sábado, 12 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21636: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (16): Repetindo o prato típico da terra fria transmontana, o "Butelo com casulas...anti-Covid-19", à moda da "Chef" Alice




Tabanca da Lourinhã > 23 de novembro de 2020 >  Um prato típico da "terra fria transmontana", o Butelo com casulas, aqui confeccionado  à moda da "Chef" Alice... Receita para quatro à mesa (2 famílias), com a devida distância de 2 metros... Nada de "tudo à molhada e fé em Deus, como na ceia do Natal"...



Fotos (e legenda): © Luís Graça (2020) . Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. No dia 23 de março de 2020, há 9 meses atrás, eu escrevia aqui (*):

(...) O que é que vamos comer hoje ?...

Obrigados a ficar em casa, com os restaurantes todos fechados, por todo o lado, devido à pandemia  da COVID-19, esta deve ser uma pergunta que muitos dos nossos leitores começam a fazer, compulsiva e repetidamente...

E os bens essenciais, nomeadamente o pão, os iorgurtes, as frutas,os legumes, o peixe, a carne...começam a escassear no frigorífico e na despensa...Nem todos tiveram tempo (nem dinheiro...) para encher as "arcas frigoríficas", preparando-se para o "estado de emergência", que nos foi imposto, ironicamente, no "Dia do Pai", 19 de março...

É uma pergunta complicada (e que vai começar a ser mais angustiante, nos próximos tempos...) para os pais, que têm ainda filhos menores em casa, para os casais idosos (que não podem nem devem sair de casa, nem sequer para fazer compras...), para quem vive sozinho, mas também para os heróis dos dias de hoje que cuidam de nós e nos protegem (a começar pelos profissionais do SNS, proteção civil, forças de segurança, etc.)... 

 Enfim, uma pergunta complicada para a generalidade dos portugueses e das portuguesas em "tempo de guerra"...

Haveremos de "sair desta"... Mas até lá, é tempo de começar a puxar pela imaginação e "fazer das tripas coração"... Muitos de nós nascemos na "época da fome"... Refiro-me aos nossos pais (nascidos por volta dos anos 20 do séc. XX) mas também à nossa geração, a nós, ex-combatentes da guerra colonial (nascidos nos anos 40). 

Quem de nós, crianças, bebia leite de vaca, pasteurizado ? E quem comia queijo ? E os iorgutes ? E os ovos ? E o pão de trigo ? E o peixe fresco, tirando a "sardinha para três" e o "bacalhau a pataco" ?... Par não falar das "guloseimas"...

 (...) E nós próprios, na Guiné, durante a nossa "comissão de serviço militar"... A pergunta "o que é que vai ser hoje o tacho?", era recorrente, depois de uma noite emboscados, ou de sentinela, ou no regresso de um patrulhamento ofensivo, ou no decurso de uma operação no mato, de dois ou até três dias, a "rapar fome e sede"...

Sonhávamos, acordados, com água, com comida...E no quartel, vingávamo-nos com os petiscos... Quem tinha messe, como os oficiais e sargentos, sempre comia um pouco melhor do que a generalidade das praças... A verdade é que se gastava uma boa parte da energia a resolver o angustiante problema da "bianda": onde comprar (ou "roubar"...) um leitão, um cabrito, uma galinha, uma vaca ?!... Um ou outro caçava ou arranjava caça: lebres, galinhas do mato, gazelas... Que o peixe da bolanha, esse, era intragável...

Estas lembranças vêm.nos à baila, agora que a nossa dieta alimentar é condicionada pela falta de recursos, como os "frescos"...tal como na Guiné há 50 anos atrás.

Talvez por isso não seja má ideia de passarmos a comer também "com os olhos" (...)

  
2. Ao  longo destes 9 meses temos aqui deixado algumas  sugestões gastronómicas, nacionais e internacionais (**), apropriado para combater o "corno...vírus", e sobretudo para que os nossos "vagomestres" e os/as nossos/s cozinheiros/as não deem em doidos/as... (E nós com eles: não há um "bom moral na tropa" sem um bom rancho.)

Uma das sugestões que já aqui apresentámos foi justamente o "Butelo com casulas", um típico prato do nordeste transmontano que eu desconhecia por completo até há uns anos, e de que hoje sou feito fã.... A "chef" Alice trouxe, adotou  e adaptou a receita, há uns anos...Mais difícil é arranjar os ingredientes, o butelo, as casulas...

"Comida dos pobres", em Trás-os-Montes, tal como as "sopas dos ganhões" no Baixo Alentejo,  são hoje "comida gourmet", redescoberta e reiventada pelos "chefs"...

E, em Bragança já há a "Confraria do Butelo e da Casula", com página no Facebook, embora sem dar notícias desde o carnaval de 2019...
 
Recorde-se o que é:

(i) o butelo: enchido grosso, feito com carne e ossos partidos do espinhaço e das costelas do porco, envoltos na bexiga ou no bucho do animal.

(ii) as casulas: v
agens seca do feijão, colhidas ainda verdes e cortadas em pequenos pedaços que secam ao sol e que, depois de demolhados, são cozidos e usados na alimentação, e nomeadamente no célebre "butelo com casulas" (Vd. fotos acima).

É um prato típico para partilhar com os amigos, sobretudo nesta altura do ano... Por causa da pandemia. precisamos de uma mesa grande, para quatro...

Foi o que fizemos há dias, repetindo a dose de há 9 meses atrás, tendo como convidados  os "Duques do Cadaval", régulos da Tabanca do Atira-te ao Mar (Porto das Barcas, Lourinhã) que visitamos também com alguma regularidade...

