sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21253: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (15): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2020:

Queridos amigos,
Impunha-se dar voz à paixão de Annette, como se sente Paulo Guilherme já sabemos, por entreposta pessoa, este português tem vindo a firmar raízes com gente do mesmo ofício, com quem tarimba em reuniões oficiais e também no movimento associativo de consumidores. Tudo faz, a partir de agora, sem se subtrair às obrigações que mantém e manterá em Lisboa, para encontrar abertas que justifiquem a partida para Bruxelas. O correio trocado é esfuziante, uma mescla abençoada de passado, presente e futuro, aqui temos uma declaração de amor e uma confissão de algo que aconteceu num dado momento e que tem a ver com uma fotografia, um comentário de Paulo, coisa estranhíssima, pôs a balançar o coração de Annette. Há que ler a expressão que ela utiliza, o amor tem razões que as palavras explicam, um tanto ao revés do pensamento de Blaise Pascal. A felicidade de Annette desmesura-se, é a sua vez agora de enviar uma carta falando do seu dia-a-dia de intérprete.
Para quem está a acompanhar estas jornadas escaldantes, é bom não perder o episódio seguinte.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (15): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon très adorable Paulo, é a primeira vez que te escrevo desde que descobri o virar da página das nossas vidas, tudo tão espontâneo, como tivesse havido um pousio, um compasso de espera e uma roda da fortuna a desandar para o nosso encontro, a descoberta de duas ilhas solitárias, a despeito dos nossos dois quotidianos em azáfama, para ganhar decentemente a nossa existência e apoiarmos os nossos filhos, na instabilidade das suas carreiras profissionais, e não descarto, no teu caso concreto, os problemas de saúde de um dos teus filhos, que tanto te aflige. Tu enches-me de felicidade, a maravilha que tu sentes, a exultação perante o meu corpo e o que tu chamas a beleza do meu caráter, estonteia-me, mas acredito plenamente em ti.

Foi através de caminhos ínvios, por veredas sem sinalização, que fomos amadurecendo, ganhando confiança, até eu ter tomado a iniciativa de te dizer, sem qualquer pejo, que te amava loucamente, na noite em que pela primeira vez dormimos juntos. Sim, caminhos ínvios, passeios acalorados, outras vezes debaixo da morrinha da chuva, metidos em cafés quando os céus desabavam águas, nesta Bruxelas, acredito piamente, que tu amas de alma e coração. Passeios em Ixelles, Saint-Gilles, Schaerbeek, percorrendo calçadas, visitando exposições, recordo neste momento, como se tivesse sido há uma hora, e eu ainda estivesse a esfregar os pés dos longos passeios no Parque Josaphat, em Laeken, onde tu querias visitar as estufas e rever o Pavilhão Chinês e a Torre Japonesa (confesso-te que para mim estes adereços não passam de meras curiosidades, de um monarca endinheirado, um Leopoldo II, que foi a uma Exposição Universal e comprou adornos exóticos para exibir nos seus territórios), aquele inesquecível almoço em Dinant, vejo-te tão prazenteiro e guloso com a descoberta do frango de estragão, a alegria do cozinheiro a dar-te a receita e a dizer que a confeção só resulta com estragão fresco, comeste a valer e remataste com uma Dame blanche, um café e um Drambuie.

Vezes sem conta, nos dias seguintes àquele benquisto encontro na Rue Froissart, eu me questionei quanto ao teu pedido de abrirmos correspondência, o pretexto para vires a escrever um romance sobre a tua experiência na guerra da Guiné, aceitei o teu argumento, já se tinham passado cerca de três décadas sobre o teu regresso, o campo ficcional era o melhor terreno para enfrentar o que a memória e os documentos que conservaste te permitiam não um mero regresso ao passado mas advertir as gerações futuras. Percebi bem, por múltiplas razões aqui também não se fala da nossa colonização do Congo e de alguns envolvimentos sórdidos, tentativas de obter uma presença neocolonial, tudo isto é muito incómodo para a minha geração, pouco se fala das nossas ingerências e das desgraças que provocámos. E agora que tu sabes do meu amor por ti, como vejo o nosso futuro tão promissor, mesmo sabendo que temos muitos anos pela frente em que não podemos abandonar as nossas profissões, independentemente de nenhum de nós saber onde vamos pôr a âncora para as nossas velhices, quero que saibas que houve um momento que transformou a mera curiosidade numa eclosão afetiva, num transbordo tão forte de uma quase entrega, tudo aconteceu quando me enviaste, sob a forma de epítome, os acontecimentos do renascimento de Missirá, a que atribuis uma quase transcendência no desenvolvimento da tua personalidade, tu mesmo escreveste que aqueles meses de abril a julho de 1969 tinham constituído um repto ímpar, a descoberta da criação, o papel do cuidado e do desvelo pelas vidas que te tinham sido confiadas e pela segurança que te cumpria acautelar, naquele espaço de um destacamento militar, onde viviam tantos civis e aquelas crianças que tanto te preocupavam, umas de barriga inchada, outras portadoras de doença visível, a tua alegria quando conseguiste professor, o protocolo estabelecido com aquelas crianças que lavavam a loiça e que tinham direito a todas as sobras.

Mas, adorable Paulo, foi a fotografia do Jobo e a descrição tão entusiástica da padaria em Missirá que me fez entrar em definitivo naquele mundo tropical que tu não viveste numa mera passagem, a pôr uma cruz nos dias do calendário. Guardei tudo quanto escreveste, e aqui reproduzo:
“Annette, não contive o meu júbilo quando vi o Jobo enfronhado a amassar a farinha com fermento, o esforço que foi encontrar aqueles tijolos, ver nascer o forno, protegê-lo com um resguardo minimamente sólido, em frente do Jobo, que estagiou na padaria de Bambadinca duas semanas, e que veio com uma espécie de certificado de boa aprovação, o olhar que ele nos lança, de triunfo, como soubesse que das suas mãos sairiam pães apetitosos para militares e civis, já que ele também quer ser empreendedor e pediu autorização para nas horas vagas corresponder às solicitações da população civil, pois bem, creio que esta imagem espelha aquilo que chamamos desenvolvimento, civilização, cultura, a interseção de vários arcos temporais, a descoberta de que um bom alimento está ao alcance das nossas mãos e que podemos viver muito melhor. Há momentos, minha inestimável Annette, quando me sinto apoucado, talvez mesmo entristecido quando as coisas não me correm de feição, que venho contemplar os olhos do Jobo, as suas mãos bem firmadas dentro de um cunhete de granadas, e então revigoro-me, aquela caixa, inicialmente portadora de sinais da morte, prepara alimentos, e o Jobo, sem pose estudada, parece dizer-nos que logo acabe aquela malfadada guerra mudará de profissão”.

Algo mudou em mim Paulo, quando li e reli esta tua mensagem sobre a vida, a tua relação com o Outro, e a partir daí clarificou-me o sentimento que eu nutria por ti. Terrível o que me disseste mais tarde, que Jobo Baldé te escrevera de uma terra chamada Galomaro, em 1991, a pedir para o trazeres para Lisboa, que vivia na miséria, e que confiava absolutamente em ti. Fora muito duro teres recebido aquela carta, sentias-te impotente, naquele período em que vivias como cooperante, na maior das expetativas e que culminou na maior das deceções, conseguiras trazer o teu guarda-costas, Cherno Suane, dado o pretexto que sofrera duplo traumatismo craniano naquele acidente da mina anticarro, que tão bem me descreveste.

Na base da sinceridade em que assenta este amor tão pujante, tão inesperado para mim, quando já me preparava, com um certo travo de resignação, em ficar uma avó prestável, tu vieste como Estrela Polar, e não te quero esconder que esta correspondência é verdadeiramente um alívio, também me cabe a responsabilidade de preparar tempos disponíveis para te ir ver a Lisboa, entrar no teu mundo. Uma última confidência: a minha filha Noémie veio visitar-me e ficou muito surpreendida com tanta fotografia e cartas espalhadas, e uma fotografia emoldurada de um desconhecido. Sorriu e disse-me, “Ainda bem que estás a reconstruir algo que mereces, fico feliz se encontraste o companheiro do futuro”. Paulo, escreve-me, parece que vens dentro de duas semanas, não é? Estou a pensar em passarmos uns dias em La Campine, muito perto de Antuérpia, andaríamos de bicicleta, passeios de barco nos canais, podíamos ir aos Países Baixos, se quiseres. Amo-te tanto! Tu fazes parte da Misericórdia de Deus, em que tanto acredito. Do meu coração para ti, Annette.

(continua)

Bóreas, Deus dos ventos do Norte, 1922, escultura do Parque Josaphat, por Joseph Van Hamme

Maison Autrique, a primeira joia do genial arquiteto Victor Horta

Casa de Magritte, em Schaerbeek, Bruxelas

A Torre Japonesa e o Pavilhão Chinês em Laeken, Bruxelas

Dinant, Bélgica

Jobo Baldé, bravo soldado e exímio padeiro de Missirá
____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21231: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (14): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21252: Fotos à procura de... uma legenda (129): resta-nos, ao menos, a esperança de que amanhã é outro dia... (Luís Graça)





Lourinhã > Praia da Areia Branca, 13 de agosto de 2020 > O pôr do sol, com uma traineira da pesca de sardinhas a recolher ao porto de Peniche...


Lourinhã > Porto das Barcas > 7 de agosto de 202o > O sol por um fio... Visto da casa "Atira-te ao Mara". da Maria do Céu e do Joaquim Pinto Carvalho, "duques do Cadaval"


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Dizem que o mar é monótono. Tirando as tempestades, as marés vivas, as trovoadas, os naufrágios, as batalhas navais... Alô, Berlengas, Cabo Carvoeiro, Peniche, Paimogo, Montoito, Peralta, Atalaia, Porto das Barcas, Ribamar, Porto Dinheiro, Valmitão, Santa Cruz!... Corsários à vista!...

No verão do nosso deconfinamento, cumprimentamo-nos de cotovelo. Num de repente, as mãos impuras. Os rostos tapados. Passam, golfinhos ao largo. Sem sequer me dizerem adeus.

Há quem preferia a pata do dromedário. Ou o pé dos angulados. Eu aguardo pela osteotomia da tíbia. Mas nada resterá dos meus ossos se for incinerado a 900 graus centígrados. Que é a temperatura do fogo do inferno. Há quem prefira ser inumado. Com sorte ainda se salvará uma tíbia. Petrificada. 

Como os dinossauros da Lourinhã, que viveram no tempo em que se ia a pé, daqui a Nova Iorque. Alõ, João Crisóstomo, trago-te sardinhas do Mar do Cerro, do nosso mar. Alô, José Belo, anda daí beber um daiquiri, deixa lá as tuas renas ao cuidado do Estado Providência.  Alô, Jorge Araújo e Maria João, está na hora do chá, que Deus é Grande e o Mar Ainda é Maior.

Tiveram sorte, os dinossauros. A Lourinhã oferecia condições excecionais de fossilização. (Não sei se ainda oferece,  ou é publicidade enganosa ? Mudei de residência a pensar na minha fossilização futura.) Algumas espécies das centenas que existiram, chegaram até nós para contar a história, ou parte dela, deste planeto que eu amo. Uma omoplata, uma tíbia, uma pata.

Bom dia, João, bom dia, Joana, bom dia, Jorge, bom dia José, bom dia Cherno, bom dia Maria, bom dia Tony  & Isabel.  Bom dia, Lisboa, bom dia, Nova Iorque, bom dia Bissau, bom dia, Abu Dhabi, bom dia Macau, bom dia Key West, bom dia, Ponta de Sagres.  Bom dia amigos/as e camaradas. Nunca se sabe o tempo que fará amanhã. Mas resta-nos a esperança de que amanhã será outro dia...

Mas, tu, por que não te calas ? É insuportável o silêncio para a maior parte de nós. Perdemos a arte da meditação e contemplatação. Está tudo nas esplanadas a tirar chapas ao pôr do sol. E a comer choco frito. Ou batatas fritas. 

É como um orgasmo. Os dez minutos de felicidade passam depressa. Como o pôr do sol. Ruidosos, com o mundo todo à sua frente, os adolescentes não têm tempo para "curtir" o pôr do sol. Onde vamos logo à noite ? 

Acho que o mundo devia parar todos os dias para saudar o sol que se despede de nós. Dez minutos de puro silêncio faziam-te bem. De incomunicação total. Os telemóveis e as redes sociais em "black out" total...  Como se fossem os últimos dez minutos que te restassem para respirar. À superfície da terra. 

Luís Graça

PS - Gosto de ver o pôr do sol, daqui, da esplanada do Vigia, na Praia da Areia Branca, ou do "Atira-te ao Mar", a casa dos  "Duques do Cadaval", no Porto das Barcas... Gosto dos amigos que me dizem simplesmente: anda daí ver o pôr do sol, tenho um espumante geladinho no frigorífico.  Não se pode pedir mais aos amigos, neste mês de agosto do nosso desconfinamento,.

______________


Guiné 61/74 – P21251: Memórias de Gabú (José Saúde) (95): Imagens que nos tocam. O nosso quartel. (José Saúde)

 Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > c. 1973/74 >  Vista aérea do no quartel novo. Foto de Amílcar Ramos.


 


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamegp, Gabu, 1973/74) enviou-nos a seguinte mensagem:


Imagens que nos tocam: o  nosso quartel.

Camaradas, 

Levo até vós a imagem aérea do meu (nosso) quartel (o novo) que se localizava à saída de Gabu na estrada que nos conduzia a Bafatá. O velho situava-se no interior da localidade.  

Este é mais um pequeníssimo texto inserido no meu último livro – Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74 Memórias de Gabu –. 

Memórias que todos nós guardaremos no baú das recordações, uma vez todos vestimos o rótulo de antigos combatentes.  


Imagens que nos tocam: O nosso quartel 

por José Saúde


Obrigado, camarada Amílcar Ramos, por este pequeno/grande miminho que trouxeste a público: uma foto do quartel novo de Gabu. Uma imagem que me fez viajar no tempo e recordar o meu, aliás nosso, quartel. Tu, camarada de armas, também por lá passaste. Eras furriel miliciano BAA, estavas alojado em instalações avançadas junto à pista de aviação, mas, lá ias à messe de sargentos “carregar” o estômago.  

E tantos foram os almoços e jantares em que fomos companheiros de mesa. A minha memória teima em refazer imagens desses velhos tempos. Recordar espaços comuns, camaradas que o tempo ousou literalmente afastar e um sem número de aventuras acumuladas em pleno palco da guerrilha. 

“Uma lágrima ao canto do olho” vagueia pelo meu rosto abaixo e já crivado de saudosistas recordações. Olho atentamente a foto e curvo-me perante as lembranças. São, de facto, muitas que se concentram nesta já sexagenária e débil mente. Todavia, aquele horizonte leva-me a um mítico cheiro a África. Apeteceu-me viajar nas ondulantes asas do vento, imaginar-me a envergar o meu camuflado, “viajar” num Unimog, ou a “butes” por um trilho e desbravar aquele inigualável horizonte. 

Na pista alcatroada aterravam e descolavam aviões de maior porte (Noratlas, por exemplo) que obrigava o pessoal a uma proteção mais refinada.

A dimensão que a foto monopoliza, leva-me a outros sensações sentidas no tempo áureo da guerrilha. Aquela estrada para Bafatá!... Ui, tantas colunas que fizemos a terras do Geba e tantas histórias que farão eternamente parte integrante dos nossos baús.  

Depois a grandeza e profundidade daquele mato serrado. Os quilómetros palmilhados pelo interior daquele matagal. O contacto com as tabancas que habitualmente cruzávamos. O dialogar com os homens e as mulheres grandes. Ouvir a criançada quando a nossa chegada à tabanca ocorria. A brincadeira dos macacos, ou um inadvertido toque numa árvore que, entretanto, acolhia um enxame de abelhas e o subsequente delírio da rapaziada. Uma galinha de mato que levantava voo, ou uma gazela apetecível a um tiro que não se dava, por motivos óbvios. Enfim, uma panóplia de recordações que o guerrilheiro nunca esquecerá. Momentos inolvidáveis, sublinho eu.  

Por outro lado, havia os tais momentos sempre de incerteza. Incerteza no trilho; incerteza na picada; incerteza no que estava para lá da densidade do mato; incerteza no momento seguinte; incerteza numa mina que traiçoeiramente tinha sido colocada pelo IN com a finalidade de causar ronco num jovem em plena idade de afirmação e a incerteza numa emboscada. 

Reparo, também, as tabancas à beira da estrada. Revejo o meu quartel. Os aposentos dos oficiais, dos sargentos e do restante pessoal; a porta de armas; o refeitório das praças; as oficinas e  a parada.  

Camarada Amílcar, reforço o meu brigado pela lembrança!   

Um abraço, camaradas

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

____________

Nota de M.R.:

Vd. também o poste desta série em:

27 DE JULHO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21201: Memórias de Gabú (José Saúde) (94): Dois guerrilheiros do PAIGC piraram-se da prisão de Gabu (José Saúde)

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21250: Memórias cruzadas da Região do Cacheu: Plano (macabro) de assalto ao quartel de Varela, proposto por dois desertores das NT a Amílcar Cabral - Janeiro de 1963 (Jorge Araújo)


Foto 1> Guiné > Região de Cacheu > Varela > Praia de Varela, em Maio de 1968.  O quartel situava-se à direita.[Poste P18183 > Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-Alf Mil, CCS/BVAÇ 1933 (1967/69)], com a devida vénia. 

 


Foto 2  > Guiné > Região de Cacheu > Varela > Praia de Varela, Acesso à praia de Varela, em Maio de 1968 [P18183 > Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-Alf Mil, CCS/BVAÇ 1933 (1967/69)], com a devida vénia.

 

Foto 3 > Guiné > Região de Cacheu > Varela > Praia de Varela > Junho de 2011 > Vestígios do quartel de Varela (imagem retirada do Youtube [https://www.youtube.com/watch?v=ODFTcpeGwHQ] com o título: "Varela, Dégradation d'un site paradisiaque - Juin 2011 (Après la fête du 1º mai)" ["Varela, Degradação de um local paradisíaco - Junho de 2011 (após a festa do 1º de maio"), tradução do francês], com a devida vénia.





O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior; vive em, Almada, está atualmente nos Emiratos Árabes Unidos; tem mais  de 260 registos no nosso blogue.
 


MEMÓRIAS CRUZADAS

DA REGIÃO DO CACHEU ANTES DO INÍCIO DA GUERRA

O (CRUEL) PLANO DE ASSALTO AO QUARTEL DE VARELA, PROPOSTO POR DOIS DESERTORES DO EXÉRCITO PORTUGUÊS

A AMÍLCAR CABRAL, EM JANEIRO DE 1963,

E QUE FELIZMENTE NÃO PASSOU DE UMA INTENÇÃO

 

 

1.   - INTRODUÇÃO


Sabemos todos que não existem sociedades sem história, o mesmo acontecendo com todas as «Guerras», onde a ciência militar produz as suas… "Histórias". Porém, convém referir que nos casos da nossa (continuada) investigação historiográfica, nem sempre é possível misturar "relato" e "explicação", mas tão só investir no aprofundamento do primeiro conceito, como condição de saber histórico do passado, tornando-o, assim, objecto da história através da sua reconstrução, na agregação «História e Memória».


Quanto ao "puzzle da memória da guerra colonial da Guiné", acredito que a sua História global continuará a escrever-se no plural, pela importância do papel que a memória colectiva desempenha. NÓS ("EU" e "TU"), todos observadores e actores nos diferentes "palcos da missão", constituímo-nos como um valioso espólio da história de década e meia, no mínimo, unindo e reforçando as fontes de informação privilegiada, num processo dinâmico "entre contrários", porque, como diz o povo, "na guerra não se combate sozinho".   


Por outro lado, o que não sei (nem ninguém poderá saber!) é "SE" os propósitos da "História" que está na origem desta narrativa, que hoje partilho no Fórum, tivessem sido concretizados com sucesso, "SE" o início da guerra colonial no CTIG, simbolicamente aceite com o ataque ao Aquartelamento de Tite, em 23 de Janeiro de 1963, 4.ª feira, onde efectivos do Batalhão de Caçadores 237 [BCAÇ 237] – [25Jul61-19Out63, do TCor Inf Carlos Barroso Hipólito] – se encontravam estacionados, teria sido o/a mesmo/a? Provavelmente não teria sido!


O que também sei (sabemos) é que na ciência historiográfica ou histórica o "SE" não existe.

No presente caso, o que faz parte da História são os registos documentais encontrados, uma vez mais nos arquivos de Amílcar Cabral existentes na CasaComum, Fundação Mário Soares, onde estão plasmadas crenças, atitudes, comportamentos, valores, mudanças e modos de vida…, como se prova no documento abaixo reproduzido.


Sabemos que antes do ataque ao Aquartelamento de Tite [23Jan63] haviam já ocorrido diversas actividades subversivas, as primeiras dois anos antes, por iniciativa de grupos armados sediados no Senegal, de que são exemplos as acções em S. Domingos, Susana e Varela.

 


Foto 4 > Guiné > Região de Cacheu > Varela >  Um dos edifícios existentes em Varela, propriedade do Banco Nacional Ultramarino, complexo vandalizado em 1961, por grupos de indivíduos oriundos do Senegal, e onde ficaram alojadas as primeiras forças militares portuguesas (um Gr Comb da CART 240). Foto do acervo documental do BNU (P18534), com a devida vénia.

 

Sobre estas actividades subversivas de Julho de 1961, sugiro a leitura do P18534 «Historiografia da presença portuguesa em África: imagens e relatórios dos actos de vandalismo praticados pelo MLG, na Praia de Varela, encontrados no acervo documental do Banco Nacional Ultramarino», trabalho elaborado pelo camarada Mário Beja Santos.


Na mesma perspectiva histórica segue o artigo de José Matos - O início da Guerra na Guiné (1961-1964) - publicado na «Revista Militar» n.º 2566, de Novembro de 2015.

 

 

Capa da Revista Militar – 2566 – Novembro de 2015

 


Mapa da região norte da Guiné (fronteira com o Senegal), assinalando-se as linhas de infiltração da guerrilha nos anos de 1961/1963 (fonte: op. cit), com a devida vénia.

 

Como fonte oficial, que naquele período era considerada confidencial, recupera-se parte do documento publicado no P15962 - "O que dizem os Perintreps: Violações da fronteira e assaltos no chão felupe, em Julho de 1961: S. Domingos (a 18, 21 e 24), Ingoré (a 21), Susana (a 24) e Varela (a 25)", da autoria de Nuno Rubim (Cmdt da CCAÇ 726 (Out64-Jul66) e CCAÇ 1424 (Jan66-Dez66) e, em segunda comissão, no Quartel-General (QG).






2.   - PLANO DE ASSALTO AO QUARTEL DE VARELA, ELABORADO EM DAKAR POR DOIS DESERTORES DO EXÉRCITO PORTUGUÊS, E DIRIGIDO A AMÍLCAR CABRAL, EM 04 DE JANEIRO DE 1963


Os autores do "plano de assalto ao Quartel de Varela", elaborado em Dakar, em 04 de Janeiro de 1963, 6.ª feira, e dirigido a Amílcar Cabral (1924-1973) por intermédio de José Araújo (1933-1992), responsável do PAIGC do Bureau de Dakar, que felizmente não se concretizou, pertenciam às CART 240 e CART 250, respectivamente, António de Jesus Marques (1.º cabo enfermeiro) e António Augusto de Brito Lança (furriel mil de artilharia).


Uma vez que nos Arquivos do Exército nada consta, no que à "História" das duas Unidades diz respeito, pois essa prática não abrangeu o período inicial das "Campanhas", procedemos à elaboração de uma resenha histórica "a nível operacional" durante a sua presença no CTIG.


2.1 - A MOBILIZAÇÃO PARA O CTIG DA CART 240


Mobilizada pelo Grupo de Artilharia Contra Aeronaves 2 (GACA 2), de Torres Novas, para servir na província ultramarina da Guiné, embarcou em Lisboa, provavelmente por via aérea, em 30 de Julho de 1961, domingo, sob o comando do Capitão Art Manuel Fernando Ribeiro da Silva, tendo chegado a Bissau na mesma data.   


2.1.1 - SÍNTESE DA MOBILIDADE OPERACIONAL DA CART 240


A CART 240 foi colocada em Bissau, onde manteve a sua sede durante toda a comissão (30Jul61-19Out63), sendo integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 236 [21Jul61-19Out63, do TCor Inf José Alves Moreira], a fim de colaborar na segurança e defesa das instalações e das populações da área. 


Em princípios de Fev72, destacou um Gr Comb para guarnecer a povoação de Varela, em substituição da CCAÇ 74 [18Mar61-12Fev63, do Cap Inf Alcides José Sacramento Marques], o qual ficou integrado no dispositivo do BCAÇ 239 [06Jul61-24Jul63, do Maj Inf António Maria Filipe (1.º) e TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas (2.º)]. Ao fim de um ano de permanência em Varela (finais de Fev63), este Gr Comb foi transferido para Susana, recolhendo a Bissau no mês seguinte.


A CART 240 destacou ainda Grs Comb para Quinhamel, de princípios de Ago62 a meados de Set62 e novamente a partir de Abr63, e para Nhacra, a partir de meados de Jul63. De 01 a 27Jun63, foi atribuída em reforço do BCAÇ 356 [23Jan62-17Jan64; do TCor Inf João Maria da Silva Delgado], com vista à realização da «Operação Seta», na região do Quinara-Fulacunda, nas áreas de Iusse, Bissássema, Nova Sintra e Jabadá.


Em 18Out63, foi rendida pela CART 564 [14Out63-27Out65; do Cap Mil Art Rodrigo Claro de Albuquerque Menezes de Vasconcelos (1.º) e Cap Art António Manuel Fevereiro Chambel (2.º)], a fim de efectuar o embarque de regresso (Ceca; p 433).


2.2 - A MOBILIZAÇÃO PARA O CTIG DA CART 250


Mobilizada pelo Regimento de Artilharia Pesada 2 (RAP 2), em Vila Nova de Gaia, para servir na província ultramarina da Guiné, embarcou em Lisboa, no Cais da Rocha, em 10 de Agosto de 1961, 5.ª feira, sob o comando do Capitão Art José Maria Eusébio Alves, tendo desembarcado em Bissau na 4.ª feira seguinte, dia 16 de Agosto.

  

2.2.1 - SÍNTESE DA MOBILIDADE OPERACIONAL DA CART 250



A CART 250 foi colocada em Bissau, onde manteve a sua sede durante toda a comissão (16Ago61-06Nov63), sendo integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 236 [o mesmo da CART 240], em substituição da CCAÇ 52 [18Ago59-17Ago61; do Cap Inf Frederico Alfredo de Carvalho Ressano Garcia], a fim de assegurar a segurança e defesa das instalações e das populações da área.


Por períodos variáveis, a CART 250 cedeu pelotões para reforço de outros batalhões e intervenção em acções de nomadização e batida nas regiões de Mansodé/Mansabá, em Jul63, sob dependência do BCAÇ 507 [20Jul63-29Abr65; do TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas] e Xime, em Ago63, sob a dependência do BCAÇ 506 [20Jul63-29Abr65; do TCor Inf Luís do Nascimento Matos].


Em 04Nov63, já na dependência do BCAÇ 600 [18Out63-20Ago65; do TCor Inf Manuel Maria Castel Branco Vieira], foi substituída no sector de Bissau pela CCAÇ 555 [03Nov63-28Out65; do Cap Inf António José Brites Leitão Rito], a fim de efectuar o embarque de regresso (Ceca; p 434).


2.3 - O PLANO DE ATAQUE AO QUARTEL DE VARELA – JAN1963


A ideia perversa e macabra que levou à elaboração do projecto (plano) de "ataque ao quartel de Varela" é atribuída a dois desertores do Exército Português, conforme referido anteriormente: o António de Jesus Marques, da CART 240, e o António de Brito Lança, da CART 250.

Essa prova pode ser conferida no documento que abaixo se reproduz.


Chegados ao CTIG no início do 2.º semestre de 1961, um Gr Comb da CART 240, onde estaria incluído o António de Jesus Marques [?], seguiu para Varela, com o objectivo de guarnecer essa povoação situada na região do Cacheu (Norte), enquanto o António de Brito Lança, da CART 250, permaneceu em Bissau, provavelmente em instalações situadas nos arredores do Aeroporto, em Bissalanca.


Em função de outras informações de que dispomos, mas que não se enquadram na presente narrativa, é de acreditar que destes dois militares, o primeiro a desertar para o Senegal tenha sido o António Lança, durante o Outono de 1962, e o António Marques, algumas semanas depois, mas ainda no decurso do mesmo ano. Portanto, antes do início do conflito armado.


Considerando que o António Marques estivera destacado em Varela, é de admitir (!?) que tenha sido ele o autor do croqui do "quartel a atacar" (o seu, em Varela). 


   

Esboço da planta do quartel de Varela em 1962/1963, atribuível ao desertor António de Jesus Marques, da CART 240

 


 

Fotos 5 e 6 (Varela, Junho de 2011) – Vestígios do quartel de Varela (imagem retirada do Youtube [https://www.youtube.com/watch?v=ODFTcpeGwHQ] com o título: "Varela, Dégradation d'un site paradisiaque - Juin 2011 (Après la fête du 1º mai)" [Varela, Degradação de um local paradisíaco - Junho de 2011 (após a festa do 1.º de maio), tradução do francês], com a devida vénia.

 


Quanto à descrição apresentada na proposta, não nos é possível identificar o seu autor (moral), na medida em que a carta foi dactilografada (em máquina portátil), acto realizado em Dakar, com data de 4/1/963, 6.ª feira, mas assinada por ambos.


 

Citação: (1963), "Plano de assalto ao quartel de Varela", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível http: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40296 (com a devida vénia)

Aqui vai um excerto do plano (!) dos desertores que conheciam os hábitos dos seus camaradas da guarnição de Varela: 

(...) "Como eles costumam fazer o café de véspera e guardá-lo dentro de um armário na cozinha, nós íamos lá uma noite e envenenávamos o café e a água que se encontram onde a figura indica.

"Depois de o fazermos. deixávamos um sentinela onde ele pudesse ver as sentinelas do quartel. Logo que o nosso sentinela visse cair o sentinela da porta principal, procurava prestar-lhe socorro e ir comunicar lá dentro para ver o ambiente. Logo que ele visse que poderíamos entrar, dar-nos-ia um sinal. Traríamos um soldado connosco e enterravamo-lo para eles virem a pensar que o que faltava teria sido o autor do sucedido. 

"O material la existente é:  cerca de trinta armas automáticas de marca  G-3; oito  pistolas metralhadoras de marca UZI: três  bazucas ou lança granadas-foguete;  três metralhadoras de marca Drise. Têm ainda munições suficientes para fazerem fogo durante vinte e quatro horas seguidas" (...) .


► Em suma:

1.    - Não estando explícitos, na carta/plano, os objectivos do "ataque ao Quartel de Varela", creio que da sua leitura se pode inferir que o alvo principal seria o "roubo de armas": 30 G-3; 8 pistolas UZI: 3 bazucas; 3 metralhadoras Drise e uma determinada quantidade de munições que "dariam para vinte e quatro horas de fogo".

 

2.    - Na prática, para que os autores deste plano pudessem ser bem-sucedidos, alguns dos seus antigos camaradas com quem fizeram a viagem até à Guiné, em Agosto de 1961, e com quem viveram e conviveram durante alguns meses, seriam envenenados... e um deles seria enterrado.

 

3.    - Felizmente que tal não aconteceu.

 

4.    - Caso contrário teria sido uma "cena" Brutal… Cruel… e… e… e…

► Fontes consultadas:

Ø  Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07061.032.004 Título: Plano de assalto ao quartel de Varela. Assunto: Plano de assalto ao quartel de Varela apresentado a Amílcar Cabral por dois elementos do Bureau de Dakar, António Brito Lança e António de Jesus Marques. Contém ainda uma apresentação destinada a acompanhar uma brochura com a declaração de Amílcar Cabral perante a IV Comissão da ONU. Data: Sexta, 4 de Janeiro de 1963. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.

 

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002); pp 433-434.

 

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço

Jorge Araújo.

23JUL2020

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21249: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XLII: Emílio José Alves Lourenço, ten pilav (Mafra, 1946 - Moçambique, 1973)





Cor art ref Morais da Silva
´

1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais, oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual à direita], membro da nossa Tabanca Grande [, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972 ]

Guiné 61/74 - P21248: Historiografia da presença portuguesa em África (226): Aleixo Justiniano Sócrates da Costa - Um outro olhar sobre a Guiné em 1885 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
São artigos de leitura irrecusável, e por motivos sólidos. Aleixo Justiniano Sócrates da Costa foi um médico militar goês que prestou serviço em Cabo Verde e na Guiné, documentou-se, escrevia muitíssimo bem, e neste texto até se destaca os parágrafos que ele reserva à descrição das tempestades, é do melhor naturalismo literário que se pode imaginar. Veja-se como ele consagra fronteiras, exatamente um ano antes de Portugal ter chegado a um acordo com a França. Já vários investigadores observaram que se é verdade que perdemos toda a soberania na bacia do Casamansa e recebemos a península de Cacine, um presente inesperado, o tratado deu uma configuração à presença portuguesa onde até agora essa presença não passara de uma pura ilusão. Impossível fazer-se aqui mais do que uma pura resenha aos bastos conhecimentos deste facultativo do Ultramar, veremos no próximo texto o enquadramento que ele deu à agricultura e ao comércio e às propostas que apresentava para ultrapassar o estado de profundo subdesenvolvimento em que se encontrava a colónia.

Um abraço do
Mário


Um outro olhar sobre a Guiné em 1885 (1)

Beja Santos

O seu nome é Aleixo Justiniano Sócrates da Costa, era médico militar goês, prestou serviço em Cabo Verde e na Guiné, sócio ordinário da Sociedade de Geografia de Lisboa e nos boletins da instituição, 4.ª série, n.ºs 2, 3 e 4, de 1885, lançou-se ao trabalho para descrever aos seus confrades da Sociedade de Geografia, o que era a Guiné. Há pontos que são verdadeiramente importantes, veja-se o que era para este facultativo a superfície da colónia:
“O distrito, hoje província, da Guiné Portuguesa, que devia abranger todo o litoral da costa ocidental de África e ilhas adjacentes, desde Cabo Verde até à Serra Leoa, compunha-se há pouco tempo dos concelhos de Bissau, Bolama e Cacheu, com suas dependências. Ao Concelho de Bissau pertencem o presídio de Geba, a ilha de Orango, nos Bijagós, e alguns pontos do Xime e S. Belchior no rio Geba. Fá e Ganjarra, que se acham abandonados desde 1861, estão situados no mesmo rio.
O Concelho de Bolama, hoje sede do Governo, é constituído pela ilha do mesmo nome, com a das Galinhas e com os territórios do rio Grande e do rio Tombali. O Concelho de Cacheu abrange a povoação do mesmo nome, o presídio de Farim, no rio de S. Domingos, o presídio de Zinguinchor, no rio Casamansa, as aldeias de Bolor, Jefunco e Varela, na margem direita da barra de Cacheu, e a de Mata e Putama, na esquerda”.
Definição curiosa, para quem gosta de estudar a Guiné é agora possível comparar o que se admitia ser a Guiné em 1885 e qual o território que a Convenção Luso-Francesa, de 12 de maio de 1886, veio a reconhecer à soberania portuguesa.
É um médico que estudou e percorreu várias regiões. Procura ser rigoroso quando fala da população gentílica da ilha de Bissau, e dá pormenores sobre Antula, Bandim, Intim, Bigemetá, Buim, Cumeré, Prabis, Quixete, Safim e Torre.
O seu comentário sobre Geba tem igualmente muito interesse: “É principalmente neste desgraçado presídio, quase totalmente abandonado pelo Governo, que os selvagens executam as mais escandalosas pilhagens. É sobre eles que o gentio faz recair toda a sua fúria e sanha. As guerras entre Fulas e Mandingas, e a indiferença com que o Governo olhou essas guerras, promoveram a ruína desse importantíssimo ponto da Guiné.
A povoação de Geba é aprazível pela frescura dos bosques que a revestem. Tendo de comprimento 2 milhas e de largura 1. Apesar da pequenez da sua área é de magna importância, porque pode dizer-se que é o primeiro centro comercial da Senegâmbia”.

Comentando o bombardeamento da ilha de Orango às ordens do Governador Agostinho Coelho, o autor pede a maior firmeza e severidade: “Na Guiné não há que recuar, não há que parar. Ou tudo, ou nada. O gentio ali há-de ser sempre insolente e sempre para temer enquanto não levar a lição severa e geral que lhe sirva de escarmento”.

Não é peco a dissertar sobre o que quer que seja: a instrução, a incúria na educação da mulher, o estado do catolicismo no território, a idolatria, o islamismo, o estado em que se encontram os edifícios públicos, as deploráveis condições hígio-sanitárias da vila de Bissau. Recorda-se ao leitor que já aqui se fez menção quanto à existência nos Reservados da Sociedade de Geografia de um documento de Aleixo Justiniano Sócrates da Costa sobre a vila de Bissau, é documento obrigatório para qualquer investigador ou interessado em conhecer com profundidade a Guiné antes da sua autonomização em 1879.

Este médico goês é por vezes capaz de uma muito boa prosa poética, é possuidor de um invejável vigor naturalista. A propósito da meteorologia, vale a pena reproduzir na íntegra o que ele diz sobre os temporais da Guiné:
“São majestosos os temporais na Guiné. São medonhas aquelas convulsões da natureza que, ali, grande em tudo, até nos horrores da tempestade, patenteia o seu imenso vigor e se expande em toda a sua altiva e orgulhosa beleza.
Surdo rumor das vagas revoltas, que nas costas se torcem e se revolvem convulsivas, como se as fustigasse a asa procelosa do génio das solidões, ocultos estremecimentos, rugidos que se não sabe de onde partem, preludiam o conflito dos elementos irritados, que se vão dar tremendo recontro na amplidão do espaço e dos mares.
Nuvens de densa negrura, ou de cor acobreada, reverberando baços e fulvos clarões, vão-se acastelando entre Norte e Sudeste, correndo em direcção contínua ao vento, que sibila horríssono.
Súbito, medonho ribombo anuncia que o trovão rompe a batalha. É o clarim da tempestade. Para logo os relâmpagos sulcam ininterruptos a tenebrosa densidade do caos, e o eco medonho dos trovões, percutindo o espaço, um após outro, abala a natureza inteira em tremenda convulsão.
Se é noite, o denso negrume da atmosfera não deixa divisar uma única estrela. A lua, de instante em instante encoberta pelas tétricas nuvens que se debatem no espaço, apenas envia à terra lívidos clarões.
Acalma-se em seguida o vento. As nuvens, até ali condensadas ou encapeladas em rolos sobrepostos, estendem-se pelo horizonte, e, subindo finalmente, formam um arco semelhante ao Íris. No vão deste arco fuzilam amiudados relâmpagos, acompanhando o ribombo incessante dos trovões, e do meio desta traiçoeira calma levanta-se rijíssimo Nordeste, que em seguida refresca, e salta para Este e Sudeste. Então, como derradeira manifestação da pavorosa convulsão da natureza, as nuvens rasgam o bojo lívido e prenhe de electricidade, e torrentes de aguaceiro se despenham em catarata, inundando a terra. É o parto do cataclismo. Cessam as convulsões.
Vão-se rareando as descargas eléctricas. O trovão já não abala os polos. O vento, enfraquecido pela chuva ronda ao Sul, já muito bonançoso e soprando só as bafagens; e quando chega ao quadrante Sudeste decai em calmaria. Descansam os elementos e respira a natureza.
É de uma hora a hora e meia a duração ordinária deste imponente espectáculo.”

(continua)


Carnaval de Bolama, "Grupo Cultural Bolama Nobo"
Retirado do Pinterest, rede social, com a devida vénia

Bissau, depois da tempestade Fred, em 2015
Imagem retirada de Novas da Guiné-Bissau, com a devida vénia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21227: Historiografia da presença portuguesa em África (225): Os Banhuns da Guiné: num romance e na etno-história (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21247: Da Suécia com saudade (80): Um país "neutral" há mais de 200 anos, desde os tempos de Napoleão (José Belo)


Buba, Aldeia Formosa, Mampaté e Empada,
1968/70); cap inf ref,  jurista, criador de renas,
autor da série "Da Suécia com Saudadr"; 
vive na Suécia há mais de 4 décadas; régulo da 
Tabanca da Lapónia; tem cerca de 170 referências 
no nosso blogue
´

1, Mensagem de José Belo:

Date: sexta, 31/07/2020 à(s) 08:29
Subject: Respondendo a pergunta (em comentário) de Valdemar Queiroz (*)

Apesar dos saques efectuados pelas tropas suecas, um pouco por toda a parte no Norte e Centro europeus aquando da Guerra dos 30 Anos [1618-1648], as riquezas obtidas foram delapidadas tanto com o enorme aparelho militar como na aquisição de vastas propriedades e sumptuosos palácios por parte da aristocracia que participara, direta ou indiretamente,  na guerra.

A fome e pobreza, tanto rural como entre o proletariado das cidades, não foi diminuída por esta afluência de capitais.

Esta continuada falta de soluções sociais levou a que, nas décadas que se seguiram à guerra civil Norte Americana (1861-1865),  uns bons milhares de famílias suecas, principalmente rurais, tenham sido obrigadas a emigrar para os Estados Unidos, literalmente para sobreviver à fome!

O censo Americano de 1890 mostra uma população sueco-americana de cerca de 800.000 indivíduos, número muito considerável tendo em conta a população sueca de então.

Curiosamente a maioria das famílias suecas escolheu o Estado da Minnesota para se estabelecerem no novo país. Estado bem a Norte, fronteiro ao Canadá, onde a natureza nos seus inúmeros lagos e rios, assim como frio intenso e muita neve, certamente os fez sentir... em casa!

A influência escandinava continua muito forte neste Estado, tanto racial como cultural. Inúmeras pequenas cidades com nomes suecos, assim como lojas, restaurantes com pratos regionais suecos, dialeto e festas tradicionais, somando-se um actualmente muito forte intercâmbio cultural entre universidades locais e suecas.

A reviravolta económica e industrial sueca surge intimamente ligada à sua "neutralidade". Deve ser recordado não ter o país participado em qualquer guerra desde os tempos de Napoleão, sendo caso único a nível europeu estes 200 anos contínuos de paz.

Neutralidade sempre extremamente armada(!) por uma indústria nacional de guerra a níveis aéreos, navais e terrestres que lhe permite uma independência em relação aos fornecedores destes materiais e a todas as "condições" sempre por eles impostas.

As exportações da vasta indústria de material militar, hoje muito sofisticado a nível aéreo, naval e, não menos, espacial (!), faz entrar nos cofres do Estado receitas importantíssimas... "made in Sverige".

Com o fim da segunda guerra mundial, e enquanto as potências europeias se encontravam com as suas indústrias em condições mais do que precárias, todo o parque industrial, e exploração mineira, da neutral Suécia funcionava em pleno.

Os importantes meios de transportes, marítimos, aéreos, ferroviários, e autoestradas, estavam também intactos.

Muito do material industrial e de construção utilizado pelo plano Americano Marshal na sua reconstrução da Europa (e não menos da fundamental Alemanha) foi comprado na Suécia e por ela transportado para os locais necessários.

A proximidade geográfica da Suécia em relação aos países necessitados vinha diminuir muito consideravelmente os custosos transportes, caso contrário em longas viagens transatlânticas desde os Estados Unidos.

A partir deste importante período, de enormes entradas de capital que vieram permitir toda uma expansão económica e industrial, surge a "revolução" social democrata que acabou por construir a Suécia dos nossos dias.

Com todos os seus defeitos e limitações mas... também com as realidades sociais que a colocam a muitas dezenas de anos (para não escrever centenas!) de avanços em relação a outros países. Os Estados Unidos incluídos!

De resto... Nada de novo sob o Sol.

Um abraço do J. Belo
___________

Nota do editor: