quinta-feira, 16 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20862: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (2): Em Teixeira Pinto, um pintor/maqueiro ou um maqueiro/pintor

1. Em mensagem do dia 9 de Abril de 2020, o nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70), enviou-nos parte das suas memórias, que esperamos tenham seguimento. Publicamos agora a segunda parte.

TEIXEIRA PINTO

Não bastava o serviço que ia fazendo e isto ainda nos primeiros meses de Guiné, quando numa formatura o Capitão Queiroz, Comandante da CCS, perguntou quem era pintor na vida civil mas, ninguém respondeu. Assim deu meia volta, entrou na Secretaria e 5 minutos depois voltou e chamou meu nome.

Como começou na letra A, foi fácil saber que eu era pintor fora da guerra e então dispensou-me de formaturas para eu ir pintar a Cantina da Companhia.~

Deu-me 4 latas de 5 litros de tinta com as cores vermelho, preto, branco e amarelo, e pôs o carpinteiro a fazer mesas e cadeiras dos barris do vinho, a que eu tinha de queimar a cera para que a tinta agarrasse.

Pintei mesas e cadeiras, pintei paredes e emblemas, como o das Panhards, o da CCS, Batalhão e mapa de Portugal. Uma das paredes era reservada a cada um que quisesse escrever o nome de sua terra em troca de umas moedas para umas "bazucas", cerveja.  No Mapa de Portugal havia apenas cores das Províncias e um pontinho em cada Cidade mas sem nome, que da mesma forma só com uns Pesos na lata era escrito o nome da Cidade. Lembro que o primeiro a querer colocar o nome era um Major de seu nome Guilhermino Nogueira Rocha, mas que aguardou que toda a malta de Lisboa lá colocassem também os Pesos.

Assim nesse sistema o mapa foi cheio não só das Cidades mas também de Vilas.

Numa das paredes e já depois de tropa estar a dormir, escrevi, Sala Tenente Coronel Aristides Pinheiro, que com a Bandeira Portuguesa foi tapado para o dia da inauguração da Cantina.

Chegou o dia e à noite, por volta das 21h00, concentraram-se os Oficiais, Sargentos e a tropa da CCS e não só, pois também alguns civis marcaram presença bem como o Major Guilhermino Rocha, e então o Comandante, Aristides Pinheiro, fez a inauguração da Cantina com o seu nome. Houve festa da boa pois tinham vindo de Jolmete para o efeito alguns militares da companhia 2366 com concertinas, viola e bombos, tornando a festa mais linda. O mal foi a partir dali.

O Major, a quem chamávamos o V..., cheio de inveja por não ser o seu nome na Cantina e ser do Comandante, começou a passar por mim e ameaçar-me com uma porrada, até que um dia mandou o seu condutor procurar-me no Quartel para ir ter com ele. Não fui, mas no dia seguinte ameaçou o condutor com uma porrada se não me levasse. Estava eu a sair da Casa do Médico , o “Dr. Maymone”,  às nove da manhã quando o condutor parou o Jeep e disse-me para eu entrar e que arranjasse desculpa para o Major porque ele estava como uma fera e prometia porrada. Então entrei no Jeep, e logo tirei a boina da cabeça, desabotoei a camisa e pus a fralda de fora.

Ao chegar ao Comando, o homem em grande gritaria contra mim, perguntou-me se era forma de me apresentar a um Comandante, e onde tinha estado no dia anterior que ninguém me viu no Quartel. Respondi que tinha estado de Guarda ao Fortim, o que era mentira. Então disse-me ele:
- Quero-te aqui à uma hora para começares a pintar o Bar dos Senhores Oficiais.

Ao que eu respondi que não era pintor mas sim do Serviço de Saúde. Resposta dele:
 - Não quero saber, e à uma hora aqui, e não és dispensado de qualquer serviço.

Chamou o rapaz que estava no Bar e disse-lhe que,  enquanto eu estivesse ali a pintar, para não me levar dinheiro daquilo que eu quisesse do Bar.

Apareci para o trabalho às duas da tarde e não à uma como ele tinha dito. Ele estava à minha espera e disse-me:
- Eu não te mandei estar aqui à uma hora?

Minha resposta foi que tinha estado à uma hora mas tinha o maçarico entupido e tive de ir à oficina auto desentupir, por isso cheguei mais tarde.

Então disse ele que ia perguntar ao Sargento Mecânico se eu tinha ido lá com o maçarico e também ia à Secretaria saber se eu tinha estado de serviço e foi mesmo mas eu já tinha falado com o 1.º Sargento e com o Mecânico para eles confirmarem.

Normalmente aquele trabalho era para uma semana, mas levou um mês, já que como não pagava nada no Bar, era só desenfiar tabaco e cerveja para o pessoal do Serviço de Saúde e para mim.


Num belo dia o tal Major foi dar uma volta numa motorizada de um Fuza, e ao chegar ao fundo da Avenida caiu e esfarrapou-se todo. Telefonou o médico para a Enfermaria e lá tive eu de lhe ir fazer o curativo durante 5 dias.

Mais tarde apanhou o paludismo e eram 2 horas da noite, telefonou o médico para ir medicá-lo com urgência que estava com paludismo. Chamei o Maqueiro de serviço e, como era urgente, o rapaz nem se fardou como devia levando nos pés uns chinelos, sem boina. Foi, bateu à porta e o Major manda entrar mas ao ver que ele não estava fardado em condições, insultou-o de tudo e ameaçou-o com uma porrada. Isso de porrada era o seu forte em oferecer. O Maqueiro chegou à Enfermaria todo furioso porque o Major o insultou, sinal de que não estava assim tão mal como o médico tinha dito.

Peguei eu no estojo com seringa e agulha e lá fui em tronco nu sem nada na cabeça. Bati à porta e logo me mandou entrar. Ao olhar para mim, num forte grito disse:
 - Ó pá,  tu és enfermeiro ou pintor? Entra.

Entrei e disse-lhe que era pintor na vida civil e Maqueiro na guerra. Então preparei uma injeção que tomou nas veias e logo outra de Hidromicina Forte, intramuscular. Tinha dado as injeções e diz ele:
- Então não me dás mais a injeção?

Respondi dizendo que a próxima seria no dia seguinte. Então diz ele:
- Ó pá tanta vez te ofereci porradas e tu ias apanhá-las e não dizias nada.

Eu respondi:
- Meu Major eu conhecia bem seu feitio e sabia que nunca me ia castigar porque nunca fiz mal a ninguém e cumpria tudo direitinho como na Recruta me haviam ensinado. Por outro lado, saiba o meu Major que sou voluntário aqui na Guerra.

Diz ele:
- Voluntário?
- Sim meu Major. Eu tinha estado em Angola e quando começaram os massacres perto de mim, lá no Norte, concretamente no Quitexe, eu tive de vir embora, mandado pelo Administrador, pela idade que eu tinha, 14 anos. Depois, cá, para não ir para a tropa porque iria parar ao Ultramar, fugi para França de assalto. Ao fim de um ano tive de ir ao Consolado de Portugal em Lyon e perguntei ao Cônsul até que idade tinha de estar em França para não ir para a tropa, ao que ele respondeu que só a partir dos 40 anos podia regressar a Portugal. Não esperei mais e fiz o passaporte de regresso a Portugal e vim para a tropa. Por isso considero-me voluntário.

Então o Major bateu-me nas costas e disse:
- Fizeste bem, rapaz. Daqui a pouco tempo vamos embora e és um homem livre. Não conhecia tua história e coragem. Agora quero que sejas tu a vir dar-me as injeções que faltam porque não quero outro.

A partir dali era dos melhores amigos que eu tinha, e tanto assim que todos os meses mandava o impedido dele vir entregar-me um envelope com 100 Pesos dentro. Eu dizia cá para mim, que pena não ter sido mais cedo…

Em Teixeira Pinto e arredores não havia ninguém que gostasse dele e até chegou o General Spínola a ir a Teixeira Pinto falar-lhe e ameaçá-lo com um castigo, o que veio mesmo a acontecer, pois mandou-o para o Cacheu.

Foi numa das escoltas, e para nosso espanto, num belo dia, ao inicio da tarde, apareceu de Jeep sozinho em Teixeira Pinto, regressando na mesma sozinho até ao Cacheu. Ficávamos espantados porque não fossem os bombardeiros ou o heli canhão levávamos porrada. Como era possível ele fazer aquilo sozinho?

Estas são memorias minhas mas que há muito mais para contar.

Albino Silva,
Sol. Maq. 011004/67
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Nota do editor

Poste anterior de 14 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20856: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (1): Mobilizado para a Guiné, destino: Teixeira Pinto

Guiné 61/74 - P20861: (De)Caras (153): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte II (Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)


Guiné > Região de Gabu > Pirada > 1973 > "Foto tirada por mim, é de Pirada, mostra a distância entre o aquartelamento e o marco da fronteira [, com o Senegal]".

Foto (e legenda): © António Martins de Matos (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Pirada > 2018 >  Antiga casa do comerciante Mário Soares


Guiné-Bissau  > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Rua principal:  à esquerda, a antiga casa do comerciante Mário Soares (que viveu na Guiné até novembro de 1975).


Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada >   2018 > Antiga delegação local da PIDE/DGS, e hoje esquadra local da polícia de segurança pública.


Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada >   2018 > Ruínas da casa do Sr. Palha, um antigo comerciante que ficou na memória local como um homem "muito bondoso". Do outro lado da rua, em frente, ficava a casa do Mário Soares.


Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada >   2018 > Sem legenda


Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada >   2018 > Sem legenda: parece ser a rua principal

Fotos: cortesia da página do Facebook Pirada Guiné-Bissau (2018). Editadas pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


Mário Soares > Pirada > 14/2/1974.

Foto: António Rodrigues (2015)
1. Quem foi  Mário Soares, o  comerciante de Pirada,  de seu nome completo Mário  Rodrigues Soares, que muitos de nós, que passsaram pelo leste da Guiné,  conheceram, ou ouviram falar ele, ao longo da guerra ?  (*)

Conviveu com vários camaradas nossos,  a começar pelos veteranos, o alf mil António [de Figueiredo] Pinto (BCAÇ 506 e 512, 1963/1965), o alf mil médico Luiz Goes (BCAÇ 506, Bafatá, 1963/65) (**), e Carlos Geraldes, em (CART 674, 1964/66), os dois últimos já falecidos. (O António Pinto vive em Vila do Conde.)

Dizia-se que o Mário Rodrigues Soares (, mais conhecido por Mário Soares,)  tinha "relações privilegiadas" com os dois lados do conflito, as NT e o PAIGC. Dizia-se inclusive quer era um "agente duplo", trabalhando tanto para a PIDE/DGS como para o PAIGC.

Ora, não temos provas disso. Está em causa a sua honra (ou a sua memória, no caso de já ter morrido, como será muito provável).

Temos que ser cautelosos, não fazer juízos apressados (ou nem seqiuer fazer juizos, como mandam as boas regras do nosso blogue!)  sobre o comportamento dos comerciantes portugueses e outros (libaneses, cabo-verdianos...) que ficaram no mato, apesar da guerra. Afinal, a guerra foi também uma oportunidade de negócio(s). O exército passou a ser o maior empregador no mato, para a população civil, das lavadeiras aos milícias, dos camionistas aos jovens em idade militar...

Em boa verdade, a tropa tinha tendência para pôr em causa a "lealdade" dos comerciantes, colocados numa posição difícil no interior da Guiné. O alf mil Carlos Geraldes que conviveu estreitamente com ele (e com a sua família), em Pirada, nos anos de 1964/66, escreveu que ele era era um "velha raposa" que, na situação em que se estava, sabia "estar de bem com Deus e o Diabo".

O seu nome  é referido, de facto,  com muita frequência nas cartas que o Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66) mandava para casa, e de que foi publicada uma seleção no nosso blogue, em 2009.

O Carlos Geraldes conheceu o Mário Rodrigues Soares quando a sua companhia, a CART 676, chegou a Pirada, em 15 de outubro de 1964, vinda de Bissau (via Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego). Tornar-se-iam amigos. O Carlos passa a ser visita frequente da sua casa. E descreve-o logo nestes termos:

 "É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta." (Pirada, 15/10/1964).

 E defendo-o das suspeitas de colaborar com o IN:

(...) "É o nosso Anjo da Guarda. Todos os dias manda cá o criado dele, o Demba, com uma garrafa de água filtrada e um termos com cubos de gelo, para que nunca nos falte água fresca no quarto. É um indivíduo que, mesmo aqui, longe da nossa civilização, não descura todos os pormenores de conforto para criar à sua volta um ambiente requintado e de um bom gosto que se julgaria inacreditável encontrar por estas paragens. (Pirada, 15 de outubro de 1964).

(...) "O M. Santos, como sempre, faz questão em receber-me para jantar, o que eu nem me atrevo a recusar, tão maravilhosos são os jantares em casa dele." (Pirada, 8 de fevereiro de 1965)

(...) O ataque  [, a Pirada, em 28 de maio de 1965,] já era esperado, pois o M. Santos, como sempre, tinha sabido da coisa com alguma antecedência e correu a informar o Capitão (...). (Pirada, 13 de junho de 1965)

O Mário Soares era um "lisboeta de gema, recém incluído nestas guerras por ter tido dificuldades financeiras na Metrópole, segundo se consta" (Pirada, 8 de fevereiro de 1965). O Carlos também era lisboeta, se bem que levado, aos 4 anos, para Viana do Castelo onde pai trabalhou, como desenhador técnico, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.

Do Mário Soares sabe-se que tinha bons contactos no Senegal. E que desempenhou o seu papel na história da indepência da Guiné-Bissau. Foi através dele que o gabinete do Governador António Spínola consegiu chegar ao Leopoldo Senghor (como se depreende de um histórico depoimento do embaixador Nunes Barata, ex-alf mil, na altura, chefe de  gabinete, a partir de maio de 1971,  do general  Spínola; certamente por lapso, chama-lhe António Mário Soares. (*).

Não sei o que é feito dele, o cometrciante de Pirada, é provável que já não esteja entre o número dos vivos. Em 1974 já teria cerca de 40 e tal anos, a avaliar pelas poucas fotos que temos com ele (*).

Sabemos, pelo Carlos Geraldes, que em 1964/65, era casado, tinha duas filhas e um filho e era natural de Lisboa. Luísa era o nome da esposa. A filha mais velha chamava-se Rosa, o filho do meio era José (e estudava em Lisboa) e a mais nova, Eva Lúcia, tinha nascido em 11/9/1957.

Segundo a historiadora Maria José Tístar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o comerciante Mário Soares, estabelecido em Pirada, na fronteira com o Senegal, seria  um "agente duplo": informador da PIDE/DGS, e ao mesmo tempo informador do PAIGC.

Contrariamente ao Rodrigo Rendeiro, comerciante de Bambadinca (, também "grande amigo" da tropa local), que terá tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua ligação à PIDE/DGS, o Mário Soares decidiu ficar  na Guiné independente... Mas rapidamente terá "caído em desgraça" e sido expulso do país, no tempo do Luís Cabral, um ano e picos depois, em novembro de 1975. (*)

Quanto à  CART 676,  foi mobilizada pelo RAP 2, partiu para o CTIG em 8/5/1964 e regressou a 27/4/1966. Esteve em Bissau, Pirada e Bissau. Comandante: cap art Álvaro Santos Carvalho Seco (, comandante da EPA - Escola Prática de Artilharia, enre 1978 e 1980).

2. Pergunta-se: alguém mais se lembra dele, do Mário Rodrigues Soares ? Alguém mais tem fotos e histórias dele ?

Estamos a reler as cartas do Carlos Geraldes, que nos ajudam a perceber melhor a personalidade e o comportamento deste comerciante português, "bon vivant", hospitaleiro, insinuante, amável, generoso, prestável, com um vasto capital de relações sociais, a nível interno e até externo (com as autoridades e os comerciantes do outro lado da fronteira, no Senegal).

Nesta II parte, continuamos a publicar excertos, selecionados,  das cartas remetidas para a família, no período de abril a setembro de 1965, e em que o Carlos faz referências ao seu "amigo M. Santos [leia-se: Soares]"


3. Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66), que se tornou amigo do comerciante de Pirada, Mário Soares e visita frequente da sua casa...

Reprodução de excertos das suas cartas com referência explícitas ao Mário Soares [, ou M. Santos]:


Parte II (abril de 1965 - setembro de 1965) (*****)


Pirada, 11  de abril de 1965


O M. Santos [Mário Soares] zangou-se com a tropa!

É o caso mais falado por estas bandas e a história foi a seguinte: como precisávamos de um frigorífico para a cantina que estamos a fazer, o 1.º Sargento falou nisso ao M. Santos e este prontificou-se logo a mandar vir um do Senegal, onde conhecia uma pessoa que tinha um e o queria vender. Adiantou, no entanto, que custaria 12 contos [se fossem escudos da metrópole equivaeriam hoje a 4.717,50 €, mas é preciso ter em conta os 10% de cambial: 100 "pesos" da Guiné valiam 90 escudos na metrópole.]  O 1.º Sargento respondeu que o mandasse vir, para se ver e, depois, discutir o preço.

Resultado: veio o frigorífico e verificou-se que nem 6 contos de réis, valia. Ao fim de uma semana não tinha sequer conseguido fabricar uma única pedra de gelo.

O 1.º sargento falou no caso ao Capitão e decidiram dizer ao M. Santos que não queriam o frigorífico.
Aí é que este ficou que nem uma barata, alegando que já se tinha comprometido com o vendedor a ficar com o referido aparelho, etc., etc.

Desde então (e já se passaram 3 ou 4 dias), todas as noites a porta do quintal da casa do M. Santos que dá para a esplanada, onde habitualmente íamos, eu e o doutor, depois do jantar, tomar o nosso cafezinho e conversar um bocado, encontra-se fechada. Ultimamente, alguns sargentos também se faziam de convidados e creio que foi também por isso que o nosso amigo fechou a porta em sinal de desagrado.

Pessoalmente comigo não existe nada e, tanto ele como a família continuam a tratar-me bem. Eu, que já conheço o feitio dele, finjo que não sei de nada.

Anda um bocado amuado mas aquilo passa-lhe.


Pirada, 18 de abril de 1965

Hoje foi dia de Páscoa. Dia que não tem grande significado para mim mas que serviu de pretexto para nos reunirmos e fazermos uma pequena festa.

O M. Santos já esqueceu a zanga com a tropa e ontem à noite estivemos em casa dele a comer e a beber.

O [alferes] Castro esteve cá, assim como o Gabriel, aquele meu companheiro de Bajocunda, que ficou também para o jantar.

Os soldados divertiram-se à maneira deles, vestindo-se à Fula e a Páscoa aqui em Pirada redundou num autêntico Carnaval.

Até eu me mascarei de Fula!

(O interregno entre esta carta e a seguinte explica-se por em Maio ter vindo à Metrópole, gozar um mês de férias e efectuar o meu primeiro casamento)


Pirada, 13 de junho de 1965


(..) Assim que aparecemos em Pirada [, de regresso de férias], nem queiram saber a festa que me fizeram!

Ainda o jeep não tinha estacionado já toda a gente me vinha cumprimentar. Depois fui apresentar-me ao Capitão que estava bastante doente com disenteria. Em rápidas palavras contei-lhe como tinha passado as férias. (Afinal, sempre receberam os meus postais!).

Em seguida tive de ir visitar, é claro, o M. Santos para lhe entregar as lembranças que trouxe. A D. Luísa ficou contentíssima com a toalha regional, e o galo de Barcelos conseguiu chegar intacto. 

Agora têm cá mais um filho que estava a estudar em Lisboa e que, pelos vistos, não se portou lá muito bem este ano. Chama-se José e tem mais idade que a Eva Lúcia, a mais nova (que ainda não vi; está em Bafatá) e menos que a Rosa, a filha mais velha.

À noite jantei em casa deles e foi uma longa conversa sobre o mundo maravilhoso da metrópole. (...)

Mas cá por Pirada, entretanto, também aconteceram muitas outras coisas durante o mês de Maio (...)

O Capitão quer agora que a tabanca de Velingará Pinto Silva, a tal aldeia estratégica, passe a ser um novo destacamento e tinha mandado para lá o Alferes Carvalho passar 15 dias. Seguidamente calhava a vez ao alferes Cardoso (pois eu estava ainda de férias), mas como havia notícias de um possível ataque do IN àquela zona, este encheu-se tanto de medo que fez todos os possíveis para adiar a ida para lá, esperando que eu, quando chegasse, o substituísse. A cobardia evidenciada por ele foi de tal maneira irresponsável que o Capitão decidiu mesmo obrigá-lo a ir à força.

Sem mais hipóteses de fuga, acabou por ir suplicar ao M. Santos, quase de joelhos, para que o informasse com a máxima prioridade, sempre que soubesse de qualquer novidade sobre as intenções do IN que dissessem respeito àquela tabanca, por mais insignificantes que lhe pudessem parecer. Assim poderia precaver-se o melhor possível.

[Nota do editor: Os nomes dos camaradas europeus são fíctícios, por razões de privacidade, segundo o autor das cartas que foram publicadas no blogue...]

Até hoje e já lá está há 12 dias, só 5 é que os passou completamente com os soldados no próprio destacamento. No resto do tempo, [, o alferes Cardoso]  vai sempre para Paunca almoçar e jantar (pois fica perto) e já adoeceu várias vezes para poder vir para Pirada ao médico. Tem procedido de maneira tão escandalosa que todos o ridicularizam.

Mas ainda fez mais! Na passada segunda-feira foi a Bafatá sem dar conhecimento a ninguém, falar com o Coronel, Comandante-Chefe desta zona,  e, entre outras coisas, como para justificar o inusitado da visita, caluniou o M. Santos, acusando-o de ser um agente duplo. (...)

Estupidamente, no dia seguinte, ao almoçar em Paúnca, gabou-se do facto e, não tardou nada que isso não chegasse aos ouvidos do visado.

M. Santos, indignadíssimo, exigiu um imediato pedido de desculpas e um completo desmentido desta situação. Queria mesmo ir a Bafatá falar com o Coronel.

O Capitão mandou logo chamar o Cardoso para esclarecer tamanha borrada e justificar aquela ida a Bafatá sem a devida autorização.

Quando o Cardoso chegou fez-se de mil cores, ficando a tremer como varas verdes. Começando por negar tudo, acabou por confessar. Por ordem do Capitão foi de imediato pedir desculpas ao M. Santos.

Este disse-me que de facto ele tinha ido a sua casa, a chorar, pedindo-lhe que o perdoasse e que não dissesse nada para Bafatá, pois decerto acabaria por ser castigado e talvez impedido de ir de férias em Julho próximo. O M. Santos, coração de manteiga, lá se comoveu, mas não deixou de lhe pregar uma valente descompostura.

Acabada essa cena, o Cardoso regressou novamente à Messe, onde eu, o Carvalho o alferes médico Cláudio, que está cá para substituir o nosso que foi de férias, aguardávamos o desenrolar dos acontecimentos.

Sem querer dar o braço a torcer continuou a disparatar em todas as direcções, acusando inclusivamente, o nosso próprio médico (o ausente) de o ter denunciado ao M. Santos o que de facto até era uma tremenda mentira. Gerou-se logo ali uma acesa discussão e o Cláudio que, não é nada macio, queria mesmo obrigá-lo a ir novamente à presença do M. Santos para esclarecer definitivamente o assunto. E tanto insistiu que o Cardoso, atarantado, fez menção de se levantar e puxar pela pistola Parabelum que traz sempre à cinta, num arremedo ridículo de autoridade. Deu-se logo ali uma caricata cena de pancadaria. Eu, na confusão, consegui desarmar o Cardoso que se atirou para o chão, inanimado como um saco de batatas.

Quando o fizemos vir a si, deixou-se ficar, sentado no chão, a chorar como um bebé. Ao fim e ao cabo, ficámos todos com pena dele, pois ele apenas tinha conseguido demonstrar que não passava de um pobre diabo desorientado sem saber o que fazer para sobreviver a esta vida. Cláudio, o médico, acabou por lhe administrar uma injecção calmante que o fez ficar a dormir o resto do dia na cama do capitão.

Mais tarde veio pedir desculpas a todos, especialmente a mim, dizendo-me que eu era o seu primeiro e único amigo, que eu era a pessoa que melhor o compreendia, etc.

Jantámos em sossego e esquecemos completamente o caso. Hoje de manhã lá partiu novamente para o destacamento de Velingará Pinto Silva todo encolhido no assento do jeep.

Em parte, talvez seja eu, de facto, quem melhor o compreende e quem tenha a coragem de lhe dizer as coisas mais duras. Mas foi tudo causado pela sua infame e nevrótica cobardia que mexe com os nervos de todos nós.

Parece que, para se reabilitar, decidiu ficar no destacamento até às vésperas de embarcar para férias. Depois calha-me a mim ir para lá que, vai ser um consolo. (...)

No passado dia 28 de maio [de 1965], um numeroso grupo de guerrilheiros invadiu Pirada e atacou o quartel, sem no entanto causar qualquer baixa e causar danos de maior. Apenas queimou algumas palhotas da periferia, num acto intimidatório.

O ataque já era esperado, pois o M. Santos, como sempre, tinha sabido da coisa com alguma antecedência e correu a informar o Capitão que, prontamente se barricou no quartel e aguardou os acontecimentos, enviando, no entanto, um Pelotão (o do Carvalho) para os lados da bolanha com o intuito de montar uma emboscada ao grupo que viria fazer o ataque, mas como já era de noite, o sonso do Carvalho fez-se de mula e preferiu entrincheirar-se o melhor possível e deixar correr o marfim.

Nem chegou a ver o IN, que andou pela povoação completamente à vontade a fazer fogo para o quartel, abrigado até debaixo do alpendre da casa do M. Santos.

No entanto, não tocaram em qualquer das casas comerciais, respeitando um hipotético e provável acordo de cavalheiros, pois quando necessitam, também sabem recorrer, secretamente, a estas fontes irregulares de abastecimentos, e o M. Santos, como velha raposa que é, sabe que na actual situação é sempre útil estar de bem com Deus e o Diabo.

Foi por isso que achou que aquela tola tentativa do Cardoso de o intrigar junto do governo militar foi uma palermice de todo o tamanho que, além de ser perigosa para ele próprio, era também prejudicial para os interesses de todos nós, pois assim poderíamos vir a perder uma importante fonte de informação sobre os movimentos do IN na região. Mas como, com esta malta da tropa, nunca se sabe, achou que evidentemente o melhor seria mostrar bem alto a sua indignação para que ficasse devidamente registada.

Voltando à vaca fria, nesta guerra, como se pode ver mais uma vez, tive sorte. Pois foram logo escolher o dia do ataque para quando estava de férias. Parece que eles ainda pensaram em voltar, mas viemos a saber depois que tinham resolvido ir atacar outra zona que, se calhar, lhes seria mais favorável. Entretanto a população regressou e tudo voltou à normalidade.

O Presidente do Senegal (Senghor) enviou para esta região membros da guarda republicana senegalesa para correr com todos os grupos armados que circulam por aqui e que já o estavam a inquietar, de maneira que hoje de manhã tivemos a inevitável confraternização, mesmo sobre a linha de fronteira.

Confraternização essa que levámos a efeito em regime estritamente confidencial, pois mais ninguém deveria saber, para não se armarem as habituais confusões junto do poder central. De um lado, eu, o Capitão, o alferes Carvalho, e o alferes médico representando a tropa. O M. Santos representando os civis. Do outro lado, três guardas senegaleses.

O ambiente foi bastante cordial e prometeram-nos nunca mais autorizar a permanência, nesta zona, de grupos de guerrilheiros armados que, pelos vistos, também já os estariam a preocupar e incomodar. (...)


Paunca, 27  de junho de 1965

(...) No meu aniversário ainda estava no destacamento de Velingará, mas o [alferes] Castro, numa atitude que dificilmente virei a esquecer, convidou-me para jantar em Paunca, nesse dia. Foi um jantar maravilhoso com o quartel todo enfeitado com ramos de palmeira. Comemos juntamente com os soldados e pelo menos nisso, para eles houve rancho melhorado pois comeram o mesmo que nós, sopa, leitão assado, ananás e até cigarros para finalizar. Depois sentámo-nos todos numa roda e serviu-se Cinzano e whisky para toda a gente.

Mesmo assim senti-me um bocado triste, mas não dei parte de fraco. Nessa mesma noite regressei ao acampamento de Pinto da Silva. Nem o M. Santos, nem o Capitão se lembraram do meu aniversário, embora fosse até este último quem mais teria a obrigação de o fazer já que foi ele que, no ano passado, determinou que este dia passaria a ser o dia da nossa Companhia. (...)


Paunca, 10 de julho de 1965


(...) Esta gente daqui é mais rica que a de Pirada, pois enquanto lá, os quatro comerciantes existentes, vivem principalmente do comércio que fazem com o Senegal, estes aqui (e são cinco!) vivem do comércio que fazem apenas com os indígenas desta região e com os que vêm do interior para se abastecerem. 

Estamos agora na época em que se lavra a mancarra e o trigo e é precisamente nesta altura que os agricultores estão sem dinheiro. Mesmo assim ainda conseguem fazer algum negócio, vendendo arroz e tabaco para poderem comprar o que necessitam. É agora que nós aproveitamos também para lhes comprar os ovos e as galinhas que quisermos, pois deixam tudo muito mais barato. (...)

[Revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 15 de abril de 2020  > Guiné 61/74 - P20858: (De)Caras (125): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal ? Um "agente duplo" ? - Parte I (Depoimentos do embaixador Nunes Barata, e do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)

(**) Vd. poste de 18 de setembro de 2012 > Guine 63/74 - P10404: In Memoriam (127): Luiz Goes (1933-2012), figura incontornável da canção de Coimbra, foi ten mil médico, BCAÇ 506 (Bafatá, 1963/65), e conviveu com o nosso camarada António Pinto

(**) 23 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4997: Cartas (Carlos Geraldes) (10): 2.ª Fase - Abril de 1966 - Epílogo - O Regresso

(***) Vd. postes de

10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

Guiné 61/74 - P20860: "Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa (Constantino Ferreira & António Graça de Abreu) (9): Em navegação, no Mar Vermelho: "não acredites em nada antes de ver e, depois de ver, continua a não acreditar"... E um momento de grande emoção, na Sexta Feira Santa!...



MSC - Magnífica > Cruzeiro de Volta ao Mundo > Em navegação, a caminho do Mar Vermelho e do "Mare Nostrum", o Mediterrâneo. > Sexta Feira Santa, 10 de abril de 2020 > Fotos de um espetáculo a bordo, alusivo à Paixão de Cristo... "Há mais de um mês, sobre mil oceanos e mares, tocando terra ao de leve, temos a ameaça da morte à nossa volta."

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Elsa e Comstantino Ferreira, Wellington, capital da Nova Zelândia, 15 de março de 2020.
Foto: Cortesia da página do faceboook de Constantino Ferreira. Foto reeditada pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

1. Constantino Ferreira d'Alva, eex-fur mil art da CART 2521 (Aldeia Formosa, Nhala Mampatá, 1969/71), membro da nossa Tabanca Grande desde 16 de fevereiro de 2016. Vai a bordo do MSC -Magnífica, que teve de apressar o seu regresso ao ponto de partida, devido à pandemia de COVID-19. 

Está a escrever o seu diário de bordo, desde 23 de janeiro de 2020, disponível na sua página do Facebook, agora a "quatro mãos", com o António Graça de Abreu, de quem hoje se publica duas pequenas crónicas.

2. AS duas últimas mensagens,   que nos chegaram, por email, do António Graça de Abreu [, ex-alf mil, CAOP 1 8Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da Tabanca Grande, com mais de 250 referências no nosso blogue]


(i) Em navegação, Oceano Ìndico, 7 de Abril de 2020

Tenho repetido a mim próprio, inúmeras vezes, que não devo acreditar em nada antes de ver, tal e qual como aprendi com o não muito sábio S. Tomé. Só que, normalmente me esqueco da continuação da frase que há muitos anos decorei na China, que diz que "depois de ver, devemos continuar a não acreditar."

Ontem vi, com estes olhos que a terra, ou o crematório, há de comer, vi, claramente visto, no imenso mar diante de Colombo, Sri Lanka, vi (ate tirei fotografias!) uma passageira do Magnífica ser retirada do nosso navio numa maca e levada para um rebocador cingalês, e assisti à saída de um tripulante nosso, tambem entrando para dentro do rebocador, no meio de um enorme aparato de pessoas com máscaras e fatos anti-coronavírus, quer no barco do Sri Lanka, quer no Magnifica.

No nosso, as medidas tomadas iam no sentido de o nosso pessoal se proteger contra qualquer contágio do pessoal cingalês que quase entrava no nosso navio. Como expliquei ontem, à noite o nosso capitão informou que se tratava de uma passageira que necessitou de mais tratamentos médicos. Hoje tivemos a continuação das informações. Dentro do nosso navio sabe-se que a senhora alemã, de 75 anos de idade, teve uma apendecite aguda e precisou de ser operada, com urgência.

Entretanto, o tripulante, o único de nacionalidade cingalesa a trabalhar no Magnifica, aproveitou a paragem no mar de Colombo para terminar o seu contrato com a MSC. Fez muito bem e regressou a casa.

Há pouco vieram mostrar-me num telemóvel as notícias publicadas no jornal Colombo News, a propósito deste acontecimento, que já estão na Net e que metem o Presidente da República do Sri Lanka, e tudo. Mais ou menos nos seguintes termos:

Historiaram, mal, a viagem de Volta ao Mundo do Magnifica, informaram que o nosso navio, por suspeitas de casos de coronavírus a bordo,  estava proibido de acostar a qualquer porto do mundo. Mas o povo do Sri Lanka era simpático e hospitaleiro, e Sua Excelência Gotabaya Rajapksao, o Presidente da Republica,  autorizou que a passageira do navio italiano, que tivera um ataque cardíaco e podia ter sintomas de outras doenças, desembarcasse e entrasse num hospital em Colombo. 

O tripulante, de nacionalidade cingalesa, agradecia, comovido, ao Presidente da República por ter podido sair do barco e regressar à pátria com saúde, agradecimento extensivo ao ministro da Marinha, Pyal De Silva (por certo, descendente de portugueses!), que, numa situação tão difícil, tão bem defendeu e zelou pelos interesses do povo do Sri Lanka, unido em volta do seu presidente Gotabaya Rajapksao.

Como diria o nosso Gil Vicente, há quase seis séculos atrás, "assim se fazem as cousas." E, como digo eu, caá por estas bandas do Oriente, "não acredite em nada antes de ver, depois de ver continue a não acreditar."

António Graça de Abreu

(ii) Em navegacao, Golfo de Aden, 10 de Abril de 2020

Hoje, Sexta-feira Santa, houve, às duas da tarde, um minuto de silêncio, simples homenagem a todos os que faleceram vítimas de coronavírus 19.

Depois, às três horas, com o teatro quase cheio, o coro improvisado dos velhinhos do navio, criado no decorrer da viagem, com o pomposo nome de Schola Cantorum Magnifica, interpretou, com vozes afinadas e claras, dois espirituais negros norte-americanos associados à Pascoa, dois gospels, o segundo dos quais Amazing Grace  recordando as situações de vida e de morte que temos vivido .  tinha as seguintes palavras, capazes de humedecer os olhos de qualquer um de nos, crente ou não crente.

Through many dangers, toils and snares
We have already come.
T'was grace that brought us safe thus far
And grace will lead us home,
And grace will lead us home. (#)



Três tripulantes do Magnifica procederam, em seguida, a leitura de excertos do Novo Testamento, do Evangelho Segundo Sao João, com os passos da crucificação e da morte de Jesus. Uns quinze passageiros, três deles portugueses, leram entao, em várias linguas, textos breves, quase orações de saudação a Deus, homenageando os que faleceram, agradecendo por o vírus não ter chegado ao nosso seio, expressando também o desejo de regressarmos todos com saúde e paz aos nossos lares.

Rezou-se um Pai Nosso e, por fim, os músicos e cantores italianos do Musica en Mascara, todos vestidos de preto, tocaram e interpretaram um excerto do Requiem, de Giuseppe Verdi.
Enorme dignidade na homenagem a Deus, nesta Sexta-feira Santa.

Antonio Graça de Abreu

PS - Meu caro Luís: Agradeço-te, por todos os deuses, que ponhas estas duas fotos junto ao texto que escrevi esta sexta-feira santa. Talvez porque me emocionei. Há mais de um mês, sobre mil oceanos e mares, tocando terra ao de leve, temos a ameaça da morte à nossa volta.


[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]

# Tradução livre:

Graça maravilhosa: 

(...) Por muitos perigos, duros trabalhos e armadilhas 
Nós já passámos. 
Foi a graça de Deus que nos trouxe sãos e salvos até agora. 
E a graça de Deus  nos levará para casa, 
E a graça de Deus nos levará para casa. (...)

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20859: Historiografia da presença portuguesa em África (205): Monografia-Catálogo da Exposição da Colónia da Guiné - Semana das Colónias de 1939 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Uma importante publicação já com 80 anos e que cada um pode comprar por 10 euros. E que traz matéria para reflexão. Por exemplo, o que a Sociedade de Geografia de Lisboa e o Boletim da Agência Geral das Colónias publicavam e que hoje é matéria de consulta que nenhum investigador pode prescindir para conhecer o serviço de Saúde, a ação missionária, o comércio, a agricultura.
A exposição de 1939, há que dizê-lo com sinceridade, era bem abrangente, motivadora, interessava o curioso, o estudioso, até mesmo o investidor, procurava ser rigorosa, desvelava as espécies da fauna e não escondia a raridade do elefante e do leão, a variedade de macacos, a pujança das espécies ornitológicas, onde não falta o colibri, o melro, a garça-real, os papagaios e periquitos, os flamingos e os grous, patos e galinhas, os jagudis, a rola, o peneireiro e a coruja.
Em certos pontos, faz observações completamente datadas, as preocupações raciais são hoje de risota.
Em suma, vale a pena ler esta monografia-catálogo para ter um quadro do que se pensava da Guiné há cerca de oitenta anos.

Um abraço do
Mário


Uma preciosidade: a Guiné na Semana das Colónias de 1939 (2)

Mário Beja Santos

Não é frequente (para não dizer que é uma raridade) poder comprar-se por uma módica quantia (10 euros) uma publicação com 80 anos toda ela dedicada à Guiné, nos seus aspetos históricos, etnolinguísticos e, de acordo com o que a seguir se escreve, mostrar como esta monografia-catálogo foi cuidadosamente elaborada para satisfazer a curiosidade daqueles que queriam saber um pouco mais sobre a Guiné. Para surpresa do autor de hoje mostravam-se espigas de trigo, arroz em casca e descascado, mostravam-se arados, enxadas e formas de cultivo, numa outra estante havia raízes e farinha de mandioca, referia-se que a batata consumida pelos brancos é produto de importação (hoje, na Guiné, fala-se na batata inglesa, as culturas de subsistência possuem em grande quantidade batata-doce), e havia uma estante com espécies de feijão, feijão encarnado, branco, carrapato e também feijão mancanha, favaca e feijão pedra. E dava-se a seguinte explicação: “A mandioca, o milho-amarelo e o painço, e o feijão, a ervilha do Congo e a alfarroba foram introduzidos na Guiné por nós; o cultivo do milho e da mandioca ainda não entrou nos hábitos dos nativos”. E prossegue a exposição dos recursos alimentares com o óleo de palma, a noz da cola, a malagueta, dava-se a notícia de que o café e o cacau frutificavam em pequena escala e só em terras Fulas e de Mandingas. Quanto a frutas, uma estante mostrava bananas, calabaceiras, manga, mamão, laranja, coco, fruta-pão, ananás e fruta de caju. Exibiam-se exemplares de vasilhas, de cabaços, de utensílios de cozinha, cestos. E expunham-se bebidas alcoólicas: o vinho de palmeira e a sua aguardente e a aguardente da cana sacarina.

Terá sido visto como uma verdadeira curiosidade a mostra de produtos usados no tratamento de moléstias, caso das sementes de rícino, a erva de S. Caetano, o pau de mauta, as folhas de medronheiro, o óleo de cola, as folhas de calabaceira e muito mais. E observava-se que o chá de cascas de limão é boa terapêutica nas febres e doenças do estômago, que o óleo de malagueta preta acalma as dores abdominais e que as folhas de manduco de feiticeiro e a água da maceração da raiz de nemplé atuam com eficiência nos reumatismos.

Passando para a habitação, refere-se que as moranças são resguardadas por caniçados, que as habitações dos Bijagós são de barro branco ou de madeira e que para as construções europeias e para os trabalhos de habitação ou de arte dos guineenses se utilizam madeiras preciosas, caso do pau-sangue, pau-ferro, a flor de mogno, a farroba, a laranjeira, entre outras.

A exposição sobre a indumentária parecia bastante completa, veja-se o comentário do catálogo: “A indumentária dos Fulas e Mandingas consiste num bubu de algodão ou de seda e um calção muito largo que desce abaixo do joelho, semelhante ao calção dos zuavos; na cabeça põem chapéus de palha de forma cónica ou achatada com franquelete de correia ou um boné branco. As mulheres usam um pano de algodão branco que desce até aos pés e uma blusa muito larga e sem mangas”. Numa das estantes o visitante podia observar panos de diversos padrões, almofadas de couro, mostras da tecelagem de peças de algodão com tinturaria local. Exposição minuciosa que incluía os adornos e enfeites. Para justificar a grande inclinação dos guineenses para a música e para a dança expunham-se instrumentos musicais, marimbas, korás, bambolons, guitarras, seguia-se a mostra de esculturas, de pessoas, de animais, de barcos e outros objetos, tábuas de Alcorão, adornos respeitantes à população animista, e neste capítulo mostrava-se a ação missionária e a evangelização.

Em setor à parte, era referenciada a Guiné do ponto de vista administrativo, temos depois a lista dos governadores da colónia da Guiné e uma cuidada apresentação da bibliografia por: História e Geografia, Ocupação e Delimitação de Fronteiras; População, Política Administrativa, Colonização; Agricultura; Comércio; Assistência. E também cartas geográficas e plantas hidrográficas, cartas corográficas e hidrográficas.

Tudo me surpreendeu, confesso, a citação camoniana, completamente esquecida, o resumo histórico, a fauna, os dados geográficos sumários, a população, a preocupação muito datada das considerações de antropologia racial, a alimentação, as mezinhas, as manifestações artísticas, a presença do religioso.
Obviamente que se tratava de uma monografia e de uma exposição em que importava encher o olho e apresentar resultados do sucesso imperial, como se escreve:
“Ao terminar este trabalho, dir-se-á ainda que a colónia entrou em franco desenvolvimento civilizador.
A cidade de Bissau progride intensivamente e a de Bolama também, embora em menor ritmo. As obras públicas aumentam celeremente.
As estradas atravessam a Guiné em todas as direcções; as comunicações telegráficas e telefónicas são cada vez maiores.
Construiu-se já o aeroporto de Bolama e vários campos de aviação vão ser criados no interior.
A assistência médico-higiénico e agrícola-pecuária expande-se, lenta mas seguramente, atingindo já os principais centros europeus e nativos com resultados animadores.
Enfim, a Guiné Portuguesa, num esforço digno do maior elogio, vai-se transformando numa das possessões mais ricas e progressivas do nosso Império Colonial.”
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Nota do editor

Poste anterior de 8 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20830: Historiografia da presença portuguesa em África (204): Monografia-Catálogo da Exposição da Colónia da Guiné - Semana das Colónias de 1939 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20858: (De)Caras (152): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte I (Depoimentos do embaixador Nunes Barata, e do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > BCAÇ 506 > Abril de 1964 > Da esquerda para a direita: (i) o alf mil António Pinto; (ii) o  Mário [Rodrigues]  Soares, comerciante de Pirada e "agente duplo", segundo era voz corrente; (iii) o alf méd médico (e grande intérprete do fado de Coimbra) Luiz Goes (1933-2012( ; e (iv) e o alf mil Spencer.

Foto (e legenda): © António Pinto (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Gabu >  Setor L6 > Pirada > c. 1973/74 > 14 de Fevereiro de 1974, ten cor cav, cmdt do batalhão e o célebre comerciante  Mário Soares (este em primeiro plano: dizia-se que tinham contactos privilegiados com os "dois lados da guerra", as NT e o PAIGC, ou pelo menos, as autoridades senegalesas).

O ten cor cav Jorge [Eduardo Rodrigues y Tenório Correia] Matias, cmdt do BCAV 8323/73, que estava sediado em Pirada (, o comando, a CCS e a 3ª C/BCAV 8323/73) faz aqui uma homenagem, emocionada aos bravos de Copá, o 4º pelotão, da 1ª C/BCAV 8323/73, comandado pelo alf mil at cav Manuel Joaquim Brás, e a que pertencia o António Rodrigues, e reforçada por mais uma secção, do 1º pelotão, comandada pelo fur mil Carlos Eugénio A. P. Silva.

Foto (e legenda): © António Rodrigues. (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. O célebre comerciante de Pirada, Mário [Rodrigues]  Soares era uma figura "intrigante"... Conviveu com vários camaradas nossos, ao longo da guerra, como o António Pinto (*) ou o Carlos Geraldes(**)... Dizia-se que tinha relações privilegiadas com os dois lados do conflito, as NT e o PAIGC. Dizia-se inclusive quer era um "agente duplo", trabalhando para a PIDE/DGS e para o PAIGC. Ora, não temos provas disso. Está em causa a sua honra. 

Temos que ser cautelosos, não fazer juízos apressados sobre o comportamento dos comerciantes portugueses e outros (libaneses, cabo-verdianos...) que ficaram no mato, apesar da guerra. Em boa verdade, a tropa tinha tendência para pôr em causa a "lealdade" dos comerciantes, colocados num posição difícil no interior da Guiné.

Do Mário Soares sabe-se que tinha bons contactos no Senegal. E que  desempenhou o seu papel na história da indepência da Guiné-Bissau.  Foi através dele que o gabinete do Governador António Spínola consegiu chegar ao Leopoldo Senghor (como se depreende de um histórico depoimento do embaixador Nunes Barata, ex-alf mil, na altura, colaborador íntimo de Spínola,  de que a seguir reproduzimos um excerto; por lapso, chama-lhe António Mário Soares)...

Não sei o que é feito  dele, é provável que já não esteja entre o número dos vivos. Em 1974 já teria cerca de 40 e tal  anos, a avaliar pelas fotos acima reproduzidas,  Li algures (, já não posso precisar onde...) que ficou na Guiné, depois da independência, mas terá saído do país ainda no tempo do Luís Cabral, em novembro de 1975.  Sabemos, pelo Carlos Geraldes, que em 1964/65, era casado, tinha duas filhas e um filho e era natural de Lisboa. Luísa era o nome da esposa. A filha mais chamava-se Rosa, o filho do meio era José (e estudava em Lisboa) e mais nova, Eva Lúcia, tinha nascido em 11/9/1957.

Alguém dos nossos leitores ainda se lembra dele, do  Mário Soares ? Tem fotos e histórias dele ?

O seu nome era referido com muita frequência nas cartas que o Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66) mandava para casa, e de que foi publicada uma seleção no nosso  blogue, em 2009 (**).

O Carlos Geraldes conheceu o Mário Rodrigues Soares quando a sua companhia, a CART 676, chegou a Pirada, em 15 de outubro de 1964, vinda de Bissau (via Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego). Vão tornar-se amigos. O Carlos passa a ser visita frequente da sua casa. E descreve-o logo nestes termos: "É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta." (Pirada, 15/10/1964). E defendo-o das suspeitas de colaborar com o IN.

Estamos a reler as suas cartas, que nos ajudam a perceber melhor a personalidade e o comportamento deste comerciante português, "bon vivant", hospitaleiro, insinuante, amável, prestável, com um vasto capital de  relações sociais, a nível interno e até externo (com as autoridades e os comerciantes do outro lado da fronteira, no Senegal). Nesta I parte, selecionámos excertos das cartas para a família, do período de Outubro de 1964 a março de 1965, e em que o Carlos faz referências ao seu "amigo M. Santos", pseudónimo de Mário Soares.

Segundo a historiadora Maria José Tístar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o comervciamte  António Mário Soares, estabelecido em Pirada, na fronteira com o Senegal, seria  um "agente duplo":  informador da PIDE/DGS,  e ao mesmo tempo informador do PAIGC.

Contrariamente ao Rodrigo Rendeiro,  comerciante de Bambadinca,  que terá tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua ligação à PIDE/DGS, o Mário Soares terá ficado na Guiné independente mas terá "caído em desgraça" e sido expulso do país, um ano e tal depois, em novembro de 1975. (***)

A CART 676 foi mobilizada pelo RAP 2, partiu para o CTIG em 8/5/1964 e regressou a 27/4/1966. Esteve em Bissau, Pirada e Bissau. Comandante: cap art Álvaro Santos Carvalho Seco.


1. Depoimento do embaixador João Diogo  Munes Barata:

[Alferes miliciano na Guiné (1970); secretário e, posteriormente, chefe de gabinete do Governador da Guiné, general António de Spínola (a partir de Maio de 1971); adjunto diplomático da Casa Civil do Presidente da República, António de Spínola (Maio a Setembro de 1974),  tendo no desempenho deste cargo, colaborado no processo de descolonização; delegado do MNE na Junta de Salvação Nacional]

(...) Com essa ideia, portanto, com a ideia de avançar no processo de descolonização, o general tentou estabelecer contactos com o Governo senegalês e, através dele, com o PAIGC. Os primeiros contactos foram feitos através do chefe da delegação da PIDE/DGS [em Bissau], o inspector Fragoso Allas e por Mário Soares. Mário Soares, não o Dr. Mário Soares, mas [António] Mário Soares um comerciante de Pirada, um homem que se chamava Mário Soares, mas que era comerciante em Pirada, uma povoação fronteiriça da Guiné com o Senegal. Esse comerciante ….

Eu lembro-me de um dia estar no meu gabinete no Palácio e de o senhor Mário Soares ir lá comunicar que já tinha estabelecido o contacto com o lado de lá e que, portanto, se podiam iniciar as negociações para uma ida, para um encontro do Governador com o presidente Senghor. Houve previamente um encontro. O general Spínola foi duas vezes ao Senegal (acompanhei-o em ambas as visitas).

A primeira, para um encontro com o ministro senegalês dos Assuntos Parlamentares, porque evidentemente o presidente Senghor, na altura, ainda não sabia bem quais eram as ideias do general Spínola e não quis, evidentemente, romper as exigências protocolares e, como chefe de Estado encontrar-se com o governador de uma província, de uma colónia. E mandou um ministro. (...) (****)


2. Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), que se tornou amigo do Mário Soares e visita frequente da sua casa... Reprodução de excertos das suas cartas com referência explícitas ao Mário Soares:


Parte I (outubro de 1964 - março de 1965) (*****)

Pirada, 15 de outubro de 1964


(...) Segunda-feira de manhã partimos para Pirada. (...)

Começámos logo por ser apresentados ao comerciante mais importante cá da terra, o Sr. Mário Soares, um grande amigalhaço de toda a tropa que por aqui tem permanecido. Acompanhado de um empregado que segurava um enorme cesto cheio de pão fresco acabado de sair do forno. Ali mesmo no meio da estrada, começou a distribui-lo pelos soldados que o recebiam boquiabertos de espanto. Não poderia haver melhor recepção de boas vindas. Um verdadeiro luxo.

(Daqui em diante, sempre que mencionar esta personagem, designá-lo-ei pelo pseudónimo, M. Santos, para não suscitar quaisquer parecenças, com a figura pública actual que todos conhecem) (...)

(...) Quanto à nossa casa é esplêndida. Tem um grande quintal, com um poço no meio e uma larga extensão cimentada debaixo de um enorme alpendre, encostado à casa, sob o qual tomaremos as nossas refeições, quando tivermos aqui a nossa Messe. A casa é fresquíssima e dorme-se aqui muito bem, pois não tem mosquitos! Faltam apenas os móveis, mas temos cá um carpinteiro indígena muito habilidoso que já nos está a fornecer mesas e cadeiras. Camas temos duas de casal, uma em madeira, outra em ferro, emprestadas pelo M. Santos. Os sargentos estão a dormir em camas de ferro militares, que trouxemos. (...)

(...) Quanto à luz eléctrica, por enquanto não está montada, embora tenhamos um gerador trifásico de 220 Volts, movido por um motor a diesel. Só estamos à espera de arranjar fio para fazer a instalação por toda a aldeia. Contamos que lá para Janeiro se possam pôr de lado os Petromax e se pense até na possibilidade de sessões de cinema com uma máquina de projectar do Sr. M. Santos.

É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta.


É o nosso Anjo da Guarda. Todos os dias manda cá o criado dele, o Demba, com uma garrafa de água filtrada e um termos com cubos de gelo, para que nunca nos falte água fresca no quarto. É um indivíduo que, mesmo aqui, longe da nossa civilização, não descura todos os pormenores de conforto para criar à sua volta um ambiente requintado e de um bom gosto que se julgaria inacreditável encontrar por estas paragens. 

Vive como um nababo indiano rodeado por uma família tranquila (a esposa e duas filhas) e que, pelo menos, aparenta a mais completa felicidade. Um verdadeiro achado que vim encontrar aqui neste fim do mundo mas, estou bem em crer, quase princípio do Paraíso.

Já começou a afluir gente vinda de todo o lado, até do Senegal, para se tratar no nosso posto clínico, pois a novidade de termos um médico na Companhia, depressa se espalhou. Aliás, a dois passos daqui, estão os nossos principais informadores, nas pessoas do chefe da polícia e outros funcionários administrativos da aldeia senegalesa nossa vizinha, com quem o nosso amigo M. Santos mantém fortes relações de interesses mútuos. São eles os primeiros a comunicar a presença de grupos armados que habitualmente passam por esta zona a caminho da região centro da Guiné, o Oio. Está até combinada uma jantarada em que eles serão nossos convidados. (...)

Pirada, 1 de dezembro de 1964


(...) Bafatá é uma vilória bastante razoável. Tem um clube que até dá cinema todos os dias. A energia eléctrica é fornecida por um gerador a diesel, um bocado velho e a luz está constantemente a ir abaixo. Mas é melhor que nada. Fui lá este fim-de-semana com o M. Santos e a família, e não deixei escapar a oportunidade de farejar um pouco de civilização.

Hoje também posso dizer:

- Olhem, sabem? No sábado fui ao cinema! Agora não são só vocês que me dizem isso em todas as cartas que me escrevem.

Por acaso até era um filme do Jerry Lewis, que já tinha visto, “Jerry, Primeiro Turista do Espaço”.

Jantámos em casa de um comerciante amigo do M. Santos e, no domingo, almoçámos em casa do Secretário da Administração, outro amigo dele e que, conforme vim a descobrir, depois, é de Viana! Falámos sobre a nossa terra, recordando os tempos em que andou no Liceu, que nessa altura seria ainda, evidentemente, o Liceu Velho.

Bajocunda, 8 de fevereiro de 1965

(...) Ontem, domingo, fui até Pirada, resolver alguns assuntos pendentes e aproveitei para rever os amigos que lá deixei, o M. Santos e a família, (...)

(...) O M. Santos, como sempre, faz questão em receber-me para jantar, o que eu nem me atrevo a recusar, tão maravilhosos são os jantares em casa dele.

Quando finalmente regressei a Bajocunda já passavam das 23h00, hora propícia para eles andarem por aí a preparar alguma emboscada… mas felizmente, por enquanto ainda não se resolveram.
Na noite anterior tinha também visitado, de jeep, algumas tabancas por aqui perto, para dar uma impressão de que estamos sempre vigilantes a qualquer hora do dia e que podem confiar na tropa para os proteger, caso venham a ser atacados por algum grupo armado que, vindo do Senegal, resolva fazer política de terra queimada para assustar as populações e levá-las a abandonar este território, que é o que esta gente mais teme.

Quem me sugeriu a ideia para esse passeio nocturno, e até me serviu de guia, foi um comerciante de Bajocunda, o Sr. António Costa. Muito alto e muito gordo, este indivíduo de raça negra é também um grande bonacheirão que gosta imenso de beber e de receber visitas mas que no entanto não chega aos calcanhares do M. Santos, lisboeta de gema, recém incluído nestas guerras por ter tido dificuldades financeiras na Metrópole, segundo se consta.  (...)

Bajocunda, 22 de fevereiro de  1965


(...) O M. Santos, por várias vezes já me mandou recado para ir lá [, a Pirada,]  comer uns camarões ou umas sardinhas assadas mas, obviamente, nem tenho podido. (...)


Bajocunda  1 de março de 1965


(...) Ontem à noite, antes de jantar, estivemos em Pirada, eu o Gabriel e o Inácio (outro alferes da mesmo Companhia de Cavalaria, que gradualmente se está a juntar a nós em Bajocunda). 

O M. Santos recebeu-nos com a habitual cortesia mas não conseguimos ficar lá muito tempo, pois o capitão começou a resmungar pelo facto de terem vindo todos os oficiais de Bajocunda, de maneira que, a contragosto, tivemos de vir embora. Aliás, desde que apanhou aquele susto na estrada Bajocunda-Canquelifá, o capitão nunca mais foi o mesmo. (...)


Pirada, 15 de março de 1965


Estou de novo em Pirada, onde me sinto como em casa. Foi um verdadeiro alívio deixar Bajocunda pois não consegui afeiçoar-me aquilo de maneira nenhuma. 

Isto aqui, em Pirada, é muito mais airoso, há muito mais população, a Messe é fora do quartel e tenho o meu amigo M. Santos que continua a ser uma excelente pessoa.

Bajocunda ficou entregue a uma Companhia de Cavalaria e nós ficámos apenas com Pirada e Paúnca. É muito menos trabalhoso. (...)


Pirada, 21 de março de 1965



Mais uma vez aqui estou a colocar, à pressa, a escrita em dia, à luz do Petromax, pois desta vez adiantaram o dia do Correio. Tenho de fazer serão para poder chegar a tempo. Mas não faz mal, amanhã só me levantarei lá para as dez da manhã.

Aqui dorme-se muito. Depois do almoço, dorme-se a sesta, quase sempre até às 4 da tarde. Depois quando há serviço para fazer, vamos até ao quartel. Quando não há, toma-se banho, jogamos o Ôri ou vamos a casa do M. Santos beber uns whiskies.

Autêntica vida de malandro! Quero dizer… de guerreiro! Porque de vez em quando também se vai para o mato a qualquer hora do dia ou da noite e fica-se por lá não importa quanto tempo, a dormir em que cama houver, ou mesmo até sem dormir!

E quando o Manel Jaquim [, o homem do cinema ambulante,]por cá aparece, lá tenho de pagar os bilhetes a uma data de gente muito simpática que me enche de mimos, interesseiros, claro!
-“Alfero Gérardis, bonito, boniiito… dimais!!!” – são os elogios que estou sempre a ouvir, por esta acção psico-social, actividade a que agora me dedico no intervalo das guerras. (...)

[Seleção, fixação, revisão de texto, e realces a negrito e a amarelo: LG]

(Continua)

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28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

Guiné 61/74 - P20857: Parabéns a você (1787): António Pimentel, ex-Alf Mil Rec Inf do BCAÇ 2851 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20845: Parabéns a você (1786): Francisco Alberto Santiago, ex-1.º Cabo TRMS do BART 3873 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 14 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20856: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (1): Mobilizado para a Guiné, destino: Teixeira Pinto

1. Em mensagem do dia 9 de Abril de 2020, o nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70), enviou-nos parte das suas memórias, que esperamos tenham seguimento.

Boa Noite Carlos Vinhal,

Olá Tabanca Grande!

Aqui vai mais um trabalho meu para a Tabanca mas, se achares que não não tem interesse então mete-o na gaveta.

Aproveitando este tempo de estar em casa para fazer alguns trabalhos e são já vários e não vou parar.
Apelo a todos os Tertulianos para que se cuidem e, não saiam de casa pois esta guerra está bem pior de que a que tivemos na Guiné.

Sem mais de momento,

Abraços para os Chefes de Tabanca, estendendo-se os mesmos a todos os Tertulianos
Albino Silva

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Depois de fazer a Recruta no RI8 em Braga, fui fazer a Especialidade no Regimento de Serviço de Saúde em Coimbra, seguindo depois para Santa Margarida

1 - MOBILIZADO PARA A GUINÉ

Em 18 de Fevereiro de 1968 fui mobilizado para a Guiné pelo Batalhão de Caçadores N.º 10. Fui Incorporado numa Companhia de Comandos e Serviços. E lá sigo então para Santa Margarida onde vou formar Batalhão. Em Santa Margarida estive até 30 de Abril de 1968. Durante esse tempo, chegou então uma Ordem para irmos gozar 10 dias de Licença antes de embarcarmos para a Guiné.

Aproveitados que foram esses 10 dias para estar junto da família e, fazer uns trabalhitos com o fim de angariar alguns escudos porque me iam fazer falta depois na Guiné.

Nestes dias de licença apenas disse a alguns amigos que ia para a Guiné muito embora a família desconfiasse porque até ali nunca tinha tido nenhuma licença e apenas cinco fins de semana na totalidade.

No último dia por insistência da família lá disse que ia para a Guiné que a todos deixei de lágrimas nos olhos e eu também pois ia para a guerra.

No quartel em Santa Margarida, preparávamos tudo para a partida para Lisboa. O Batalhão 2845 estava praticamente formado. Era constituído pelas Companhias: CCS, à qual pertencia; 2366; 2367 e 2368.

30 de Abril, eram 23 horas quando abandonamos o Quartel e em marcha seguimos para o apeadeiro dos Caminhos de Ferro e à meia-noite entramos no comboio que deixou aquele apeadeiro há uma hora da noite com destino a Lisboa onde chegamos às 7 da manhã. Ao cais Marítimo de Alcântara era já 1 de Maio, uma quarta-feira.

Pelas 9h00 tivemos uma formatura e após cerca de 10 minutos de incentivo por um alto Oficial, deixamos a formatura, cercados pelas Senhoras e Meninas do Movimento Nacional Feminino que a todos iam distribuindo uns maços de cigarros, lâminas e aerogramas.

Eram 10h00 quando começamos a embarcar no Navio Niassa.

Juntaram-se a nós no mesmo barco, um outro Batalhão com o mesmo destino, Guiné. Chegou o momento mais difícil que era a partida, eram 11h30 e pouco depois o Niassa deixava o Cais ao mesmo tempo que familiares, amigos e muita gente gritavam e acenavam com lenços brancos que, a todos nós nos comoviam. Eu não saí do porão onde tinha a minha bagagem e cama, para não assistir aquele momento tão triste.

Era meio-dia e o navio apitava já em direção ao Oceano e pouco depois deixamos de ver aquela multidão que no Cais de Alcântara se despedia de nós. No navio poucos eram os que tinham vontade de falar, notando-se tristeza em nossos rostos. Com o Niassa navegando logo apareceram enjoados por todos os cantos, não tendo eu mãos a medir para dar assistência, já que nunca enjoei e porque não era a primeira vez que eu navegava.

Uma hora da tarde toca um sino no Niassa, pois era a chamada para o almoço, mas, poucos eram aqueles que se seguravam de pé, e com as senhas deles eu me deslocava ao refeitório para levantar a fruta, que normalmente eram laranjas, para dar aos que iam enjoados.
Foram momentos difíceis por alguns dias.

O Nissa ia sulcando os mares e ao fim de quatro dias já se sentia aquele calor intenso de África, e a correria ao bar era constante, pois eram a cerveja, coca cola e laranjadas para matar a sede. Ao fim cinco dias e meio chegamos à Guiné. O Niassa atracou ao largo de Bissau, era o dia 6 de Maio.
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O Navio TT Niassa atracado em Bissau
Foto: ex-Alf Mil António Sá Fernandes


2 - DESTINO A TEIXEIRA PINTO

Com o Niassa atracado ao largo de Bissau, desembarcaram as companhias operacionais, 2367 e a 2368, enquanto que a Companhia 2366 e a CCS entramos na LDG Alfange, que juntamente com aqueles Fuzileiros começamos a subir rio acima era então 01h00 da noite.

Todos caladinhos mas de certo modo tranquilos, visto que confiávamos naqueles Fuzileiros já com calo daquela guerra. Durante a noite e a viagem o calor era muito e o silêncio era profundo e ninguém pregava olho.

Eram sete horas da manhã do dia 7 de Maio quando finalmente chegamos a Teixeira Pinto.
Tivemos a informação dada por um Furriel que a Companhia 2367 iria seguir de Bissau para Olossato e a 2368 para Bissorã, enquanto que a 2366 iria atuar na zona de Jolmete, 28 dias depois de estar em Teixeira Pinto.

O Aquartelamento em Teixeira Pinto com cerca de 400 metros por aproximadamente 200 de largura, era vedado com arame farpado em todo o redor e ficava a cerca de 600 metros do cais. Em viaturas seguimos para o Quartel onde fomos recebidos pelos militares lá aquartelados que nos iam gozando chamando-nos Periquitos enquanto algumas crianças e adolescentes nos iam atirando uns grãos de mancarra (amendoim) já descascado e assim fomos durante algum tempo os Periquitos, a conviver com a velhice que por lá andava.

Teixeira Pinto
Foto: ex-Alf Mil Cav Francisco Gamelas

Por ordem do Comandante de Companhia, Capitão Queiroz, que nos tinha mandado formar, foram distribuídas Rações de Combate, pois só no dia seguinte iríamos ter refeições quentes. A caserna era um antigo armazém de amendoim de uma casa comercial, com as camas de um lado e de outro onde cada um escolheu a sua mas, como o meu serviço era na Enfermaria seria lá que eu iria ter a minha a minha cama.

Antes de começarmos a fazer serviços dei uma volta ao arame farpado e vi que tinha nove postos de serviço. Do posto 1 (Porta de armas) ao 4, era a Avenida e depois Campo de Futebol e Tabancas, e depois até ao Posto 9 era a Bolanha.

Ao terceiro dia lá começamos a fazer serviços, que eram bastantes, já que eram assegurados pela CCS. guardas ao quartel, reforços, rondas, guardas ao Fortim que ficava ao fundo da Avenida na Rotunda, serviços de guarda à Ponte Alferes Nunes, patrulhas de reconhecimento, depois era a CCS que fornecia Condutores, Sapadores e pessoal do Serviço de Saúde para as Escoltas de reabastecimento de géneros alimentares, água, material de construção e munições.

Comecei meu trabalho na Enfermaria e todos os dias estava de serviço pois ficava sempre na vez de outros camaradas porque gostava daquele serviço ao lado do Médico do Batalhão, Dr. Fernando António Maymone Martins, Alferes, que dava consultas à tropa até às 13h00 e depois ia para o Hospital Civil dar consultas e outros serviços com pequenas cirurgias, aos civis.

O meu serviço diário era logo de manhã tomar apontamentos daqueles que iam às consultas, depois chamar pelos mesmos ao gabinete do médico e ajudar na Enfermaria a atender o pessoal, pois além da tropa, que era muita, também os civis lá iam receber tratamento, e por isso era muito o trabalho para quem estava de serviço. Basta que em média por dia davam-se 300 injeções e havia feridas para serem tratadas , e ainda o pessoal lá internado e uns à espera de evacuação para Bissau.

Era muito o trabalho e ainda a pedido do Furriel Enfermeiro Garrido, fazia a requisição de Material para Bissau, que depois de recebido o ia conferir, mas eu gostava bem do serviço que ia fazendo e assim foi durante 13 meses.

Depois comecei a alinhar com um Pelotão da Companhia de Caçadores 2313 que era comandado pelo Capitão Penim, em saídas para o mato, em escoltas e para a Ação Psicológica, em picagem de estradas com um Pelotão da Companhia 2368 do meu Batalhão e também em operações com este pelotão.

Para substituir o 1.º Cabo Enfermeiro Vitorino da 2368, que havia sido evacuado para Bissau, fui um mês para o destacamento de Caió, regressando depois a Teixeira Pinto à minha Enfermaria para de imediato sair com uma Secção da 2313 para uma Acão Psicológica lá para as Tabancas de Calequisse e Caió.

Sinceramente, gostava de ir fazer esse trabalho porque era minha Especialidade e dar consulta aquele pessoal que em filas tão longas dava para os perder de vista. Por vezes começava a atender a partir das 8h30 e terminava quando mais ninguém estava na fila, que embora tivesse sido grande, não levava muito tempo a atender aquele pessoal já que, quando os primeiros que se queixavam diziam que estavam fracos, e eu como dava uns comprimidos vitaminados que eram um pouco adocicados, e então eles passavam palavra uns aos outros e todos se queixavam do mesmo e, por isso era rápido. Passava mais tempo, sim, quando havia alguns com feridas para tratar. Ao meu lado estava sempre pessoal armado, e até o Alferes ajudava. Da parte da tarde ia fazer atendimento nas Tabancas a pessoas acamadas e doentes sem se poderem levantar.

Era nessas visitas à Tabanca que me ofereciam frangos e laranjas, e até cheguei a levar depois para o Quartel aos 20 Frangos que deles faziam umas churrascadas mas sobravam sempre uns 15 frangos que eu não podia guardar porque ou seriam roubados ou morriam à fome.

Então fora do Quartel havia um libanês, de seu nome Viriato, que tinha uma espécie de Restaurante e era a ele que eu oferecia os frangos pois muitas vezes me oferecia uma refeição desde que começou a frequentar a Enfermaria.

Chegava a noite e então o Alferes escolhia um local para pernoitarmos, e eu não concordando com ele dizia-lhe:
- Meu Alferes, não viu aquele pessoal todo em fila para serem atendidos?... Pois tenho a certeza que muitos dos homens que lá estavam não era doentes e até eram bem possantes, mas estavam lá apenas para espiarem, basta olhar para as Tabancas e ver que eles nos seguiam na direção que levávamos.

Ele, o Alferes ao princípio não estava muito de acordo mas depois percebeu, quando eu lhe disse que tinha estado no norte de Angola quando se deram os massacres [de 1961], e que tinha alguma vivência de África. Disse-lhe ainda que eles nos viram seguir aquela direção e o melhor que devíamos fazer era, no cair da noite, seguir outro itinerário para pernoitarmos e assim foi.

Passamos então a noite entre arbustos e arvoredo, e manhã cedo levantamos sem que tivesse havido qualquer tipo de problema. Seguimos o itinerário que havíamos deixado no dia de trás, e cerca de 2 quilómetros e já perto do rio, encontramos na picada algumas munições e as marcas na terra ainda frescas do calçado que eles usavam.

Aí o Alferes com um bom abraço agradeceu-me por o ter convencido a ter mudado o rumo, e a partir daquele dia sempre que saíam do quartel em serviço eu era requisitado à CCS para sair com eles.

(Continua)
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