Desta vez eles vieram à  casa dos "viscondes da Lourinhã"... E a propósito,  hoje é dia de dar os parabéns à Maria do Céu Pinteus, a "duquesa"; já lhe mandei, pelo correio, o soneto que ela merece, por mais um  aninho de vida;  ela e ele, o Joaquim Pinto de Carvalho, os "duques do Cadaval", têm sido, de resto, uns magníficos companheiros de viagem nesta "travessia do deserto da pandemia"; eles e outra gente da "nobreza local", como, por exemplo,  o Jaime Bonifácio Marques da Silva, "marquês do Seixal".
 
Cansados da "guerra" (a pandemia já vai em 9 meses, e está para durar...), nem por isso  podemos "baixar a guarda"... E, a propósito, já encontrei por estas bandas, mais dois "refuguiados de guerra", o José Ramos e o Luis Mourato Oliveira, ex-combatentes na Guiné e membros da Tabanca Grande... Têm cá casa, tal como os "Duques do Cadaval"... Por enquanto a Lourinhã ainda não está na "lista...vermelha".  

E, ainda a propósito, andamos para combinar, com o Luís Mourato Oliveira (que nos arranjou umas batatas "raiz de cana", uma raridade...), uma "batatada de peixe seco"... Temos tudo (, o peixe e as batatas), só falta a data e o local mais convenientes... 

O Luís andou em tempos, com uns amigos da Marteleira, entusiasmado com a ideia, tal como eu, de se criar uma "confraria do peixe seco e da batata raiz de cana", no concelho da Lourinhã... Até já fizeram estatutos!...  A pandemia não tem ajudado a avançar o projecto...
 
 Temos que continuar a alimentarmo-nos bem (,adaptando a "dieta mediterrânica" às circunstâncias), e a fazer algum tipo de exercício (físico e mental), sem nunca descurar as regras de proteção sanitária, enquanto aguardamos a "milagrosa" imunização, a vacina, contra o Sars-CoV2.

E já que chegámos até aqui, camaradas e amigos, não vamos morrer na praia!... Festas, quentes e boas, mas com cautela...! LG

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Guiné 61/74 - P21635: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (6): Votos de Feliz Natal e lembrete sobre o próximo 35.º Encontro do pessoal da CART 3494 / BART 3863 (Xime e Mansambo, 1971/4), em 5 de junho de 2021, em Carapinheira, Montemor-O-Velho (António Sousa de Castro)




1. O nosso grã-tabanqueiro n.º 2, o histórico António Sousa de Castro (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74), minhoto, com mais de 160 referências no nosso blogue, manda-nos o tradicional cartão de boas festas, para toda a Tabanca Grande, o que retribuímos com votos de saúde e longa vida, e um melhor ano de 2021.

Lembra, entretanto,  que já está marcado, desde o ano transacto, o 35.º encontro anual do pessoal da CART 3494: será no dia 5 de junho de 2021, na Carapinheira, Montemor-O-Velho, 

Que se vai mesmo realizar, desde que a senhora dona Covid-19 deixe as tropas abancar... 

Contacto: António Bonito (, nosso grã-tabanqueiro):  telem 96 352 97 64 / telef 233 920 441.
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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de dezembro de  2020 >
Guiné 61/74 - P21631: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (5): De Nova Iorque, Queens, "Merry Christmas" para todas as tabancas e tabanqueiros de boa vontade (João e Vilma Crisóstomo)

Guiné 61/74 - P21634: Parabéns a você (1905): Francisco Palma, ex-Soldado CAR da CCAV 2748 (Guiné, 1970/72) e Luís Dias, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491 (Guiné, 1971/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21627: Parabéns a você (1904): Fernando Barata, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2700 (Guiné, 1970/72) e Mário Santos, ex-1.º Cabo Especialista MMA da BA 12 (Guiné, 1967/69)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21633: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (14): Gampará, Natal de 1973: o bolo-rei da Confeitaria Nélia, Esposende, e a fava azarenta

1. Mais uma pequena história do 
Carlos Barros:

(i) ex-fur mil, defurriel mil, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974;

(ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem 17 referências no nosso blogue; vive em Esposende, é professor reformado.


O bolo-rei de Natal e a fava azarenta…

por Carlos Barros (*)


Em novembro de 1973 , o furriel Barros, instalado em Gampará, com a 2ª Cart, 3º grupo de combate, escreveu uma carta à sua mãe, Jandira Lima, em Esposende, para que lhe fosse enviad, para a Guiné, um bolo-rei da Nélia [, confeitaria que ainda existe: R. 1.º de Dezembro, nº 24, 4740-226 Esposende, telef: 253 961 119] ou mesmo da Primorosa.

Numa comunicação breve aos soldados do seu  3º grupo, o Barros tinha informado que a malta iria ter um bolo-rei, no período do Natal, o que criou uma certa euforia entre os soldados..

Os soldados vibraram de contentamento e um bolo-rei na Guiné era “ouro sobre o azul” num ambiente de sobressaltos, sofrimentos, ansiedades,  de tragédias e de dramas que envolvia  toda a actividade da guerra.

Passados quinze dias, o bolinho, numa longa viagem, chegou ao aquartelamento, depois de uma longa demora, nos serviços do SPM de Bissau.

O Barros parecia um “empresário de pastelaria” e, sempre com o seu elevado sentido de partilha, reuniu, no dia 23 de dezembro [de 1973], os soldados em  círculo,  e dividiu o bolo-rei em 27 bocadinhos, bem cortadinhos e apresentou uma proposta sentenciosa a todos os presentes:

A quem saísse a fava,  teria de pagar, um próximo bolo-rei que seria comprado em Bissau, de qualidade muito inferior, como é natural, ao  da Nélia, uma pastelaria de excelência a nível local,  mesmo, em todo o  Norte do País.

