terça-feira, 28 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20917: (Ex)citações (367): Contributos para uma análise crítica do poema (panfletário) "Sobre o 25 de Abril", de J. L. Mendes Gomes, o autor de "Baladas de Berlim" (2013) - Parte I: António J. Pereira Costa (cor art ref)

1. Comentários (uma meia dúzia), que agora se colam, contributos para uma análise ao "poema sobre o 25 de Abril" (*) do nosso camarada-poeta J. L. Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), que vive entre Berlim e Mafra, e é autor do livro de poesia"Baladas de Berlim", Lisboa, Chiado Editora, 2013) 

[, foto à esquerda: António José Pereira da Costa, Cor  Art Ref (ex-Alf Art, CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Cap Art Cmdt , CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74)]

Caro Camarada

(i) Também eu "receio bem que as gerações nascidas depois do vinte e cinco de Abril nunca cheguem a dissipar as névoas, tendenciosas que toldam, intencionalmente, esse acontecimento". 

É mau que tal suceda. Todavia gostava de recordar que em História - e é de História que falamos - os facto têm causas: muito ou menos remotas, mais ou menos próximas e causas-pretexto.
J. L. Mendes Gomes

(ii) Foi o que trouxe aquele "minúsculo movimento de capitães, de carreira, por uma causa muito particular e interesseira, a de se libertarem da sina de se verem a arriscar a vida em comissões sucessivas a caminho de África". 

Por mim, já estava farto de levar comigo ou ver embarcar contingentes de militares - meus concidadãos - que, normalmente, não sabiam ao que iam, se queriam e se os sacrifícios que iam fazer valiam a peno. E se soubessem iriam?

Por mim já sabia que perderia em dois tabuleiros: perante os meus concidadão que me acusavam de os levar para a guerra (perdida ou no marasmo) e perante os que para lá me mandavam que não tinham por mim (e por quem ia) o mínimo respeito.~

(iii) Quanto ao tal "Cavalo de Tróia"... nunca o vi e nem sei se existiu.

Eu residia em Coimbra. Daí que só me fosse possível ver as coisas pela TV, felizmente ainda sem censura (subliminar) e manipulação, como actualmente.

(iv) "Rapidamente o movimento dos capitães foi subalternizado pelo movimento marxista internacional" 

Estes factos aconteceram porque havia condições para tal. É o conflito Oeste-Leste no qual já tínhamos participado, como interpostas pessoas. Aí não pode haver dúvidas.

(v) "Vi pela TV chegar a Santa Apolónia, [...] o líder Álvaro Cunhal, vindo de Moscovo e o Mário Soares de Paris. Cada qual com interesses políticos antagónicos, como era fácil de ver... Por isso, extremaram-se as posições e movimentos contrários". 

Veio à superfície o nosso valor estratégico no conflito latente, mas sempre vivo, ao tempo.

A CIA -leia-se EUA - só se pode queixar de si própria. Em vez de se impor a tempo e forçar uma solução politicamente negociada "deixou correr o marfim". Por isso teve que empatar aqui um dos seu pesos pesados, como viemos a ver. E até já vi celebrar!...

(vi) "Aceleradamente se desencadearam saneamentos" [normalmente bem necessários...] "das cátedras e das altas patentes das estruturas militares". 

Em relação à academia de Coimbra, basta recordarmos das crises de 69 e 73.

Em relação à hierarquia militar não se poderia permitir o retrocesso. A chegada do Gen Spínola pôs em evidência a decrepitude (principalmente mental) e incompetência dessa mesma hierarquia que sempre se tinha "conformado" para sobreviver e passar o tempo. Não estava só! O povo também jogava nisso sempre que era "solicitado" a "cumprir o dever patriótico". Se calhar enganavam-nos uns aos outros... Quando assim é, perdemos todos.

(vii) "Uma onda de ocupações selvagens das empresas mais poderosas"...

Sim! O capitalismo tem regras e, na maior parte dos casos as falências era inevitáveis, como se viu depois quando as empresas caíram com o fim da guerra. Exemplo a Marinha Mercante: velha cara e sem resposta às necessidades do país. Ainda hoje assim se mantém.

(viii) Quanto à "reforma agrária selvagem"... 

Para além de mais uma demonstração de folclore revolucionário, temos que convir que os grandes latifúndios estavam falidos e ninguém procurava alternativas, seguros de que assim fora e assim continuaria a ser. Só há poucos anos surgiram alternativas.

(ix) "Os canais da TV e da Rádio foram ocupados."

Havia apenas um canal de TV que foi disputado, como era de prever. As Rádios também nomeadamente a da Igreja que tinha uma "missão" a cumprir e que nada tinha a ver com a religião. Como viemos a ver na fundação da "4", hoje TVI.

(x) "Anunciou-se a perseguição religiosa". 

É um facto que a Igreja se pôs a jeito, salvo raras e honrosas excepções. Basta vermos a actuação dos capelães militares e a pouca acorrência dos jovens aos seminários e as múltiplas desistências. A Igreja tapava o Sol com a peneira...

(xi) "O MRPP insolente, escavacou [...] uma série dessas faculdades"...

 Fez o seu papel! Porém, lembro que o grande "comentador" Marcelo R. de Sousa recordou que o MRPP foi uma boa "escola de políticos" que hoje andam por aí, brilhando como comentadores, deputados, fiscalistas, juízes, primeiros-ministros que vão às reuniões internacionais servir cafés e vêm o que não existe e depois se passam para o "capitalismo mais desenfreado".

(xii) "Quem estava no fim dos seus cursos superiores ficou perdido, sem saber o que fazer"...

 Aqui poderia dizer que deveria ter-se defendido do que estava a suceder, mas prefiro constatar que, quanto maior fosse o granel, nos sítios que interessava, melhor. No fundo, era necessário criar condições para o ensino privado nas áreas do "papel e lápis" que é que melhor (de)forma os políticos "que interessam".

(xiii) "Estancaram os mantimentos para Lisboa".

Não me lembro de terem estancado os mantimentos para Lisboa. "Se havia que secar as praças e mercados. Vi o da Ribeira sem nada nas bancas", tudo fazia parte do granel a criar...

(xiv) "Houve famílias com miúdos pequenos, que fugiram para a província"..

Há sempre, mas não creio que esse êxodo seja por causa das crianças. Hoje continua a haver gente a emigrar para fora da "zona de conforto" e depois é cumprimentado pelo PR devido ao seu desempenho profissional. E os serviços da política incentivaram-no!...

(xv) Foi realmente "um período muito turbulento que se implantou". 

Não tenho conhecimento de drásticas modificações político-sociais - muito necessárias e urgentes - feitas por decreto estudado e intensamente debatido. Mas deve porque ando cá há pouco tempo...

(xvi) "O Vinte e Cinco de Novembro, com Ramalho Eanes e um grupo patriota de militares conseguiu clarear e inverter a supremacia comunista."

Talvez, mas eu não creio que os soviéticos viessem a correr pela Europa fora com uma foice numa mão, um martelo na outra e uma estrelinha vermelha (de preferência) no alto da cabeça. O conflito Leste-Oeste nunca se materializaria assim. Além disso, os tempos eram outros.

(xvii) "Outro facto político de tremenda importância foi a chamada descolonização".

Confirmo. No fim, tudo girava à volta da questão colonial que o regime nunca tentou (sequer) resolver.

Depois de 13 anos de sacrifício não houve família que não visse partir para a guerra de África algum dos filhos. Lamento e confirmo. Infelizmente

Quantos por lá ficaram para sempre? Mais de 8000, fora os feridos, como o camarada sabe. Há aqueles a quem falta um bocado do corpo ou do espírito ou os que ficaram deformados também no corpo ou na alma. Creio que há uma contabilidade feita. É só ler e acrescentar 10% para compensar imperfeições de cálculo.

(xviii) "E é de ressaltar que a guerra do ultramar estava praticamente sob controle".

As guerras não se controlam. E ao fim de 13 anos ou se ganham ou se perdem.

No que à Guiné diz respeito, o camarada sabe que não era assim. Em Moçambique, sabemos agora que em Abril de 74 cerca de 27% do pessoal em rendição individual ou em unidades estava em "mata-bicho". Solução: subir o tempo de permanência para 30 meses ou aumentar o contingente incorporado forçando o "potencial humano" da nação para além do seu limite.

E em Angola, já sabemos que MPLA só tinha quadros, não tinha militantes, o FNLA não existia e a UNITA estava sob o controlo da PIDE. Então para quê continuar a aumentar o efectivo presente? É difícil de explicar, mas...

(xix) "Havia prosperidade e progresso crescentes"...

Onde? Talvez houvesse, mas não muita.

(xx) "O Governo estava a estudar". instituir uma União ou Confederação das províncias ultramarinas com a metrópole." 

Estranho governo este que necessita de 13 anos de guerra para estudar um assunto... E ainda por cima com uma União ou Confederação, depois de ter verificado que todas as soluções deste tipo tinham falhado... Nunca é tarde para aprender.

(xxi) "As potencialidades desta fusão de interesses, respeitadores dos interesses nacionais, eram enormes?"

 E ninguém via isto? O povo é mesmo estúpido!

(xxii) "Mas, a gula dos países europeus ocidentais ficou embriagada com a hipótese de entrarem gratuitamente em África, para lhe sugarem as riquezas"

As democracias europeias sempre varreram a questão do colonialismo português para baixo do capacho. E se não se implantavam lá era porque os portugueses não deixavam. Coitados destes portugueses que assim impediam o progresso que os outros tinham possibilidade de fazer e eles não eram capazes. Egoísmo ou estupidez?

E agora as tais potências europeias iam perder uma oportunidade? A política não é Casa do Padre Américo! Mesmo assim perderam-na, mas por outras razões.

(xxiii) "O poder político passou para as mãos glutonas desse países oportunistas" 

Já disse que não são contas do meu rosário, mas acrescento nunca esperei que a miséria atingisse estes níveis. De qualquer modo quem lutou (tanto tempo e com tanta violência) para atingir estes objectivos, se não tem competência, não se estabelece.

(xxiv) "As populações 'brancas' residentes e que já viviam bem, viram-se abandonadas pelas nossas forças militares"

"Já" viviam bem? Mas alguma vez viveram mal, especialmente se comparadas com as populações "pretas"? Viram-se abandonadas? Evidentemente. A situação não poderia eternizar-se e os exemplos dos outros países de África não eram eloquentes? Era só prever e precaver-se.

(xxv) "E depois foi a debandada"...

A "debandada" tinha que suceder. Porém alguém foge de alguém por alguma razão, Era bom aprofundarmos esta questão.

(xxvi) "Aquele movimento  escabroso de aviões em cortejo a despejarem retornados com seus caixotes"... 

... foi a possível solução para uma guerra civil e racista que se avizinhava e já tinha sucedido noutros países.

(xxvii) "O cais, desde a Ribeira até lá longe, ficou a rebentar com tanto caixote"...

 Eram as célebres "camisinhas" que traziam na pele...

(xxviii) "Os retornados que trabalhavam na banca e nas funções públicas entraram, e bem, para os quadros. Entupindo por dezenas de anos as carreiras de quem cá estava".

Parabéns, camarada! Esta expressão fala por si.

(xxix) "Desenvolveu-se um certo confronto e hostilidade entre ambas as partes"...

 Era de calcular, não?

(xxx) "De realçar também que o Governo nacional estava a desenvolver uma reforma administrativa profunda"...

 Como se impunha, não é verdade?

(xxxi) "A legislação fundamental, Constituição incluída, foram revistas em pontos muito importantes, implantando uma igualdade de cidadania real, entre homens e mulheres e em em muitos outros sentidos".

Parece-me que estas medidas vão no sentido certo. Digo eu...

(xxxii) "Tudo ficou paralisado e sujeito ao vendaval das facções políticas".

Mas parece que cedo começámos a andar...

(xxxiii) "Esta visão, tudo isto, foi ocultada e desvirtuada às novas gerações"

 Se foi, não deveria ter sido. A verdade não se deturpa. É feio, mau e a "mentira tem perna curta".

(xxxiv) "Creio bem que quem hoje tem para baixo de cinquenta anos já não vai ter tempo de dissipar as nuvens de desinformação que lhes meteram na cabeça..."

Infelizmente. E quanto mais lhe fornecerem factos deturpados ainda será mais difícil.

Um Ab para todos
António J. P. Costa

PS - Foram 5 comentários, mas a culpa é do blog

Aconselho o autor dos poemas a deixar o verso branco. É pobre, pois a rima e a métrica ao mesmo tempo que se transmite um ideia é mais complicada, porém mais rica. Mas cada um faz o que pode e sabe.
O conselho musical e enológico têm muito valor.

Já estou a ver o Mendes Gomes a poetar em versos brancos no bar de Mafra ou em Berlim, com um capacete m/43 e a ouvir as 4 estações de Vivaldi.

Por mim, não gosto de versos brancos. Preferia que escrevesse "prosa poética": textos de sensibilidade apurada e conteúdo profundo. Prefiro "versos tintos" ou mesmo "palhetes" com rima e métrica. Dão mais trabalho mas são outro asseio.

Um Ab. e um bom dia sem "névoas tendenciosas".

António J. Pereira da Costa (**)
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P20916: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (71): A história da escultura dedicada ao Soldado Desconhecido de Sacavém (José Martins)




1. Mais um trabalho do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviado em mensagem de 7 de Abril de 2020, com a história de uma estátua dum "Soldado Desconhecido" encomendada ao artista José da Silva Pedro para ser erigida em Sacavém, que nunca viu a luz do dia.



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Nota do editor

Último poste da série de 1 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20799: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (70): Núcleo de Loures da Liga dos Combatentes: um pouco de história (José Martins)

Guiné 61/74 - P20915: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (4): Composição da CCS/BCAÇ 2845 e vídeo do Convívo de 2011 dos Vampiros

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70), com data de 14 de Abril de 2020:

Carlos Vinhal
Estive a ver a Tabanca quase toda a manhã e também comecei a tarde a ler tudo o que nela está, e vi que já estava publicado o meu trabalho.
Já vi que recebeste o vídeo da CCaç 2367, "Vampiros", do Alferes Rocha, que de certo vai gostar porque também ele lá está.
Não podendo sair de casa como aliás todos nós, aproveito e vou fazendo uns trabalhos para a Tabanca Grande e, para assim compensar todo o tempo em que estive ausente por motivos já conhecidos. Hoje envio mais um destes trabalhos e mesmo para vos dar que fazer. É a meu gosto mas, espero que todos gostem também.

Para todos os tertulianos vai um abraço e em especial para todos vocês que mantém a Tabanca activa e da qual gosto.
Albino Silva



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Vídeo do Encontro anual dos Vampiros de 2011 na Mealhada

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Nota do editor

Último poste da série de 21 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20885: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (3): Amigos que não esqueço

Guiné 61/74 - P20914: 16 anos a blogar (6): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (2) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 27 de Abril de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos a II parte de Os dias de Abril, mês "de águas mil"


Os dias de Abril, mês de “Águas mil”, de Constituições, de Revoltas, de Revoluções, dos… das Celebrações, Grupos de Risco e do Cofinamento, que mudaram Portugal - Parte II

(Continuado)

Em meados de Abril de 1974, feitas 6 reuniões plenárias à escala dos 3 Ramos das FA, a última em Cascais, mobilizadora de cerca de 200 conjurados, e um mês passado sobre a falhada “Revolta das Caldas”, a Comissão Coordenadora do MFA tinha acelerado e terminado o seu trabalho de casa – a máquina conspirativa estava montada e bem oleada.

A malta conspiradora das Caldas havia-se precipitado. À data da sua saída, a inter-relação dos conjurados limitava-se à ligação, não havia nem plano de acção militar nem programa político, mas apenas um rascunho de cariz político-militar, da autoria do Major do SAM Moreira de Azevedo e o Movimento dos Capitães/Movimento das Forças Armadas encontrava-se neste pé: logo que fossem muitos, entregariam ao Chefe seu elegido (General Spínola) um ultimato para ele apresentar ao Chefe do Governo (Marcello Caetano). Se este o aceitasse, tudo bem; se o recusasse, meteria o General Spínola “dentro”, na Trafaria (com o amparo do livro Portugal e o Futuro) e então eles accionariam o seu chefe profissional, General Costa Gomes.

Uma evidência da falta de equidade de funções, peculiar à comunidade militar. Os generais não substituiriam os capitães e os capitães a tratar de substituir os generais…

Ernesto Melo Antunes
Em 23 de Abril de 1974, o MFA iniciou a acção directa. A participação de oficiais da Marinha, da Força Aérea, as adesões dos seus camaradas milicianos (os espúrios) e de uma proporção significativa de oficiais superiores estavam consolidadas, havia o Programa político, elaborado por uma comissão coordenada pelo açoriano Major de Art.ª Melo Antunes e, também, o Plano da operação militar com o código de “Viragem Histórica”, elaborado por uma comissão coordenada pelo natural moçambicano Major de Art.ª Otelo Saraiva de Carvalho.

Escolhido o dia 25 de Abril para seu dia D e a 1H00 para sua hora H, efeméride da queda do Fascismo na Itália, inspirador do nosso regime do Estado Novo, a sua equipa operacional, comandada pelo Major Otelo, dedicou esse dia a entregar rádios, códigos e senhas aos conjurados, e, em simultâneo, o Major Melo Antunes, numa discriminação positiva ao Partido Comunista e ignorando o Partido Socialista e a Ala Liberal, entregava ao casal Carlos Brito e Zita Seabra, responsáveis da DROL (Direcção Regional da Organização de Lisboa) do PCP, cópias do Plano da operação militar e do Programa Político do MFA – as únicas cópias saídas da intimidade dos conspiradores.

A participação do Povo no êxito do 25 de Abril incruento é facto acontecimental; a participação do povo logo na alvorada da sua manobra militar é um mito.

Ao começo da madrugada de 1 de Abril de 1974, Zeca Afonso encerrou o seu espectáculo do Coliseu dos Recreios com a canção Grândola, vila morena, que havia lançado na Galiza, o Major Otelo estava na plateia, o seu ouvido reteve-a e será a elegida para senha da hora H – a Rádio Renascença transmitiu-a aos 20 minutos da madrugada de 25 de Abril.

O primeiro conspirador a mostrar serviço ao Posto de Comando do MFA, na Pontinha, foi o Capitão Teófilo Bento: ouvida a cantiga do Zeca Afonso, ele, o Tenente Manuel Geraldes e a sua malta da Escola da Administração Militar, especialistas de “apontadores da Bic” e não de apontadores da G3, acabavam de ocupar o Mónaco, nome de código da sua vizinha a RTP.

Jaime Neves
O segundo a sair terá sido o Major Jaime Neves e a sua malta dos Comandos; será recorrente na afirmação de que, quando chegou ao Terreiro Paço, por volta das 6H00 da manhã, com a missão de ocupar os ministérios militares e de prender os respectivos ministros, já havia massas trabalhadoras, vindas da Outra Banda e com palavras de ordem, de apoio à “revolução”. Desconfiado de estar a protagonizar uma revolução comunista, “a coisa era tão secreta e chegara a esse nível”, em vez de apresentar serviço na Pontinha, exigiu explicações ao Posto de Comando, o Major Otelo sossegou-o, e só não desistiu, porque o Capitão Salgueiro Maia e a sua malta da EPC de Santarém começaram a chegar.

A sua perplexidade permitiu que os chefes militares tivessem escapado (momentaneamente) à prisão, derrotando com os machados de guerra dos guerreiros da sua decoração a parede de tijolo, divisória entre o Ministério do Exército e o Ministério da Marinha, apanharam o autocarro e foram parar ao Regimento da PM, à Calçada da Ajuda, onde montaram o Posto de Comando da contra-revolta. Integrou-se activamente na manobra do Salgueiro Maia, foi negociador decisivo, na Ribeira das Naus, na contenção dos blindados Patton que os chefes que não prendera mandaram contra eles, vindos da mesma Calçada, originários do RC7. E ainda efectuará a prisão o General Louro de Sousa, Quartel-Mestre General, - o Comandante do CTIG da Guiné da “Operação Tridente”, à ilha do Como, em princípios de 1964.

O que o Posto de Comando do MFA e o notável soldado e futuro Brigadeiro Comando Jaime Neves não sabiam – este terá partido sem saber – que a sua colisão mental com o surgimento daquela malta, madrugadora e animada, era circunstancial a essa a manobra “secreta” do Major Melo Antunes, que pusera o Carlos Brito a mobilizar a massa trabalhadora da Cintura Industrial de Lisboa para o Terreiro do Paço e pusera a Zita Seabra a mobilizar a massa estudantil (a UEC) a apoiar todo o militar da revolta que encontrasse na rua.

E essas massas desempenharam-se eficazmente; foram o “fermento” que levedou a massa de adesão do Povo.

Se o Capitão Teófilo Bento e a sua malta do SAM foram meteóricos na ocupação da RTP, objectivo não armado, o MFA de Lisboa, não obstante o seu poderio de homens e de fogo, demorou 17 horas a tomar o poder em Lisboa, encheu o Forte da Trafaria de presos, enquanto ao MFA do Norte, enformado por 60 militares, divididos em 5 grupos, comandado pelo então Tenente-Coronel Carlos Azeredo, bastaram 8 minutos para cumprir todas as missões e tomar o poder no Porto – e não meteu ninguém na cadeia.

Às 14H02 entraram em acção e às 14H10 já tinham libertado toda a região de Entre Minho e Douro.

A primeira fractura do MFA também se deu no Norte.

Carlos de Azeredo
O Tenente-Coronel de Cav.ª Carlos Azeredo planeara e executara o 25 de Abril nortenho em parceria com os Majores Eurico Corvacho, Gonçalves Borges e o Capitão Nogueira de Albuquerque, não poderia comandar a Região Militar, por não exercer o comando de unidade, havia requerido a demissão do Exército (o ministro tencionava deferi-la, sob o pretexto de ser paciente de “de doença mental”), mas recusou cumprir a ordem do Posto de Comando na Pontinha, de sair da cena e deixar o comando para o Major Corvacho; no seu entender, os chefes do MFA eram os Generais Spínola e Costa Gomes.

Em corolário a tantas horas de indecisão, a partir do meio-dia desse dia libertador emergiram no Porto não as massas populares de apoio, mas a turbamulta. Molestava-se pessoas, montava-se cercos aos quartéis da GNR, apedreja-se as esquadras da PSP e outras instituições do Estado, incendiavam-se carros, partia-se montras e assaltava-se lojas. Presenciei a Eng.ª Civil Virgínia Moura, que havia conhecido no contexto das obras da Ponte da Arrábida, como autora do projecto do nó e do viaduto de Sto. Ovídeo, em Gaia, a incitar a multidão e a alçar-se ao seu comando, para a temeridade de cercar e assaltar a PIDE – negligenciando o seu armamento.

Foi quando entrou em cena outro oficial também já fora da tropa e também Eng.º Civil – o Coronel Mário da Ponte (que me honrou com a sua amizade, durante mais de 40 anos). Foi para o Quartel-General, puxou dos galões, pôs a PM e a tropa na rua, a restaurar e a manter ordem pública, desmobilizou o cerco à PIDE, no dia seguinte mandou para casa o seu pessoal secundário e o seu pessoal estrutural foi largado no Alto da Carriça, na estrada de Braga, postura que manteve enquanto o Coronel de Inf.ª Passos Esmeriz, que comandava o RI 6, na Senhora da Hora, não foi assumir esse posto, por vontade da maioria dos oficiais dessa Região Militar.

Mário Soares e Álvaro Cunhal
Com o regresso de dois políticos, o optimista e exilado Mário Soares, vindo de Paris, que se apeou na Estação de S. Apolónia, no dia 28, e o céptico e fugitivo Álvaro Cunhal, vindo de Praga, que, no dia 30, desembarcou no Aeroporto da Portela, a revolta passou a tridimensional - os “capitães de Abril” e mais esses dois, como os corifeus do Socialismo…

Há camaradas da Tabanca Grande participantes na operação “Viragem Histórica”? Eu, no 25 de Abril, não pequei por omissão: voluntariei-me e fui recusado.

Naquele dia inicial inteiro e limpo (Sophia), estacionei o carro na Praça da República (então trabalhava no cimo da Rua do Almada) e dirigi-me ao camarada furriel que vi a comandar uma secção em posição de fogo, nos cruzamentos da Rua João da Regras e da Rua da Boavista. Admitindo tratar-se de exercício citadino, comentei o seu realismo e ele disse-me que não era exercício, era uma revolta para derrubar o Governo. Alertei-o do perigo do RC 6, ali tão perto, e ofereci-me a ir para a torre da Igreja da Lapa e fazer a vigilância aérea dos eixos de aproximação dos seus blindados, e ele desarmou a minha disponibilidade, dizendo-me que toda a tropa do Porto estava alinhada com a revolta. Eram 8H30 da manhã…

Naquele tempo também me sentia rebelde, ofereci os meus préstimos (intempestivos), o 25 de Abril recusou-os, mas, modéstia aparte, não deixou de me obsequiar: os Trabalhadores honram o 1.º de Maio como o seu dia e eu não só, mas também - é o dia do meu aniversário!

A celebração desta efeméride, via skype, por aquela meia dúzia de velhotes e “Capitães de Abril” sobrevivos, a cujo grupo etário pertenço, cercados por todos os lados pelo vírus Covid-19, a sua nostalgia de combatentes, no Ultramar e na Metrópole, ao serviço do seu Povo, ora em distanciamento social e em confinamento por um inimigo invisível, a sua exortação aos médicos, enfermeiros e demais pessoal do SNS, para personificarem os “capitães de Abril” da sua derrota, comoveram-me às lágrimas.

E, parafraseando o Almirante Pinheiro de Azevedo, protagonista de dois 25´s, o de Abril e o de Novembro: Não gosto de confinamento; chateia-me estar confinado.

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OBS:- Escolha e edição das fotos da responsabilidade do editor
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Notas do editor

Poste anterior de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20902: 16 anos a blogar (4): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (1) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

Último poste da série de 27 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20912: 16 anos a blogar (5): O barbeiro dos bifes (António Carvalho, ex-Fur Mil Enf)

Guiné 61/74 - P20913: Da Suécia com saudade (69): Eu destrui um país [em sueco, "Jag har förstört ett helt land"], por Patrik Engellau... (José Belo)


Guiné-Bissau > Bissau > 2020 > Afribaba > Anúncio de venda de "Camião Volvo, de 20 toneladas, báscula para dois lados, com motor,  arroçaria e caixa em muito bom estado". Preço: 9 100 000 CFA (cerca de 13 870 euros, ao câmbio de hoje, 1 euro = 655,96 CFA).  Anunciante: Afribaba.(Reproduzido com a devida vénia...)


1. Mensagem de  José Belo,  ex-alf mil inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, e manteve-se no ativo, no exército português, durante uma década; está reformado como capitão inf do exército português; jurista, vive entre (i) Estocolmo, Suécia, (ii) nas imediações de Abisco, Kiruna, Lapónia, no círculo polar ártico, já próximo da fronteira com a Finlândia, e (iii) Key-West, Florida, EUA; é o único régulo da tabanca de um homem só (, mas sempre bem acompanhado das suas renas, dos seus cães e dos seus ursos)

Data: sábado, 25/04, 20:16



Assunto: : "Eu destruí completamente um País" (*)


Luís: seguem as as declaracões de Patrik Engellau, um alto quadro do funcionalismo público sueco, sobre a Guiné-Bissau.. Junto foto dele, Patrik Engellau em artigo publicado no "Alla Skribenter", 27 dezembro de 2015. Faço uma tradução adaptada do artigo. Atenção aos muitos erros ortográficos na língua de Camões, por mim pouco usada há muitas décadas, a pedir benevolências extras quando escrita sobre o joelho nesta tradução do sueco original.



Ámen, J.Belo


2. Eu destrui um país [em sueco, "Jag har förstört ett helt land"]

"Alla Skribenter", 27 de dezembro de 2015.

por Patrik Engellau


Trabalhei durante cerca de 10 anos na ajuda económica ao Terceiro Mundo, primeiro nas Nações Unidas e depois  na agência sueca para o a cooperação internacional e o desenvolvimento (SIDA - Swedish International Development Cooperation Agency), em países como o Brasil, Índia, Etiópia, e por último como chefe na embaixada sueca em Bissau.

Cheguei a Bissau em 1976, com 50 milhões de coroas suecas, no bolso, por ano,  para apoio económico (,hoje equivalente a cerca de 250 milhões). Isto foi mais ou menos na mesma altura em que o novo governo guineense tomava posse após a queda do império português.

A Guiné-Bissau era um dos países favoritos da Suécia. Tanto a União Soviética como a Suécia tinham feito grandes doações ao PAIGC, o movimento de libertação de orientação socialista, agora no poder. Mas a Suécia era, então, de longe, o maior doador.

As nossas contribuições totalizavam uma soma muito superior ao Orçamento do Estado guineense. Sentia-me, então, como um dos elementos com maior influência no país. Tanto o Presidente [, Luís Cabral,] como os Ministros procuravam-me quase diariamente para obter as mais variadas coisas.

Mas os que julgam que tudo então se perdeu por os políticos terem aberto contas particulares em bancos suíços, estão enganados. Pelo menos no início, a líderança política eram constituída por gente honesta, bem intencionada, verdadeiros socialistas idealistas.
Queriam reformar e fazer progredir o país.

Obviamente que, ao olhar-se hoje [2015] retrospeticamente, não teria sido pior se a nossa ajuda económica tivesse terminado nas tais contas bancárias particulares.

A principal produção da Guiné-Bissau, além da agricutura de autosubsistência, era o arroz e o amendoim, os dois produtos de exportação,O comércio entre os produtores e o porto de Bissau estava nas mãos dos libaneses. Estes usavam carrinhas de marca Peugeot, em estradas lamacentas e com pouca manutenção, para transportarem para o interior produtos importados (, artigos de plástico, tecidos e outros), consumidos pelas populações, e no regresso a Bissau voltavam carregados com arroz e amendoim.

O governo não estava nada satisfeito com este sistema por considerar que os libaneses ganhavam demasiado com estes negócios de verdadeira exploração dos produtores locais. Considerava também que as pequenas quantidades transportadas não eram economicamente viáveis na perspetica da exportação em grande escala.

Ambos os problemas foram resolvidos com um plano que previa a nacionalização do comércio por grosso e a retalho e o transporte das mercadorias a realizar por camiões modernos.

Claro está que foi a Suécia quem, a meu pedido, veio a fornecer umas dúzias de moderníssimos camiões Volvo, desembarcados em Bissau em poucos meses.

Estes camiões último modelo,com ar condicionado, rádio estereofónico e confortável cabine para o condutor dormir, eram naves espaciais aos olhos da populção, e depressa se tornaram num instrumento de "engate" das belezas locais nas ruas de Bissau.

Durante uns tempos era mais importante esta "mercadoria" do que os tradicionais produtos de plástico e tecidos a serem transportados para o interior.

Se o problema tivesse sido só esse, as coisas näo teriam sido tão graves. Mas...quando os camionistas mais consciencios finalmente se puseram a caminho do interior (o que não deveriam ter feito!), concluiu-se que as estradas existentes [, "picadas",] não foram feitas para estes mastodontes ma sim para as carrinhas Peugeot.

Todos os tipos imagináveis de problemas surgiram, acabando por liquidar este tipo de transporte. Em menos de seis meses todos os camiões Volvo estavam parados.

Sendo as marcas de camiões Volvo e Scania as mais vendidas mundialmente, e utilizadas nas condições mais extremas, foi enviada a Bissau uma equipa de mecâncios para estudar o problema surgido.

Chegou-se à conclusão de que, para além dos problemas quanto ao peso que as estradas não suportavam, ambém tinham surgido pequenos problemas de manutenção das viaturas, do tipo: esqueceram-se de mudar o óleo, houve componentes dos motores que desaparecera, etc.

Com a falta de intermediários tradicionais, como os comerciantes libaneses, os camponeses não conseguiam escoar a sua produção, pelo que se voltaram a concentrar-se na produção para consumo local.

O arroz passou a não chegar para alimentar a população de Bissau. Aí a coisa tornou-se grave! O Presidente [, Luís Cabral,] justificou perante mim, que as coisas tinham-se agravado por razões climatéricas que teriam acarretado doenças para as plantas. Devido a isto, perguntou-me de imediato se seria possível um aumento da ajuda económica estipulada para estas situações de emegência.

Telegrafei de imediato para os escritórios centrais da SIDA (que são as iniciais ou o acrónimo da Agência Estatal Sueca para a ajuda aos países em vias de desenvolvimento) e, em muito curto espaço de tempo, tínhamos em Bissau um barco fretado, chinês, que transportava 3 mil toneladas de arroz para que a população não morresse de fome.

Estou a simplicar mas as coisas passaram-se basicamente assim.
História semelhante poderia ser aqui contada quanto ao enorme apoio económico sueco à indústria da pesca local.

São muitos os detalhes e sobre eles escrevi um romance publicado pela editora Atlantis. [Obs : Tenho em minha posse esses "detalhes"... Referência bibliográfica: Patrik Engellau - Genom Ekluten. Stockholm, Atlantis, 1980].

Pessoalmente acabei por me cansar destes contínuos fracassos na utilização de tão vastos recursos económicos, afastando-me de vez deste negócio escuro que é a assistência económica aos países pobres.(**)

Mas antes ainda de puxar a mim prórpio as orelhas, dei-me conta de que fui cúmplice no ato de destruição de um país.

Alguns anos depois, tanto o Ministério dos Negócios Estrangeiros como a 
agência sueca para o a cooperação internacional e o desenvolvimento (SIDA) cansaran-se, decidindo terminar com estes apoios à Guiné-Bissau, com o argumento de que este país, afinal,  não tinha o perfil adequado. Mas não podemos nem devemos "lavar as mäos" quanto ao processo e aos resultados.

Fomos nós, afinal, quem forneceu ao governo do PAIGC as ferramentas e as oprotuniades, para eles efectuarem as suas estúpidas experiências sociais...

Enquanto isto sucedia, nós estávamos ao lado deles e aplaudíamos este país heróico com os seus belos princípios sociais.

Agora que Guiné-Bissau se tornou num "narco-estado", o estado ganha dinheiro com a ajuda ao tráfego de droga da América Latina para os mercados europeus.

E o que pode fazer o pobre do governo? Os camiões Volvo são agora sucata e os libaneses provavelmente foram-se embora!



Em defesa das ajudas deste tipo aos países pobre, é claro que pode-afirmar-se que geralmente o seu montante é tão pequeno em relação aos recursos próprios do país destinatário que o eventual insucesso  não é assim  tão importante.

Patrik Engellanm 27/12/2015.
Publicado no "Alla Skribenter"


[Reprodução com a devida vénia... Tradução, revisão e fixação de texto: JB. O editor LG cotejou o original em sueco, e a tradução livre do JB, com tradução automática,pelo Google Translate, em inglês e português]. 

______________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 20 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20878: Da Suécia com Saudade (68): por causa da tal pandemia, as minhas renas não podem agora andar em bicha de pirilau e muito menos em manada... (José Belo)
 

(**) Vd, postes de:

3 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13842: Da Suécia com saudade (40): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte I)... à Guiné-Bissau, de 1974 a 1995, foi de quase 270 milhões de euros... Depois os suecos fecharam a torneira... (José Belo)

4 de movembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13847: Da Suécia com saudade (41): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte II)... Um apoio estritamente civil, humanitário, não-militar, apesar das pressões a que estavam sujeitos os sociais-democratas, então no poder (José Belo)


5 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13849: Da Suécia com saudade (42): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte III)... Pragmatismos de Amílcar Cabral e do Governo Sueco, de Olaf Palme, que só reconheceu a Guiné-Bissau em 9 de agosto de 1974 (José Belo)

6 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13853: Da Suécia com saudade (43): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte IV): Rússia e Suécia, vizinhos e inimigos fidalgais, foram os dois países que mais auxiliaram o partido de Amílcar Cabral (José Belo)

7 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13859: Da Suécia com saudade (44): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte V): Quando se discutia, item a item, o que era ou não era ajuda humanitária: catanas, canetas, latas de sardinha de conserva... (José Belo)

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20912: 16 anos a blogar (5): O barbeiro dos bifes (António Carvalho, ex-Fur Mil Enf)


Região de Tombali > Mampatá > Uma foto aérea de povoação e aquartelamento.
Foto: © José Manuel Lopes (2008)


1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 20 de Abril de 2020, trazendo-nos uma história a que deu o título de O barbeiro dos bifes.


O BARBEIRO DOS BIFES

Nem sempre as diferentes especialidades se ajustavam ao perfil de cada militar, fosse por imperfeições do próprio sistema de avaliação, que nós conhecíamos por testes psicotécnicos, fosse pela viciação dos resultados sob a mão de uma oportuna cunha, viesse ela do padre da aldeia, do regedor ou até de um coronel reformado.

Certo é que, para preencher a especialidade de atirador, nunca havia pedidos, e poucos eram os que sorriam quando, no fim dos três meses de recruta, lhes era comunicado que lhes tinha cabido em sorte a G3. Na ingenuidade de muitos mancebos não lhes calharia mal a especialidade de condutor, sendo que alguns até almejavam essa profissão, logo que regressados à vida civil. Não sabiam eles ainda quão perigoso era conduzir um camião nas matas de África, sujeitos ao primeiro tiro ou ao rebentamento de uma mina anticarro.

Ao Simão, de Oliveira de Azeméis,  foi-lhe atribuída precisamente a especialidade de condutor-auto, a contragosto, mas se assim tinha sido o resultado dos testes, assim tinha que ser. A grossa maioria dos recrutados, entre 1961 e 1974, bem sabia da sua condenação à guerra do Ultramar, ao fim de meia dúzia de meses, mas o Simão sempre admitia que pudesse ter sorte, até porque era já casado. Podia ser que escapasse e ficasse por cá, julgava até que, com mais sorte ainda, poderia ficar ao serviço de um oficial superior, conduzindo-o num “Carocha” verde azeitona ou num Mercedes da mesma cor, entre quartéis e a sua residência. Bem tentou, pediu até a uma senhora de Oliveira de Azeméis que tinha trabalhado em casa de um general, mas, azar dele, a senhora tinha saído de lá zangada, quando ainda jovem, por lhe não ter aceitado uma proposta indecente.

Foi azarado o Simão, porque se tinha pouco jeito para aquela profissão, muito menos se imaginava a conduzir uma Berliet carregada de cerveja e sacos de arroz, em picadas cheias de buracos camuflados por água. Ao fim de seis meses de tropa estava já escalado para o pior sítio da guerra de África, ainda por cima obrigado a integrar colunas de reabastecimento, com um qualquer camião, a que havia de faltar sempre alguma peça, a transportar água e lenha das imediações do aquartelamento e outros serviços que lhe fossem atribuídos. Estava o Simão metido numa camisa de sete mangas, mas havia de se safar, o espertalhão.

De vez em quando, de propósito, quando ia à lenha, ali por perto, arranjava maneira de fazer de conta que não via e passava por cima da ponta aguda do pé de uma árvore e lá ia mais um pneu à vida. Também daria resultado arranhar a caixa de velocidades, de vez em quando, sempre que o Furriel Mecânico ou o Capitão estivessem por perto. Só por si estes argumentos não seriam suficientes para o Capitão o tirar da condução, mas iriam ajudar muito, poucos dias depois. O Simão tinha um plano bem urdido. Quando, antes do embarque, ainda em casa, a mulher lhe punha na mala, entre outras roupas, um casaco, ele disse-lhe, num riso forçado, antes da triste despedida:

"Tira daí, mulher, o casaco que lá só há calor de rachar e mete mas é, no lugar dele, a minha ferramenta de barbeiro, que para alguma coisa me há de servir."

Nas horas vagas ia cortando o cabelo a um ou dois por dia, daqueles seus amigos, que mais lhe não pagavam que uma simples cerveja. Longe de cogitar que o Simão montava a “oficina” propositadamente em sítio que o visse, o Capitão, apreciando-lhe a destreza com a máquina e a tesoura, logo quis tirar proveito da situação. Foi, pois, o que fez, no dia seguinte quando o mandou chamar ao seu gabinete:
- Então Simão, já que tem andado a cortar o cabelo a alguns militares, trabalho que vejo bem que já fazia na vida civil, vai, a partir de agora, ser o barbeiro da companhia.

O Simão não teria disfarçado o agrado daquela ordem emitida pelo seu Capitão, caso se tratasse de uma proposta susceptível de negociação. Agora uma ordem! Ele bem sabia que na tropa não havia a especialidade de barbeiro, logo, sendo ele condutor, só aceitaria esse encargo de tosquiar aquelas quase duas centenas de militares, se a ordem viesse condimentada com algo mais apelativo. Mas ele, a parte mais fraca, não havia, naquele dia, de recusar, definitivamente, obedecer à ordem do Capitão, ainda que ilegal. Por isso, só lhe disse, condoído, que lhe seria quase impossível acumular a função de condutor com a de barbeiro.
- Se o meu Capitão me arranjasse uma outra função, dentro do arame farpado, libertando-me da condução, seria mais fácil, assim vai ser quase impossível eu dar conta do recado, que são muitas cabeças!

Havia mais condutores do que viaturas na companhia, por isso, dois ou três deles tinham sido colocados noutros sectores onde o Capitão notava necessidade. Ainda nem um mês tinha decorrido desde a nossa chegada a Mampatá, o nosso homem, em conversa com o Ferraz, seu colega de especialidade, que trabalhava contrariado na cozinha, propôs-lhe a troca, para ambos benfazeja . Faltava agora essa permuta merecer o aval do Capitão, porque, quanto ao Furriel Mecânico esse estava morto por o ver pelas costas, acabando-se assim a sua permanente aflição sempre que o via pegar numa viatura.

Assim, havia condições para todas as partes saírem satisfeitas. Por isso, os dois condutores, depois de apresentada a pretensão ao Furriel Mecânico, Nina de seu nome, correram ao gabinete do Capitão para a celebração daquela permuta de geral consolação. Agora já podia tratar do cabelo e da barba de toda agente, liberto das viaturas, embora com a acumulação de ajudante de cozinha e cantineiro.

Estava como queria, o nosso barbeiro Simão. Apareceu por lá outro, um alentejano, que também cortava o cabelo a alguns, mas embora mais barateiro, era mais fraquinho. Bom mesmo, esse, era no mato, com a “bazooca”, arma da 2.ª Guerra Mundial que manejava com mestria.

Um barbeiro na tropa
O Simão era um espertalhão, mas tinha sentido de justiça e consciência de classe. Cada um dava-lhe de gorjeta o que quisesse, mas ele, mesmo não dispondo de tabela fixada na árvore onde encostava a cadeira, tinha na sua mente, o valor justo para cada posto, e rogava, por entre dentes, as maiores pragas ao alferes que lhe desse menos do que um furriel ou quando um destes lhe desse tanto como um soldado.

Terá beneficiado da influência das lavadeiras fulas que estabeleciam os preços pelos seus serviços de lavagem das nossas fardas em função dos nossos vencimentos? Julgo que sim, porque, na nossa cultura europeia, o preço de um bem é aferido pelo seu valor objectivo, independentemente do ordenado da pessoa que o adquire.

Era perito a pregar partidas e, num sítio onde era difícil encontrar um espelho, muito menos dois, como podíamos mirar a parte da nuca? Era aí que ele, às vezes, engenhava as suas maldades, deixando uma ou outra escada. A um, que veio de férias ao fim de dezasseis meses, desactualizado em relação à evolução da moda, fez-lhe um corte tão apalhaçado que até a namorada dele galhofou.

O Simão, no seu trabalho de cantineiro, passava a vida a servir cervejas, latas de coca-cola e whisky no bar comum aos oficiais e sargentos, onde comprávamos também tabaco, pilhas para o rádio e pouco mais. Tinha ainda um outro serviço que ele desempenhava com tanta habilidade como se estivesse a cortar cabelo. Por volta do meio dia, era sua atribuição, limpar a mesa, usada para algum jogo de sueca ou crapô, para agora nela ser servido o almoço ao Capitão e a mais três ou quatro Alferes. Não parava de sorrir o Simão enquanto, metodicamente, esticava as pontas da toalha e de seguida a enfeitava com pratos, copos e talheres que, um por um, abrilhantava com um paninho branco que trazia sempre consigo.

Depois vinha o melhor da peça, provavelmente o que lhe alimentava aquele permanente sorriso que se lhe não descolava do rosto magro e esbranquiçado, enquanto se ocupava daquele trabalho rotineiro de preparar a mesa e servir o almoço aos oficiais. Um deles, o Alferes Estuques, tinha embirrado com dois ou três militares, porque ao passar na árvore dos passarinhos, a nossa mítica árvore, a maior da tabanca, tinha-os repreendido por achar que os mesmos não o teriam cumprimentado de acordo com as normas rígidas da corporação militar. Ora, desse grupo de incumpridores fazia parte o Simão deste conto verdadeiro, que sorria enquanto pensava como havia de trambicar o exigente Estuques.

Para além de instalar a mesa para a refeição, ele tinha que trazer, da cozinha, uma travessa onde coubessem as quatro ou cinco refeições e competia-lhe servir o prato de cada um dos oficiais. Nos dias de massa ou arroz com rodelas de chouriço ou salsichas não tinha o Simão modo de prejudicar o Estuques, mas quando a nossa companhia comprava uma vaca, o sorriso do Simão era bem mais explícito, algumas vezes gargalhava até com os cozinheiros dentro da cozinha. Era lá que ele preparava, com a colaboração de um cozinheiro, a nicada. Trazia os bifes, de diferentes tamanhos, sobrepostos, mas na hora de servir os oficiais havia de arranjar maneira de o mais pequeno calhar sempre ao Estuques.

Aquilo já era de mais, ao ponto de o Alferes se queixar ao Capitão. Chamado à atenção sempre se defendeu o Simão que não o fazia por mal, que assim acontecia por mero acaso, mas que se iria esmerar, de futuro, de modo a que o Estuques não tivesse mais razão de queixa. O Simão havia de sair bem daquela situação, o Estuques é que continuou prejudicado, porque, em vez de lhe calhar o bife mais pequeno, ninguém sabe porquê, passou a ser para ele sempre o mais rijo.

Quando, na chegada a Lisboa, se despediram, por entre risos e abraços, o Estuques disse-lhe isto ou algo pior :
- Tu lixaste-me!

O Simão, senhor Aníbal da Costa Santos Simão, é hoje proprietário da Barbearia Barber Shop Elvis Museu, em Oliveira de Azeméis, onde continua a trabalhar, mas já não prega partidas aos clientes.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20902: 16 anos a blogar (4): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (1) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

Guiné 61/74 - P20911: Notas de leitura (1281): Conversa entre homólogos na Guiné-Bissau: uma história hilariante (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2017:

Queridos amigos,

Retive este episódio com enorme satisfação, atendendo a que foi escrito por um cavalheiro, disso estou seguro e também passo a contar a história.
O Ministro Valente de Oliveira, que tinha como Secretário de Estado do Ambiente o Engenheiro Carlos Pimenta, em 1977, deu-me indicação, através da sua Secretária, que me recebia no dia tal à hora X, no Terreiro do Paço. Carlos Pimenta já me advertira que propusera o meu nome para coordenador de um grupo interministerial de trabalho que tinha um nome pomposo: para combater a degradação ambiental visual.

Documentei-me, achei a tarefa aliciante, e no dia tal à hora X, um quarto de hora antes, subi aquelas escadarias medonhas e fui metido numa sala com jarrões chineses e uma mesa Luís XV. Escassos minutos depois da hora marcada, abre-se a porta e aparece o Ministro que me conduz afavelmente para o seu gabinete e me pergunta se quero chá ou café, ele próprio iria preparar. Olhei-o atónito, era a primeira vez que um ministro agia com tal deferência comigo. Discutimos qualidades de chá, abriram-se e fecharam-se caixas, escolhi um chá russo, o Ministro preparou as coisas, ao mesmo tempo ia conversando comigo sobre o que se esperava deste grupo interministerial de trabalho.

A tudo disse que sim, garanti-lhe que seis meses depois teria relatório, ele disse-me que já sabia que era adepto da prontidão. Houve mais cavaqueio, o Ministro levantou-se, abriu a porta e conduziu-me ao topo da escadaria, curvámos a cabeça, exprimi-lhe a minha satisfação em poder trabalhar com alguém com tais primores de caráter. O Ministro agradeceu. Fiquei seu admirador.

Mais tarde, mostrou-se apreciador do trabalho que tínhamos desenvolvido, uma equipa de luxo. Mas é assunto que não cabe aqui.

Um abraço do
Mário


Conversa entre homólogos na Guiné-Bissau: uma história hilariante

Beja Santos

Encontrei no livro “A Engenharia Militar na Guiné”, coordenado por Alberto da Maia e Costa, edição da Direção de Infraestruturas do Exército, Julho de 2014, de que já aqui se fez recensão,[1] um testemunho bem divertido assinado pelo Tenente Miliciano de Engenharia Luís Valente de Oliveira, que, como é de todos sabido, desempenhou por muitos anos cargos ministeriais.

Diz Valente de Oliveira que integrou a primeira Companhia de Engenharia que foi para a Guiné, a Companhia Mista de Engenharia n.º 447, em 1963.

A parte mais expressiva do trabalho que lhes coube teve a ver com a construção de quartéis de todo o tipo, mas também melhorias em instalações já existentes, a fortificação de unidades, e o abastecimento de água potável.

Estavam instalados no antigo aeródromo de Brá:

“Havia um hangar que servia para quase tudo, desde arrecadação de material a caserna. A messe dos oficiais era uma tenda de lona, e a messe dos sargentos era uma antiga construção de apoio à base aérea. Esperando-se a chegada de mais companhias, foi decidido começar a construir um novo quartel em Brá. Foi-me atribuída a coordenação de apoio a todo o setor Norte da Guiné e a construção dos aquartelamentos de Brá”.

Tudo se processou como abreviadamente se passa a contar. O Engenheiro Valente de Oliveira pediu ao Capitão Perry da Câmara que lhe enviasse livros respeitantes à construção em países tropicais húmidos, a necessidade de inventar e improvisar era enorme, como ele explica:

“A estrutura de base dos diversos pavilhões era metálica, pré-fabricada pela Mague e suscetível de um aproveitamento bastante elástico. Mas, tirando a cobertura tudo o resto teve que ser inventado, de preferência com recurso aos meios de que dispúnhamos no local: madeira e blocos de cimento usando laterite desagradada como inerte. As boas regras recomendavam que as construções fossem orientadas transversalmente às correntes de ar dominantes, que as fachadas ficassem à sombra, que se assegurasse uma ventilação permanente, a todos os níveis, que o pavimento fosse relativamente elevado em relação ao terreno circundante. Assim, fizemos, em toda a Guiné, dezenas de pavilhões para casernas ou refeitórios, para gabinetes ou enfermarias… Só os balneários e as arrecadações escapavam a estas regras estritas, os primeiros porque eram muito abertos, os segundos porque tinham, mesmo, de ser fechados. Todas as aberturas eram providas com rede mosquiteira”.

Eng.º Luís Valente de Oliveira
Agora vem a história contada com fino humor, como é timbre do Engenheiro Valente de Oliveira:

“Sucede que, passados 30 anos, exercendo eu funções governamentais, fui convidado pelo meu homólogo do Governo da Guiné para fazer uma visita oficial ao seu país. É costume eles chamarem-nos mesmo de homólogos: o homólogo quer café ou chá? O que dá um colorido especial às conversas.

Em Bissau não há muito para fazer, de modo que eu visitei praticamente todos os membros do governo, com quem mantive agradáveis trocas de impressões. Eu conhecia bem o território e tinha lido muito o que, sobre ele, haviam escrito personalidades ilustres como o Almirante Sarmento Rodrigues, os Comandantes Teixeira da Mota e Peixoto Correia, António Carreira e alguns outros. Isso permitia que a conversa fosse viva e lhes interessasse, nunca nenhum deles tendo perguntado porque é que eu estava tão bem informado acerca dos problemas da Guiné. Ou achavam que eu me tinha preparado para a visita ou, então, que era natural que os portugueses soubessem bastante acerca do seu país.

Assim, desde o Primeiro-Ministro e do Ministro dos Negócios Estrangeiros, sempre acompanhado do meu homólogo, visitei cerca de uma dezena de membros do Governo.

Em determinada altura, fomos ver o ministro das Obras Públicas. Qual não é o meu espanto quando verifiquei que o ministério estava instalado no antigo Quartel de Engenharia e que o gabinete do Ministro era um dos espaços onde eu e os outros camaradas tínhamos tido as nossas secretárias.
Verifiquei que as aberturas guarnecidas com persianas que asseguravam a ventilação tinham sido tapadas para encaixar um aparelho de ar-condicionado que não trabalhava. O calor era insuportável mesmo tendo-nos posto em mangas de camisa. Falámos um pouco de tudo, nomeadamente das estradas que estavam em reparação ou construção, das pontes projetadas e dos barcos que ainda asseguravam a passagem dos rios em certos pontos que eu bem conhecia. Em fim de conversa desabafei: 'Senhor Ministro! O seu gabinete é muito quente!'...Logo veio a resposta esperada: ‘Montou-se o ar-condicionado mas ele avariou, não havendo ninguém na Guiné que o saiba reparar, de modo que eu sofro este calor que não abranda, mesmo com a porta do gabinete aberta!’.

Vi que todas as aberturas que asseguravam a ventilação transversal do edifício tinham sido cuidadosamente tapadas com argamassa, tendo permanecido, contudo, os elementos de madeiras originais.

Cuidadosamente perguntei-lhe se ele não tinha pensado em voltar a assegurar o funcionamento original do edifício retirando o aparelho avariado e a argamassa, aliás posta sem grande cuidado. Olhou para mim intrigado: ‘Acha que melhora?’. ‘Tenho a certeza’, foi a resposta. ‘Como é que sabe?’. ‘Foi eu que fiz!’.

Nunca esquecerei a cara do ilustre ministro. Esbugalhou os olhos e, como sucede frequentemente em África, tudo acabou com uma enorme gargalhada e um grande abraço de amigos para sempre".

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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 16 DE MARÇO DE 2020 > Guiné 61/74 - P20740: Notas de leitura (1273): “A Engenharia Militar na Guiné, O Batalhão de Engenharia”, Exército, Direção de Infraestruturas, Julho de 2014 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20880: Notas de leitura (1280): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20910: Agenda cultural (747): "Voando sobre um ninho de Strelas", de António Martins de Matos: 2ª edição, revista e aumentada (Lisboa, Sítio do Livro, 2020, 456 pp.)


Capa e contracapa da livro do António Martins de Matos, agora em 2ª edição


1.  Mensagem de António Martins de Matos [, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74; ten gen pilav ref António Martins de Matos, membro da nossa Tabanca Grande (desde 2008, com uma centena de referências no nosso blogue), autor do livro de memórias "Voando sobre um Ninho de Strelas" (1ª edição, Lisboa: BooksFactory, 2018, 375.pp.)] [, foto atual à esquerda]:
 
Sata: 12/3/2020

Assunto: Livro "Voando sobre um ninho de STRELAs", 2^edição

Caro amigo

A 2ª edição do meu “Voando sobre um ninho de STRELAs” acabou de ser publicada.

Uma nova Editora, dois novos capítulos e outros dois anexos, 456 páginas.

Está desde hoje à venda no site da nova Editora, “ O Sitio do Livro”, “Edições Exlibris” e igualmente no ´”Pássaro de Ferro”

Cumprimentos

AMM

2. Sinopse:

"Voando sobre um ninho de STRELAs é acima de tudo uma carta de amor dirigida a todos os militares mortos em combate no Ultramar, bem como a todos os pilotos-aviadores da Força Aérea Portuguesa: aos que voaram pelos mesmos céus a evitar os mísseis Strela; aos que voam hoje em missões-patrulha da NATO, espalhados pelo mundo inteiro; e aos futuros “periquitos” que, talvez ingenuamente, ainda sonham com o interior de um avião de combate."

Clicr aqui para ver ou adquirir o livro e conhecer o seu autor: www.sitiodolivro.pt/Voando-sobre-um-ninho-de-STRELAs

Guiné 61/74 – P20909 Memórias de Gabú (José Saúde) (92): “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Memórias de Gabu (Antiga Nova Lamego)

“Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” 

Camaradas,

Neste constante deambular pelas escarpas da vida, sendo que a minha existência terrena é já credora de uma basta longevidade, encontro-me barricado numa trincheira avançada onde o silêncio impera por via de um inimigo invisível – Covid-19 – que traz incertezas quanto ao futuro e, sobretudo, pavor pela pandemia que por ora nos coube em sorte e que se alastra mundialmente.

Camaradas, fomos antigos combatentes na Guiné, permanecemos entrincheirados nos mais diversos pontos territoriais guineenses por culpa de um conflito armado, conhecemos situações caóticas, vivemos momentos de dor, de angústia, enfim, um rol de condições que nós, combatentes viventes, ainda usufruímos em contar.

Nesta minha última obra inseri um texto em que procurei conhecer um pouco da razão existencial sobre Gabu e da sua etnia fula que por lá prolifera. A pesquisa efetuada veio também ao encontro de um facto que sabia, isto é, a minoria mandiga por lá existente.

Deixo-vos, pois, com mais uma pequena leitura para que possamos “matar” o tempo num tempo que pressupõem uma desejada tranquilidade.
   


 Antiga Nova Lamego - Lavadeira fula

Denominada como Nova Lamego, sobretudo ao longo da guerra colonial, Gabu é uma região cujas fronteiras confinam a norte com o Senegal, a leste e a sul com as regiões de Tombali e a oeste com Bafatá. 

Recorrendo a dados históricos contemplados na Wikipédia, enciclopédia livre, Gabu foi a capital do Império Kaabu, um reino Mandinga que existiu entre os anos de 1537 e 1867 e que se chamava Senegâmbia. Antes, tinha sido uma província do Império Mali. No século XIX a etnia fula impôs a sua supremacia na região e colocou ponto final no domínio de Kaabu.

Gabu é, igualmente, a pátria do chão fula (79,6%), existindo ainda a etnia mandiga (14,2%) que se espalha por toda a zona mas numa menor escala. Foi-me dado a oportunidade em conhecer alguns dos princípios éticos de uma população que prima pela honra de uma herança que assumem como um indeclinável direito.

No plano territorial Gabu possui uma área de 9.150 kms2 e tinha no ano de 2004 uma população que se estimava em 178.318 almas, sendo, por isso, considerada uma das maiores, senão a maior, das regiões do país.

Introduzo como credível uma nota de rodapé que após a independência do país Gabu recuperou o seu nome tradicional existindo, atualmente, um pequeno núcleo urbano de inspiração colonial.

Detentora de clima tropical, quente e húmido, a região de Gabu é composta por uma população em que a doutrina praticada aponta como alvo principal a religião muçulmana (77,1%).

As temperaturas rondam normalmente os 30/33 graus durante o dia e os 18/23 à noite. As estações anuais definem-se como as das chuvas que vai de maio a novembro e a de seca de dezembro a abril. Dezembro e janeiro são considerados os mais frescos. Por outro lado a economia assenta no comércio, agricultura e pecuária.

Os usos e costumes das gentes de Gabu derrapam para primórdios éticos onde é visível uma hierarquia humana que não abdica do erário transmitido de gerações para gerações.

Redijo este tema sobre um “estágio” obrigatório nessa zona e na qual me foi proporcionado observar algo mais ao longo da minha comissão em solo guineense, embora encurtada devido à Revolução de Abril de 1974, uma vez que fui um dos cerca de 45 mil militares dos três ramos das Forças Armadas – Exército, Força Aérea e Marinha – quando por lá prestava serviço. Conheci, portanto, a guerra e a paz e um pouco das vivências tradicionais das suas gentes.

Aliás, num trivial conhecimento com os nativos que muito me estimulou, pessoas simples que viviam no interior de um adensado mato e entre as duas frentes da guerra, usufrui da possibilidade em conhecer alguns dos seus expeditos hábitos, assim como as memórias que nós combatentes incessantemente recordaremos.

Vamos pois ao encontro de conteúdos passados em pleno palco da guerrilha.

Um abraço, camaradas.
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523


Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. também o último poste do autor em: 

Guiné 61/74 - P20908: Parabéns a você (1793): Cor Inf DFA Ref Hugo Guerra, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 55 (Guiné, 1968/70) e Humberto Nunes, ex-Alf Mil Art, CMDT do 23.º Pel Art (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de de 24 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20894: Parabéns a você (1792): David Guimarães, ex-Fur Mil Art MA da CART 2716 (Guiné, 1970/72)