quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21766: (De)Caras (169): Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada, faz hoje 92 anos e é uma referência para outras outras mulheres e para nós, seus camaradas: excertos de um seu depoimento, publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais - Parte II (e última)


Tancos > Batalhão de Caçadores Paraquedistas > 26 de maio de 1961 > As 11 candidatas ao 1º Curso de Enfermeiras Paraquedistas > Da esquerda para a direita, de pé: Cap Pára Cunha, Mª Ivone, Mª da Nazaré (falecida), Mª Arminda, Mª de Lurdes, Mª. Margarida Costa, Mª do Céu Bernardes e Major Lelo Ribeiro; na primeira fila, de cóscoras: Mª do Céu Policarpo, Mª Zulmira André (falecida), Mª Helena, Mª Margarida Pinto e Mª Irene... (Deste grupo inicial de onze voluntárias, só ficaram seis...).

Escreve a Maria Arminda:

 (...) "Lembro-me do primeiro dia que te conheci[, Maria Ivone]. Saímos do Aeroporto da Portela a vinte e seis de Maio de 1961, cerca das 9h30 e a bordo de um velho “Junker” (JU 52), que passou a partir desse momento a ser o nosso fiel amigo, íamos prestar provas psicofísicas ao Batalhão de Caçadores Paraquedistas em Tancos. Como estava um dia com chuviscos, algumas de nós íamos de lenços na cabeça, tipo meninas do colégio em jeito de passeio de fim de curso." (...) (*)

Foto (e legenda): © Maria Arminda (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Maria Ivone Reis, ten enf
paraquedista,  Cacine,
12/12/1968.
Foto de António J. Pereira
da Costa (2013) (***)
1. Continuação da publicação de excertos de um depoimento sobre "a presença e a participação femininas na guerra colonial", prestado, em 2004,  pela nossa camarada,  Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada.


Com 92 anos feitos hoje (**), a Ivone Reis é portadora, infelizmente da doença de Alzheimer, e está ao  cuidado do IASFA - Instituto de Ação Social das Forças Armadas
há já uns largos anos. Poe essa razão, já não nos poder ler 
nem comunicar connosco. Aproveitamos, todavia, a data do seu aniversário  para dar a conhecer, um pouco mais, 
a sua história de vida e o seu testemunho como enfermeira paraquedista do 1º curso (1961) (. A Maria Arminda Santos também é desse curso e ficaram para sempre amigas.)

Ambas são, aliás,  membros da nossa Tabanca Grande. 
A Ivone Reis tem mais  de 25 referências no nosso blogue. Esteve no TO  da Guiné em três comissões (1963, 
1965 e 1969). Esteve igualmente em Angola 
e Moçambique. 

Sabemos,por outro lado, do respeito e admiração que todas 
as antigas enfermeiras paraquedistas, mais novas, têm por 
esta nossa camarada, que é para elas uma figura de referência 
(, tal como a Maria Arminda, outra decana do grupo). 
Em jeito de singela homenagem,  fomos buscar um seu antigo depoimento, 
publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais  (, editada 
pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra).


Com a devida vénia à editora e à autora (Margarida Calafate Ribeiro), tomamos a liberdade de selecionar e reproduzir aqui alguns excertos do longo depoimento da nossa camarada Maria Ivone Reis (****) , que pode ser lido na íntegra aqui:

Margarida Calafate Ribeiro, "Dois depoimentos sobre a presença e a participação femininas na Guerra Colonial", Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 68 | 2004, colocado online no dia 01 outubro 2012, criado a 19 abril 2019. URL : http://journals.openedition.org/rccs/1212 ; DOI : 10.4000/ rccs.1212


Depoimento de Maria Ivone Reis (2004) (Excertos) 

(II e última parte) (****)



[Comparando a Guiné, Angola e Moçambique]

(...) A Guiné, embora fosse um território violento do ponto de vista da guerra, era mais acessível por ser mais pequeno e geravam-se relações mais próximas entre as pessoas. Estávamos em cima de todos os acontecimentos de uma forma muito solidária e muito humana e tínhamos uma boa relação uns com os outros: militares, civis e africanos. 

Com frequência ouvia-se em Bissau rebentamentos e poderia não acontecer nada que afectasse as pessoas. Mas, muitas vezes era um rebentamento em qualquer zona da Guiné e tocava o telefone. A enfermeira que estava escalada, entrava no jipe e imediatamente partia para a pista e voávamos para o local. 

Em Angola ou Moçambique era muito diferente devido à vastidão dos territórios. Às vezes ir buscar um ferido era como ir daqui a Frankfurt. 

(...) Depois há a diferença das situações, que tem a ver com a diversidade de cada pessoa, de cada situação… era consoante o grau de paciência ou de sofrimento daquele que acompanhávamos. 

Um dia, um jovem soldado, foi vitimado por uma mina, que lhe esfacelou um pé. Já instalado no avião que fazia a sua evacuação para o hospital militar, a enfermeira pára-quedista que o acompanhara, perguntou-lhe se tinha muitas dores. Com a cabeça ele acenou-lhe que não, mas o seu rosto continuava a espelhar todo o sofrimento que lhe ia na alma. 

A enfermeira tentou confortá-lo, dizendo-lhe para ter confiança na competência e dedicação dos médicos e de toda a equipa hospitalar que o iria tratar. Prontamente, ele olhou fixamente para a enfermeira e diz-lhe com contida emoção: “Senhora enfermeira, com pé ou sem pé, estou vivo! O que me preocupa é a dor da minha mãe quando souber.” (...)


[Alouette II e Alouette III]

 (...) A força moral daqueles jovens, naquela época, era tremenda e isso transmitia-nos uma grande força para enfrentar os problemas e para lhes dar resposta. Agora o que era mais grave para mim, era quando púnhamos o ferido na maca, víamos os sinais vitais, pulsação e tomávamos consciência de que a vida estava em risco. Aí o problema era chegar a tempo ao hospital. Felizmente que todos os que tive em mãos hegaram a tempo. São situações de muito sofrimento, que nos tocam muito.

A memória daqueles jovens que entregaram a sua juventude, sem saber bem porquê. Recordo um outro caso, esse de alto risco a vários níveis. No quartel nós podíamos sair do avião, mas na zona de combate nós não devíamos sair do avião ou do helicóptero. Era uma circunstância de muito risco. Se houvesse ataque do inimigo o helicóptero teria de levantar voo imediatamente ficando a enfermeira em terra em grande risco, sem meios nem ambiente para tratar dos feridos. Eventualmente fizemos isso em situações muito excepcionais, bem medidas, porque podia tornar-se um altruísmo muito arriscado para a vida dos outros. 

Nesse aspecto é muito importante a questão do medo, porque ajuda ao raciocínio e ao controlo. O importante é perceber como controlar o medo, para termos oportunidade de perceber a razão do medo e para que possamos ultrapassá-lo.
 
(...) Mas como dizia, o episódio que recordo foi muito no início da guerra, ainda com o Alouette II, que era um avião muito pequeno sem espaço para as macas dentro do avião. As macas iam fixas lateralmente – cá fora – de modo que nem podíamos assistir ao ferido. Depois, com o Alouette III, já 
tínhamos espaço para as macas cá dentro e para assistir ao ferido. 

Um dia fomos buscar um ferido e estávamos no quartel numa zona de guerra no Sul da Guiné, onde tinha havido um bombardeamento. Num local mais avançado em relação ao quartel estava o chamado posto avançado das tropas que era um tenda de campanha com um médico e o pessoal militar que dava apoio no campo da enfermagem. Nessa manhã houve muitos feridos.