 As fatias “magricelas”  foram divididas por todos os soldados que começaram a mastigar o bolo, cada um olhando e inspeccionando as bocas com a expectativa de saída da “abominável” fava …

 O Barros, muito atento, num ápice, sentiu  na boca ressequida a maldita  fava e pensou logo que estava “desgraçado”,  pois iria ser gozado por todos e não estava em questão pagar outro bolo, apenas receava ser colectivamente gozado, o que era a “praxe” no meio do grupo.

O Barros pensou de imediato, em sair daquela incómoda situação e sabem o que fez ele?

 Engoliu a fava que foi directamente para o estômago e, mais tarde,  expelida pelos intestinos, e o ânus está como testemunha,

O Cruz, soldado natural de Barcelos, gritou:

 Furriel, o bolo não tinha fava e você disse que vinha sempre com uma fava!...

O Venâncio, o Pedralva, o Domingos e o Araújo estavam muito desconfiados mas nada disseram, limitando-se a saborear o ressequido bolo-rei que estava a ser digerido muito lentamente, quase que “ruminando”, para que o sabor demorasse mais um pouco porque guloseimas, no aquartelamento, praticamente não existiam.

 − Olha, Cruz, o pasteleiro esqueceu-se de colocar a fava e não sei o que se passou  desculpou-se o Barros, com um ar de comprometido!...    Sabem, o Geninho,  pasteleiro da Nélia,  o melhor pasteleiro da região, não se lembrou de colocar a fava e com tantos bolos-rei que faz, este escapou. 

E acrescentou, com o ar muito natural:

 Sabem que  o Geninho, faz uns torrões de amendoim que são “os melhores do mundo”, e podem crer que, quando for de férias a Esposende, vou-vos trazer torrões da Nélia −  prometeu o Barros tentando atenuar a expectativa que os soldados tiveram  da famosa “fava invisível”.

Uma coisa é certa, o Barros só contou a história passados uns meses aos seus companheiros  da caserna que acharam muita graça à atitude do furriel que se tinha “safado” de um gozo geral.

No final, todos se levantaram, com a cadela Sintra a comer umas míseras migalhas que tinham sobrevivido, e estava-se na hora do jantar com os cozinheiros Eduardo, o Rochinha e o Bichas, este na Messe, já com a missão cumprida, junto aos panelões para se distribuir  a comida.

Gampará, 23 de dezembro de 1973.                                  

Carlos Barros

Esposende 10 de Junho de 2020

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Guiné 61/74 - P21632: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (30): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Aqui se faz a recapitulação dos acontecimentos do primeiro trimestre de 1969 e se alarga o olhar para a reconstrução de Missirá, uma tremenda luta contra o tempo, desde meados de abril até junho houve que fazer 17 moranças, 2 abrigos novos e restauros noutros 3, uma mão na espada, outra na enxada, nunca de deixou de ir a Mato de Cão, nunca se abandonaram doentes nem abastecimento, nunca se esqueceu Finete. Deitara-se para trás das costas aqueles dois dias de prisão simples acompanhado de louvor, Missirá, pela força das circunstâncias, era o pólo de atração, o grande desafio para que todos sentissem que o que se destrói se reconstrói, e que todos estávamos juntos naquela humilde gesta de reerguer Missirá, com mais conforto e segurança. Como aconteceu. Virão agora flagelações, todas falhadas, e haverá pequenos contra-ataques, tropa e guerrilheiros emboscam, minam, esperam-se, tal o respeito mútuo. E temos agora muito que contar sobre os acontecimentos do próximo trimestre.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (30): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette très adorée, estou profundamente sensibilizado pela súmula que fizeste do primeiro trimestre de 1969. Doloroso e uma das maiores escolas de aprendizagem de toda a minha vida. Creio que te recordas de ver a fotografia do Fodé junto do cadeirão onde faço leituras e oiço música. Era sargento das milícias de Finete, revelou-se cooperativo desde a primeira hora, amigo de pedir, vinha expressamente a Missirá em dia combinado para comer bacalhau com batatas, ainda hoje é o seu prato preferido. Está tudo gravado na mente, aquela escabrosa operação Anda Cá, pouco passava das seis e meia da manhã do dia 22 de fevereiro de 1969 quando fui chamado com urgência, disseram-me que o Fodé tinha descoberto um fornilho. Aproximei-me e ele apontou para uma tábua que estava bem camuflada num velho trilho. Pedi-lhe para se postar ali e alertar todos para passarem ao largo; e avancei em direção a Madina, havia seguramente muito perto uma tabanca, ouviam-se cantares, o pilão trabalhava, gralhavam vozes, e enquanto avançamos cautelosamente já em posição de meia-lua, ouve-se uma explosão, silêncio sepulcral, e gritos lancinantes. Tomo consciência de que está tudo perdido, ou se avança prontamente ou se dá a desmotivação, passo por um buracão enorme onde agoniza um soldado europeu que desobedecera ao alerta do Fodé, e este geme, olha-me com todo o sofrimento do mundo, vejo-lhe os tendões dilacerados abaixo de um joelho e uma mão quase decepada. Como antevira, os senhores capitães pretendem recuar, a minha proposta de um pelotão com o cabo das transmissões irem à procura de um local para pedir a evacuação Y e nós atacarmos o objetivo foi rejeitada. Esta imagem foi-me enviada pelo Fodé a partir de Lisboa antes de ir para Hamburgo, onde recebeu a prótese e fez fisioterapia. O que antes era um rosto permanentemente sorridente é agora uma tristeza infinita, aqueles olhos não enganam. A nossa cumplicidade vem até aos dias de hoje, anda entre o Algueirão de Mem-Martins e o Bambadincazinho, onde tem os seus bens, as candongas de que se encarregam membros da família. Cegou, jamais se esqueceu de todo o afeto que recebeu em Lisboa. Olho para esta fotografia todos os dias para me lembrar das travessuras do destino e o que uma ordem pode acarretar na vida de um homem.

