Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 12 de setembro de 2020
Guiné 61/74 - P21350: Os nossos seres, saberes e lazeres (410): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (6) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
A vila de Ponte de Lima preza os jardins, aliás, vem na Rota das Camélias do Alto Minho, e não só. Num lugar chamado Arcozelo, passando a ponte da vila, por onde se veem locais e peregrinos a caminho de Santiago de Compostela há um lindíssimo parque temático com mostra de vários tipos de jardins, tudo num recato a contemplar maciços florais de azáleas e rododendros viçosos, estava a despontar a primavera, dentro de dias iria anunciar-se o Covid-19, por enquanto ninguém se assusta quando vê outro a passar bem rente. E regressou-se à vila sede de concelho melhor equipado de solares barrocos, o que interessava era mirar todo este casario quase todo reparado, sólido, que se ergue de um lajeado de pedra, parece ser uma natural erupção, são construções sólidas, como as fontes, as ruas apertadas, o casario com aparência de fortim adaptado às necessidades do conforto atual. Percebe-se o orgulho que os limianos põem no tratamento deste património que singulariza a vila mais antiga de Portugal por todos estes aspetos da presença da natureza, a corrente amena do Lima, as áreas frondosas, a Avenida dos Plátanos não tem rival e a solidez das construções com uma certa reminiscência que vai do Medieval ao Barroco.
O saudoso amigo por quem hoje fiz esta viagem, e que era um limiano que nada esquecera das suas origens, percebo agora, tinha carradas de razão em desvendar regularmente as saudades latentes que reprimia a tanto custo, viagens de retorno impossíveis de fazer, pois ele vivia cego, acalentado por uma memória prodigiosa. Bendita viagem que agora pude fazer, confirmo toda a legitimidade do seu orgulho limiano.
Um abraço do
Mário
No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (6)
Mário Beja Santos
Inicia-se o percurso da manhã em demanda de um belo jardim de Ponte de Lima, chamado Parque Temático do Arnado. A vila resplandece de cor, num pré-aviso de primavera, há jardins no passeio ribeirinho, flores não faltam na Avenida dos Plátanos, no Jardim dos Terceiros, e quando aqui se arribou, perto do Largo Dr. António Magalhães, deu-se com o despontar floral, irá encontrar igualmente no Jardim Dr. Adelino Sampaio, quando se andou a visitar o belo e antigo edifício da autarquia. Atravessa-se a ponte, em direção de Arcozelo, dá-se de frente com a Igreja de Santo António dos Frades e ali bem perto a Capela do Anjo da Guarda. Este monumento nacional é de um gótico inusitado, lembra o vestígio de um elemento de fortim, mas é cobertura de um anjo e a vista que daqui se desfruta sobre Ponte de Lima, nesta manhã límpida e de temperatura morna é um bálsamo para os olhos.
O parque temático requer tempo para contemplar, comporta vários jardins, nesta altura é um deslumbramento de azáleas e rododendros, tudo cheio de viço, em tons fosforescentes. Deambula-se o jardim romano, segue-se para o jardim Labirinto, o Renascença e o Barroco. É um ambiente de paz, os visitantes são escassíssimos, ouve-se o trabalho dos jardineiros, à distância, a estufa está fechada bem como o Centro de Interpretação do Território, lamenta-se muito, ouviu-se dizer que é digno de menção o acervo de atividades agrícolas, festas, artesanato, mostra-se o trabalho da terra, a produção de linho. Enfim, fica para a próxima visita, não se deve deambular só ao acaso, só à espera de ser acicatado pelo imprevisto, há telefones, deles se deve fazer uso, como teria sido o caso.