Quando o avião estava para aterrar fazia uma volta sobre o aquartelamento para avisar que ia chegar à pista. Logo a ambulância avançava, e simultaneamente seguia para a pista um jipe de apoio e segurança. Na pista mudávamos o ferido da maca de campanha para a maca do helicóptero ou do avião. Naquela altura aterrámos na pista e lembro-me de ouvir dizer que o doente estava em estado grave. Perguntei de imediato se poderia ir lá abaixo à tenda. E fui. Encontrei um ambiente de luta pela vida. 

O rapaz, um soldado, tinha levado um tiro no tórax, e estava um fogareiro de petróleo a ferver material agulhas e outros instrumentos. Perguntei ao médico o que é que podia fazer, informando que tínhamos o avião à espera. O rapaz tinha uma hemorragia pulmonar, estava em risco, e eles tentavam cateterizar uma veia para pôr soro. Mas havendo uma hemorragia muito grande, as veias ficam colapsadas. Foi então que o médico pediu a um dos colaboradores que fosse ao quadro eléctrico do quartel buscar daqueles tubos vermelhos da electricidade e, retirando-lhes os fios metálicos, cateterizou a veia e conseguiu colocar o soro. 

E foi debaixo de perigo que avançamos com aquele corpo frágil, o colocámos num Unimog com uma tela com a Cruz Vermelha em cima e o transferimos para o avião. Chegou ao hospital com a pulsação mínima para poder sobreviver e recuperou. Ele era da zona de Castelo Branco e sei que a mãe dele me procurou, mas eu não fiz nada, apenas o assisti a bordo. O médico e a sua equipa é que fizeram um trabalho extraordinário.


[Tive muita sorte, nunca tive mortos nem partos]

(...) Ao longo de tantos anos e com tantos casos tive muita sorte. Nunca tive mortes, mas também nunca tive partos. Uma colega minha ficou muita aflita, porque um bebé nasceu a bordo e não sei o que ela fez, sei que depois daquela ansiedade acabou por conseguir entregar a criança à mãe. Para além deste trabalho dos feridos, de um lado e do outro, havia o contacto com as populações, o apoio àquelas pessoas.

Havia a população que encontrávamos nas saídas de apoio operacional no mato e com quem estabelecíamos relações. Mais uma vez dou o exemplo da Guiné, onde as coisas eram mais imediatas, devido à dimensão do território. Era tudo muito pequenino, negros, brancos, mestiços, civis, militares vivíamos todos em conjunto. 

Lembro-me de uma criança que vinha com frequência ao nosso Posto de Socorro visitar-nos. Era filha de um carpinteiro da Base Aérea. Um dia ele, o pai, disse-me que gostava muito que eu pudesse levá-la para Lisboa, para lhe dar uma vida que ele não lhe poderia dar. Expliquei-lhe que a minha actividade profissional era imprevisível e por isso era impossível impor uma responsabilidade dessas à minha família.


[Socorríamos também dos feridos do PAIGC]

(...) Ao longo dos anos da guerra estive na Guiné em 63, depois em 65 e finalmente em 69, e de cada vez que lá voltava, encontrava uma outra Ivone, porque eles davam aos filhos os nomes das pessoas de quem gostavam. Entre eles e nós havia uma relação simpática e gratificante.

Socorríamos também os feridos do lado adversário. Deontologicamente, homem/mulher, ferido/doente é, e deve ser sempre tratado como humano que é. Quando “o” tinha diante de mim como ferido, não fazia julgamentos, não se faz qualquer julgamento sobre uma pessoa que sofre. O humano fala sempre mais alto e penso que nós portugueses, por aquilo que me foi dado observar, temos uma sensibilidade muito humana. Mas chegavam-nos alguns papéis dos movimentos de libertação. (...)

["Quando é que isto acaba ?"]

(...) Eu tinha dúvidas em relação à descolonização, não que achasse que as coisas estavam bem. Mas Salazar deixou de governar em 1968. De 1968 a 1974 vão seis anos, ninguém mudou nada e só Salazar é que tem culpa? Todos nós fomos culpados, eu também porque não era capaz de dar gritos pela Paz. O que se passava é que enquanto havia um homem inocente a combater, que era o soldado, nós deveríamos estar numa retaguarda de apoio. 

No entanto, eu perguntava com frequência desde os primeiros dias: “Quando é que isto acaba, não há direito que isto aconteça…”


[Na festa do Senhor Santo Cristo com os militares açorianos da CCE 274, Fulacunda, 1963]

 (...) Falávamos da guerra, daquilo que se passava de forma muito objectiva e das coisas engraçadas, fazíamos umas partidas, festas. Lembro-me da Companhia CCE 274, aquartelada em Falacunda, na Guiné, em 1963. Tinha sido uma Companhia muito sacrificada e um dia em que eu e uma colega fomos em missão prestar assistência e evacuar feridos na sequência do rebentamento de uma mina, um militar desabafou: “Que pena, estas senhoras só vêm cá em dia de azar”. Respondemos prontamente: “Fechem a guerra e convidem-nos”. 

O convite veio no último domingo de Maio, para a festa do Senhor Santo Cristo. A Companhia CCE 274 era constituída por açorianos e os festejos iniciaram-se com uma missa celebrada pelo capelão-militar, seguida de almoço e batuque, em que os soldados, passados pela chaminé, ficaram negros e “transformaram-se” em negros. E as duas enfermeiras foram de Fafás. A guerra tinha estes aspectos humanos, agradáveis, solidários,ainda que na sombra daqueles festejos estivessem os mortos na picada e a eles prestámos homenagem.


 [“Tive sorte por que os meus rapazes ficaram todos ilesos” (alferes de artilharia, do quadro permanente,  cego e sem uma perna)]

 (..) Tínhamos uma vida mentalmente saudável, mas com o coração sempre “atento”, um pouco sentido, porque as circunstâncias eram complicadas. Quando acompanhávamos um ferido perguntávamo-nos: “Como é que esta mãe amanhã vai saber deste filho? Ou a mulher?”. Estávamos sempre numa vivência de sofrimento. Todas as semanas, vinham feridos para Lisboa e uma de nós acompanhava-os, embarcando de regresso logo que possível.

Eventualmente também vinham alguns feridos na TAP, dependia das circunstâncias. Morreu no ano passado um homem que tive ocasião de acompanhar numa destas viagens. Era oficial de Artilharia. Conheci-o na Beira, vindo de Nampula e recordo que quando chegou o avião o médico estava a tratar de um doente idoso, um colono branco. 

Quando o avião entrou em linha de voo, perguntei ao médico o que tinha aquele doente e se precisaria do meu auxílio. O médico disse-me que ele era cego dos dois olhos, e que não tinha uma perna. Fiquei apreensiva. Fui ter com ele, apresentei-me e disse-lhe que poderia contar comigo ao longo da viagem. Muito serenamente, com os olhos vendados, pôs as mãos dele nas minhas e disse-me: “Tive um azar muito grande, mas tive sorte”. 

Lembro-me que pensei onde estaria a sorte daquele homem. Perguntei-lhe se tinha dores. Disse-me que não e continuou: “Tive sorte por que os meus rapazes ficaram todos ilesos”.

Lembro-me de estremecer perante a nobreza daquele homem. Ele era alferes do quadro, tinha um pelotão à sua responsabilidade e naquele estado dizia-me que tinha tido sorte, porque os seus rapazes estavam todos bem.

