra ilha do Como. (…) O Capitão Clemente começou a sentir dores de barriga. Tinha medo, é certo; mas a causa daquelas cólicas devia ser o mau estado do jantar: uns feijões embrulhados em farrapos de carne duvidosa… E era evidentemente um atentado à dignidade de um capitão não terem construído uma retrete, que diabo!, ali ao lado, uma retrete privativa, porque, se não há distinção entre o comandante e os subordinados, está em crise a hierarquia, a autoridade, a civilização…
O capitão Clemente dormiu pessimamente, revolvendo-se na cama dura, sentindo-se atolar na água negra do canal. Muito cedo, a passarada desatou a chilrear. O Sol, finalmente, viria trazer-lhe um pouco de alento, depois do horrível negrume daquela noite memorável.
O capitão Clemente espreitou por uma nesga da porta e avistou a sentinela. Com um berro indignado, onde perpassavam a aspereza e o peso do comando, mandou que o militar se aproximasse: - Entra, que temos de conversar!
O soldado mal abria os olhinhos atordoados, pois acabara de render um camarada:
- Estás a ver aquilo, pá!
Hirto, solene, o Capitão Clemente apontava um canto do quarto onde alguns cagalhões se cavalgavam.
- Põe-te em sentido! – uivou a indignação do bravo Capitão Clemente.
O soldado obedeceu, boquiaberto.
- E agora – rematou o bravo capitão, mais que fera – responde! Quem foi o filho da puta que fez uma coisa destas?”.

(continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 30 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20190: Notas de leitura (1222): História das Tropas Pára-Quedistas Volume IV, é dedicado à Guiné e tem como título História do Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12; responsável pela redação e pesquisa Tenente-Coronel Luís António Martinho Grão; edição do Corpo de Tropas Paraquedistas, 1987 (1) (Mário Beja Santos)