O momento mais importante depois da operação à minha exostose foi a reconstrução de Missirá, nada de tão empolgante acontecerá na minha vida. Em plena convalescença, fui ao Batalhão de Engenharia, sito em Brá, falar com o Capitão Rui Gamito que um dia me visitara, vindo de umas obras num saltinho, ficou intrigado, lá do alto do helicóptero, naquele oceano florestal ver a bandeira portuguesa a tremular numa tabanca rodeada de arame farpado. Recebeu-me afavelmente, percebeu o drama que se estava a viver em Missirá, eu falava aos sacões em sacos de cimento, chapa ondulada, rolos de arame farpado, cibes para os abrigos, esquadria de janelas, rede-mosquiteiro, atrevi-me a pedir um gerador. Tomou nota de tudo, não disse nem que sim nem que não, limitou-se a dizer “vamos ver” e apresentou-me a um subordinado a quem delegou a missão, o Emílio Rosa, amizade para toda a vida.

E porquê tão empolgante a reconstrução de Missirá, chère Annette? Nada sabia do ofício, só pude contar com boas vontades, e era uma corrida contra o tempo, em junho, o mais tardar no fim do mês, viriam chuvas diluvianas, ou estava tudo de pé ou dormiríamos, militares e civis, debaixo de uns panos de tenda. A minha satisfação em ver as obras prosperar foi de tal ordem que uma noite, depois dos afazeres compridos, devíamos estar nos finais de abril, passou-me pela cabeça escrevinhar um simulacro de poema que no dia seguinte foi no saco do correio para Lisboa, parecia um relatório para todos os meus ente-queridos, o combatente entregara-se a uma nova refrega e assim passou à escrita tal exaltação:
“Escrevo-vos em júbilo, vendo as papaias a crescer, contemplo um sol poente que incendeia de luz, por escasso tempo, as cores das novas moranças. Essas casas e abrigos defensivos são, por ora, a lama e os cibes engavinhados da bolanha onde os nossos tios e primos Mandingas continuam a cultivar, espero ainda vir a comer daquela mancarra e daquele abacaxi. Na atmosfera, há uma nostalgia da sumaúma que esvoaça nas crinas de um bissilão, aquela árvore de sangue forte que me dá coragem neste tempo em que lutamos contra o tempo. Acompanho e agradeço a todas essas mãos, mais pretas do que brancas, que enchem as malhas de cimento e rasgam portas para entrar e sair de poisos mais cuidados. Cada uma destas portas novas fala em nome de 17 moranças calcinadas.
Anoiteceu e já não posso ver as enxadas que ribombaram o dia inteiro, que orgulho eu tenho nestes camaradas que às vezes são soldados, que vão longe daqui e vigiam o Geba para que os barcos naveguem e continue a vida; e às vezes eles transformam-se em agricultores alçados em construtores, perfilando tijolos de adobe, há sempre neles um sorriso que me afasta os medonhos presságios de que tudo não acabe bem. Já passa das seis horas da tarde, sente-se um vento morno e nos céus de Missirá encadeia-se a luz de chumbo da lua ensombrada. E reflito nesta gesta dos meus soldados, picando a humildade deste mister que me persegue os dias e as noites: até aos joelhos amassa-se a lama, enquanto ao lado se lavra a golpes de catana um cibe, se afaga uma nova parede, e esta amarinha onde outrora existiu uma morança que houve que derruir, tão incendiada.
Esta terra chama-se Cuor, rima com suor, sinto uma sede oleaginosa, o anseio de ver tudo terminado, novas casas, abrigos seguros, seres humanos mais confiantes. Por isso vos escrevo nesta terra côncava onde se vive uma rapsódia de adolescentes e onde sonho permanentemente com a minha pátria”
.

Tenho muito poucos comentários, são meses com uma certa rotina, tudo corre sem incidentes nas idas diárias a Mato de Cão, escrevo abundantemente, são meses sempre acompanhados de boas leituras, como sabes perdi tudo no incêndio de Missirá, ando a reconstruir uma biblioteca, comprei um gira-discos a pilhas, privo-me disto e daquilo para de vez em quando comprar um estojo de música em Bafatá. E houve guerra, vou enviar-te o relato dos acontecimentos do início do segundo semestre, há um episódio brejeiro, uma ida a um lugar para lá do Geba, recebera uma carta do comandante Teixeira da Mota a perguntar se eu podia obter informações em Missirá ou Finete para onde tinham ido as populações de Bucol, já no regulado de Joladu, fora do meu raio de ação. Eu depois conto-te.

Estou bem desolado, a reunião da nossa associação foi marcada para Barcelona, nos últimos dias de janeiro, de acordo com o calendário de um grupo de trabalho estarei em Bruxelas dois dias em meados de fevereiro, não posso ainda precisar datas, a única coisa que eu posso precisar é que tu és a mulher mais bela do mundo, o encanto da minha vida, o meu arrimo, não é só na Rua do Eclipse que se sente a falta do ente-querido, aqui tu também és a grande ausente. A presença faz-se da nossa comunicação, do peso das nossas lembranças, de muita gratidão e respeito. Lembranças onde também entra a guerra da Guiné, onde tu fazes de cronista, juntando todos os elementos dessa comissão. Sei que te atiras a este trabalho com muito gosto, e sei que foste sincera quando um dia, vendo estas fotografias das florestas, dos meandros dos rios, do emaranhado dos tarrafes, muito encostada a mim, me disseste ao ouvido, “meu amor, havemos os dois de visitar a Guiné”.

Amanhã telefono-te, adormeço a pensar em ti e estou cheio de saudades quanto ao que nos reserva o futuro, teu, Paulo.

(continua)

Fodé Dahaba
Floresta da Guiné-Bissau
A folhagem tudo esconde, o gigantismo desta árvore de madeira exótica, tudo ao alcance de um patrulhamento, inevitavelmente cheio de perigos, dos homens e do interior da floresta
Antigo Quartel do Centro de Instrução Militar em Bolama, aqui se prepararam as praças do Pel Caç Nat 52, e muitos outros
Batalhão de Engenharia 447, Brá, aqui vim para pedir materiais de reconstrução ao capitão Gamito, ele apresentou-me o alferes Emílio Rosa, amizade para toda a vida
Por aqui deambulei, na marginal de Bissau, um pouco mais à direita fica o Pelicano, onde se realizou a boda do meu casamento
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21608: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (29): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21631: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (5): De Nova Iorque, Queens, "Merry Christmas" para todas as tabancas e tabanqueiros de boa vontade (João e Vilma Crisóstomo)



Foto nº 1 > EUA > Nova Iorque > Queens > Dezembro de 2020 > Vilma e João Crisóstomo: "Merry Cristmas" para toda a Tabanca Grande e as suas tabancas federadas!


Foto nº 2 > EUA > Nova Iorque > Queens > Novembro  de 2020 > As tradicionais ilumações de Natal na frente da casa de Mr John & Mrs Vilma Crisostomo 


Foto nº 3 > EUA > Nova Iorque > Queens > Novembro  de 2020 >  Os Crisóstomos no seu quintal 


Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de John Crisostomo / João Crisóstomo [ luso-americano, natural de Torres Vedras, conhecido ativista de causas  que muito dizem aos portugueses: Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes;  Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona; ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole  e Missirá, 1965/67): vive desde 1975 em Nova Iorque; é casado com a eslovena Vilma desde 2013; tem mais de 125 referências  no nosso blogue]

Data . quinta, 10/12/2020, 10:27


Assunto - Natal e Fim de Ano 2020


Caro Luis Graça e bons amigos e camaradas,

Todos os anos a minha casa é a primeira na minha rua a aparecer toda enfeitada com as luzes de Natal.
Tenho-o feito propositadamente como incentivo para que outros façam o mesmo e a vizinhança fique bonita e acolhedora… 

Este ano, quando alguém me disse que, devido à situação pandémica, não ia pôr nenhumas luzes, eu discordei do raciocínio: exactamente,  no meio de tantas razões para tristezas, há que encontrar e aproveitar tudo o que se apresente que nos "ajude a esquecer” essas tristezas e nos levante os espíritos. E que melhor do que a época de Natal e o fim de ano ? 

Por isso a minha época de Natal este ano começou ainda mais cedo do que o costume: no dia 1º de Novembro , "Dia de Todos os Santos”, os enfeites e luzes de Natal na frente da minha casa estavam prontos (Foto nº 2, acima), para deleite de vizinhos e esporádicos passeantes que não deixavam de me manifestar a sua surpresa e satisfação…

Mas é sobretudo na parte traseira da minha casa que encontro maior satisfação  (Foto nº 3, em cima), sobretudo agora que somos obrigados a viver quase isolados. Mas,  se somos obrigados a viver isolados, mesmo daqueles que nos são mais queridos, isso não se aplica a outros amigos de longa data cuja amizade e presença nos alegram desde há muitos anos: esquilos, pardais, rolas, cardeais, pica-paus e outros bichinhos com quem,logo que mudei para aqui,  comecei a fazer amizades.   


Foto nº 4 > EUA > Nova Iorque > Queens > Dezembro  de 2020 >  
O quintal dos Crisóstomos: o céu da bicharada

Os meus amigos até chamam por vezes ao meu quintal “o céu da bicharada “..,Eu explico: logo desde o início comecei a dar de comida à passarada que sucedia aparecer no meu quintal. E pelos vistos eles começaram a passar a palavra uns aos outros pois cedo o meu quintal parecia ponto de reunião de pequenos alados, especialmente logo de manhã. (Foto nº 4, acima).

E com os alados vieram os esquilos e, de vez em quando,  visitas de outros pequenos animais roedores como raccoons e possums que também não são maltratados. (Fotos nºs 5 e 6).


Foto nº 5 > EUA > Nova Iorque > Queens > Dezembro  de 2020 >  
O quintal dos Crisóstomos:  refúgio de esquilos e de outros pequenos mamíferos como "raccoons" [, guaxins,]  e "possums" [, gambás]...


Foto nº 6 > EUA > Nova Iorque > Queens > Dezembro  de 2020 >  
O quintal dos Crisóstomos:  refúgio da passarada...


Porque o quintal é pequeno, sem espaço para plantação de árvores e coisas assim, veio-me à ideia pôr num canto uma pequena árvore seca que trouxe do parque, que servisse para poiso ou fácil "meio de aterragem" para a bicharada. 

Foi um sucesso.  Sabedores de que havia sempre algo para comer, mesmo no Inverno, eles não deixavam o lugar. Crdo reparei que a árvore era pequena demais para tanta demanda e comecei a acrescentar outros ramos para dar mais espaço…


Foto nº 7 > EUA > Nova Iorque > Queens > Dezembro  de 2020 >  
O quintal dos Crisóstomos: engenho & arte (1)


Foto nº 8 > EUA > Nova Iorque > Queens > Dezembro  de 2020 >  
O quintal dos Crisóstomos: enegnho & arte (2)

Os meus amigos, que muitas vezes me davam o prazer da sua presença, começaram a chamar a esta geringonça “a árvore frankenstein do João”. E há meses atrás, quando o meu vizinho cortou as várias árvores frondosas que tinha no seu quintal onde a bicharada, sobretudos esquilos,     passavam a maior parte do seu tempo, eu, para que os bichinhos sentissem menos a perca, resolvi acrescentar mais uma e depois mais outras pequenas “árvores geringonças" no meu quintal: simples troncos a que ia acrescentando ramos, sem olhar sequer se condiziam ou não entre si e que fazem agora um engraçado " bosque frankenstein”. (Fotos nºs 7 e 8, acima)

Na falta de outro espaço para “plantar” as árvores,     valeu-me o teto duma “arrecadação” que eu mesmo construi há anos atrás. O nosso “céu da bicharada” que conta agora com seis pequenas árvores, com "pontes aéreas" entre si, é para nós um espetáculo deliciante todas os dias, especialmente de manhã quando todos se apresentam para o rancho geral, o primeiro repasto do dia. 

Que o diga o Rui Chamusco que perante "tanta rola junta, como nunca vi na minha vida”.  não pode resistir e gravou em video o pequeno almoço dos bichinhos no meu quintal no primeiro dia que passou aqui no ano passado.

Que melhor maneira de passar o tempo de confinados? Para ajudar,   montei também um pequeno presépio dentro de casa, que este ano, além de nós, poucos admiradores vai ter, pois não tencionamos convidar ninguém antes que tenha passado esta pandemia. 


Foto nº 9 >Foto nº 1 > EUA > Nova Iorque > Queens > 
Dezembro de 2020 >  João e Vilma com o neto, a filha e o genro

Já o mesmo não sucede com a árvore de Natal que a minha filha montou em sua casa. Para que o meu neto não se sinta traumatizado com o isolamento completo, fomos convidados pela minha filha e aceitámos ir ajudá-lo a enfeitar essa árvore, como temos feito) em anos anteriores. A foto que tirámos então mostra esse feliz momento. (Fot0 nº 9).

A outra foto em que estamos, só eu e a Vilma,  junto do pequeno presépio foi tirada em minha casa (Foto nº 1, em cima).  Na falta de melhor cartão, aceitem este, com as palavras “Merry Christmas” entre nós, como o nosso cartão de Natal para todos os que não terei melhor maneira de contactar.

Como lógico desenvolvimento nesta época, comecei hå muito a chamar os meus amigos por telefone para os tradicionais votos de Natal e ao mesmo tempo para saber deles. Pena é que agora o facebook e outras redes sociais tenham relegado o telefone para segundo ( ou último) lugar. E por isso já fiz cerca de uma centena de tentativas (e muitas mais se seguirão) para os quatro cantos dos mundo do Brasil à Austrália, da Holanda ao Canadá e outros países pelo meio, para aqueles que alguma vez me providenciaram os seus contactos telefónicos e ainda não os mudaram sem me dizer. Entre estes contam-se alguns camaradas da Tabanca Grande, especialmente os da Diáspora. 

Apesar do pouco sucesso numérico, (não chegaram ainda a trinta aqueles a quem consegui falar pessoalmente ) foi para mim uma satisfação muito grande o poder cavaquear com estes meus amigos. 

Uma coisa comum ( além da idade e das mazelas em maior ou menor grau que na nossa idade estão sempre presentes) foi a vontade de partilharem com os outros este sentimento de saudade e de bons desejos.

"Eh, pá, mas que surpresa ouvir a tua voz e ver que te não te esqueceste de mim"...e quando lhes dizia que tento sempre falar pelo telefone e que tinha muitos outros ainda a quem chamar , vinha quase sempre o pedido de uma mensagem : "Olha lá, João, então com que falares, não te esqueças de lhes dar (aos nossos amigos comuns) um abraço meu também".

Portanto, assim como eu na ilha da Madeira, em Portugal, na França, etc,,  eu pedia àqueles a quem falava para partilharem o meu abraço com outros camaradas que eventualmente viessem a contactar e com quem eu não tinha conseguido falar, aqui fica este recado, um abraço de muitos dos nossos amigos comuns com quem falei para todos os que este leiam poste ou deste vierem a ter conhecimento.

Vejo com satisfação pelos postes de todos os dias, dos nossos editores e felizmente de tantos tantos mais ( não vou mencionar nomes pois por falta iria ser terrivelmente injusto como muita gente),     as muitas e variadas contribuições de tantos camaradas e do interesse e intenção evidente de partilharem com outros os seus interesses e até as suas vidas.

Sei que o momento actual quase exige que alguém fale daqui com mais assiduidade. E, de alguma maneira,  como residente em Nova Iorque,  sei que o devia fazer. Tenho pena não saber responder a estas expectativas, que de vez em quando eu sinto existirem . É que ser-me-ia quase impossível falar sem deixar que políticas, crenças e opiniões pessoais, sempre muito subjectivas, mesmo sem eu querer se manifestassem. E eu sei bem que este blogue não é lugar para políticas e similares. 

Mas dentro deste contexto de respeito permito-me partilhar algo que na minha opinião pode explicar e ajudar a compreender o momento em que vivemos, sobretudo aqui nos US. 

A situação actual traz-me à lembrança uma conversa que presenciei, no ano 1977 se me não engano, entre Mrs Jacqueline Kennedy Onassis e o seu convidado de jantar nesse dia, ex-candidato à Presidência dos US em 1972, o   Senador McGovern. Dizia a ex-Primeira Dama, Mrs Onassis,  que a seu ver os Estados Unidos não se podiam comparar com a Europa, onde a acumulação de cultura de muitos séculos tinha resultado numa civilização a todos os níveis extraordinária.  "Nós, os Estados Unidos,  em comparação com a Europa atingimos e estamos já num estado de decadência sem jamais termos atingido uma verdadeira civilização".

Essa conversa ficou-me gravada para sempre. Lembro de na altura me ter dito para os meus botões que não era bem assim. Os Estados Unidos, achava eu, tinham uma civilização essencialmente baseada em valores materiais em que o dinheiro era tudo, muito diferente da europeia, mas de alguma maneira não era caso para se dizer que não tinham uma civilização. 

Verifico agora que estava errado. O decorrer do tempo tem provado que a decadência é um facto real que, com altos e baixos, se tem agravado desde então. A falta em extremo de valores éticos, a existência de um egoísmo muito generalizado e uma ganância desenfreada têm impedido que uma verdadeira civilização tenha florescido nestas paragens, que por outro lado em muitos outros aspectos apresenta 
espetaculares conveniências.

Oxalá esta mentalidade egoísta desapareça em favor de mais senso comum e de maior respeito mútuo. Isto poderá ocasionar que as coisas mudem para melhor. E isso será bem possível, qualquer que seja o partido que traga estabilidade e consiga implantar nos Estados Unidos os valores éticos que estão na base de qualquer comunidade e que possibilitam a existência de uma verdadeira civilização.

De resto foi isso que transmitimos, eu e a Vilma em mensagem de 8 de novembro passado, em mensagem aos nossos amigos e familiares e que tinha por título "Um abraço de alívio de Nova Iorque":

(...) "Não quero deixar de partilhar o que eu e a Vilma sentimos e vivemos neste momento: a grande satisfação por irmos ter brevemente  um novo Presidente. E alívio também, (...) por  sabermos que estamos a chegar ao fim deste confuso e difícil trajecto que temos vivido nestes últimos quatro anos: uma experiência que parece ter tido repercursão e sido vivida de alguma maneira semelhante em muitas partes do mundo. Esperamos confiadamente que todos os habitantes deste nosso pequeno planeta terra que partilhamos, americanos e não americanos pelo mundo fora, possamos entrar brevemente num verdadeiro “Renascimento”, como sucedeu séculos atras após o período negro em que o mundo esteve mergulhado durante grande parte da Idade Média." (...)
 

 
Os meus votos calorosos e um grande abraço (e de minha esposa Vilma também ) para todos.

Nova Iorque, 10 de Dezembro de 2020.
João e Vilma Crisóstomo

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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 – P21630: Memórias de Gabú (José Saúde) (97): Natal de 1973: Rescaldo de uma noite quente e de luar. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

 


Memórias de Gabu

Camaradas, 

Neste deambular constante pelas histórias das nossas vidas como antigos combatentes, ocorreu-me rever o Natal de 1973, em Nova Lamego. Tempo de paz celestial onde as homilias metropolitanas proliferavam por tudo o que era sítio, enquanto, lá longe, ou seja, nos três palcos da guerra - Angola, Moçambique e Guiné - jovens se debatiam com as agruras de uma peleja que teimava em não dar tréguas. 

Falo-vos, especificamente, do Natal que vivi, melhor vivemos, na região de Gabu. Neste contexto, deixo-vos mais um texto deste vosso velho camarada numa Guiné que forçosamente marcou gerações. 

A todos os camaradas as minhas BOAS FESTAS! 


Natal de 1973: rescaldo de uma noite quente e de luar  

A consoada  

A noite da consoada de 1973, quente e de luar, deixou-me imensas recordações. Lá longe, num outro ambiente completamente antagónico, a família juntava-se à volta de uma lareira e cumpria a tradição. Era a noite do Menino. Em Nova Lamego, Gabu, a festa era uma outra. A malta não se deliciava com as filhoses da avó, não comia o ensopado do galo à meia-noite, não sujava os lábios com os finos e doces chocolates,  nem tão-pouco contemplava as prendas deixados no sapatinho pelo Menino Jesus a um canto da chaminé, enfim, uma série de tradições que se protelavam nessas épocas no tempo.  

Na região de Gabu o Natal desse ano, já longínquo, foi inteiramente adverso àquele que marcou a minha juventude. Recordo que os momentos de festa nos palcos de guerra deixavam antever, e sempre, preocupações acrescidas.  

Fazendo jus ao calor que se fazia sentir por aquelas bandas de África, resolvi alegrar a maltacom momentos de atração teatral, recordando, com ênfase, o momento vivido. Ah, naquele instante já me sentia atraído pelas gotas de whisky que baldavam o meu corpo e me atacavam as pernas.   

 O almoço recomendava-se 

O Natal sempre se apresentou, para mim, como um momento nostálgico que curto com um místico de eterna saudade e de sentimentos múltiplos que muito me ajudaram a entender a filosofia da vida. Recordo os velhos tempos na minha aldeia e as noites infinitas, e chuvosas, de natais passadas a apanhar o calor do lume feito no chão.  

Diz o poeta que “Natal é sempre quando o homem quiser”. É verdade. Partilho por inteiro esta tamanha convicção. Na Guiné, aliás, como em qualquer outra parte do Mundo Cristão, vive-se o Natal de acordo com o ambiente em que fomos criados. A tradição propaga-se de geração para geração.  

A noite de 24 para 25 de Dezembro em Nova Lamego esteve ao rubro. Alguém (eu, particularmente) acicatou a malta e toca a lembrar a rapaziada que o tempo, aclamado de divino, proporcionava, também, momentos de laser e de relaxe puro. Procurei a indumentária que julguei apropriada, escrevi dizeres equacionados com a época vivida e toca a alegrar os camaradas de armas. Escusado será dizer que a noite foi regada com uma mistura de álcool que me levou para a cama completamente toldado. Mas a noite da Consoada foi passada com euforia. Uma achega: uma Ballantines velha – 12 anos - custava naquela época qualquer coisa como 40/50 escudos, se a memória não me falha. O seu beber era divinal. Aliás, a destilação do precioso líquido era feita em pleno coração da Escócia.  

Messe de sargentos em dia de Natal e com almoço reforçado. Em pé o então 2º sargento Martins, o homem que geria a messe  

No dia 25, dia de Natal, o 2º Sargento da nossa messe, de nome Martins, um alentejano de Elvas, brindou-nos com um almoço reforçado, a malta agradeceu e divertiu-se à brava. Momentos imperdíveis que jamais esqueceremos e passados em pleno palco de guerra. 

Um abraço, camaradas,

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. também o poste anterior desta série:

9 DE SETEMBRO DE 2020 >Guiné 61/74 – P21341: Memórias de Gabú (José Saúde) (96): A fé na guerra (José Saúde)

 

Guiné 61/74 - P21629: Agenda cultural (765): Lançamento, em Alcácer do Sal, no sábado, dia 12,do livro de Isabel Castro Henriques, Os «Pretos do Sado»: História e memória de uma comunidade alentejana de origem Africana (Séculos XV-XX)

 





1, Convite da Câmara Municipal de Alcácer do Sal e das  Edições Colibri (, página do Facebook aqui,) para o lançamento do livro Os 'Pretos do Sado', da autoria de Isabel Castro Henriques, em Alcácer do Sal, na Biblioteca Municipal, Rua Rui Salema, nº 23, no próximo sábado, dia 12 de dezembro, às 10h30. (*)

Apresentação de Manuel Macaísta Malheiros, jurista, magistrado, natural de Álcácer do Sal, e nosso camarada, tendo feito uma comissão de serviço no TO da Guiné em 1966/68. (Uso de máscara obrigatório.)

FICHA TÉCNICA;

Título: Os «Pretos do Sado»
Autores: Isabel Castro Henriques e João Moreira da Silva 
ISBN: 9789896899967
Edição: 09-2020
Editor: Edições Colibri
Idioma: Português
Dimensões: 161 x 229 x 19 mm
Encadernação: Capa mole
Páginas: 314
Tipo de Produto: Livro
 Preço de capa: 16€

SINOPSE:

Nos finais do século XIX, José Leite de Vasconcelos registava a presença de uma comunidade de origem africana instalada na região alentejana do Vale do rio Sado. Retomando a questão em 1920, Vasconcelos chamou a atenção para as múltiplas fórmulas que eram utilizadas para designar esses homens e mulheres de pele escura que seriam descendentes de africanos escravos ou livres, ali instalados há séculos, sem que se conhecesse a origem dessa instalação: Pretos do Sado, Carapinhas do Sado, Atravessadiços, Mulatos do Sado. (**)

Constituindo um grupo singular pela sua permanência secular e pela sua especificidade física no espaço alentejano, os «Pretos do Sado» definiam-se igualmente pelo desinteresse da comunidade científica perante a necessidade de esclarecer a sua existência histórica. Este estudo pretende dar a conhecer a história de homens e de mulheres oriundos do continente africano, trazidos como escravos e que foram instalados durante séculos no território do Vale do Sado, provavelmente a partir de finais do século XV.

Mas o espaço temporal deste trabalho estende-se através dos séculos seguintes, procurando nas dinâmicas económicas, sociais e políticas da história de Portugal, os elementos que permitem compreender a sua presença ligada a culturas extensivas como a do arroz a partir do século XVIII e a sua consolidação como comunidade estabelecida, afirmando uma identidade alentejana e portuguesa, que exclui hoje quaisquer marcas culturais significativas de um passado africano.

1º AUTOR: ISABEL CASTRO HENRIQUES

(i) nasceu em Lisboa em 1946;

(ii) licenciou-se o em História em 1974, na Universidade de Paris I – Panthéon-Sorbonne;

(iii)  em 1993, doutorou-se em História de África na mesma universidade francesa, com uma tese consagrada ao estudo da Angola oitocentista, numa perspetiva de longa duração;

(iv)  Professora Associada com Agregação do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

(v)  introduziu os estudos de História de África em 1974, orientou teses de mestrado e doutoramento e ensinou durante quase 40 anos História de África, História do Colonialismo e História das Relações Afro-Portuguesas;

(vi)  desenvolve hoje a sua investigação histórica sobre África e sobre os Africanos no CEsA/ISEG-Universidade de Lisboa;

(vii) além de trabalhos científicos de natureza diversa, como projetos de investigação, programas museológicos, exposições, documentos fílmicos, colóquios e congressos, seminários, conferências, publicou dezenas de artigos e livros centrados nas temáticas históricas africanas.

Fonte: Adapt de portal Wook, com a devida vénia,

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(**) Vd. postes de:

1 de outubro de  2019 > Guiné 61/74 - P20194: Blogues da nossa blogosfera (111): os alentejanos de pele escura: "Ribeira do Sado, / Ó Sado, Sadeta, / Meus olhos não viram / Tanta gente preta." (Blogue Comporta - Opina, 2/1/2010)

1 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18275: Manuscrito(s) (Luís Graça) (137): aprendiz de ornitólogo ao km 71 da autoestrada da vida... Obrigado, amigos e camaradas, pelos "vivas" que me deram no passado dia 29...

Guiné 61/74 - P21628: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte III: Composição orgânica


Brasão da 3ª CCmds (Lamego e Guiné, 1966/68)
 


Capa da História da 3ª Companhia de Comandos (Lamego e Guiné, 1966/68), documento mimeografado, de 42 páginas, da autoria de João Borges, ex-fur mil comando. 

Exemplar oferecido ao seu amigo José Lino Oliveira, com a seguinte dedicatória: "Quanto mais falamos na guerra, mais desejamos a paz. Do amigo João Borges".


[O José Lino [Padrão de] Oliveira foi fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa, Cumeré e Brá, 12-7-1974 / 15-10-1974, a mesma unidade a que pertenceu o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro; é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/12/2012; tem dezena e meia de referências no nosso blogue; vive em Paramos, Espinho]



1. Continuação da História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (*)


3ª Companhia de Comandos 
(Guiné, 1966/68) / João Borges

Parte III (pp. 10-11)


Composição da 3ª CCmds

 




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(Continua)