Admiro profundamente esses homens que tanto sofreram. Muito pouca gente lhes dá o valor e tudo o que eles merecem, porque são homens extraordinários. Tenho a maior simpatia, admiração e respeito por esses homens e sempre que me chamam, nomeadamente da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, vou sempre. Admiro extraordinariamente aqueles homens que não se queixam, que são cegos, deficientes em geral, por causa da guerra. (...)

[Cruz Vermelha Portuguesa e Movimento Nacional Feminino]

 (...) No acompanhamento dos feridos a Cruz Vermelha dava muito apoio ao visitar os doentes nos hospitais militares ou afins. 

O Movimento Nacional Feminino estava mais vocacionado para a relação entre os combatentes e as famílias. Se, por exemplo, um soldado tinha deixado os seus haveres em qualquer sítio, tinha sido ferido e depois vinha para o hospital e daí para Portugal, o Movimento Nacional Feminino através de cartas ou por contactos através dos seus núcleos fazia o possível para que as coisas fossem entregues ao soldado ou às famílias. 

Eu tenho cartas de militares, que me pediam que falasse com pessoas por eles indicadas, familiares ou que tratasse de pequenos assuntos, o que contribuía para o bem-estar daqueles jovens. 

Nessa medida, a Cruz Vermelha e o Movimento Nacional Feminino foram instituições solidárias e humanas, importantes para suavizar o vazio  o desconforto da viagem de um combatente, particularmente daqueles que sofriam fisicamente e para quem o desconforto psíquico e moral se tornava ainda mais difícil de suportar. (...)


 [O 25 de Abril e as suas contradições]

(...)  Vivi o 25 de Abril toda contente, a bater palmas, porque finalmente acabava a guerra. Mas ao fim de uma semana fiquei triste deixei de perceber o que estava a acontecer. Eu tinha regressado após tantos anos de África e estava na Força Aérea, a trabalhar no Hospital. Fui saneada a 17 de Abril de 1975 e isso surpreendeu-me. O hospital, no qual tanto me empenhara, ia abrir em Janeiro de 1976. 

Nunca me disseram a razão do meu saneamento e para que efectivamente eu saísse tinha de assinar uma rescisão de contrato com a Força Aérea. Andei um ano e meio naquela situação, falei com o General Costa Gomes, mas nunca me disseram a causa e eu nunca assinei nada. Após a eleição do General Eanes fui reintegrada na vida activa hospitalar até à minha reforma. (...)


 [O doloroso regresso à Guiné nos anos 80]

(...) Há uns tempos, na minha paróquia, onde sou catequista e nos dedicamos em equipa a preparar pessoas adultas para o baptismo, na década de 80, apareceu um rapaz da Guiné, de 19 ou 20 anos. Andava nas obras e estudava. O pai era muçulmano, mas ele queria ser baptizado. Cultivámos uma certa relação afectiva, de amizade e, por vezes, encontrávamo-nos em grupo. Finalmente o rapaz baptizou-se e continuou a conviver connosco.

Um dia, disse que gostava de ser padre. E há dois anos foi ordenado sacerdote. No ano passado, quando fez um ano de ser ordenado, convidou-nos a acompanhá-lo à Guiné. Vivi um terrível dilema, não queria mesmo ir, expliquei-lhe as minhas razões, mas acabei por ceder e sofri muito. 

Lembrei-me das casas cor-de-rosa velho ou caiadas de branco naquele verde luxuriante de Bissau e olhava para aquilo tudo degradado, aquela pobreza extrema, aquelas crianças na rua, ao abandono. Não há explicação, não há justificação possível para mim. Fiquei muito chocada. Não quero voltar a Angola nem a Moçambique. (...)

[Seleção / subtítulos / revisão e fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9348: Parabéns a você (367): Maria Ivone Reis, 83 anos: enfermeiras, paraquedistas, amigas, companheiras de aventura e camaradas para sempre! (Maria Arminda)



Guiné 61/74 - P21765: Historiografia da presença portuguesa em África (247): Guiné, o seu primeiro grande relato no século XIX: O Capitão-de-Fragata da Real Armada, José Joaquim Lopes de Lima (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Despeço-me pesaroso de Lopes de Lima, um alto funcionário de coturno, deram-lhe a estafa de inventariar a existência nas possessões portuguesas, foram seis volumes, o primeiro dedicado a Cabo Verde e Guiné, esta então dependente daquela. É seguramente o melhor documento para esta primeira metade do século XIX, sem desprimor para esse espantoso documento político de Honório Pereira Barreto, a Memória da Senegâmbia.
Está aqui a Guiné das praças e presídios, vale a pena olhar demoradamente a carta que ele gizou sobre a Guiné, nunca aflora o interior, se ele lá não foi, se não nos deixa registo é porque a presença portuguesa, como muito bem sabe, ficava por Geba e arredores. Por ironia do destino ou acaso da História, precisámos da Conferência de Berlim, da Convenção Luso-Francesa e dos apetites das outras potências colonizadoras para nos lançarmos num processo colonizador. Portugal despertou para a Guiné depois do desastre de Bolor, que levou à desafetação da Guiné de Cabo Verde. Na I República, o Governador Carlos Pereira mandou remover as muralhas de Bissau, mas foi preciso esperar-se por Teixeira Pinto para submeter o estado de contenda e a ameaça constante das populações da Ilha de Bissau.

Um abraço do
Mário


Guiné, o seu primeiro grande relato no século XIX:
O capitão-de-fragata da Real Armada José Joaquim Lopes de Lima (3)


Mário Beja Santos

J
osé Joaquim Lopes de Lima, 1797-1852, foi Oficial da Armada e Administrador Colonial com vasto currículo, governou a Índia e Timor e Solor, entre outras responsabilidades. Cavaleiro da Torre e Espada, membro do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima, a Rainha D. Maria II, deram-lhe uma incumbência graúda, que ele abraçou, dando à estampa seis volumes que a pretexto da estatística das possessões portuguesas revelou-se um emérito plumitivo, um viajante curioso e documentado. O primeiro volume é dedicado a Cabo Verde e às suas dependências na Guiné Portuguesa. Tanto quanto sabemos, e independentemente de na época ser publicada a memória sobre a Senegâmbia Portuguesa, de Honório Pereira Barreto, outra joia narrativa e peça historiográfica incontornável, o relato de Lopes de Lima é o primeiro grande documento sobre a Guiné do século XIX, recorde-se que a data de publicação é 1844.

Prossegue a narrativa descrevendo o que há em Bissau e restantes Praças e Presídios, é muito sumário:
“Em Guiné, o que é já indispensável é reparar, e pôr em bom estado a Praça de Bissau; - a Casa-forte, baluartes e tabanca de Cacheu; - as Baterias de Bolor; - e as pequenas Fortificações antigas dos outros Presídios: e sobretudo ter toda a artilharia bem montada; - o que aliás não é de grande despesa em terra tão abundante de boas madeiras, se houver o cuidado de se mandarem alguns Carpinteiros para cada uma das Praças; - e para Bissau alguns Pedreiros: em Cacheu, e Bolor, e mesmo nas outras partes aonde se queira levantar algum Baluarte, ou Bateria, é preferível, atenta a falta de pedra, construí-los, bem como as casas, de tijolo, que já se faz em Cacheu muito bem feito, e muito consistente, porque o barro de Guiné é muito próprio para ele, e sendo rebocado com a cal de ostra, que ali se fabrica em grande quantidade, e mui barata, e caiado de novo todos os anos, promete uma grande duração. Se vier a formar-se povoação de gente nossa no Ilhéu do Rei, fronteiro à Praça de Bissau (o que me parece muito conveniente) é mister então fortificá-lo: o mesmo digo, e ainda com mais interesse, da Ilha de Bolama, cuja colonização reputo de muita importância: e o mesmo direi ainda da Ilha das Galinhas.
Em Guiné, mais que em qualquer outra parte da Província, carecemos de estar de contínuo precatados em acção de guerra contra as hostilidades, sempre iminentes, de povos bárbaros, e as tentativas, ilegais e perigosas, de forasteiros insolentes”
.

Pelo adiante da sua narrativa, irá alongar-se em descrever a vivência dos lugares. Alerta com pormenor a situação de Bissau, é despudorada a interferência francesa, imiscui-se por todos os lugares, faz um apelo a que se reforce a posição portuguesa em Bissau, que assim descreve:
“A fortaleza dista uns cem passos da borda da praia, tendo em frente da porta principal dois grandes poilões, servem de marca aos navios. É neste espaço, o qual se estende um pouco para oeste além dos muros, mas ao alcance da artilharia, que umas duzentas choupanas, entre as quais surgem cinco ou seis cobertas de telhas, constituem a chamada povoação portuguesa, aonde residem uns poucos negociantes, comissários das casas inglesas de Gâmbia e francesas de Gorée; e tudo mais são Cristãos Negros Grumetes da Praça: esta povoação nem ao menos é, como as outras em Guiné, cercada de uma estacada: o Gentio de todas as partes entra nela armado a toda a hora do dia, introduz-se sem cerimónia pelas casas dos moradores a pedir aguardente, ou o que lhes dá na vontade.
Defronte do fundeadouro está o Ilhéu do Rei, o qual tem uma milha de comprimento, e meia milha de largura, e é todo coberto de arvoredo parrado: este Ilhéu foi comprado para a Coroa Portuguesa por Honório Pereira Barreto, em 1838, e há muito quem aconselhe o transferir-se para ali a povoação mercantil de Bissau, rodeando o ilhéu de algumas fortificações, que cruzem o seu fogo com a Praça. No ilhéu indicado há umas árvores sagradas junto às quais existe a China maior de toda a região dos Papéis, à qual estes concorrem aos milhares todos os anos no plenilúnio de Março a celebrar cerimónias”
.

As observações seguintes revelam-se do maior interesse, dá nota da superfície da Ilha de Bissau com os seus diferentes regulados, as ilhas próximas, recorda a descrição do Macaréu feita por André Alvares de Almada para sublinhar os perigos existentes na navegação do Geba, e já perto do final do seu trabalho descreve com raro primor o presídio e o comércio em Geba:
“Cem milhas distantes de Bissau, Geba é a aldeia portuguesa de cristãos-pretos, poucos mulatos e cinco ou seis brancos, dos quais já teve muitos, que passaram a povoar o presídio de Farim, como atrás fica explicado: não tem estacada, nem fortificação alguma, e ali vivem os cristãos de lá, e os que vão de Bissau, em tão boa paz com os Mandingas e mesmo com os vizinhos Beafadas, que um pequeno destacamento é tão inútil como inconveniente. Por inútil tenho também o haver ali um comandante militar, que nada comanda: melhor seria a terra governada por um capitão-mor – pessoa influente no país. Geba é um grande mercado, aonde concorre muita courama, muito marfim, bastante cera, algum ouro, e todos os mais géneros deste país em abundância, os quais se resgatam a troco de sal, cola e mercadorias da Europa, levadas de Bissau àquele ponto em grandes canoas, que andam continuamente neste caminho: o grande comércio de Bissau se reduziria a bem pouco, se lhe faltasse Geba, - e bem assim o de Cacheu faltando-lhe Farim e Zinguinchor: é por isso que eu já em outra parte disse, e não me canso de o repetir, ao comércio português, que uma Companhia em Guiné, a quem se concedesse como exclusivo o comércio do interior dos rios, tiraria avultadíssimos lucros; porque não sofreria concorrência, senão na compra do arroz, que bem podia abandonar, por ser o ramo menos lucrativo: bastaria o monopólio do sal e cola de lá, e das armas, e pólvora de cá, para Geba e Farim a enriquecer uma sociedade mercantil; pois quem não levar estes quatro artigos não pode lá fazer resgate. Entre Geba e Farim há comunicação fácil, sendo a distância entre os dois presídios – dezoito léguas – de que as doze se andam em canoas pelo rio de Farim até à aldeia de Tandegú e as seis por terra de Tandegú a Geba.
Fica esta povoação de Geba na margem direita do rio assentada agradavelmente entre arvoredos: tem mais de seiscentos habitantes livres e oitocentos escravos pelo menos, tudo gente cristã; mas infelizmente está aquela Igreja órfã de Pastor há longos anos”
.

Assim se põe termo ao inventário de Lopes de Lima na Senegâmbia Portuguesa. Carreia achegas preciosas, é alto funcionário experimentado, deram-lhe a faculdade de se pronunciar com sugestões, o que ele faz com fluência. Terminará dizendo que é um total desperdício e erro crasso o país não contar com as riquezas da Guiné, não criar uma aliciante companhia e sobretudo trazer gente cristã como forma de colonização. Recorde-se que são apelos constantes dirigidos a Lisboa, basta recordar o que fez André Alvares de Almada, em pleno período filipino. Apelos que não tiveram resposta.

Fortaleza de Cacheu. Imagem retirada da Revista África e Africanidades, em http://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/0020250122017.pdf, com a devida vénia

Fortaleza São José, Amura. Imagem retirada da Revista África e Africanidades, em http://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/0020250122017.pdf, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21739: Historiografia da presença portuguesa em África (246): Guiné, o seu primeiro grande relato no século XIX: O Capitão-de-Fragata da Real Armada, José Joaquim Lopes de Lima (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21764: (De)Caras (168): Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada, faz hoje 92 anos e é uma referência para outras outras mulheres e para nós, seus camaradas: excertos de um seu depoimento, publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais - Parte I


[Imagem reproduzida com a devida vénia, de Margarida Calafate Ribeiro, "Dois depoimentos sobre a presença e a participação femininas na Guerra Colonial", Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 68 | 2004, p. 158.]



Angola > 1961 > A bordo de um Nord Atlas, com tropas paraquedistas.  A Maria Arminda à esquerda, a e Ivone Reis à direita (**).

Foto (e legenda): © Maria Arminda (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. A Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada, faz hoje a bonita idade de 92 anos. Infelizmente, é doente de Alzheimer, ao cuidado do IASFA - Instituto de Ação Social das Forças Armadas, há já uns largos anos, não nos podendo, por isso,  ler nem comunicar connosco. Mas isso não nos impede de lembrar a sua data de nascimento, 13 de janeiro de 1929 (*), e dar a conhecer o seu exemplo de pioneirismo, dedicação e camaradagem. (**)

Ela é, de resto, membro da nossa Tabanca Grande, com 25 referências no nosso blogue. Conheceu o TO da Guiné e ficou com uma relação muito especial com as as suas gentes!...

Sabemos,por outro lado,   do respeito e admiração que todas as antigas enfermeiras paraquedistas, mais novas, têm por esta nossa camarada, que é para elas uma referência. E também o é para nós, razão porque fomos buscar  um seu antigo depoimento, publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais (, editada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra).

Com a devida vénia à editora e à autora (Margarida Calafate Ribeiro), tomamos a liberdade de selecionar e reproduzir aqui alguns excertos do longo depoimento da nossa camarada Maria Ivone Reis (***) , que pode ser lido na íntegra aqui:

 Margarida Calafate Ribeiro, "Dois depoimentos sobre a presença e a participação femininas na Guerra Colonial", Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 68 | 2004, colocado online no dia 01 outubro 2012, criado a 19 abril 2019. URL : http://journals.openedition.org/rccs/1212 ; DOI : 10.4000/ rccs.1212

 

Depoimento de Maria Ivone Reis (2004) (Excertos)

 

[Nascida em Sintra, há 92 anos]


(...) Nasci em Venda Seca, Belas, concelho de Sintra, em 1929. Éramos quatro irmãos, sendo eu a terceira. Lembro-me do nosso Pai, doente em casa; às vezes levava-me à rua a passear. Faleceu, tinha eu cinco anos. A nossa Mãe era doméstica. Após a morte do Pai, fomos para casa dos nossos avós maternos.

Dois anos depois, a Mãe faleceu, tinha eu sete anos. A causa da morte de ambos foi tuberculose pulmonar.

Os nossos avós maternos tiveram nove filhos. Viviam da agricultura e dos produtos lácteos dos animais. A minha Avó acolheu-nos, quatro netos, com carinho, mas muito exigente, sobretudo comigo, a rebelde!  

(…) A Avó, “analfabeta”, foi a minha grande catequista, ensinando-nos a fazer o bem e “nunca” o mal. O meu Avô nunca mandou os filhos estudarem. Logo, aos netos também não. Assim, os tios após a primária, se a fizessem ou não, trabalhavam na terra.


[Juventude: trabalhar para poder estudar]

(...) Na minha juventude, procurei trabalho, acompanhando crianças, desde que me facilitassem o tempo para estudar. Estive em três famílias, todas  extraordinárias no acolhimento que me deram.

A primeira família era de um diplomata americano. (…). A segunda família era muito agradável. Eram franco-belgas e tinham três filhos. Tratavam-me por “mademoiselle” (…) 

Passados quatro anos, conheci outra família, próxima de amigos comuns, que me desafiou para acompanhar uma criança de dois anos. Teria assim mais tempo para estudar. (...)


[Escola de enfermagem, 1958]

(...) Assim continuei até que, em 1958, conclui o Curso de Enfermagem Geral na Escola das Franciscanas Missionárias de Maria.

O terminar deste curso foi para mim a realização de um sonho que desde sempre alimentei. Quando era criança tinha estado num sanatório, em Francelos, perto de Espinho, porque naquela altura havia a primo-infecção e aquelas outras doenças do foro respiratório. 

Foi lá que conheci uma senhora, Guilhermina Suggia, que era violoncelista e era mundialmente conhecida, fazia concertos na Rússia e pelo mundo fora. Ela ia lá passar as férias, e contava muitas coisas das suas viagens, dos seus concertos e nós ficávamos todas espantadas… são coisas que para as crianças parecem sonhos. Pensei logo que queria ser pianista, mas foi no sanatório que percebi que queria mesmo era ser enfermeira. (…)


[Enfermeira no Hospital da CUF, 1959 e convite para enfermeira paraquedista em 1961]

(...) Comecei a trabalhar em 1959, no hospital da CUF e foi aí que fui abordada por uma colega da Escola para integrar uma equipa de enfermagem na Força Aérea, mais concretamente nos Pára-quedistas, para actuar em Angola, onde a guerra tinha estoirado, em 1961. 

O convite seduziu-me de imediato, disse logo: “Olhe, conte comigo, mas eu amanhã confirmo”. Eu tinha que dar uma satisfação à família com quem vivia, mas a minha decisão estava tomada. (…)

Quando me contactaram pensei que a minha ida como enfermeira era útil, e o importante era atenuar o sofrimento daquele que não tinha culpa nenhuma e que estava na frente de guerra. Não pensei na estratégia de guerra, o porquê da guerra. Achava que aquilo seria uma situação temporária e depois voltávamos. 

(...) Na verdade, nunca tinha pensado trabalhar em África. Quando as notícias da guerra em Angola chegaram, para mim, como para muita gente, foi uma surpresa. Tínhamos uma opinião desinformada e uma população que também não estava esclarecida, muito menos sobre o que se passava em África.

E aceitei o desafio, embora o vencimento fosse menor do que na CUF. Na verdade, eu nem perguntei nada, não perguntei quais eram as condições (…).. 

Fomos o princípio de um quadro de enfermeiras graduadas militares na Força Aérea. A nossa missão específica era de, a bordo, assistir e tratar os feridos ou doentes, combatentes ou população civil, e conduzi-los para o hospital indicado.

O pára-quedismo despertou em nós a consciência do medo, desenvolvendo, simultaneamente, a audácia de agir, com segurança, no risco e na adversidade. Na “retaguarda” da guerra, as equipas de evacuação aérea, pilotos e enfermeiras, estavam sempre prontas a responder à chamada, viesse ela das zonas de combate ou dos mais “esquecidos” aquartelamentos das tropas. Era uma vida intensa.


[Curso de enfermeira paraquedista em Tancos,  junho-agosto de 1961]

(...) Mas a nossa preparação tinha sido cuidada. Quando se reuniu o grupo de voluntárias – éramos 11, uma fracção de uma companhia – fomos convocadas para fazer testes de adaptação e de capacidade. Naquele tempo a mulher não estava ginasticada, não havia a prática de ginástica que temos hoje. Mas estes testes iniciais não eram eliminatórios. No curso que se seguiu as pessoas desenvolviam-se ou não, cumpriam as metas fixadas ou não.

Começámos onze e só ficámos seis, porque as outras não aguentaram os treinos. A guerra tinha começado em Março e nós fomos convocadas em fins de Maio. Fomos para Tancos fazer os testes a 25 ou 26 de Maio, e depois fomos para lá iniciar o curso no dia 6 de Junho, que é o dia do desembarque da Normandia, o dia mais longo, o dia D, como eu digo sempre.

Era um curso adaptado a nós, à nossa capacidade física, que não era igual à dos homens, tínhamos que fazer tudo numa dimensão adaptada à nossa resistência física. O primeiro salto foi a 2 de Agosto e fizemos todos os outros saltos até 8 de Agosto, data em que fomos brevetadas.

Na Força Aérea, nos pára-quedistas, já havia mulheres, civis, na parte administrativa. A nossa relação com os pára-quedistas era muito cordial.

Claro que eles tinham sido advertidos das circunstâncias em que nós íamos, porque é que íamos e portanto o estatuto que nos deram – e que lhes deram a eles – também acautelou o nível de relação que se propunha que houvesse e tudo correu muito bem.  . (…) No fim do curso estávamos envolvidas numa afectividade muito grande, porque realmente os pára-quedistas são excepcionais, são pessoas muito abertas, muito solidárias e amigos. E isso foi muito importante para nós vivermos a nossa missão.


[Partida para Angola, em 23 de agosto de 1961, com a Maria Arminda]

A 23 de Agosto fomos duas enfermeiras para Angola, como teste. Estávamos ainda a fazer fardas em Lisboa, quando foi anunciado que ia haver uma operação especial dos pára-quedistas no norte de Angola, na Serra da Canda e eles gostavam da nossa presença.

Era tudo à experiência: ver como é que nós nos dávamos, ver como é que os pára-quedistas reagiam à nossa presença. Mas não foi nada de especial porque aqueles pára-quedistas que nós fomos encontrar no avião para a Serra da Canda, tinham estado em Tancos em Junho,quando nós tínhamos ido para lá. Eles tinham embarcado para Angola em Julho. (…)

Em Luanda onde inicialmente aterrámos e onde ficávamos – tínhamos a messe e os alojamentos lá – vimos que as pessoas, os africanos e os europeus que estavam lá radicados tinham uma relação humana boa. Eram pessoas muito abertas a uma relação e, mesmo com a população local, não há dúvida nenhuma de que havia uma relação rica de sensibilidade e de vivência.

É claro que a situação de guerra veio alterar as coisas em todos os sentidos. E nós, a nossa presença militar também alterava tudo, mas nunca senti fricções. (...)

(Continua)

[Seleção / subtítulos / revisão e fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de13 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21763: Parabéns a você (1922): Major Enfermeira Paraquedista Reformada Maria Ivone Reis (FAP, 1961/74)


(**) 13 de janeiro de  2012 > Guiné 63/74 - P9348: Parabéns a você (367): Maria Ivone Reis, 83 anos: enfermeiras, paraquedistas, amigas, companheiras de aventura e camaradas para sempre! (Maria Arminda)

Guiné 61/74 - P21763: Parabéns a você (1922): Major Enfermeira Paraquedista Reformada Maria Ivone Reis (FAP, 1961/74)

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Nota do editor

Último pste da série de 8 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21745: Parabéns a você (1921): António Murta, ex-Alf Mil Inf MA da 2.ª Comp/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...

1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 10 de Janeiro de 2021:

De um projecto de livro autobiográfico que pretendo editar e publicar na íntegra, um dia destes, destaquei este trecho para, caso mereça algum interesse, ser publicado na nossa Tabanca Grande.

Aproveito para cumprimentar os editores e desejar-lhes saúde e felicidade.
Carvalho de Mampatá


1 - CONTRA OS CANHÕES MARCHAR, MARCHAR…

Naquela noite fria de 10 de janeiro de 1971, por amabilidade do meu saudoso amigo José Augusto Baptista Oliveira, seguíamos ambos no carro de seu avô que nos conduzia à estação de Campanhã onde, pela meia noite, tomaríamos o comboio que nos levaria até ao Regimento de Infantaria das Caldas da Rainha, com transbordo em Alfarelos de permeio.

 Pela manhã do dia seguinte lá estávamos nós, com muitos outros, à porta de armas do quartel, prontos a servir a Pátria, como então se dizia. Não que essa ideia de serviço e dedicação à Pátria nos preenchesse a mente como algo de adquirido ou absolutamente acomodado. Pelo contrário, eram já muitas as interrogações que nos assolavam o espírito, pelo menos a mim que já tinha conhecido, dois anos antes, a perda de um primo na guerra de Angola. 

E é admissível que o meu amigo Zé Baptista, por entre todas as suas cogitações, tivesse até antevisto, senão mesmo a eventualidade da sua morte, em qualquer emboscada montada pela guerrilha, num dos cenários da guerra ultramarina, pelo menos algo que lhe pudesse acontecer de grave, como a perda de uma perna numa mina ou algum ferimento que lhe impedisse a realização dos sonhos próprios da juventude. Infelizmente, para ele, para os que mais o amavam e para os seus amigos, aconteceu a pior das hipóteses, no dia 18 de fevereiro de 1974.

Mas, na verdade, não era fácil escolher o caminho da deserção que implicava, naquele tempo, um adeus à família para sempre ou por muito tempo. O regime, depois da morte de Salazar, em 27 de julho de 1970, tinha dado alguns sinais de abertura, mas muito ténues e, nas questões essenciais, como era a guerra do ultramar, nada havia mudado, mantendo-se a aposta na defesa intransigente dos territórios ultramarinos onde os insurgentes lutavam pela independência de Angola desde 1961, da Guiné desde 1963 e de Moçambique, na costa do Índico, desde 1965. 

Soubesse eu que iria ocorrer uma revolução vitoriosa em 1974 e outra coisa estaria eu a fazer naquele dia, em vez de receber um fardamento da cor do feijão verde. 

Havia já o registo de muitas deserções, sobretudo nas camadas mais instruídas, mas nada que fizesse perigar o prosseguimento daquela guerra sem sentido e sem fim à vista. O período dos primeiros três meses de instrução básica, comummente designado por recruta, passei-o ali, em sessões diárias de exercícios de ordem unida, ginástica, marchas e corridas fora do perímetro das instalações militares, formação sobre manuseamento e funcionamento da arma, instrução de tiro, teoria sobre guerra de guerrilha e ação psicológica. 

Após esse período, a cada um de nós foi atribuída uma especialidade cujo processo de formação era constituído por mais três meses, a frequentar num outro aquartelamento. A mim coube-me o curso de enfermeiro que me foi ministrado no Hospital Militar de Lisboa, entre abril e junho de 1971, seguido de um estágio de seis meses no Hospital Militar do Porto.

Estava assim transcorrido o meu primeiro ano de serviço militar. Antes da minha mobilização para a Guiné havia ainda de prestar serviço no Regimento de Cavalaria n.º 4, em Santa Margarida, durante cinco meses. 

Ao tempo, os comboios, sobretudo à sexta-feira à noite e no final do dia de domingo, andavam superlotados de soldados que se deitavam no chão e até nas bagageiras, por falta de lugares sentados, em cansativas viagens de fim de semana para reverem os seus familiares. Alguns soldados não visitavam as suas famílias durante todo um período de três meses, fosse por falta de dinheiro para a viagem,  fosse até por se encontrarem num dos extremos do país e a sua residência ser no lado oposto. 

Diga-se, para conhecimento dos leitores mais novos que, por esse tempo, as autoestradas estavam ainda a nascer e estendiam-se por curtas dezenas de quilómetros. Os militares viajavam sobretudo de comboio mas havia também, nalguns aquartelamentos, organizadores de excursões que contratavam autocarros de ida e volta no fim de semana. O governo de então não nos assegurava transporte gratuito, a não ser nas viagens consideradas em serviço ou por doença. Ora, as viagens em serviço eram aquelas que tínhamos que fazer, pela primeira vez, entre a nossa residência e o quartel que nos fosse destinado, sempre que houvesse lugar a mudança de quartel e, finalmente, na viagem de regresso a casa, no fim do serviço militar. 

A alimentação era entre o aceitável e o péssimo. Passei por quartéis onde havia alguma qualidade na alimentação e até no asseio das instalações e outros onde a comida era imprópria para pessoas. Sendo que todos os quarteis recebiam o mesmo abono em dinheiro por cada militar só posso concluir que nuns regimentos se roubava muito e noutros pouco ou nada. 

A sistemática má qualidade das refeições chegava a produzir movimentos de revolta a que chamávamos levantamento de rancho. Não me lembro de ter vivenciado algum, mas tive conhecimento da ocorrência de vários. O levantamento de rancho é uma manifestação de repúdio generalizado contra a má qualidade ou quantidade de uma refeição e consiste, para ser bem sucedido, na sua rejeição, por parte de todos os militares, sem uma única exceção, tendo por consequência a confeção de novo repasto.

A disciplina militar, pela sua rigidez, constitui um obstáculo à análise crítica e ao escrutínio do funcionamento da instituição castrense, permitindo assim, mais facilmente, atitudes abusivas quer no que diz respeito à instrução ministrada quer no que se refere à gestão dos seus próprios recursos, nomeadamente a aquisição de materiais, equipamentos e produtos alimentares. E se a corrupção era evidente nesse período de antes do 25 de Abril, ela permanece nas instituições militares atualmente, como no correr dos dias vamos lendo nos órgãos de comunicação. (...)
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Guiné 63/74 – P21761: Estórias avulsas (100): Como substitui o comandante de operações de patrulhamento em Jumbembem (Fernando C. G. Araújo, ex-Fur Mil OpEsp 2ª CCAÇ/BCAÇ 4512)



1. O nosso Camarada Fernando Costa Gomes de Araújo* (ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 10 de Janeiro 2021:

Camaradas, 

Conforme conversa com o Magalhães Ribeiro, pelo telefone, e por pensar ser uma matéria interessante, envio algumas fotos e um texto, narrando como um Fur. Mil. substituiu o comandante de operações de patrulhamento, em Jumbembem. 

Substituição do comandante de operações de patrulhamento em Jumbembem 

Em 24-07-1973, no “Teatro de Operações da Guiné,” tive o ensejo e a honra, como “Furriel”, de ter comandado numa operação de patrulhamento, os oficiais e furriéis que integravam os dois grupos de combate: 1º e 2º pelotão. 

Um motivo de grande orgulho para mim, ao guiar todos estes homens (+/- 40 a 50) e pela confiança depositada pelo Capitão, comandante de companhia .


Convenções:

Cuntima ---------------  E

JBB --------------------  D

Curva da areia --------- C

Norobanta -------------- B

Entrada ------------------ A


Em 07-08-1973, comandei dois grupos de combate, mas faltam as convenções.   Em 09-08-1973, tive novamente o ensejo, como “Furriel”, de ter comandado noutra operação com maior risco, os oficiais e furriéis que integravam os três grupos de combate: 1º; 2º e 4º pelotão. 

Um orgulho ainda maior, pela confiança que o comandante da companhia mais uma vez depositava nas minhas mãos, (+/- 70 a 80 homens). Convenções assinadas pelo (Capitão) comandante da 2ª Compª.Bat.4512. 


 



          Convenções:

JBB ----------------------- C

Farim --------------------- A

Estrada Fambanta ------- D

Alto Lamel --------------- F

Lamel --------------------- R

Entrada -------------------- E

Isto traduz bem o que representa um militar de Operações Especiais e da segurança e força anímica que consegue transmitir a terceiros. Desde o primeiro dia, após a minha integração no 2º pelotão da 2ª Companhia do BCAÇ 4512, que os homens ficaram mais motivados no teatro de operações quando comigo começaram a actuar. A disciplina, o rigor a lealdade e a dignidade com que sempre os tratei e habituei, fizeram com que o sacrifício por eles dispendido fosse atenuado com uma firme vontade de vencer, porque sabiam por quem estavam a ser guiados e sentiam-se mais confiantes.


Audácia; Abnegação; Coragem; Decisão; Disciplina; Entusiasmo; Generosidade; Lealdade; Resistência e Sobriedade, foram os aços com que fui forjado, no centro de Instrução de Operações Especiais e que humildemente fui e vou transmitindo. 

Chamavam-me “Chicalhão” quando apresentava o pelotão, a companhia, ou quando exigia que melhor se ataviassem, para se apresentarem na formatura. Julgo que estas situações que relato dispensam comentários, pelo treino militar adquirido no Centro de Instrução de Operações Especiais não havendo por isso comparação possível com os outros militares do contingente do exército. 

Um abraço,
Fernando Araújo
Fur Mil OpEsp/RANGER da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512

Fotos: © Fernando Araújo (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

SÁBADO, 25 DE JULHO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21198: Estórias avulsas (99): Achado misterioso (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR)

Guiné 61/74 - P21760: Álbum fotográfico de António Marreiros, ex-alf mil, CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e CCaç 3, Bigene e Guidage, 1973/74 - Parte II: A festa do fanado


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

Guiné > Região de Cacheu > Bigene > CCAÇ 3 (1973/74) > A festa do fanado

 1. Mensagem do nosso camarada António Marreiros [ a viver há quase meio século no Canadá (Victoria, BC, British Columbia), ex- alferes miliciano em rendição individual na Companhia CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e, meses depois, transferido para Bigene, CCaç 3, até Agosto 1974]: 



António Marreiros, 1973, no rio Cacheu


Data - domingo, 3/01&2021, 20:59


Assunto - Ritual de iniciação


Talvez o Cherno Baldé possa esclarecer.

Não estão tão nítidas, as fotos que mando em anexo,  mas é uma janela no passado...

Lembro-me bem disto, fui convidado pelos jovens e meti-me no grupo... Havia um indivíduo mascarado todo coberto de castanho ( vê se mal nesta foto) que levava os jovens para o mato (Foto nº 1)...

São quatro fotos que eu penso estão relacionadas com “ o fanado”...

Abraços, 

António Marreiros

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Notas do editor:


Vd. também postes de:

3 de janeiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21731: Fotos à procura de...uma legenda (129): Pistas de leitura para um casamento Balanta-Mané, em 1973, em Bigene, região do Cacheu (Texto: Cherno Baldé; fotos: António Marreiros)

3 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21729: Memória dos lugares (416): Um casamento em Bigene (António Marreiros, ex-alf mil, CCAÇ 3544, Buruntuma, 1972, e CCAÇ 3, Bigene, 1973/74)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21759: Consultório militar do José Martins (58): O Estatuto e a Insígnia do Antigo Combatente (José Martins / António José Pereira da Costa)


Publicamos hoje mais um trabalho do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), desta vez sobre o Estatuto dos (Antigos) Combatentes e a polémica Insígnia do Antigo Combatente.

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2. Ainda a propósito da Insígnia do Antigo Combatente, aqui fica a opinião do nosso camarada António José Pereira da Costa, enviada ao Blogue em mensagem de 7 de Janeiro de 2021:

Boa tarde Camaradas
Não sei muito de heráldica, mas há uma coisa que sei de fonte limpa: nos brasões não se escreve. É assim nos das U/E/O das FA e até nos emblemas dos clubes. Ninguém viu que o emblema do Bunfas ou do Fê-Cê-Pê tivesse escrito por baixo "Sócio do..."
Estes distintivos, como os brazões, falam e não necessitam de esclarecimentos para serem entendidos.
No nosso caso, não. Ao símbolo - miniatura do monumento do Bom Sucesso - acrescentaram (soto puseram) "Antigos Combatentes".
Pergunto se também os haverá modernos e ancestrais ou até futuros?
O símbolo adoptado pode ser discutível, mas isso é outra questão.
Mas escrever por baixo do símbolo...
O que é que temiam? Que alguém o confundisse com um clube de campismo?
Não sei quem foi o autor do projecto. Para mim, é a assinatura de quem o aprova que conta.
Claro que agora nada há a fazer, a menos que o bom senso impere rapidamente, digo eu...

Um abraço para todos e desculpas àqueles a quem não boafestei na devida altura
António José Pereira da Costa
Cor. Art.ª (Ref.) AM 64/67

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Nota do editor

Vd. postes de:

27 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21299: Consultório militar do José Martins (51): O Estatuto do Antigo Combatente (1)
e
28 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21301: Consultório militar do José Martins (52): O Estatuto do Antigo Combatente (2)

Último poste da série de 31 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21716: Consultório militar do José Martins (57): Reduto de Monte Cintra

Guiné 61/74 - P21758: Notas de leitura (1333): “De Lisboa a La Lys, O Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial”, por Filipe Ribeiro de Meneses, Publicações Dom Quixote, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
A investigação deste conceituado historiador que em 2010 publicou a incontornável biografia política de Salazar, é muitíssimo incómoda para todos aqueles que têm procurado tecer hagiografia sobre um dos maiores desastres militares portugueses. Em síntese, a linha democrata do regime republicano, com Afonso Costa na proa, investiu fortemente para a criação do Corpo Expedicionário Português, após a declaração de guerra à Alemanha, tínhamos que nos provar briosos nas trincheiras da Flandres.
O historiador narra as intrigas, as tensões nos Altos Comandos, o diálogo penoso entre estes e a hierarquia militar britânica, o estranhíssimo comportamento de uma maioria dos oficiais do CEP, mal relacionados com os seus subordinados e chegamos àquele 9 de abril que começou com uma tempestade de fogo sobre as linhas do CEP e uma demandada em catástrofe, sobre a mesma há narrativas desencontradas.
Este livro é porventura a investigação mais rigorosa e atual sobre estes acontecimentos fatídicos que irão preludiar a queda do regime republicano.

Um abraço do
Mário


De Lisboa a La Lys: A tragédia de 9 de abril de 1918

Beja Santos

“De Lisboa a La Lys, O Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial”, por Filipe Ribeiro de Meneses, Publicações Dom Quixote, 2018, é mais uma investigação de gabarito de um historiador que se consagrou com a obra Salazar: Uma Biografia Política. La Lys, como o autor observa, foi um dos dias mais mortíferos da história militar de Portugal. Numa só manhã, perto de 400 portugueses morreram, muitos mais foram feridos e o número de prisioneiros rondou os 6600. O Corpo Expedicionário Português (CEP), símbolo máximo do esforço de guerra nacional durante a I Guerra Mundial, desapareceu dos campos de batalha franceses enquanto unidade organizada. O regime republicano apostara forte neste Corpo Expedicionário, tudo fez para o enviar com celeridade para a Frente Ocidental, o descalabro de La Lys iria pôr o regime em xeque e o seu militar mais prestigiado, Gomes da Costa, aparecerá à frente do 28 de maio de 1926.

O que Filipe Ribeiro de Meneses investiga e dá à estampa é muito incómodo para os nossos brios e compromete em grande parte a hagiografia que se tem pretendido montar sobre os lances de heroísmo e a bravura do militar português nas trincheiras da Flandres. A história bem comportada do CEP, como Ribeiro de Meneses ilustra, é um conto de fadas, baseia-se em inúmeros testemunhos que servem para comprometer o manto diáfano da fantasia.

O historiador enceta o seu trabalho falando de seu avô Mário Ribeiro de Meneses, capturado em La Lys e levado para território alemão, daqui travará correspondência com a família e nos aperceberemos das peripécias do que foi o seu regresso e de outros milhares de militares. Mas peripécias, jogos políticos e um impressionante desfasamento entre oficiais, sargentos e praças, é o que não falta neste documento rigoroso, e com um novo olhar historiográfico.

Chegado o CEP a França, logo começaram as dificuldades, assinaladas as péssimas relações, que atravessaram todo o contingente. Chegaram a Brest e pouco antes tinha havido em Lisboa o golpe de Estado de Machado Santos, com revoltosos detidos, que depois embarcariam para França. O general Tamagnini irá queixar-se permanentemente que estava sob vigilância ideológica do partido de Afonso Costa, através de um major. Eram difíceis as relações com os aliados britânicos, estes cedo se aperceberam que havia que dar mais instrução para a guerra que o contingente português iria enfrentar (o que tinham aprendido em Tancos estava bem distante do que iam experimentar nas trincheiras), Afonso Costa negociara com Londres a contribuição portuguesa para o esforço de guerra: o Exército Português teria o seu setor próprio a defender, com o seu comando próprio, com a sua completa autonomia. A prática ensinou que não podia ser assim. O autor recorda que 1917 foi um ano cruel para os Aliados, a Batalha de Passchendaele que resultou num massacre de enormes proporções, aspirava-se à chegada de contingentes que renovassem os corpos de Exército completamente estafados pela vida das trincheiras e por desaires sucessivos frente aos alemães.

A logística também cedo se revelou difícil, desde o transporte marítimo à distribuição de peças de artilharia e armamento ligeiro; para além do frio, ia muita gente doente e doenças venéreas não faltavam. Ao mais alto nível, discutia-se a preparação e a ida para as trincheiras.

O historiador, mais do que altamente documentado, cruzando agilmente a documentação britânica e portuguesa, revela o vai e vem das decisões, mostra a correspondência intercetada pela censura, veja-se este trecho de um soldado: “Aqui não se fazem avanços. Os que os tentam fazer perdem toda a sua gente com as minas que o inimigo faz explodir, em vista de nós termos minas por baixo das trincheiras deles e eles debaixo das nossas. A guerra das trincheiras é isto só: ataques de artilharia, gases, de noite cortarem arames uns aos outros, metralhadores a fazer constantemente fogo, para não deixar avançar o inimigo, morteiros que enterram um homem vivo e de vez em quando lá morrem meia dúzia, e assim passamos estes dias até nos chegar também a vez”.

Se a falta de coesão no CEP era indisfarçável, o golpe de Estado sidonista e o afastamento dos políticos que tudo tinham feito para que Portugal entrasse na guerra introduziu novos embaraços, acrescidos das dificuldades manifestadas pelos britânicos no transporte regular de tropas portuguesas para a guerra. De janeiro para fevereiro de 1918, o CEP aparecia constituído em corpo de exército mas pouco apto para empreender raides contra posições alemãs. Não obstante, as forças portuguesas passaram a penetrar nas linhas inimigas. O estado de saúde dos militares portugueses não era abonatório, como escreveu nessa altura Jaime Cortesão: “Pálidos, magros, exaustos, os pulmões roídos dos gases, os pés triturados das marchas, sem esperança nem apoio moral, arrastam-se, sob o imenso fogo que tomba do céu, por essas estradas, como uma legião miserável de abandonados”. E assim chegamos ao cenário da ofensiva alemã de 9 de abril, o historiador colige o que há de mais expressivo nas narrativas contraditórias, pois as versões documentais estão longe de coincidir. Os relatos ingleses evidenciam que se susteve a gigantesca ofensiva alemã, a barragem de fogo foi infernal e desfez aquela linha da frente, pôs a generalidade das nossas forças numa retirada caótica, a infantaria alemã não teve dificuldade naquele número elevado de capturas. Iniciaram-se novas discussões, os britânicos entendiam que os portugueses não deveriam regressar como força independente às primeiras linhas e é nesse período transtornado que a Alemanha, exausta e à beira da guerra civil, capitulou. As consequências para Portugal foram igualmente dramáticas: “Em La Lys findou o sonho de uma República capaz de transformar os destinos de Portugal, do seu domínio colonial e dos Portugueses de todo o mundo, mobilizando todas essas forças em torno do sacrifício dos soldados nas várias frentes de combate e da valorização, pelo mundo fora, do bom nome português”.

De leitura obrigatória.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21734: Notas de leitura (1332): Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994), por Philip Havik, na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999 (2) (Mário Beja Santos)