terça-feira, 7 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20827: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte III: Entrevista dada ao jornalista José Pedro Frazão, programa "Da Capa à Contracapa", emitido aos sábados, às 9h30, na Rádio Renascença

Os grandes temas da actualidade em debate
 aos sábados, às 9h30. Uma parceria da
Renascença com a Fundação
Francisco Manuel dos Santos.
1. Com a a devida vénia, reproduz-se aqui a transcrição da entrevista dada pelo nosso editor Luís Graça, ao jornalista  José Pedro Frazão, locutor e editor  do programa da Rádio Renascença,  "Da Capa à Contracapa" (que vai para o ar todas os sábados, às 9h30, sendo uma parceria com a prestigiada Fundação Francisco Manuel dos Santos):

[ Pedimos a devida autorização à produtora do programa, Ana Marta, para reproduzir aqui o teor da entrevista que, por razões de deficiente qualidade técnica do som, e também pela sua extensão, não chegou a ir  para o ar, como estava previsto, no passado sábado, dia 4 de abril; na altura não foi possível fazer um debate, através de videoconferência, com a outra convidada do programa, a doutora Helena da Silva; o meu agradecimento especial a estes dois grandes profissionais da Rádio Renascença; e os meus cumprimentos à jovem colega da NOVA, Helena da Silva, que não conheço pessoalmente: a sua intervenção está disponível em podcast, aqui, no sítio do programa, "Da Capa à Contracapa"].


Pandemias. Uma breve história de mortes e progressos

03 abr, 2020 - 06:56 • José Pedro Frazão

As maiores epidemias ficam lá mais para trás, para os tempos medievais onde a Peste Negra dizimou um terço da Europa. Luis Graça, sociólogo e professor jubilado da Escola de Saúde Pública, ajuda a traçar as lições da história das pandemias dos últimos 120 anos.

Sociólogo de formação, doutorou-se em Saúde Pública e trabalhou até há poucos anos na Escola Nacional de Saúde Pública. Escreveu dezenas de capítulos e estudos sobre a história da Medicina e da Saúde em Portugal e em particular de Ricardo Jorge. O médico municipal que detetou a peste bubónica em 1899 no Porto lançaria mais tarde as bases da política de Saúde Pública que foi sendo consolidada até aos dias de hoje. Luís Graça esteve na resposta portuguesa à pandemia H1N1 de 2009 e acredita que com a Covid-19 esta geração fica "servida" das pandemias que os historiadores definem como cíclicas. Numa longa conversa, este especialista em Saúde Pública pede humildade e cautela perante o vírus e aconselha muita solidariedade inter-geracional.


Desde a gripe espanhola, nunca mais tivemos um número de mortos sequer comparável com aquela pandemia, incluindo a gripe asiática de 1957/58 e a de Hong Kong entre 1968/70 . O triunfo da ciência nestes 100 anos pode aferir-se por esta mortalidade a decrescer ?

Seria um pouco mais cauteloso. A pandemia altamente mortífera em 1918/19, conhecida como a gripe espanhola, fez entre 50 mil e 130 mil vítimas no nosso país em mortalidade específica e pós-pandemia. Os historiadores e os demógrafos não estão de acordo quanto aos números, mas foi tremendo para um país que tinha 6 milhões de habitantes. A faixa etária mais atingida foram jovens adultos dos 20 aos 40 anos e as crianças até dois anos. Foi uma pandemia que poupou os mais velhos.

A gripe asiática de 1957 provocou uma grande morbilidade. O Prof. Arnaldo Sampaio, pai do ex-Presidente Jorge Sampaio e do psiquiatra Daniel Sampaio, que foi diretor da Escola Nacional de Saúde Pública onde trabalhei e a que ainda estou ligado, fez um estudo sobre a morbilidade em Lisboa e [concluiu que] 40 % dos lisboetas estiveram acamados. Isso dá uma ideia da gravidade da doença. A gripe de Hong Kong foi mais benigna.

Os historiadores e os epidemiologistas calculam que há três pandemias por século. Isto significa que esta é a segunda e nós temos uma boa probabilidade de escapar de terceira pandemia até ao fim do século.

A primeira que está a considerar é a gripe pandémica de 2009.

Foi uma variante do H1N1 que provocou algum alarme em Portugal. Falou-se da falta de tratamento profilático, o Tamiflu, que Portugal não conseguia arranjar e as pessoas estavam inquietas. O primeiro caso apareceu em abril/maio quando a ministra era a minha amiga Ana Jorge. O primeiro caso de infeção mortal foi em setembro de 2009. Foi sub-valorizado, não provocou o alarme social que esta provocou. Houve conceitos como o distanciamento social, não houve confinamento, mas ensinou-se a pessoa a lavar as mãos. Estive num grupo com o Professor Constantino Sakellarides na Escola Nacional de Saúde Pública e fizemos imensa formação, um plano de contingência, desenvolvemos conceitos como o de "cidade inteligente" para dar uma resposta adaptativa e firme à gripe pandémica.
Capa do livro "Nós e a Gripe:
informação, conhecimento e bom senso",

 de Constantino Sakellarides [Lisboa,
Gradiva, 2009, 200 pp.]

Que modelos anteriores tinham nessa altura para trabalhar ?

Um conhecido virologista que ainda hoje faz parte do Conselho Nacional de Saúde Pública, o
Professor Jorge Torgal, fazia uma estimativa de que um terço da população seria contagiada, uma taxa de letalidade de 2% , que previa 60 a 75 mil mortos. Como nada disso aconteceu, mandámos vacinas para o lixo, 1 milhão de Tamiflu. Como não houve mortos por aí além, houve uma grande desvalorização e as pessoas disseram que a montanha pariu um rato. E houve um grande alívio quando entrámos no inverno.

Publicámos um livro "Nós e a Gripe",  do Professor Sakellarides,  em resultado desse trabalho sobre a resposta social à gripe pandémica em outubro de 2009. Em todo o caso houve uma subestimação, porque a OMS [Organização Mundial da Saúde], num estudo recente, calculou que a gripe [pandémica] tenha feito mais de 250 mil mortos em todo o mundo. Nada disso é comparável com os números das pandemias de outros tempos.

A pandemia de 2009 surgiu já na primavera e não propriamente no inverno.

É um caso estranho. A gripe veio do México de onde veio a primeira infetada portuguesa. Veio de avião com um vírus que também viajou a uma velocidade supersónica uma vez que se transmitia pelas gotículas de espirro.

Não veio do Oriente.

Não, desta vez não veio do Oriente e teria uma origem suína e não propriamente aviária. O vírus passou a barreira das espécies, é inteligente e acompanha-nos há milhares de anos na nossa evolução humana. Uma das lições que devemos tirar da história das pandemias e das epidemias é a existência de um estigma sobre a Ásia, associada a algumas das maiores pandemias que se refletiram no Ocidente. Desenvolveram-se também imensas teorias da conspiração contra a empresa Roche, porque iria fazer fortunas com o Tamiflu. Estas coisas repetem-se sistematicamente quando a humanidade sofre uma crise desta envergadura. A China está associada a muitos destes estigmas. Já ouvi falar por exemplo da "pandemia amarela".

Houve de facto a "febre amarela" mas no século XIX...

Mas não tinha nenhuma conotação racista. A Peste Negra também não tinha, os cadáveres ficavam muito escuros. Há alguma "sinofobia", mas o vírus não é deste ou daquele território.

Regressando a 2009, foi um embate de um vírus então contra um sistema nacional de saúde já estabelecido em Portugal, ao contrário do que aconteceu nos anos 50 ou 60. O aparelho de saúde em Portugal era completamente diferente. Nessa medida, os modelos de intervenção dos anos 50 ou 60 foram ou não aproveitados ?