Antes de regressar à vila propriamente dita, para-se diante do que já foi uma bela mansão e que merecia melhor tratamento. O concelho é possuidor de belos solares, tem delicado e valioso património em igrejas românicas, há vestígios do passado desde a cultura castreja a sepulturas medievais, há santuários e cruzeiros e diferentes pontes, mas os solares barrocos vão alçapremar Ponte de Lima numa posição única, já se referiu anteriormente, possui o maior conjunto existente em Portugal destes solares, passou-se à berma do Solar de Bertiandos, quando se foi visitar a lagoa com o mesmo nome. Outra visita que se regista para a próxima itinerância limiana.
Batemos na mesma tecla, sucedem-se as mostras de património dentro da vila, e quem não se limita a vir só de passagem e tem vários dias para ir pondo o pé noutros lugares do Alto Minho, passear dentro da vila e depois torcer para a margem direita e calcorrear os caminhos, saborear este rio Lima de águas serenas, sem a mínima convulsão, traz uma grande paz de espírito. Esta visita foi programada para homenagear um amigo do coração, o mais indefetível dos limianos que, sempre em Lisboa, nunca descurou as suas origens e a cultura do berço. Falava regularmente da Casa da Feitosa, foi lamentável ter desenhado este roteiro sem no mínimo cuidar sobre a existência desta casa. Mais um elemento a adicionar para a próxima visita. Vejam-se os pormenores escultóricos nas janelas, os brasões, a harmonia daquela escadaria que leva à Capela das Pereiras, casas que nos lembram autênticas fortificações e outras que estão harmoniosamente adossadas aos restos da muralha. Prossegue-se o passeio até à Casa de Nossa Senhora d’Aurora, o meu saudoso amigo tinha um grande afeto por Manuel Aurora e conhecia praticamente de cor os livros do 3.º Conde.
Leio numa brochura que me foi oferecida no Turismo: “Na Rua do Arrabalde, contemplamos a Casa de Nossa Senhora d’Aurora, a residência mais imponente e majestosa da vila brasonada, construída na primeira metade do século XVIII pelo engenheiro e arquiteto Manuel Pinto de Vila Lobos. A capela da casa, consagrada a S. João Baptista, alberga um gracioso retábulo barroco com representações escultóricas de Santo Elesbão e Santa Ifigénia da Núbia, santos negros de figuração rara”.
Chegou o tempo de amesendar, cresce água na boca por um bom caldo verde e uma posta de bacalhau, talvez assado, depois esmoer esta fartura um pouco à beira Lima, a tarde será destinada a Arcos de Valdevez.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21327: Os nossos seres, saberes e lazeres (409): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (5) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P21349: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (5): A visita da Cilinha ao destacamento de Nova Sintra, em 1973...
Assunto: Foto / documento histórico
Nova Sintra-Setor do Quínara-Guiné 1972/74
"Os Mais de Nova Sintra"
Bart 6520/72 - 2ª Cart
A Cilinha do Movimento Nacional Feminino, numa visita ao destacamento de Nova Sintra, em 1973
O Alferes Figueira, cabo-verdiano, grande amigo, acompanhou a visita desta "ilustre" personagem
ao nosso destacamento onde a guerra estava sempre ativa. (**)
Notas do editor:
(**) Último poste da série > 7 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21332: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (4): A cabrinha Inha...
(***) Vd poste de 2 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21316: Tabanca Grande (501): Carlos Barros, ex-fur mil, 2ª CART / BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74) que passa a sentar-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 815... É natural de Esposende e professor aposentado.
sexta-feira, 11 de setembro de 2020
Guiné 61/74 - P21348: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (18): A funda que arremessa para o fundo da memória
Queridos amigos,
O episódio já tem barbas, apareceu, mais desenvolvidamente, no primeiro volume do meu Diário. Mas fazia todo o sentido fazer-se a revisitação, Paulo Guilherme vai enviando cronologicamente alguns dos episódios para ele mais salientes da guerra que ele viveu. Dentro de uma trama que funciona como as bonecas russas, abre-se um episódio e encontra-se nova porta, emerge desta pseudo correspondência uma relação cada vez mais estreita, pesa a intimidade dos episódios, um tanto caleidoscópicos, que organizam a imagem afetuosa destes dois cinquentões que vivem em pleno deslumbramento, onde o passado de ambos adquire uma nova imagem, um quase cabedal de sabedoria que os prepara para enfrentar o futuro em radiante felicidade.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (18): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon amoureux Paulo, a reunião no Parlamento terminou cedo, vim rapidamente para casa, limitei-me a fazer umas compras imperativas no Delhaize, tinha uma volumosa carta tua no correio, és sempre mais importante que as artes da culinária, sentei-me na sala, estava imenso calor, servi-me de uma cerveja Orval, em tua homenagem, sei muito bem que é a tua cerveja predileta. Davas-me conta do primeiro grande drama, um patrulhamento perto de uma antiga povoação chamada Chicri, será a primeira que tu matarás um ser humano, num recontro com população rebelde, e virá então um episódio do maior dos sofrimentos que tu intitulas “O Presépio de Chicri”, observando que se acaso o romance for por diante tudo aquilo que aqui se escreve será dele parte integrante. Começas por referir o encontro com Paulo Ribeiro Semedo, vocês não se viam há mais de 31 anos, e impressiona-me muito os elementos que tu pões na escrita, tudo numa toada de conversa, tu vais reviver o que foi o sofrimento do Paulo:
“A 19 de dezembro de 1968, tomei a decisão de partirmos a 22 para patrulhar Chicri, aproveitando a missão de vigilância em Mato de Cão, fora anunciado que passaria um comboio de embarcações civis ao amanhecer, saí de Bambadinca para Bissau.
Precisei de meses para me aperceber da importância estratégica de Missirá e Finete, e bem patrulhei a região até aos limites da sensatez, nunca procurei o contato direto indo com um grupo que não excedia 30 homens. Mas as provas da presença dos rebeldes no Cuor eram por demais evidentes. Os guerrilheiros de Madina do Cuor abasteciam-se atravessando o Geba em dois pontos: perto de Samba Silate, que fora até ao princípio da guerra a mais populosa tabanca de todo o Leste; ou em Mero, a Oeste, atravessando o Geba estreito, em região habitada por Balantas. Dizia-se, mas eu não o podia comprovar, que na região de Ponta Varela o PAIGC atravessava o Geba com a sua artilharia pesada e munições.
Visitei várias vezes esta região de Chicri, possuía um esplendoroso palmar, antes da guerra pôr a terra próspera, agora restavam umas estacas ainda espetadas no ar e subindo um pouco um declive pedregoso a vista era bafejada por um Geba refulgente, serpenteando entre o Xime e Bambadinca. E na última visita detetámos um trilho, houve o cuidado de o flanquear, para não deixar marcas. A 22 seria o patrulhamento para reconhecer o itinerário rebelde.
Paulo, provavelmente estará esquecido, mas a 19 de dezembro, contemplando aquele anfiteatro, tu disseste-me: ‘Chicri não parece um presépio?’. E pediste-me para ir a Bafatá comprar figurinhas de barro, querias fazer um presépio em Missirá, não me surpreendeu, tu eras cristão de Geba, usavas o fio ao pescoço com a Cruz de Cristo. Nessa madrugada do dia 22, tu já tinhas deixado armado na messe o presépio com as figuras principais, ornado de uma bela vegetação. Percorremos lamaçais, atravessámos, um tanto tolhidos pelo cacimbo, as pernas encharcadas pelo capim orvalhado, eram cerca de sete horas com muita humidade naquele dia a despertar. Avistado o trilho, confirmada a presença recente pelos vestígios de uma fogueira, restos de caju e peixe e uma patorra bem desenhada na areia, desta vez sem qualquer hesitação internamos a floresta fechada, à frente Quebá Soncó, Cibo Indjai, eu e o José Jamanca, íamos dentro do trilho, o importante era detetar se havia uma base rebelde entre Madina e Chicri. Quebá, sempre com aquele seu ar assustado e receoso, a rogar uma marcha mais lenta, um sol brutal escoava-se entre a ramaria e assim progrediu aquele caminhar quase sonâmbulo, sem se ouvir o piar das aves. Como se fosse hoje, tu vieste de mim pedir um cigarro, desaconselhei, não se fuma em terra de combate.
E de repente, na curva da picada, Quebá Sonco e Cibo Indjai atiram-se para o chão, tenho a pouco mais de cinco metros de mim um homem fardado de caqui amarelo, um estranho cofió, olhamo-nos estuporados e confusos. Levantámos as armas, foram dois tiros num só eco. Aquele homem que eu nunca vira levou a mão ao ombro direito, revolteou e quem seguia atrás dele tomou conta de um corpo ferido. Seguiu-se o tiroteio caótico, o estoiro das granadas, tu estrondeavas o temível dilagrama, os guerrilheiros abandonaram o terreno que ficou juncado de despojos. Cibo Indjai exibia triunfante uma Simonov, arma que nunca me passara pelas mãos. E nisto ouviu-se um urro medonho, e eu só me lembro de ver numa rodilha de carne dilacerada, feridas de onde saíam golfadas de sangue. Logo que se percebeu o que tinha acontecido, tinhas misturado os cartuchos especiais para dilagrama com balas reais, preparavas a tua condenação. Pressentiste um fim doloroso, estava ajoelhado diante de ti, impotente tu a pedires para te dar um tiro de misericórdia. Tu estavas muito mal, o braço esquerdo todo rasgado, buracos no peito, estilhaços nas pernas, pensei mesmo que tinhas perdido os dois olhos.
Havia que retirar prontamente, tentar um helicóptero para a tua salvação. Vieste nas minhas cavalitas, pernas e pés presos com cordões, resvalavas como um peso morto, ajudava-me Mamadu Djau que te elevava pela rabada. Paulo, encurtemos estes pormenores dolorosos, chegámos a Bambadinca e uma Dornier levou-te para Bissau. Ficaste muito sinistrado, mas para mim era muito importante que resistisses a tanto sofrimento, bem digo a tua sobrevivência.
Regressámos a Missirá, entreguei no comando de Bambadinca os principais despojos, confirmei o que todos suspeitavam quanto a corredores de abastecimento.
E assim chegou a noite de Natal, organizou-se uma festa para a população, mas tu não podes imaginar a frialdade no meu coração. Perto da meia-noite, o Teixeira das Transmissões foi chamar-me. No nosso refeitório, tal como tu o deixaste enfeitado, iluminava-se o presépio. Estávamos todos com um nó na garganta, brindámos às tuas melhoras.
Estou a falar-te pausadamente, Paulo, é só para calar a emoção, são memórias de quem assistiu ao teu corpo a estropiar-se. Estamos no Natal, e ter-te aqui, à minha frente, 31 anos depois, é uma incomensurável alegria. Perdi o teu paradeiro, não me comportei bem contigo, quando a guerra acabou dei primazia aos estudos, à vida familiar, ao trabalho. Sabia que os meus sinistrados viviam em Portugal, concentrei-me em Fodé Dahaba, ele era a minha fonte de informações. Os anos passaram, eu sentia-me intimidado em rever-vos, então ganhei coragem, obtive moradas e números de telefone, e aqui estou hoje a pedir perdão, tenho uma declaração muito importante: tu sobreviveste para lembrar aos homens da tua pátria e da minha que há muitos presépios de Chicri perdidos ou esquecidos. E muito importante para mim trago-te as figuras de barro que compraste em Bafatá e que resistiram a todas as inclemências do tempo. Não seja esta noite igual às outras noites, vamos hoje celebrar um Natal há tanto tempo adiado”.
Mon amoureux, que ternura, que texto tão íntimo e convincente! Às vezes penso que há dimensões da realidade que extravasam a ficção. E quando rememoro que estávamos nós sentados à mesa numa cantina de uma instituição da Comissão Europeia e me pediste ajuda para forjares um romance em que era preciso haver uma relação poderosamente afetiva que justificasse estas memórias, ainda mais feliz me sinto por ser a zeladora de medonhos acontecimentos que fizeram de ti o homem em que eu revejo o meu futuro. Vou agora preparar o meu jantar e pode até dar-se o caso de o telefone tocar e a boa notícia que me breve estarei dentro dos teus braços...
(continua)
A despedida de Bambadinca, a guerra acabou. Ao fundo, à esquerda, o major Anjos de Carvalho, ao centro, o meu sucessor, Nelson Wahnon Reis, o tenente-coronel Domingos Magalhães Filipe, e de sorriso bem largo o Abel Maria Rodrigues, agosto de 1970
Nota do editor
Último poste da série de 4 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21323: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (17): A funda que arremessa para o fundo da memória
Guiné 61/74 - P21347: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (33): O Honório [Augusto Brito da Costa] que eu conheci (Esteves Oliveira, ex-alf mil, CTIG, 1963/65)
Nascimento: 29 Ago 1941, Praia, Santiago, Cabo Verde
Companheira: Lina da Silva Soares (de quem teve uma filha, Tatiana Soares Brito da Costa, nascida em 1982)
Óbito: 29 Ago 1993, Praia, Santiago, Cabo Verde com 52 anos de idade. (Terá morrido de AVC.)
Honório também usou o nome Honoriozinho.
Fonte: Genealogia dos cabo-verdianos com ligações de parentesco a Jorge e Garda Brito, a seus familiares e às famílias dos seus descendentes (com a devida vénia...)
Date: sexta, 11/09/2020 à(s) 13:07
Subject: O Honório que eu conheci
Recentemente, a passear pelas páginas do vosso / nosso blog, descobri que escreveram sobre o piloto aviador Honório Augusto Brito da Costa. (*)
Foi durante a minha primeira passagem pela estância de férias da Guiné (1963-1965) que conheci o Honório, formidável figura que merecia ser descrita num livro.
Os oficiais superiores (majores, tenentes coronéis e coronéis) detestavam voar com ele, desistiam da viagem se fosse ele o piloto do avião-correio... Lembro-me de uma vez em que partilhei como passageiro com o ten cor, comandante do batalhão de Buba, um DO-27 pilotado pelo Honório, foi um festival! Descolagem STOL extrema, subida a pique, quebra repentina para o Rio Grande de Buba sobrevoado a uns metros da água, abaixo das copas das árvores, as curvas do rio dadas a rapar, até chegarmos à foz - assim, evitámos ser atingidos pelo eventual fogo antiaéreo do inimigo, explicou o Honório ao petrificado Luizinho das Perguntas, "como o senhor coronel sabe, eles estão por todo o lado...".
São muitas as recordações do Honório como piloto militar, na Guiné e em Angola, onde o vim encontrar mais tarde, muitas vezes, já desmobilizado e a voar aerotáxis e aviões de fumigação.
A notícia da sua morte deixou um buraco enorme no meu acervo de amizades e memórias. (**)
Confirmo, mais uma vez, que o camarada Esteves de Oliveira, antigo alferes miliciano no CTIG, 1963/65, acompanha com maior ou menor regularidade o nosso blogue e já tem feito mais comentários.
E reitero o que já aqui escrevi: é uma pena não estar "formalmente" integrado na nossa Tabanca Grande, o mesmo é dizer, poder estar sentado à sombra do nosso mágico e fraterno poilão... Para mais conheceu a Guiné nos anos de chumbo (1963/65), além dos TO de Angola e Moçambique...
O convite continua de pé: só precisamos das 2 fotos da praxe...
(*) Vd. poste de 10 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21344: Notas de leitura (1303): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte II (Luís Graça)
(...) Não menos calorosa foi, num outro dia, a saudação que veio do ar, do na altura furril mil pil Honório Brito da Costa. Eram já amigos um do outro, do tempo da Escola de Regentes Agrícolas de Santarém. Um angolano, outro cabo-verdiano. Nas férias, em Lisboa, encontravam-se no Café Palladium, nos Restauradores, ou na Suíça, no Rossio. E tinham por hábito, ir a pé até à Portela de Sacavém, tomar uma bica na varanda do 1.º andar do aeroporto, só para "ver... os aviões".
Quis o destino que se encontrassem na Guiné, na mesma altura... mas sem o Honório saber onde estava o amigo... Até que o descobriu e fez-lhe uma surpresa... Numa manhã, o aquartelamento de São João foi sobrevoado, em voo rasante, por um T6 Harvard, pondo a tropa em sobressalto. Pela rádio, ouviu-se o piloto a pedir para chamar o furriel Inocentes. Finalmente, em contacto via rádio, o Honório em fúria desanca no Inocentes: "Cabrão, cabrão, cabrão! Ando doido à tua procura! Não sabias dizer onde estavas ?"... E deu-lhe um abraço "by air" que se ouviu em toda a Guiné... e em Bissalanca.
Claro que o Honório deve ter levado uma porrada... Mas esta é uma das histórias deliciosas que o Inocentes nos conta, e que eu resumo aqui para os nossos leitores. (...)
Guiné 61/74 - P21346: Notas de leitura (1306): "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial", livro de Adriano Miranda Lima (edição de autor, Mindelo, 2020, 241 pp.): a história escrita com paixão, memória e coração (José Martins)
Cabo Verde > Ilha de S. Tiago > Praia > Junho de 1941 > O 1º cabo Feliciano Delfim Santos, da 1ª companhia do 1º batalhão expedicionário do RI 11 [Setúnbal], na linha da frente, é o terceiro a contar da direita para a esquerda. (*) Este batalhão foi colocado na Ilha do Sal, integrado no RI 24.
Foto do álbum do pai do nosso camarada Luís Dias [ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872,´Dulombi e Galomaro,1971/74]
Foto (e legenda): © Luís Dias (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Notas do editor
(*) Vd. poste de 29 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17000: Meu pai, meu velho, meu camarada (50): Feliciano Delfim dos Santos (1922-1989), ex-1º cabo, 1º Comp /1º Bat Exp do RI 11, Cabo Verde (Ilhas de Santiago, Santo Antão e Sal, 1941/43) (Augusto Silva Santos) - Parte I: A caminho da ilha do Sal, com chegada, a 23/6/1941 à Ilha de Santiago, no vapor "João Belo"...
(**) Vd. poste de 9 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4926: Meu pai, meu velho, meu camarada (12): 1º cabo Ângelo Ferreira de Sousa, S. Vicente, 1943/44 (Hélder Sousa)
(****) Vd. poste de 8 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21336: Agenda cultural (728): "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial", de Adriano Miranda Lima: o livro pode ser adquirido a 12 € por exemplar, incluindo portes de correio.
Guiné 61/74 - P21345: Parabéns a você (1867): Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 (Guiné, 1970/72) e José Parente Dacosta, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 1477 (Guiné, 1965/67)
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21342: Parabéns a você (1866): Rui Baptista, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3489 (Guiné, 1971/74) e Tony Grilo, ex-Soldado Apont Obus 8.8 do BAC 1 (Guiné, 1966/68)
quinta-feira, 10 de setembro de 2020
Guiné 61/74 - P21344: Notas de leitura (1305): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte II (Luís Graça): a importância de se ter uma máquina fotográfica e um bloco de notas...
Este é o tipo de livrinho de memórias que todos gostaríamos de poder escrever e publicar em papel, reportando-nos à nossa experiência como militares na Guiné, entre 1961 e 1974. O que o nosso camarada Gonçalo Inocentes fez foi fazer uma seleção das fotos do seu álbum, tendo em conta o conteúdo temático e a qualidade da imagem... Ele é dos que acham que uma imagem vale muito, mas só por si não chega: é preciso uma legenda, uma data, um local, uma pequena história...
(ii) O batptismo de fogo (pp. 32.34);
Guiné 61/74 - P21343: In Memoriam (370): José Ceitil (1947-2020), natural de Vila Franca de Xira, autor de "Dona Berta de Bissau" (Âncora Editora, 2013, 200 pp.), membro da nossa Tabanca Grande, nº 816, a título póstumo (Hélder Sousa / Luís Graça)
1. José Ceitil - Homenagem
por Hélder Sousa
O José Ceitil deixou-nos! Notícia dilacerante…. Escreveu um
amigo comum, o Joaquim Pedrosa, meu colega de curso na EICVFXira, mais tarde
jogador de futebol no Sporting e Académica, dirigente da UDV (União Desportiva
Vilafranquense) e também sócio do Ceitil num espaço de Bar chamado “Varinaice”.
Quando uma pessoa morre há tendência para nos elogios
fúnebres aparecerem inúmeras virtudes. No caso do Ceitil isso não seria forçado
pois as suas múltiplas qualidades e áreas por onde se moveu contribuíram para
uma “história de vida” bem multifacetada e recheada de notas interessantes.
De tal modo que será difícil nesta pequena
recordação/homenagem fazer referência a todas elas.
De uma entrevista concedida ao jornal “O Mirante” em 2011, e do portal livreiro Wook, retiro algumas notas biográficas:
(i) o Ceitil nasceu e cresceu em Vila Franca de Xira em Março de 1947 e eu em Outubro de 1948; é, portanto, cerca de ano e meio mais velho que eu;(ii) neto de varinos, também brincava à borda d’água desse rio Tejo como muitos outros;
(iii) na sua terra, fez a escola primária; frequentará, mais tarde, o Liceu Passos Manuel e terminará o secundário na Escola Industrial e Comercial da sua terra natal;
(iv) na EICVFXira tirou o curso de formação de serralheiro, começando depois a trabalhar, aos 16 anos, como desenhador na Câmara Municipal:
(v) foi futebolista do Vila-franquense desde as "Escolas" até aos "Veteranos";
(vi) na Secção Cultural do clube, à época, um espaço de liberdade, estudo e debate de ideias, iniciou-se na militância cívica, aos 15 anos, como colaborador e participante nas atividades que aí tinham lugar:
(vii) fez, como voluntário, 4 anos de tropa na Força Aérea;
(x) desse tempo ele recordava, em vida, as situações mais difíceis, como comissário de bordo, da ponte aérea nos tempos da descolonização, em que algumas vezes em Angola esteve perto da morte; considerou que nessa época a capacidade de resposta de Portugal para transportar pessoas para a “metrópole” foi exemplar e que se pode dizer que se trata de um dos grandes feitos da capacidade lusa de resolver problemas.
(xii) foi fundador, dirigente e colaborador da APTCA (Associação Portuguesa de Tripulantes de Cabine), onde se iniciou na escrita para as revistas Voo e Aérius;
(xiii) publicou o seu primeiro livro em 2007, a novela "Vidas Simples Pensamentos Elevados", e em 2008 o ensaio "Sejam Felizes".
Ao longo dos anos as nossas vidas foram sendo vividas com pontos de contacto de que mais se destacam as colaborações no Clube da nossa terra, fosse no campo desportivo (ele mais no futebol onde tinha méritos e eu mais ligado ao hóquei em patins) fosse na estreita colaboração na Secção Cultural da UDV, sendo que ele também fez parte Direcção do Cine-Clube Vilafranquense.
Anos mais tarde, agora já no século XXI, houve um apelo ao
ressurgimento e assim alguns amigos então retomaram em mãos as rédeas da UDV
para tentar recuperar, resgatar e reerguer a colectividade.
É desse tempo que foi criada uma comissão para produzir um
“Manifesto da Memória da Secção Cultural da UDV”.
Numa das nossas sessões de trabalho notei que ele estava pensativo, até apreensivo, e após algumas “inquirições” fiquei a saber que isso se devia ao facto da sua filha mais nova, a Marta, ter decidido incorporar um programa de formação e voluntariado na “nossa” Guiné.
Claro que na ocasião todos
os conceitos e preconceitos sobre a Guiné, problemas reais e também alguns
empolados, lhe causavam angústia, mas não queria interferir nas decisões que a
filha tinha tomado. Tivemos então algumas conversas, procurei relativizar as
coisas, deixei algumas indicações sobre como chegar à ONGD AD, do nosso amigo Pepito (1949-2014), em caso de
necessidade.
As coisas foram correndo, geralmente bem, de modo que depois
da missão inicial a Marta repetiu e também depois continuou com outras tarefas,
que lhe influenciaram de tal modo que ainda hoje se refere à Guiné como a
“segunda Pátria”.
O Zé, “intrigado” com tal estado de espírito resolveu ir ver
“in loco” e então rumou a Bissau. Deve também ter bebido “água do Geba” pois
tendo ficado na “Pensão Central” acabou por escrever um livro dedicado à “Dona
Berta de Bissau” (2013).
Para terminar, que já vai longo, atrevo-me a repetir aqui as
palavras que a Marta entendeu por bem colocar no seu “Face” e que se trata duma
pequena mas significativa memória do Zé Ceitil. Escreveu ela:
“Minha filha, a procura do sentido da vida não é para todos.
A maioria ou não sabe o que isso é, ou vive tão mal que nem tem tempo para
pensar, ou então limita-se a sobreviver sem questionar nada. Agora, como estás
a descobrir, a vida nem sempre parece fazer muito sentido! A questão do poder e
o seu exercício por oligarcas defensores de interesses particulares sobrepõe-se
à organização da sociedade de forma a satisfazer as necessidades essenciais dos
povos. Sei que acreditas demasiado nas pessoas e no bem… e isso preocupa-me
porque sei que vais sofrer… mas mil vezes assim do que seres céptica. Sem abandonares os valores em que
acreditas, os sonhos e as utopias, tens que aprender a viver com estas
realidades”
Trata-se da resposta do Zé Ceitil à então consternação e
profunda tristeza pela qual a Marta estava a passar pela sua “terra do coração”
quando se estava perante a tentativa de golpe de estado (mais um) na
Guiné-Bissau em 2010.
Fico por aqui nesta minha homenagem/recordação a este meu
amigo.
Hélder Sousa
2. O José Ceitil tinha já, à data da sua morte, uma meia dúzia de referências no nosso blogue, nomeadamente como pai da Marta Ceitil, amigo do Hélder Sousa e autor do livro "Dona Berta de Bissau".
Não conheci pessoalmente o Zé Ceitil. Mas, pelo que já antes havíamos publicado no nosso blogue, é um típico representante da nossa geração: um bom homem, uma pessoa que se fez a si mesma, um cidadão proativo, um amigo do seu amigo, e que, além disso, por amor da filha Marta, se tornou também um amigo da Guiné e do povo guineense.
Agradeço ao Hélder Sousa a bela e justa evocação que faz do seu grande amigo, conterrâneio e colega de infância. De resto, ele lembra-nos que "o Zé Ceitil foi colega do Zé Brás como comissário de bordo da TAP e acho que também ainda foi contemporâneo do João Sacôto".Apresento à Marta e demais família Ceitil os nossos votos de pesar pela perda do pai e parente. E por tudo o que aquilo que já aqui foi dito, tomo a liberdade de propor a integração deste nosso amigo, o José Ceitil, na Tabanca Grande, a título póstumo. O seu lugar é o nº 815. O seu exemplo de vida inspira-nos e honra-nos.
Foto da preparação da candidatura à Direcção da UDV para 2009-2011
Foto da Mesa na apresentação pública do “Manifesto da Memória da Secção Cultural da União Desportiva Vilafranquense” em 2011
Fotos (e legendas): © Hélder Sousa (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legedagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]