Ricardo Jorge (Porto, 1858 -Lisboa, 1939).
Imagem do domínio público.
Cortesia de Wikimedia Commons
Nós temos um sistema de saúde pública criado por Ricardo Jorge em 1901, mais no papel do que no
terreno. Faltaram sempre recursos humanos, técnicos e financeiros. Do ponto de vista conceptual, Ricardo Jorge teve um papel muito importante. Aliás, teve também um papel de liderança na luta contra a pandemia de 1918/19. Mas lá está, damos sempre muita importância aos homens providenciais, carismáticos. Estas situações de graves crises sanitárias têm que ser lidadas com unidade de comando e controlo, conceito que foi muito importante em 2009. Tal como a ideia de solidariedade e de resposta inteligente, baseada no conhecimento científico, nas melhores práticas da OMS, com quem passou a haver um alinhamento muito importante.

Hoje estamos muito aflitos porque não temos ventiladores, máscaras e equipamentos de proteccão e a ênfase está toda nos hospitais, quando realmente o que é importante é prevenir situações destas.

Mas é dificil prevenir, porque uma pandemia não se faz anunciar. Países como os Estados Unidos, com a melhor medicina do mundo, podem vir a ter uma catástrofe demográfica e sanitária porque têm um sistema de saúde muito remendado, com fortes desinvestimentos, devido a opções que aquele país toma, privilegiando a medicina e o sistema de saúde privados, hospitalocêntricos, tecnicistas. Em 2009 já estávamos melhor preparados, hoje penso que estamos muito melhor preparados do que em 2009.

Hoje sabemos as ligações entre Portugal e o resto do mundo na resposta à gripe espanhola por estudos retrospetivos, ao contrário de hoje, em 2020, em que estamos a ter uma avaliação online minuto-a-minuto sobre o impacto no outro lado do mundo. Fará a diferença na forma como os cuidados de saúde podem ser preparados e prevenidos ?

De acordo. Essa é uma das lições que devemos tirar da história. Em todo o caso, é importante ter humildade e não arrogância. Houve há alguns tempos pessoas que diziam que as pandemias eram coisas para os historiadores. Havia um optimismo excessivo. Até aos anos 50, 60, tínhamos o conhecimento, as terapêuticas, sabíamos a etiologia e os fatores favoráveis e tínhamos todo o arsenal terapêutico, nomeadamente a vacinação e o reforço do organismo para fazer face a doenças infeto-contagiosas transmíssíveis que foram um pesadelo para a humanidade. 

É o caso da varíola - que terá morto entre 400 milhões a 500 mihões de homens, mulheres e crianças e que é a única doença até agora erradicada - a tuberculose, a malária, a cólera. E a peste, que foi um pesadelo. Foi o maior desastre demográfico do Ocidente entre 1348 e 1352. Foi a Peste Negra ou a bubónica. Vem do latim "peius" que significa "a pior doença". Portugal teria um milhão e meio de habitantes no reinado de D.Afonso IV e a peste provocou uma crise brutal no plano social, demográfico e económico que sobrou para o seu filho D.Pedro. Terá morto um terço da população portuguesa, em torno de 500 mil habitantes. Só repusemos esse saldo dois séculos depois. A Europa teria 100 milhões de habitantes e terá tido entre 25 milhões e 30 milhões de mortos. Os números são muito controversos mas há estimativas credíveis.

Nos anos que antecederam a 1ª Guerra Mundial e Pneumónica, começou a ser criado um conjunto de estruturas. No início do século foi criado o Sanatório do Outão para tuberculosos. Foi criada uma Direção de Saúde, na reforma de Ricardo Jorge. O Instituto Ricardo Jorge é herdeiro do chamado Instituto Central de Higiene mas já tinha sido fundada uma Escola de Medicina Tropical. Este tipo de doenças tinha sido estudado logo no início do século ?

Sim. A criação das instituições que citou não foi avulsa. Ricardo Jorge teve um protagonismo na luta contra o surto epidémico da peste bubónica no Porto de 1899. Um barquinho que vinha de Bombaim - onde havia um surto de peste - carregada de cereais entra pelo Porto e desembarca na Ribeira. Os ratinhos são os primeiros a sair e levam a pulga com o bacilo que tinha sido já identificado pelo bacteriologista francês Alexandre Yersin. 

De facto, nenhum médico em Portugal tinha visto uma doença destas. Foi Ricardo Jorge, médico municipal, que fez o estudo epidemiológico e clínico dos primeiros mortos da doença. Estamos em junho, julho, com consequências porque o poder central entrou em pânico e tomou medidas como um cordão sanitário "manu militari", imposto pelo exército, com 2500 soldados de baioneta desde Leixões até à Madalena em Gaia e um navio de guerra ao largo do Porto. Os portuenses entraram numa situação de total pânico.

Isso foi muito polémico. Visto à distância, foi uma medida acertada ?

A medida foi pouco efetiva. O cordão sanitário era furado. Quem tinha dinheiro corrompia os soldados. A medida foi muito polémica e inclusivamente houve casos de alastramento. Não houve uma epidemia ao nível do país, mas houve casos no Norte. O Porto ficou sem transportes, sem comboio, ninguém entrava ou saía. A comunicação social teve um papel muito importante. Jornais como "O Comércio do Porto", refletindo sobre os interesses dos comerciantes do Porto, "A Voz Pública" como o jornal da oposição republicana e o "Jornal de Notícias" passou a ter grandes tiragens, com 25 mil exemplares na cobertura da peste.

Muitos médicos e a elite económica do Porto minimizaram a peste até porque quem estava a morrer eram os pobres coitados dos estivadores da Ribeira. Essas medidas foram vividas de uma forma muito emotiva. Penso que muito do anti-poder central vem desse tempo. Foi tão traumatizante para a população do Porto que houve um asco, um ódio quase patológico contra Lisboa por causa do cerco sanitário que durou ainda uns meses. Não foi efetivo, foi desporporcionado, não foi uma resposta inteligente ditada pelo medo da elite dominante em Lisboa. Estávamos no final da monarquia e na resposta os portuenses elegeram pela primeira vez três deputados da oposição republicana, incluindo Afonso Costa. Eram os chamados "deputados da peste". 

Ricardo Jorge foi aconselhado a sair da cidade e só voltou 20 anos depois. Entretanto, foi encarregue pelos governos de Luciano de Castro e Hintze Ribeiro de fazer a sua reforma de Saúde Pública. Nessas medidas nascem, entre outras entidades, o Instituto Central de Higiene de que são herdeiros o Instituto Ricardo Jorge e a Escola Nacional de Saúde Pública. O Instituto de Medicina Tropical decorreria da nossa necessidade de combater as doenças tropicais e transpôr a Saúde Pública para o domínio das colónias.

Afinal o que é que a História dos últimos 100 anos nos ensina sobre pandemias ?

Lembro um provérbio antigo comum a toda a Europa: "Da fome, da peste e da guerra, livrai-nos Senhor". Hoje não passamos fome, não tem havido grandes crises cerealíferas, mas há algum paralelismo com a situação do século XIV. A Peste Negra dá-se num contexto de passagem da sociedade feudal para uma economia mercantil e para o desenvolvimento das cidades, com êxodo rural e explosão do gótico. É uma pandemia pós-feudal ao contrário da lepra. Há guerras na Europa que provocam fugas do campo para a cidade. Há crises cerealíferas, com a população desnutrida e uma dieta desiquilibrada. Há uma deterioração das defesas imunológicas. As cidades medievais eram absolutamente imundas. As populações não tinham hábitos de higiene pessoal. Edwin Chadwick, um inglês da Saúde Pública, fez um inquérito e concluiu em 1842, em plena industralização, que o operário inglês só se lavava duas vezes, quando nasce e quando morre. Isso significa que as populações europeias até ao século XX estavam muitíssimo mais fragilizadas.

Os grandes avanços sanitários no Ocidente apareceram com 100 anos de antecedência face à Medicina que hoje tem meios terapêuticos. Não precisámos de médicos para ter o salto qualitativo em que as pessoas sobreviviam num contexto de uma explosão demográfica, como observada em Inglaterra. Deveu-se a medidas fundamentais como o saneamento básico, água potável, vacinação, melhoria da habitação e das condições de trabalho. Os hospitais vieram muito mais tarde. A melhoria da saúde não se deu porque tínhamos uma medicina excecional em termos de ciência e tecnologia. Historicamente está relacionada com o desenvolvimento económico e social a par do sanitário onde a vacinação foi fundamental para prevenir muitas doenças. E depois o reforço das medidas de saneamento. A saúde explica-se por quatro grandes fatores: o nosso património genético, os nossos comportamentos individuais coletivos, o meio ambiente em que nos inserimos e a existência de políticas e sistemas de saúde. O equilíbrio entre estes quatro fatores é fundamental.

É difícil prevenir situações destas. Estamos sempre mal preparados porque desinvestimos. Em Portugal houve um desinvestimento brutal na Saúde Pública. Os médicos não queriam ir para Saúde Pública porque era desprestigiante. Houve uma altura em que só iam estrangeiros para a minha Escola fazer o curso de Saúde Pública. Eram homens que nem sabiam falar português. E passaram no exame à Ordem [dos Médicos] porque apesar de tudo eram clínicos brilhantes. Mas o desinvestimento acontece também nos outros países.

É muito importante manter o suporte psicossocial. A comunidade tem um papel extremamente importante e isso vê-se também na história. Inicialmente as elites fugiam. A Corte ia para Santarém para fugir dos ares empestados e ficavam os pobres confinados nas cidades amuralhadas, com os guardas-mores da saúde que eram o Exército. Hoje sabemos que estas doenças atacam os ricos, os pobres, os famosos, os remediados e todas as classes sociais. Em 1918/19 morreram jovens e hoje estão a morrer sobretudo os mais velhos. A solidariedade inter-geracional é extremamente importante.

[Foram feitas pequenas correções, e introduzidas ilustrações para efeitos de publicação do texto neste blogue]


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Nota do editor:

Último poste da série > 4  de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20810: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte II: Peste: "Mercator ergo pestiferus"

Guiné 61/74 - P20826: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (4): Op. Sarrabulho (com o covidis por perto) - I Parte

1. Em mensagem do dia 1 de Abril de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos mais uma Boa memória da sua paz, desta feita a Op. Sarrabulho.


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ

4 - Op. Sarrabulho (com o covidis por perto) - I Parte


Diria que graças a uma sapiente, ponderada e realista gestão político-administrativa do nosso Bando, assente numa rigorosa e irrepreensível linha de quase 12 anos de experiência, todo um Mundo novo se abre diante do futuro aos seus membros. E ainda há tanto por ver e por fazer!!! Por exemplo, no caso desta Op Sarrabulho, voltámos a ultrapassar as expectativas.

Já tínhamos ido a muito lado, a muitos lugares bonitos e saboreado os mais apreciados petiscos da gastronomia portuguesa. Porém, agora é, para nós, notório que nos faltava comer o famoso arroz de sarrabulho com rojões. E, muito para além disso, faltava-nos conhecer melhor a famosa Vila de Ponte de Lima, a tal vila que não quer ser cidade.

Logo que terminada a Op. Lampreia, recheada de um rico programa cultural e, tendo presentes as nossas origens nortenhas, pensámos: porque não ir… mais além? O presidente alvitrou e o Ricardo logo complementou:
- Ó diabo, isso vinha mesmo a calhar, porque tenho lá um amigo e colega (jurídico) que também esteve na zona da Guiné e que, há muito tempo, me vem sugerindo uma visita.


O Camarada Manuel Pereira, foi Furriel na Ccaç 3547 “Os Répteis de Contubuel”, entre Março de 1972 e Junho de 1974. Passou por Madina Mandinga, Sonaco, Farabaca, Bambadinca e Galomaro.

Conforme combinado, o nosso Presidente foi estudar a sua sobrecarregada agenda e, uns dias mais tarde, ordenou a nossa apresentação, a fim de efectuarmos uma apurada inspecção in loco.
E foi assim que nos apetrechámos do equipamento adequado e passámos à acção.




Verificámos a comida, a loiça e os talheres e inspeccionámos tudo, até monumentos e estátuas. Tudo onde a malta gosta… de passar a mão, seja nos cornos ou no pirilau do touro, seja nas mamas ou no traseiro da camponesa.




Depois desse árduo trabalho, tivemos que provar o Sarrabulho, ali mesmo frente à Casa Encanada. Fomos bem servidos, mas o Ricardo, por já ter experimentado outra alternativa, levou-nos a estudar a possibilidade de irmos ao restaurante “O Sonho do Capitão”. Optámos por ir. O serviço também era bom e era muito espaçoso e mais barato. Pesou, também, muito na decisão o facto de ter um parque infantil, porque alguns dos Bandalhos andam mesmo a viver a chamada “segunda meninice”.


Como de costume, as inscrições para o convívio foram abertas atempadamente. Porém, verificámos rapidamente que a adesão desta vez seria menor. E, além disso, houve várias desistências. Sobraram 13 camaradas que, aparentemente indiferentes a superstições, assumiram a sua participação na Op Sarrabulho.

Com esse dia 11 chegou também alguma apreensão acrescida, dado o agravamento notório do tal novo coronavírus. Sem medos exagerados e sem alarmismos, os 13 Combatentes mostraram que ainda o são.
A polícia não deixava parar junto ao “Dragão”, local habitual da concentração. Assim, os carros encostaram só para a malta entrar. Como eu fui o último, só me calharam o José António e o Nelito.
Passei-lhes o frasco do álcool para lavarem as mãos, e avançámos.

Como o José António me olhava e ria descontraidamente, eu perguntei-lhe provocadoramente:
- Ó meu caralho, não me digas que foste aos fados e nos estás aqui a infectar?
Ele respondeu muito candidamente:
- Por acaso fui, mas nem me sentei. Aquilo estava tão cheio, que eu e outros ficámos de pé.
- Foda-se! – Digo-lhe eu. E eram só portugueses?
- Não, eram quase todos estrangeiros. E por acaso, fiz conversa com um simpático casal de chineses. Ela era tão gira, que fiquei embeiçado.

Para cúmulo, atendi um telefonema do meu genro Abel, a contar-me o estado emocional da minha filha Ana, que não conseguira demover-me da participação neste evento.
Como no tempo da guerra, numa de ultrapassar o medo e incutir a confiança aos camaradas, dei por mim a brincar com a situação.
A partir dali, procurei proteger-me ao máximo e, se fiquei infectado, procurei não infectar os outros, como se vê pela foto junta.


Pelas 11h00, tal como estava programado, lá estavam à porta da cadeia o anfitrião Manuel Pereira, acompanhado do Historiador, Dr. Nuno Abreu, dos Serviços de Turismo da Câmara Municipal de Ponte de Lima.


Logo ali, tivemos a primeira intervenção do Historiador, que nos esclareceu vários pormenores sobre a história Limiana.


Portugal ainda não era independente. Só o conseguiu a partir de 5 de Outubro de 1143. Foi a Condessa D. Teresa de Leão quem, na longínqua data de 4 de Março de 1125, outorgou carta de foral à vila, referindo-se à mesma como Terra de Ponte.
A Torre fazia a ligação, pela ponte, até à Igreja de Santo António da Torre Velha. A britagem de pedra para a sua construção começou a 8 de Março e o seu assentamento foi iniciado a 6 de Julho de 1359.

A Torre da Cadeia Velha, foi adaptada para prisão no século XVI (D. Manuel I). Actualmente alberga a Loja de Turismo

Libertos da cadeia, ali tirámos a foto da praxe, que serviu para controlo, e seguimos para a Avenida dos Plátanos


Na sequência do prolongamento entre os Terceiros e a Guia do cais submersível, a zona ribeirinha de Ponte de Lima viria a nascer, com as obras principais a decorrer de 1901 a 1903, a Avenida dos Plátanos, sucessora, mais crescida, da Avenida do Pomar.
Foi inaugurada a 8 de Outubro de 1901, com o nome de D. Luís Filipe, conforme decisão do executivo municipal, de 5 do mesmo mês, ao tomar conhecimento da visita que esse Príncipe, em viagem de recreio pelas províncias do Norte, faria a esta localidade.

E eis que nos apresentam a Ponte (Romano-Gótica); uma parte romana e outra medieval. Através desses tempos ancestrais, o leito do Rio Lima foi-se deslocando mais para a margem esquerda, deixando seca a parte da ponte romana, visível na sua margem direita.

O ex-libris de Ponte de Lima que, conjuntamente com o rio que banha a vila, deu o nome à localidade, é a sua ponte. Na realidade, é um conjunto formado por duas pontes: um troço medieval, de maior dimensão, que tem início na margem esquerda e se estende até à Igreja de Santo António da Torre Velha.
A ponte romana data provavelmente do século I, uma vez que foi nessa época que se procedeu à abertura do trajecto de uma das vias militares do antigo "Conventus Bracara Augustanus", que ligava Braga a Astorga, neste caso a Via XIX, mandada abrir pelo Imperador Augusto.
No que respeita à parte medieval, pese embora se possa recuar no tempo, pelo menos até aos reinados de D. Pedro I e de D. Fernando, por ligação directa à construção das muralhas e das torres que fortificavam a vila, obra terminada em 1370, ou até de D. Dinis, tendo em conta documentação que refere uma ponte, que também poderia, por aquela altura, ser de madeira, sabemos da sua existência no reinado de D. Manuel I, mais precisamente em 1504, por este monarca ter mandado fazer novo calcetamento e colocar merlões para decoração da ponte, pois já não se justificavam como opção defensiva e militar.

A ponte era parte integrante da principal Via Romana que partia de Braga, servia o noroeste peninsular e mais tarde o Caminho Português para Santiago de Compostela


Atravessámos a Ponte que dividia os bispados de Braga e de Pontevedra. Além da Igreja de Santo António da Torre Velha, existe também a capela do Anjo da Guarda ou Padrão de S. Miguel, mais junto ao rio.



No regresso ao centro da Vila, foi-nos contada a lenda do Rio do Esquecimento que está bem documentada com figuras, aparentando o exército romano de então.

Este é o título do tributo memorial para a legião romana localizado e comandado por Decius Junius Brutus, na margem esquerda do rio Lima, em 135 aC, onde as tropas se recusaram a atravessar o rio. A beleza do lugar, anteriormente conhecido como o rio Lethes, a lenda dizia que todo aquele que cruzasse o rio perderia a memória, esquecendo todas as suas lembranças.
Aos soldados romanos que se recusavam a atravessá-lo, o comandante romano atravessou a ponte e, depois, chamou cada um pelo seu nome e, dessa maneira, lhes provou que não era o rio do esquecimento.
Actualmente o rio dá nome a vila mais antiga de Portugal.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20779: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (3): Op. Mogadouro II - Lançar um livro e não só - II Parte

Guiné 61/74 - P20825: Em busca de... (305): Fur Mil Fotocine Júlio César Fragoso Pereira (Guiné, 1966/67) (Armando Pires, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2861)

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70), com data de 6 de Abril de 2020:

Amigo e camarada Vinhal
Camarigos em geral

Venho pedir a vossa ajuda para encontrar contemporâneos de um camarada meu no Rádio Clube Português, infelizmente já desaparecido, e a cuja história de vida gostaríamos de acrescentar mais alguma coisa.
E foi Furriel Miliciano Fotocine, de nome completo Júlio César Fragoso Pereira, e esteve na Guiné em 66/67. Anexo uma foto sua, para ajudar na identificação.
Alô pessoal Fotocine.
Bora lá procurar os camaradas do Júlio (ou só Pereira? ou Júlio Pereira)

Um Alfa Bravo para todos
Armando Pires

O Fur Mil Fotocine Júlio César Fragoso Pereira (Guiné, 1966/67)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20813: Em busca de... (304): Do ex-1.º Cabo Américo Aflalo do Pel Mort 4580, em tempos morador em Alvalade (Carlos Vieira, ex-Fur Mil do Pel Mort 4580)

Guiné 61/74 - P20824: Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa (Constantino Ferreira & António Graça de Abreu) (6). em Colombo, Sri Lanca, paragem para reabastecimento e partida para o Canal do Sul (percurso de c. 3500 milhas náuticas até ao dia 24 de abril)


MSC - Magnífica > Cruzeiro de Volta ao Mundo > Colombo, Sri Lanca [, antigo Ceilão] >  6 de abril de 2020 >  Paragem técnica para reabastecimento... Próxima etapa: Canal Suez, a 3456 milhas náuticas de distância. Data prevista de chegada: 24 de abril.

Cortesia da página do faceboook de Constantino Ferreira. Foto reeditada pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


1. Constantino Ferreira d'Alva, ex-fur mil art da
Constantino Ferreira, Melbourne, 
Austrália, 19 de março de 2020.
 Vai a bordo com a esposa,
 Elsa Ferreira
 CART 2521 (Aldeia Formosa, Nhala e Mampatá, 1969/71), membro da nossa Tabanca Grande desde 16 de fevereiro de 2016... Trabalhou 30 anos na TAP, como tripulante de cabine; começou a escrever o seu diário de bordo, em 23 de janeiro de 2020, na sua página do Facebook, Viagens no Tempo. A ele junta-se, desde o poste anterior, o António Graça de Abreu; vão escrever, a quatro mãos, o diário de bordo...

Ora cá estamos ! Em Colombo,  no Sri Lanca

Foram sete dias de navegação contínua, desde Fremantle-Perth na Austrália até aqui, à Ilha de Taprobana, nos dizeres de Camões.

Chegámos de madrugada, na aproximação fui contando os navios cargueiros, petroleiros, graneleiros e os gigantes porta-contentores, que por aqui estavam fundeados, frente a Colombo! Contei primeiro dez, depois quinze, mas afinal eram mais de vinte, “plantados” por estas águas frente a Colombo.

Ao ver o perfil desta cidade, na contra luz do seu perfil moderno, de prédios futuristas, com uma das torres modernista, com um perfil que de torre esguia redonda, com uma grande “bola” lá nas alturas, seguida por uma antena gigante, que me fez lembrar o perfil da moderna Xangai na China, com idêntica torre, mas ainda maior!

Tivemos assistência, da emergência médica, eficiente e rápida que resolveu a assistência em poucos minutos.

Depois, foi a procura do local para fundear, nesta Baia frente À cidade e porto de Colombo, com o piloto que posicionou esta enorme “nave”, para ser reabastecida, por um pequeno petroleiro, que aqui se encostou, e se vai manter a fazer a trasfega do combustível, durante estas largas horas, que aqui passamos frente a uma cidade de perfil moderno, como me surpreendeu esta velha Colombo, onde os portugueses se lmantiveram mais de cento e cinquenta anos, nos Séculos XVI e XVII.

Aqui nesta ilha, a Sul da Índia, o clima é quente e húmido. Desde as 6 Horas da manhã, que tenho andado pelos convés a passear e a tirar umas fotografias, mas antes de almoço, fui fazer um tempinho na piscina exterior para refrescar.

Ao almoço resolvemos ir ao restaurante, em vez de irmos ao Buffet, como muitos dias fazemos ao almoço. Mas à noite, marcamos sempre presença num dos três enormes e requintados restaurantes de bordo.

É quase Sol posto, o petroleiro continua a dar continuidade ao reabastecimento, por uma mangueira, onde passam várias toneladas de combustível à hora. Mesmo agora fui á varanda do camarote e, a mangueira lá estava, a dar “mama” a este navio- “bébé” gigante !

O pôr do sol vai ser pelas 17h45, vou subir do 12º para 15º piso, que é o convés da piscina interior, para ver esse espectáculo diário, que é o pôr do Sol, por estas bandas tropicais, neste caso, mesmo Equatorial!

Depois será a largada, para uma nova etapa, desta vez de 3.456 milhas náuticas, distância entre Colombo e o Canal de Suez, onde chegaremos a 24 de Abril.

São mais 8 dias de prisão, neste cruzeiro de Volta ao Mundo, que se transformou “quase” num pesadelo, apenas com o receio,  de todos nós, de esse coronavírus também poder “entrar” aqui a bordo.

Mas com os cuidados de higiene praticados a bordo, desde a Tasmânia, que a vigilância é mantida, já lá vão umas largas semanas!

Assim continuamos, presos neste conforto de bordo, onde mantemos todas as actividades, desde a ginástica aos espectáculos diários, de grande qualidade, com uma plêiade de artistas que são do melhor que eu já vi, em espectáculos diários, de alta qualidade!

A Companhia, MSC,  e o nosso Comandante Roberto Leotta, têm feito tudo, o possível e o impossível, para que esta “Odisseia”, chegue ao fim sem incidentes de maior!

Somos cerca de 2.000 passageiros e 800 tripulantes, a fazer tudo “bem”, para que antes do fim de Abril, possamos ser bem recebidos, possivelmente em Marselha.

Dizem que; “a sorte protege os audazes”! Creio que aqui a bordo, todos temos sido “audazes”, a cumprir as regras de segurança sanitária e de bom convívio, acrescentando agora uma boae de “sorte”...  a nossa “Odisseia” terminará bem, para todos; passageiros, tripulantes, e MSC-Magnifica!

[Revisão e fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]


Chile > Oceano Pacífico > Ilha da Páscoa > 21 de fevereiro de 2020 > Os famosos "moais", as gigantescas estátuas de pedra

Foto (e legenda): © António Graça de Abreu (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Mensagem de António Graça de Abreu, 
Hai Yuan e António Graça de Abreu
numa praia numa das  ilhas de Tonga,
Polinésia (2017)
que viajou até Sidney com a esposa, Hai Yuan:

[O nosso camarada e amigo António Graça de Abreu [ ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da Tabanca Grande, com 250 referências no nosso blogue], que também  vaia bordo, só começou a "dar sinais de vida" em 22 de março passado...

Até então sabíamos apenas que ele andava "embarcado"... Agora sabemos que também está "confinado", no MSC- Magnifica, não podendo ele e os demais passageiros e tripulantes sair a terra, nos portos onde o luxuoso paquete tem que aportar para se reabastecer...]

Data - 05/04/2020, 06:41
Assunto - Ilha da Pascoa, definitivíssimo


Ilha da Páscoa, Chile, Oceano Pacífico Sul, 21 de Fevereiro de 2020

Imagine-se uma praia deslumbrante, num mar de águas transparentes, cor de turqueza, cujas ondas terminam suavemente na areia branca e fina, rodeada por uma desafogada floresta de palmeiras e coroada por um ahu com sete moais. Falo da praia de Anakena, ilha da Páscoa.

Rolando Pires Teixeira (#)


Foram quatro dias de navegação e 3.920 quilómetros de mar, desde o Peru, para se chegar à ilha da Páscoa, Quase nada sabia sobre estas paragens envoltas em muitos mitos, mistérios e fantasias, perdidas no Oceano Pacífico, o pedaço de terra mais isolado do mundo, mais longe de qualquer outro lugar habitado. Para oeste, Tahiti fica a 4.213 quilómetros. 

A ilha da Páscoa tem apenas 16 por 24 quilómetros, o que dá uma superficie de 110 km2. Fernão de Magalhães, há 499 anos atrás, na sua impressionante cavalgada marítima atravessando o Pacifico em busca das ilhas das especiarias, as Molucas, não passou longe desta ilha. Infelizmente não deu pela sua existência, a descoberta só aconteceria duzentos anos depois quando o holandês Jacob Roggeveen aqui aportou, no ano de 1722, no domingo de Páscoa, daí o nome da ilha. 

Mas o lugar já era conhecido e habitado por polinésios que viajavam por enormes distâncias nas suas pirogas tipo catamarã, com dois cascos acoplados, o que garantia grande estabilidade e segurança à embarcações. 

Esses polinésios, provenientes das ilhas Marquesas, terão chegado a Rapa Nui  - a ilha da Pedra, o nome em polinésio da ilha da Páscoa -, no século XI. Existem várias teses divergentes sobre o que realmente aconteceu. Terão sido esses os primeiros colonizadores da ilha e os construtores dos moais, os grandes bonecos de pedra vulcânica de diferentes tamanhos, todas identificáveis pelos seus rostos aquilinos, boca saliente e olhos fundos. Moai significa, na língua polinésia, "rosto" ou "face" e a construção das estátuas parou no séc. XVII. 

Os bonecos levantavam-se apoiados em bases de pedra, tipo altares, denominados ahu e estarão associados a homenagens aos antepassados falecidos. Cada figura representa um ente querido que não era enterrado, mas cujo corpo permanecia envolto em panos, depositado em esteiras sobre os ahus até o cadáver se decompor e desfazer, atérestarem apenas ossos. Levantava-se então, em frente, uma grande estátua, em honra do defunto. 

Existem quase mil estátuas espalhadas pela ilha, a mais pequena tem apenas 2,5 metros de altura, as maiores chegam aos 10 metros e podem pesar 80 toneladas. Era tempo de as ir conhecer.

Acabo de ler no guia do visitante que me deram logo ao pôr o pé na ilha, ao procurar o Parque Nacional de Rapa Nui, tudo Património Mundial pela Unesco, que aqui a precipitação anual é baixa, concentrando-se a chuva sobretudo no mês de Maio. Dizem-me que os deuses andam um bocado desorientados, talvez por influência de um poderoso senhor norte-americano chamado Donald Trump e resolveram presentear-nos, desde as seis horas da manhã, até à noite, neste dia de meados de Fevereiro, com um glorioso tempo de chuva, água que não pára de cair, há cem mil torneirinhas abertas suspensas no céu. E a imtemperie estende-se ao mar.

A ilha da Páscoa não tem um cais onde um grande navio possa acostar, por isso o Magnifica ancorou no mar, a uns dois quilómetros de terra. Os passageiros fizeram filas compactas para entrar nos botes salva-vidas que nos levavam, na viagem de ida e volta até ao pequeno cais de desembarque, na ilha. 

O mar estava alteroso, ondas de três metros batiam fortes nas chalupas encostadas à plataforma de saída do navio que balançava, subiam e desciam ao sabor das ondas, transformando-se a entrada e saída de cada velhote, ou cidadão mais jovem, numa odisseia. Tivemos de esperar quase duas horas para podermos sair porque havia duas mil pessoas a avançar lentamente, uma a uma, muitos deles desciam agarrados, suspensos nos braços do pessoal do navio que os levantava no ar e depositava de sopetão ora nas chalupas, ora, no regresso, na plataforma de entrada no Magnifica.

Quando, ainda no navio, fui tentar comprar uma excursão na ilha da Pascoa, já não havia. As excursões eram realizadas em mini-bus, com limitação  no número de passageiros.Era coisa aí para 4 horas, com visita a alguns moais e a passagem por uma praia. Custava a módica quantia de 260 euros. O preço estava inflacionado pelos 80 dólares que cada turista era obrigado a pagar para entrar na ilha. 

Estava meio preocupado. Com tanta chuva, com ausência de transporte como me iria desenrascar e conhecer os moais? Afinal acabou tudo por ser tudo pontualmente fácil, abrangente, divertido e muito mais barato. A Hai Yuan e eu saímos do porto, a chuva não parava de cair, mas estávamos protegidos por guarda-chuvas e casacos de plástico. Caminhamos em direção ao centro da cidade de Huanga Roa, se cidade se pode chamar a capital de uma ilha que conta apenas com 7 mil habitantes. Baias pequenas, rochas batidas pelas ondas, praias recatadas, casas de madeira bonitas e bem construídas. 

Fui ao posto de turismo buscar um bom mapa e perguntei ao rapaz de serviço como era para dar a volta à ilha e ver muitos moais. "E simples, alugue um táxi, se quiser eu chamo pelo telefone e o carro vem aqui buscá-lo, demora cinco minutos, são 50 dólares por duas horas!"

Era cedo, tinha o dia por minha conta, o regresso ao navio só tinha de ser feito até às oito da noite. Mais voltas pelo centro da vila de Huana Roa, um primeiro moai a vista, de nome Tahai, reconstruído, creio, com chapéu e tudo, para turista ver e abrir o apetite para outros moai que, apesar da chuva, não arredavam pé, estavam rigorosamente há séculos à nossa espera. 

Na avenida central há umas tantas lojas de rent-a-car, eu trouxe a carta de condução prevendo a eventualidade de alugar algures um automóvel. Na outra Volta ao Mundo, a partir de Fermantle e Perth, deliciei-me pelas estradas do oeste da Austrália conduzindo durante três dias, e mais de mil quilómetros, um Toyota novinho em folha.

Agora fui ver carros e preços. Por 24 horas (não havia menos tempo de aluguer) teria de pagar 50 dólares, mais a gasolina. Os automóveis eram uns Seats pequeninos a fingir de jeep. A Hai Yuan assustou-se, o carro que me destinavam tinha pneus meio carecas, estava muito sujo, chovia copiosamente, as estradas deviam estar cheias de buracos, etc. Vamos esquecer o rent-a-car. 

Logo adiante, estava estacionada uma carrinha aberta com dez lugares e um cartaz onde se lia que levava pessoas para a praia de Anakena, a melhor da ilha, com um excepcional friso de moais, junto ao mar, pela módica quantia de 7 mil pesos chilenos, cerca de 9 dólares por pessoa, ida e volta. Pergunto se nos levam até Anakena, com passagem pelos quinze moais de Tongniki, num desvio, de mais uns quilómetros. Chove muito, eles não tem clientes, e meio dia, levam-nos a dar a volta por 25 dólares, os dois.

Ir-nos-ão buscar à praia de Anakena, às cinco da tarde. Negócio feito. Entramos na carrinha com os lugares abertos atrás todos vazios, sentando-nos nos  bancos da frente da carrinha, ao lado do condutor, um velho bonacheirão que também quer saber quem somos, de onde vimos, etc. Noto que tem traços de polinésio,  questiono-o também. Diz-me que hoje já não existem famílias rapanui, os autóctones, puras, os colonizadores chilenos chegaram no século XIX e cruzaram-se com os poucos polinésios que habitavam a ilha da Páscoa.

Vamos então entrar por dentro deste surpreendente lugar e tentar conhecê-lo.

Saimos de Huang Roa pela estrada do aeroporto que me pareceu bem desenhado, aproveitando dois quilómetros de terreno nivelado, e cortamos em direcção a Tongniki por caminhos de bom alcatrão alcandorados na falésia, debruçados sobre o mar. De repente, numa planície com um monte ao fundo, aparecem os moais, todos diferentes, todos parecidos, quinze enormes estátuas saudando o visitante. 

Paramos, tiramos fotografias e, encharcados, felizes, continuamos viagem, mais uns quinze quilómetros até à praia de Anakena, um lugar de assombro neste cu de Judas, suspenso nas lonjuras do mundo. A chuva abrandou, há gente tomando banho no mar, nas águas de uma baía abrigada, numa praia que apetece. Em baixo, temos sete moais de costas voltadas para o oceano, imponentes sobre a plataforma ahu prometendo proteger a gente do interior da ilha de todas as calamidade e desgraças.

Há mais um moai solto, mais acima, impávido há séculos, contemplando distraído a passagem dos turistas à chuva, turistas que o fotografam e se fotografam com ele. Na praia pergunto a um jovem casal chileno acabado de sair do mar, como está a temperatura da água. Dizem-me que está mais quente dentro de água do que cá fora. Não hesitamos. Mesmo com céu cinzentíssimo, com pingos de chuva humedecendo a areia e os nossos corpos, é tempo de entrar no mar. mergulhar no Oceano Pacífico, o que não acontecia há mais de três anos, quando dos banhos nas ilhas de Samoa e de Tonga. A água estava mesmo quente, que prazer! 

Depois nas cabanas de madeira que servem de banheiro, lojinhas e restaurantes, quase vazias porque hoje, em tempo de Verão, temos um perfeito dia de Inverno, secamo-nos, limpamo-nos, comemos umas sandes trazidas do barco. E então que sou confrontado com a chegada das galinhas, uma das especificidades da ilha da Páscoa. 

Além de cavalos selvagens, à solta pelas hortas e campos, abundam galinhas nesta ilha. Umas tantas, acompanhadas pela prole, os pintainhos de vários tamanhos e cores, vem conversar comigo, ou melhor, deve-lhes ter cheirado a trigo, do bom (as galinhas tem olfacto?) e estão a espera das migalhas do meu repasto. Por acaso, trouxemos muito pão e entretive-me, durante quase uma hora, a dar de comer, migalha a migalha, a famílias inteiras de animais de capoeira. Quando o pão acabou, tinha mais de 30 galinhas e pintos felizes a minha volta. 

Quem diria que tal haveria de acontecer, alimentar galináceos numa fabulosa praia da ilha da Páscoa, Pacifico Sul, em Fevereiro de 2020!

António Graça de Abreu

Nota do autor:

# Palavras do meu companheiro de viagem Rolando Pires Teixeira, que aqui esteve pela primeira vez em 2017 no seu livro "Uma Volta ao Mundo, apontamentos", Lisboa, Ex-Libris, 217, pag. 180.

[Revisão e fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]
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Notas do editor:

Último poste da série > 3 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20808: Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa (Constantino Ferreira & António Graça de Abreu) (5): em navegação, no Oceano Índico, devendo atravessar o equador no dia 6, 2ª feira, de madrugada... mas sem a alegria da primeira vez

Guiné 61/74 - P20823: Parabéns a você (1782): António Rocha Costa, ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2539 (Guiné, 1969/71); Fernando Manuel Belo, ex-Soldado CAR do BCAV 8323 (Guiné, 1973/74) e Mário de Azevedo, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 6 (Guiné, 1970/72)



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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20819: Parabéns a você (1781): Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp da CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15 (Guiné, 1971/73)

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20822: Manuscrito(s) (Luís Graça) (182): para a Joana que hoje faz anos, e para todos os nossos filhos que estão sozinhos em casa...


Capa da agenda 2008, da revista  "Pais & Filhos".
 Ilustração: Joana Graça
 (com a devida vénia, ao autor e editor...)



Para a Joana, que hoje faz anos e está sozinha em casa.

Para os filhos dos nossos leitores 
que fazem anos em Abril,
e que estão sozinhos em casa.



Era Abril
E tu acabavas de nascer.

Era Abril
E trouxeste-nos a alegria e o amor
Que as crianças trazem ao mundo.

Era Abril
Mas o mundo não era tão perfeito
Como a gente o queria.

Era Abril
E ainda não havia o mal
Nem o pecado original
Nem a caixinha de Pandora.

Era Abril
E ainda não tínhamos asas para voar
Como Ícaro, até ao sol.

Era Abril
Mas já era tempo de provação.

Era Abril,
Abril, águas mil,
As que te alimentaram no ventre de tua mãe,
As que alimentam a vida na terra

Era Abril
E éramos jovens e felizes e livres.

Era Abril
E tu dizias a quem te deu o ser:
“Mamã, gosto mais de ti
Do que de gelado ao copinho”,

Era Abril
E o teu pai contava-te a história da fada Oriana.

Era Abril,
E havia poesia e magia.

Era Abril
E éramos inconscientemente felizes
E jovens e livres.

Era Abril,
E a gente perguntava
Porque é que a felicidade não era para sempre.

Era Abril
… E continua a ser tempo de provação.


Era Abril
…E hoje temos que fazer prova de vida.

Era Abril,
… E será sempre Abril o teu mês,
Mesmo que o horóscopo esteja em branco.

Era Abril
…E a vida segue dentro de momentos,
Diz o locutor de serviço.

Era Abril
… E continuaremos sempre
A celebrar a tua vinda ao mundo.

Era Abril
… E só o amor por ti
Não tem prognóstico reservado!

Guiné 61/74 - P20821: Prova de vida (4): António Ramalho (ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), natural da Vila de Fernando, Elvas, a viver em Vila Franca de Xira

1. Mensagem de António Ramalho [ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), natural da Vila de Fernando, Elvas,  a viver em Vila Franca de Xira, membro da Tabanca Grande, com o nº 757: tem mais de duas dezenas de referências no nosso blogue]

Date: quarta, 1/04/2020 à(s) 12:57

Subject: Uma diligência interrompida.Porquê?

Caro Luís Graça,  bom dia.

Não me canso de repetir a qualidade do blogue que em boa hora criaste, e que visito todos os dias!

Como certamente te lembrarás,  o excerto do Coronel Vaz Antunes (*) faz-nos recuar ao trágico momento que vivemos com a Paz Podre entre 70/71 com o assassinato à queima roupa dos nossos queridos majores, que não me saem do pensamento, como tendo sido uma cilada preparada por quem não queria a Paz!

Os políticos (e alguns militares) não souberam aproveitar a nossa presença para assim poderem preparar uma saída em grande, e o resultado está bem à vista, que alguns ainda hoje têm dificuldade em alcançar e entender.

Só mais uma nota: Aguardemos a chegada a bom porto do navio que tem a bordo os nossos camaradas que interromperam a volta ao Mundo! (**)

Vamos esperar que o Covid-69 ["lapsus linguae"..., o nosso camarada queria dizer "a Covid-19",  doença provocada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2,] não nos separe por muito tempo! (***)

Um forte abraço para ti

António Fernando Rouqueiro Ramalho

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Guiné 61/74 - P20820: Notas de leitura (1278): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2017:

Queridos amigos,

Trata-se, tanto quanto me é dado saber, de um trabalho universitário em que numa grande angular se pretende saber mais sobre o comportamento jornalístico face à guerra colonial, desde a primeira hora: quais os meios de comunicação em Portugal e colónias, como se fabricavam as notícias, como agia a censura, recolhem-se depoimentos a entrevistas e testemunhos e procura-se aquilatar até que ponto é possível investigar a história da guerra colonial sem entrar nos meandros deste jornalismo e como este, de certo modo, vai estar nos carris da descolonização.
Documento vasto, prismático, a exigir seccionamento na recensão, para benefício do leitor.

Um abraço do
Mário


O jornalismo português e a guerra colonial (1)

Beja Santos

“O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016, é um laborioso trabalho de pesquisa e de inquirição a protagonistas diretos na ótica de uma dupla temática: como era feita a cobertura jornalística dos jornalistas portugueses da Metrópole e das províncias ultramarinas envolvidas no conflito, uma investigação que obrigou a identificar o jornalismo português durante o Estado Novo, quais os meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas sobretudo durante a guerra colonial, com se fabricavam as notícias, como agia a censura, sob que prisma, e com base em testemunhos de alguns dos protagonistas diretos este jornalismo é de estudo indispensável na investigação histórica.

Carlos Matos Gomes
Logo no prefácio, Carlos de Matos Gomes pede ao leitor que aceite a singularidade da guerra:

“A guerra é o reino do medo, da sujidade, do excesso, da violência, do que não se pode dizer em voz alta nem expor nas montras. É um corte entre nós e os outros, que são eles, os que, por alguma razão, ou sem razão alguma, passam a execráveis inimigos. A guerra é um universo denominado pela irracionalidade e pela bestialidade”.

E daí questionar-se por onde passa a fronteira entre a verdade e a mentira, entre o que é lícito tornar público e no dado essencial das omissões. O prefaciador recorda-nos que o jornalista que vai à guerra tem a oportunidade para uma aventura pessoal, conhece os limites do que pode escrever, se descreve horrores é para destruir a imagem dos nacionalistas; o que fala na rádio e na televisão tem outra espécie de condicionalismos, o som e a imagem timbram melhor as cores da propaganda. Mas há um dado axiomático:

“Na guerra, o jornalismo expõe com ineludível crueza a servidão aos poderes político e económico, que permitem a sua existência. Esses poderes têm a sua verdade e é essa que vale, seja como pura propaganda, seja como análise mais ou menos científica”.

Daí o jornalismo ter obrigatoriamente de justificar ideologicamente e economicamente o regime:

“A guerra era imposta do exterior. Aliás, não havia uma guerra, mas atitudes subversivas e correspondentes ações de reposição da ordem. Não havia guerrilheiros, mas terroristas, bandoleiros a soldo de potências estrangeiras”.

Na imprensa metropolitana fugia-se até ao limite em dar notícias sobre a guerra colonial, aliás, os leitores metropolitanos estavam absorvidos por outras preocupações. Em dado passo da escalada da guerra, encontrou-se uma figura mediática que era conveniente ao regime e à mitologia do herói: Spínola, credor dos grandes meios de comunicação social internacionais e a grande curiosidade que suscita ao leitor aquele militar monóculo que aterra no centro das operações e que passou a ter o destemor de dizer nos gabinetes da política que não havia solução militar para aquele tipo de guerra.

Acresce que em Angola e Moçambique, teatros de guerra menos importantes para os repórteres internacionais, havia dois mundos, o dos colonos a fazer a sua vida pacífica e as povoações em guerra. Em Lourenço Marques, a guerra não existia, em contrapartida o hospital de Vila Cabral ia-se enchendo de feridos, aí os colonos pressentiam a gravidade dos acontecimentos. A guerra foi deliberadamente ocultada pelas autoridades aos moçambicanos. E o jornalismo feito especialmente em Angola e Moçambique não era levado a sério tanto pelos militares como pelos civis, da mesma maneira que as informações militares passavam deliberadamente ao lado dos implicados, como refere em entrevista o jornalista Rodrigues Vaz:

“Há que chamar à atenção para a qualidade inegável do serviço de informações do Exército, cujos relatórios da situação que se vivia em Angola era o espelho real do que acontecia. Só que o regime não devia olhar para eles com olhos de ver, teimando tapar o sol com uma peneira. O resultado foi o que se viu e o inconcebível é que continua a haver gente que acha que a guerra estava ganha pelo Exército português e que o 25 de Abril é que veio estragar tudo. É lamentável que ainda agora seja pouca a gente que se lembra de pensar como se poderia ganhar a paz, mas isto é que era importante”.

Atenda-se agora à evolução do jornalismo durante o Estado Novo, a obra identifica os matutinos e vespertinos, a imprensa desportiva, as revistas e outras publicações e até a tentativa de pôr em marcha projetos inovadores como o Diário Ilustrado, concluindo-se que:

  “Os finais da década de 60 e inícios da década de 70 configuram em Portugal o culminar de um período intenso em mudança do jornalismo, reflexo das mudanças sociais em curso, em que se misturam fatores de natureza humana (recomposição das redações com o recrutamento de jovens universitários), tecnológicos (reconversão na maioria dos jornais) e políticos (as fraturas internas da última fase do salazarismo, agravadas pelas ambiguidades e hesitações do marcelismo)".

Segue-se um retrato dos meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas, levantamento que compreende a imprensa escrita, a rádio, a televisão e o cinema. Na sua sequência, faz-se menção ao início da guerra de Angola e à natureza das notícias que se publicaram.

“O discurso censurado dos diários de Lisboa foi conduzido no sentido de camuflar sistematicamente a origem maioritariamente angolana e de negar o âmago anticolonial dos assaltos às cadeias de Luanda”.

E mais adiante:

“As notícias sobre a nacionalidade dos assaltantes são bastantes difusas: estes ora são referidos simplesmente como estrangeiros, ora como uma amálgama de negros, de quem se diz não serem da África portuguesa, e de alguns brancos europeus, explicando tratar-se de portugueses da Metrópole que teriam pitando o rosto de negro para passarem despercebidos”.

Todos estes acontecimentos ocorridos em Luanda aparecem imputados ao turbilhão independentista que se vivia no Congo, a nação portuguesa é apresentada como vítima de uma conspiração à escala internacional.

“Os acontecimentos no Catanga e no Congo e também o drama franco-argelino e a crise no Laos são relatados com vista a singularizar a situação de Angola. Enquanto a condição naqueles locais é descrita como sendo de guerra, de miséria e de incerteza, o discurso da imprensa de Lisboa era encaminhado no sentido de dissimular uma imagem de harmonia e tranquilidade aplicada ao império português em África”.

A imprensa angolana também fez passar a ilusão da serenidade, houvera assaltos mas milhares de pessoas passaram o seu dia na praia e outras assistiram ao desfile preparatório do cortejo de Carnaval. Estamos perante um caso de ficção informacional. A censura impediu artigos que dessem outras vertentes da realidade. Cita-se por exemplo a série de crónicas assinadas por Domingos Mascarenhas intituladas “Angola 1961”. O jornalista entrevê na revolta em Luanda um acontecimento decisivo capaz de pôr em causa o destino da nação. Foi tudo proibido. Mas apesar da censura passaram mensagens nas entrelinhas. Convém agora ver como é que a guerra era tratada no telejornalismo e na televisão em geral.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20793: Notas de leitura (1277): O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20819: Parabéns a você (1781): Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp da CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20809: Parabéns a você (1780): Agostinho Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto do BCAÇ 4612/72 (Guiné, 1972/74); António Dias, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2406 (Guiné, 1968/70); Hernâni Acácio Figueiredo, ex-Alf Mil TRMS do BCAÇ 2851 (Guiné, 1968/70) e José Eduardo Reis Oliveira, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 675 (Guiné, 1963/65)

domingo, 5 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20818: Tabanca dos Emiratos (2): Viagem até ao emirato de Fujairah - Parte I: o forte (Jorge Araújo)

 

Foto 3 - Emirados Árabes Unidos > Emirato de Fujairah (Fujeira) >  Março de 2020 > Largo interior do complexo do Forte de Fujairah, a única foto onde apareço...



Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); um homem das Arábias... doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; vive entre entre Almada e Abu Dhabi; autor da série "(D)o outro lado do combate"; nosso coeditor.





IDA AO EMIRADO DE FUJAIRAH (FUJEIRA),
UMA VISITA PARA PARTILHAR:
- O «FORTE DE FUJAIRAH» -


Mapa geográfico dos Emirados Árabes Unidos com indicação dos seus sete Emirados: Abu DhabiDubaiSharjaha, Ajman, Umm al QuwainRa's al Khaimah e Fujairah

1.  - INTRODUÇÃO

As primeiras notícias sobre o «coronavírus» - «COVID-19» - e o aparecimento dos primeiros casos da doença no País levaram as autoridades locais a tomar medidas de orientação sobre a sua prevenção. Uma delas determinou a suspensão da actividade académica, pela elevada interacção social e meio facilitador a eventuais contágios. A esta decisão superior, seguiu-se outra fazendo antecipar de quinze dias o período de férias previsto no calendário lectivo do ano em curso.

Ao impedimento de saída do País, mas com total liberdade de mobilidade interna, pegámos no carro e deslocámo-nos ao Emirado de Fujairah (Fujeira), situado a três centenas de quilómetros, na costa leste, banhada pelo Golfo de Omã.

No sentido de partilhar esta viagem com o Fórum, eis uma pequena resenha histórica.    
  
2.  - OS EMIRADOS ÁRABES UNIDOS [EAU]

Situado no sudeste da Península Arábica, no Médio Oriente, o território dos Emirados Árabes Unidos [EAU ou UAE] faz fronteira com Omã (a leste), com o Qatar e Golfo Pérsico (a norte) e com a Arábia Saudita (a sul e a oeste).

Formado por uma confederação de monarquias árabes, chamados «EMIRADOS», estabelecida oficialmente em 02 de Dezembro de 1971, cada um dos sete emirados possui total soberania sobre os assuntos internos. Localizados na entrada do Golfo Pérsico, os sete emirados que constituem o país são: Abu Dhabi, Dubai, Sharjah, Ajman, Umm al Quwain, Ra's al Khaimah (a oeste) e Fujairah (a leste). A capital é Abu Dhabi, a segunda maior cidade dos Emirado Árabes Unidos. (ver mapa acima).

3.   - O EMIRADO DE FUJAIRAH (FUJEIRA)

O Emirado de Fujairah está separado do resto do país pela linha irregular das assombrosas «Montanhas Hajar», constituídas numa cordilheira situada entre o leste dos Emirados Árabes Unidos e o nordeste de Omã, sendo considerada a maior cadeia de montanhas no leste da península Arábica.


Foto 1 - «Montanhas Hajar»


O Emirado de Fujairah, com uma área de 1.166 km2 e uma população superior a cento e cinquenta mil habitantes, é o principal centro urbano da costa leste dos Emirados Árabes Unidos, cujas praias a norte são consideradas das mais bonitas do país. A sua parte histórica continua muito presente, onde existem vários pontos turísticos antigos que podem ser visitados. Para além de várias fortalezas centenárias, há ainda a mesquita mais antiga do país – a «Mesquita Al Badiyah».


Foto 2 - «Forte e Mesquita Al Badiyah»


Em termos de superfície, Fujairah é o quinto maior entre os sete emirados dos EAU, e o único que está localizado no Golfo de Omã, ao contrário dos outros, que estão situados ao longo do Golfo Pérsico.

3.1 - O FORTE DE FUJAIRAH (FUJEIRA)

O Forte de Fujairah (Fujeira) é um dos tesouros arqueológicos deste Emirado, alguns dos quais datam do século XVI, incluindo castelos, fortes, torres e mesquitas. Esses fortes e castelos foram usados para defender e repelir invasores, mantendo assim a integridade da identidade de Fujairah. Um dos principais e maiores fortes deste Emirado, o «Forte de Fujairah» é caracterizado pela localização numa colina alta na antiga região de Fujairah, e foi construído a cerca de 20 metros acima do nível do mar, com uma visibilidade de toda a cidade a três quilómetros da costa.

O projecto deste «Forte» difere completamente dos projectos de engenharia usuais dos restantes fortes nos Emirados Árabes Unidos. O «Forte» está incluído num complexo com várias casas antigas e uma mesquita. É composto por três torres circulares e uma quarta torre quadrada e uma unidade alta que se parece com uma torre, estas foram ligadas por uma parede entre as torres para formar um salão central no meio. Este projecto irregular emergiu como uma das várias características, da forma das rochas com as quais o «Forte de Fujairah» foi construído.

Para além das rochas acima referidas, o «Forte» foi construído com uma selecção de materiais locais, incluindo feno de argila de pedra, lama, cascalho, gesso e madeira.

Em 1925 foi feito o primeiro restauro do «Forte» e, em meados da década de 1960, realizou-se outro restauro devido ao colapso da torre e da praça norte. Entre 1998 e 2000, o Departamento de Antiguidades e Património fez uma reforma geral no forte e nas suas torres, na qual utilizou os mesmos materiais da sua construção.

FOTOGALERIA DA VIAGEM
  












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Fotos (e legenda): © Jorge Araújo (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Principal fonte de consulta:
Desdobrável do Fujairah Tourism & Antiquities Authority
Fujairah Fort
Tradução e adaptação do Inglês.


Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um grande abraço (virtual) e um apelo para que se cuidem durante (mais) este novo tempo excepcional nas/das nossas vidas.   
Jorge Araújo.
18MAR2020
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Nota do editor: