sábado, 6 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21859: Os nossos seres, saberes e lazeres (436): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (5): A despedida de Óbidos, em breve regresso (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
É o princípio do adeus temporário a Óbidos, a tal vila de grandioso acervo e muita história que deve ser visitada com um guião para não se perderem contemplações tão estimáveis como as torres medievais de D. Dinis e D. Fernando, os seus templos religiosos onde pontificam obras de Josefa d'Óbidos, há que visitar o palácio quinhentista de D. João de Noronha, transformado em pousada, percorrer a cerca, entrar nos museus e nas livrarias, sentir que até ao século XVI esta vila de Óbidos teve um desempenho determinante na região até que a rainha D. Leonor fundou o Hospital Termal das Caldas da Rainha. E poder usufruir dos diversos movimentos artísticos posteriores, caso do Renascimento e do Maneirismo, e aí o visitante anda entre os templos religiosos e o Museu Municipal que é o que de seguida vamos fazer antes de aqui partir com imensa vontade de regressar.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (5):
A despedida de Óbidos, em breve regresso


Mário Beja Santos

Está quase na hora de partir deste povoado que ainda guarda vestígios da antiga Medina, onde é marcante a presença do gótico, onde há muito Renascimento e Barroco, impressionantes livrarias, como a do Mercado Biológico, olha-se para um lado e temos o casario adossado à muralha, as igrejas esperam-nos com novas surpresas, há sempre elementos para nos surpreender no museu municipal, ninguém fica insensível à porta de Nossa Senhora da Graça. Temos o castelo e as torres medievais, a incontornável Rua Direita, quem tem tempo e pernas pode ir visitar a igreja medieval de Nossa Senhora do Carmo, fora das muralhas, a Oeste, o mesmo se dirá do Aqueduto Rainha Dona Catarina, da Torre do Facho, contemplar o edifício provável do que terá sido a judiaria, e temos finalmente o Paço Quinhentista. É a omnipresença do passado com a devassa permanente das atrações turísticas. Vila de grande influência, destronada pelas Caldas da Rainha. Percorrem-se as muralhas, e há aquelas fendas que mostram lá em baixo a Várzea estuante, os livros recomendam um passeio no interior da Cerca Velha, estamos agora na Rua Direita, há várias portas, a Porta da Telhada, a Porta do Vale, a Porta da Vila, a Porta da Cerca, a Porta da Traição. Prosseguimos desinteressados de nomes, o que queremos é panorâmica desafogada, talvez bafejados pela sorte captou-se esta primeira imagem e não se esconde regozijo, para todos os efeitos é uma imagem que iremos recordar deste encontro feliz com a história e a cultura de Óbidos.
A princezinha que nos acompanha, a minha adorada Benedita, a neta que testemunha o meu futuro, avisou que se quer expor numa grande angular, também para um dia recordar como estava feliz, mesmo sem ter subido à Torre de Menagem, mesmo sem ter dado um grande apreço aos acervos das igrejas de Óbidos, estava a dar-se muito bem com a viagem, o nome do rei D. Afonso Henriques não lhe era estranho e apreciava aquele entusiasmo do avô com os quadros da Josefa d’Óbidos e até não desgostou do túmulo de D. João de Noronha, havia aquela promessa não concretizada de à tarde haver um bom banho nas praias do Baleal ou na Lagoa de Óbidos, correu tudo ao contrário, a água bem fria e nevoeiros caprichosos. Mas nada disso tirou a boa disposição à Benedita, radiante com a sua boa mesa e a variedade de passeios, entre a serra e o mar. Daí não ser de estranhar ela estar a sorrir-nos como dona do mundo, e pronta para continuar o passeio, aprendeu a lição que a viagem nunca acaba desde que o viajante não desista.
Não há só um museu em Óbidos, Abílio Mattos Silva, artista plástico, cenógrafo de nomeada (1908-1985) era do Sardoal e de Óbidos por adoção, fez de tudo um pouco na vida, chegou mesmo a ser Diretor de Cena do Teatro Nacional São Carlos, distinguiu-se na Pintura e deixou cenários impressionantes, este está patente no museu que dele tem o seu nome, ali mesmo no centro histórico. No Museu Municipal também goza de digno acolhimento.
A região de Óbidos e das Caldas goza da fama e proveito de ter azulejaria de renome, ninguém resiste à decoração barroca da passagem central da Porta da Vila, invulgar em todos os sentidos. Envolvendo um oratório, temos, como era da praxe, alegorias à Paixão de Cristo, tudo admiravelmente integrado no suporte arquitetónico. O revestimento prolonga-se pelas paredes laterais, a obra é situável cerca de 1740, é associada ao pintor Valentim de Almeida. No livro Linha do Oeste, já aqui referido, escreve-se: “A decoração desta porta de Óbidos talvez esteja relacionada com as várias passagens de D. João V pelo local, para usufruir dos banhos das Caldas após o ataque de paralisia que sofreu, em maio de 1742, fazendo grandes ofertas e promovendo obras neste local”. O que interessa é a harmonia do conjunto e o deslumbramento que provoca cada um destes painéis, é a satisfação de todas estas partes somarem um todo.
Seguem-se imagens diversificadas, só possíveis de tomar em diferentes pontos da muralha do castelo.
Não foi ao acaso que a UNESCO atribuiu a Óbidos o título de Cidade da Literatura. Aqui se concentram livrarias de impressionante dimensão, é o caso da livraria da Adega ou a do Mercado Biológico, unidades de cultura de dimensão impressionante, há mesmo um livreiro que vende antiguidades e livros antigos e tem tipografia para edições quase personalizadas. Com regularidade, aqui decorrem encontros como aquele em que esteve presente Luís Sepúlveda, vítima mortal do COVID-19. Quem visita Óbidos não pode deixar de contemplar os livros transformados em obras-de-arte, como se fossem as mais criativas instalações de papel.
E volta-se ao bulício da Rua Direita, fixa-se a atenção numa buganvília, um vermelho de sangue a relevar do branco imaculado, com enfeites de vária ordem, chamariz para o turista, olha-se para o relógio, o grupo está de acordo, é a última visita ao Museu Municipal e depois ala morena que se faz tarde, estão todos com vontade de um bom peixe em Peniche, ainda há paragens pelo caminho, até Lisboa.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21826: Os nossos seres, saberes e lazeres (435): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (4): Regresso a Óbidos, o desfrute de uma vila artística, agradecimentos a Dona Josefa (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21858: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (4): "O Machado"; "O Tiago e a pena" e "Viagem para Bissau"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


10 - O MACHADO

Numa deslocação de reconhecimento e emboscada numa zona que supostamente o inimigo frequentava e que durou dois dias e uma noite, atravessámos várias bolanhas para chegar ao local referenciado onde encontrámos vestígios antigos de presença humana.

Retiramos do objetivo e procuramos no regresso um local para passar a noite que se aproximava. Instalamo-nos, perto das 18H00, para comer a ração de combate e dormir, quando, logo a seguir, desabou uma carga de água que estimo, porque não tinha relógio, terá durado algumas horas. O pessoal foi-se encostando às árvores, em pequenos grupos, cobrindo-se com os panos de tenda que alguns levavam mas que não impediram uma molha geral.

Algum tempo depois de passada a tempestade, noite cerrada, alguém aflito chama pelo graduado do seu pelotão que logo o manda calar. Mas, a cegarrega continuou em tom mais baixo, com grande aflição, pelo que o graduado se deslocou ao local onde pediam a sua presença e perguntou ao militar, sem o ver, a causa de tão grande aflição. O Machado disse que não tinha uma perna, afirmação que causou algum alvoroço, com alguém a comentar que teria sido algum bicho, o que angustiou ainda mais o soldado. Era uma situação complicada de resolver, a meio da noite, sem se ver nada. Tendo-se acalmado, o Machado verificou que afinal tinha a perna mas não a sentia, situação bem mais favorável.

O que aconteceu, está bem de ver, é que o Machado completamente ensopado deitou-se em posição fetal, adormeceu e com ele adormeceu a perna sobre a qual se deitou.

Ao alvorecer, sem chuva, com o chilrear dos pássaros qual despertador amigo, iniciámos o regresso ao quartel com o Machado a andar perfeitamente e, por dentro, a chilrear também. Claro que não se livrou de alguns remoques dos companheiros.


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11 - O TIAGO E A PENA

Estávamos alguns militares junto ao cavalo de frisa, porta de armas do quartel, à espera da viatura proveniente de Cumbijã para irmos ao médico a Aldeia Formosa.

Também ali estavam dois jovens guineenses que se puseram na brincadeira, enquanto a viatura não chegava, medindo forças, rindo, até que um derrubou o outro e o manietou.

Sentado numa pedra, junto deles, estava o Tiago, com uma pena na mão, riscando o chão, perfeitamente concentrado na sua tarefa. Entretanto, o jovem que estava dominado contorcia-se, rindo, para se libertar do domínio do outro e quanto mais se contorcia mais o que estava por cima aumentava o seu esforço para o manter quieto.

A dada altura pareceu-me haver qualquer anomalia na brincadeira e olhei para os dois engalfinhados no chão e para o Tiago, que estava junto deles. Então, percebi que o jovem que estava dominado contorcia-se mais porque o Tiago viu ali um pé à mão de semear e, paulatinamente, começou a fazer-lhe cócegas com a pena levando o jovem a esforçar-se cada vez para se libertar sem que o outro aliviasse a pressão exercida, por não perceber o que se passava nas suas costas.

Confesso que não tenho a certeza, mas creio que o jovem não conseguiu conter as águas.


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12 - VIAGEM PARA BISSAU

Em outubro de 1973, saímos de Colibuia para os Adidos, em Brá – Bissau, tendo a viagem sido feita de Lancha de Desembarque Média (LDM) a partir de Buba. Na viagem, já de noite, estalou uma tempestade assustadora que deixou o pessoal e a bagagem completamente encharcados.

Na bagagem havia malas de todo o tipo e feitio. Umas, em plástico ou pele, de cores diversas, com vistosos e seguros fechos, que pareciam aguentar bem aquela chuvada e mais umas quantas. Outras, de cartão revestido com tecido, com ar de que aos primeiros pingos de chuva se desfariam.

Eu tinha uma mala mais pequena de pele que, se bem informado, seria suficiente para toda a comissão, e tinha outra maior de cartão revestido a tecido.

Fosse pela colocação mais ou menos privilegiada de cada uma das malas no espaço a elas destinado, fosse pela qualidade das mesmas, a verdade é que a mala de cartão chegou em excelentes condições e a mala de pele ficou encharcada na base tendo-se estragado alguma da bagagem e os sinais da intempérie duraram o resto da sua vida.

Lá se chegou a Bissau e, na nossa deslocação para os Adidos, atravessámos a cidade de Berliet sendo praxados pelos militares que circulavam nas ruas, parte substancial da população que se movimentava em Bissau, com o tradicional piu-piu. Chateados, respondíamos com o “vai para o mato, malandro” adequado.

Adidos: a estender roupa e, depois, ficar à espera que seque e proceder à sua recolha para não mudar de dono
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21849: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (3): "Colibuia"; "O banho e o atavio" e "Os esperados"

Guiné 61/74 - P21857: Consultório militar do José Martins (59): Loures, o ano de 1961 e seguintes...


Publicamos hoje um trabalho do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude,1968/70), dedicado a Loures e aos seus Combatentes da Guerra do Ultramar.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21759: Consultório militar do José Martins (58): O Estatuto e a Insígnia do Antigo Combatente (José Martins / António José Pereira da Costa)

Guiné 61/74 - P21856: Parabéns a você (1929): José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Os Maiorais) (Buba, Aldeia Formosa e Empada, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21848: Parabéns a você (1928): Cap Inf Ref José Belo, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2381 (Os Maiorais) (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70) e Dr. Mário Silva Bravo, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 6 (Bedanda, 1971/72)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21855: O segredo de... (34): Dionísio Cunha, desertor e bravo soldado comando (testemunho recolhido por José Ferreira da Silva)


Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > 
Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > 

O nosso tertuliano José Ferreira da Silva (,, o "Silva da CART 1689") com o protagonista desta história, o camarada Dionísio Cunha , aqui à direita. 


Foto (e legenda): Jorge Teixeira (Portojo) /José Ferreira da Silva (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. É um segredo... que já não é segredo (****). Foi recolhido e divulgado há cerca de 8 anos, pelo nosso camarada (e escritor, com três livros publicados), o José Ferreira da Silva (ex-fur mil op esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com mais de 160 referências no nosso blogue.


Foi publicado na sua série "Outras memórias da minha guerra" (e mais tarde reproduzido em livro, o I volume das "Memórias Boas da Minha Guerra", Lisboa, Chiado Books, 2016) (*).

Já na altura tive ocasião de dar os parabéns ao Dionísio e ao Zé Ferreira pela coragem, frontalidade, autenticidade e honestidade deste testemunho. Não tinha na altura (nem tenho ainda hoje) razões para pôr em causa a sua veracidade nem o rigor da recolha do Zé Ferreira. Sei que ele levou alguns meses a confirmar e acertar certos pormenores. E obteve aautorização do Dionísio para publicar esta "história", primeiro no nosso blogue (*) e depois em livro [, vd, imagem da capa à esquerda].

Eu próprio falei, há dias, no dia 24 de janeiro passado, com o Dionísio. E mais uma vez ele não levantou qualquer objecção a que o seu testemunho pudesse ser de novo reproduzido, agora, nesta série, "O segredo de...". Disse-me: "Tudo o que lá está foi verdade"...

Por sua vez,eu retorqui-lhe que um dia ainda haverá um cineasta que pegue  nesta história já esquecida, mas reveladora da importância que têm os valores humanos, na paz e na guerra.  E repeti o que tinha comentado há oito anos atrás:

 "Na América, esta história dava um filme. Em Portugal, não passaria de um 'fait-divers' da guerra colonial, se o Fernando Gouveia e agora o José Ferreira da Silva não a tivessem posto em letra de forma. (...) Vou pedir ao Silva que traga esse camarada até nós, à Tabanca Grande. Eu próprio gostaria de o conhecer pessoalmente. Eu e mais o nosso batalhão da Tabanca Grande."... 

Sei que o Dionísio não é utente das redes sociais, não conhece o nosso blogue, não tem computador nem endereço de email... Mas tem um filho que é informático, e a quem vou pedir um dia destes uma foto do pai, do tempo da Guiné, para o apresentar formalmente à Tabanca Grande e sentá-lo à sombra do nosso poilão, como ele tão justamente  merece. 

Continua ligado ao Centro Social e Paroquial de Valbom. Estava em casa com a sua Ângela, um e outro já com alguns problemas de saúde  próprios da idade. Desejei felicidade a ambos.

E vamos agora "ouvir (e saber ouvir)" o seu testemunho (****), reproduzido com talento, detalhe e rigor pelo Zé Ferreira.  Mesmo que para aqueles que já o conhecem, o depoimento merece ser lido, relido e comentado. 

O único ponto de discórdia (, já discuti isso com o Zé Ferreira),  é o nome da operação, referida no texto: estamos a publicar a história da 3ª CCmds (1964/66), na versão de João Borges, e em maio de 1967 não parece ter havido nenhuma Op Azimute: houve duas no Oio (Op  Vermute, a 10 de maio;  e Op Vinagre, a 17; e uma terceira, na ponta Matar, na região de Cacheu, a 26 de maio). 

Pela descrição do Dionísio (que não se lembrava já do nome da operação, o Zé Ferreira é que lhe chamou Op  Azimute),  admitimos nós que possa ter sido  a Op Vermute, mas o relatório  parece ter sido omisso quanto a eventuais baixas civis. O que não admira: quem conheceu a realidade operacional do CTIG, sabe que os nossos relatórios de operações por vezes pecavam, uns por excesso, outros por defeito. Confronte-se, entretanto,  as declarações do Dionísio com o resumo da Op Vermute feito pelo João Borges, infelizmente já falecido em 2005  (***):

(...) "Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“Op Azimute”) na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximámo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume." (...) [Dionísio Cunha]


Resumo  da Op Vermute, segundo João Borges (***)





Feia > Fiães > 2 de dezembro de 2017 > Sessão de apresentação dos Volumes  I e II de "Memórias Boas da Minha Guerra", do nosso camarada José Ferreita da Silva.   

"O  cmnbatente  da 3.ª CComandos, Dionísio Cunha - protagonista da história “É Guerra, é Guerra (Será?)”, pág,119, I Volume - fala da guerra, da sua justeza e da sua condição de desertor, de que se orgulha muito, segundo diz. Preso na Metrópole, voltou à Guiné e à sua Unidade, tendo participado voluntariamente em perigosas operações até terminar a sua comissão de serviço." (**)

Foto (e legenda): José Ferreira da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O segredo de Dionísio Cunha, desertor e bravo soldado comando

por José Ferreira da Silva


Eu estava sentado à mesa, já na ponta final do abundante almoço/convívio na Quinta dos Melros, em Fânzeres, Gondomar. Tinha à minha direita o José Carvalho, herói de Gadamael, na guerra da Guiné, e à minha esquerda o meu amigo Jorge Teixeira, que foi da CCS do nosso BART 1913, sediado em Catió (que, agora, é muito conhecido por “Portojo”, na sua actividade de fotógrafo de arte). Este já havia aberto uma garrafa de conhaque “caseiro” especial, oferecida pelo Bateira de Cinfães que, pelos vistos, a destinava à próxima quadra natalícia.

Na nossa frente estava uma garrafa de água (a única em toda a mesa), ainda por abrir. Uma mão, vinda de trás de mim, estendeu-se pela nossa frente, procurando alcançar a dita garrafa. Surpreendido, perguntei:

– Quem está doente?

Logo a resposta veio célere:

– É para lavar o copo. Vou tomar um remédio especial.

E como eu não tinha ainda travado conhecimento com este ex-combatente, perguntei-lhe:

– Onde andaste?

– Estive na Guiné, na 3ª Companhia de Comandos, a do Álvaro Cardoso, marido da artista Paula Ribas.

– Éh, pá, estive selecionado em Vendas Novas para integrar essa Companhia – disse-lhe, enquanto ele se afastava para junto do topo sul da mesa.

O Portojo aproveitou logo para falar do Dionísio, portador de uma história curiosa e que ele já andara tentado em conseguir.

Não levou muito tempo para que o Dionísio aparecesse, junto de nós e já bem “medicado”, com a firme disposição de contar a sua história. Logo se fez uma rodinha de curiosos, bem atentos, saboreando todas as palavras.


A paixão, aos 18, pela Ângela, de 14

E foi assim:

É o quarto dos seis irmãos nascidos e criados pelo casal José e Rosalina, de Valbom [Gondomar] . Na escola, o Dionísio entrou directamente para a 2ª classe, uma vez que já sabia ler.

Com oito anos já trabalhava de manhã num ourives, onde ganhava 5$00 por semana. À tarde frequentava a escola.

Aos 12 anos entrou para a Fundição Herculano [Azevedo], no sector dos componentes eléctricos.

Aos 18 anos apaixonou-se pela Ângela, com quem namorava às escondidas, em virtude de ela só ter 15 anos. Um ano depois, já farto de andar a esconder o condicionado namoro, resolveu ir falar com o futuro sogro, um homem analfabeto mas de palavras muito sábias. Aproveitando um bom momento das suas relações, atirou:

– Senhor Zé, tenho uma coisa para lhe dizer, mas até me custa falar.

– Desembucha, rapaz. Sabes que até gosto de te ouvir – respondeu.

– Ando a namorar com a sua filha há um ano, sei que ela é muito nova, mas queria que me autorizasse a namorá-la à frente de toda a gente. – disse o Dionísio.

–Olha, rapaz: cada um que trate de si, porque eu já estou servido há muito tempo.

E foi assim que namorou 8 anos com a mulher que escolheu e que, ainda hoje, ama e admira.

Em Julho de 1964 foi à Inspecção. Recorda ter sentido alguma revolta quando verificou que o colega da escola primária, Júlio Sousa, o “Matulão”, filho do patrão Albino, das Indústrias de marcenaria, um destacado dirigente da União Nacional, ficou “Livre”, ao contrário dele, um “caga-tacos” à sua beira, que ficou “Apurado  para todo o Serviço Militar”. Ele, futuro engenheiro, abastado e disponível, ao contrário do Dionísio, que era pobre e amparo da mãe e de dois irmãos menores.

Foi para Espinho (GACA 3) em 25 de Outubro de 1965. Confessou que teve um aspirante que o tratava muito bem e que odiava um tal tenente  Grilo, que o castigara injustamente. Fez ali a escola de cabos e seguiu para os Comandos de Amadora. Aqui também mereceu alguns castigos, que o forçavam a apoiar o Refeitório. Porém, o Cabo do Rancho acabou por o rejeitar devido ao prejuízo que dava. Dali seguiu para Lamego, onde formaram a 3ª Companhia de Comandos.


Maio de 1967 : No Oio, três mulheres mortas, 
com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas, vivos.


Seguiram de barco para a Guiné no dia de S. João de 1966, depois de uma noite mal dormida no RALIS de Lisboa. Foram directamente para o Quartel de Brá, em Bissau.

– Então como foi isso lá na Guiné? – perguntei.

E ele iniciou:

"Tive muitas operações, muitos combates e algumas aventuras. Mas há uma que me marcou imenso e foi considerada uma loucura. Aconteceu nos primeiros dias de Maio de 1967.

Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“Op Azimute”) (***), na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximámo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume.

Avançavam as equipas de dois de cada vez para cada lado, enquanto os outros faziam o fogo. De seguida, avançavam estes, enquanto os outros disparavam. Envolvemos o objectivo e,  após despejarmos bastantes munições, entrámos no pequeno acampamento. Encontrámos alguns corpos baleados, caídos e, entre eles, estavam três mulheres mortas, com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas. Vivos.

Eu agarrei numa garotinha, linda, que, sem chorar, se abraçou a mim, enquanto dois dos meus companheiros, pegaram as outras duas crianças. Que fazer com as crianças, foi o problema. Abandoná-las, à mercê dos animais? Deixá-las a fazer barulho? Trazê-las? E para onde?

Disse que queria ficar com a minha (a que tinha ao meu colo) mas o subcomandante Rodrigues disse que isso não era possível e insistiu que teriam que ser caladas. E acrescentou:
– Cada um cala a sua e rapidamente, porque estamos já a correr muitos riscos."


O Dionísio, já com a voz embargada, parou e aproveitou para limpar os olhos. E continuou:


"Após algumas hesitações, os meus companheiros resolveram o problema, e eu também ia fazer o mesmo. Pousei a criança no chão e, quando ia a puxar o gatilho, ela estendeu a mãozita na direcção da ponta da arma. Senti-me quase sem acção, indeciso e sem forças. Reagi, apontei a arma de novo e disparei na direcção do chão, evitando atingir a criança. Os outros não se aperceberam e corri rapidamente para junto do grupo, que já se afastava.

Entrámos para a lancha e dei comigo a matutar naquela situação e noutras a que a guerra me havia obrigado. As imagens não me saíam da cabeça."


Saudades da Ângela e uma 'boleia' no Uige até casa, clandestino,  
no meio da comissão
 

"Estávamos aquartelados em Brá, Bissau,  e era para lá que sempre regressávamos. Quando chego ao Cais da Amura verifico, mais uma vez que ali, ao largo, se encontrava o navio Uíge, que havia trazido mais militares (BART 1913) [, desembarcado em 1 de maio de 1967] e que regressaria a Portugal com outros, já com a sua missão cumprida.

Já andava a sofrer há muito com as saudades da minha Ângela, da minha família, dos meus amigos de Gondomar e estava cheio da guerra e, agora, com as imagens dessa última operação, comecei a pensar na hipótese de fugir.

As saudades eram cada vez maiores. A cabeça já não pensava noutra coisa. E já tudo me parecia possível. Meti algumas coisas nos bolsos e fui para o cais na expectativa de me meter no barco. E não foi nada difícil.

Quando dei por mim, já lá andava dentro à vontade, sem que ninguém me exigisse qualquer formalidade. Andei de um lado para o outro e cheguei a integrar um grupo de amigos na maior das confianças. Talvez pensassem que eu fora em rendição individual. Entre os vários passatempos, a maior parte do tempo era passado a jogar as cartas.

Quando cheguei a Lisboa,  fui aos CTT mandar um telegrama para casa, para não chegar lá sem ser esperado. Meti-me no comboio e à noite já estava junto da minha namorada. No dia seguinte, por coincidência, quando ia para a matinée com ela, o Carteiro perguntou-nos por um endereço (que era o de minha casa) para entregar o tal telegrama.

Dois dias depois já estava a trabalhar normalmente, na Fundição Herculano Azevedo, nos componentes para energia eléctrica.

Os meus colegas de trabalho perguntavam-me coisas sobre a guerra mas eu desviava o assunto. Sabia que era perigoso falar disso porque a PIDE andava atenta e ainda mais por constar que eu era comunista.

Entretanto, em Brá, o Capitão Álvaro Cardoso não queria acreditar no desaparecimento do Dionísio e dizia: 

– O Dionísio era valente e patriota, portanto não ia fugir para os turras."


Alguns dos amigos mais chegados, conhecendo o seu aparente descontentamento recente, ainda esperaram ouvi-lo através da Rádio Argel, no Portugal Livre [, leia-se: "Voz da Liberdade"], programa do conhecido Manuel Alegre. Depois, a hipótese mais provável era a de que ele fora sozinho ao bairro negro Pilão, porque era um gajo sem medo e fora apanhado e morto.

Desaparecido ou morto eram as palavras constantes na participação efectuada pelo Capitão Álvaro.

Num domingo, ao fim da tarde, 42 dias depois da fuga, estava o Dionísio a namorar quando a sua mãe o foi avisar:

–Olha, disseram-me que anunciaram na RTP que te andam a procurar e que te deves apresentar do Quartel-General do Porto.

– Ó, mãe, não se aflija, vai ver que não é nada de especial. Amanhã ou depois, vou lá ver o que querem.

No dia seguinte, eram umas 10h30 quando o altifalante da empresa chamou:

– Atenção, Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!... Atenção, Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!

Duas praças da Policia Militar, esperavam-no. Estava entregue, 24 horas depois, à sua companhia de Comandos, em Brá.


Eh!, pá, estás f..., sabes o que é um  desertor?!


Quando chegou ao Aeroporto de Bissalanca,  encontrou o condutor Formiga, que costumava ir buscar o Correio e lhe deu boleia. Surpreendido com o Dionísio, alarmou-o:

– Estás fodido, pá. Como desertor, vais direitinho para a cadeia.

Uns minutos depois já estava a ouvir do Capitão:

– Já vieste? Fazes alguma ideia daquilo em que te meteste? Sabes o que se faz aos desertores? Sabes, ou não?

– Ó meu Capitão, eu andava muito abatido, cheio de saudades e, ao ver o Uíge, ali a receber malta para regressar, não resisti à tentação.

– Pois, e agora vais ver a malta a ir embora e tu ficas aqui a fazer outra Comissão de Serviço. Eu não te quero fazer mal algum, mas tens um processo a correr, devido à tua fuga. Vai-te apresentar ao teu alferes Sampaio Faria.

"Participei em muitas Operações. Nem sei bem por onde andei. A nossa Companhia ganhou duas vezes a Flâmula de Honra em ouro. No aspecto disciplinar, lembro-me de uma aposta que fiz com o Condutor 'Comando' Garcia que correu mal. Ele gabava-se que mais ninguém era capaz de pôr o Unimog a trabalhar. Apostámos e eu, em pouco tempo, pus-me a dar voltas com o Unimog na parada. Por azar, a cena foi vista pelo sargento Mariano Agapito que logo foi fazer queixa ao Capitão. Como eu não tinha carta de condução, a coisa agravou-se para o Garcia, que apanhou 10 dias de prisão. Eu, solidário com ele, fiz-lhe companhia permanente até ele sair. Conversávamos, jogávamos às cartas, às damas e dominó."

Finais de Março de 1968. Está em preparação uma das maiores e mais perigosas operações militares realizadas na Guiné: “Op Bola de Fogo”, para a implantação de um quartel (Gandembel), na zona do “corredor de Guileje”, no coração do Cantanhez, zona controlada pelo PAIGC. Foram mobilizadas forças extraordinárias quer em qualidade, quer em quantidade.

Na 3ª. Companhia de Comandos, também convocada para esta operação, o ambiente não era favorável para a sua participação voluntária. Como faltava pouco tempo para regressarem à Metrópole, o Capitão teve dificuldades em fazer-se representar com 2 grupos.


Voluntário para a Op Bola de Fogo: 
a salvação do Dionísio

O mau ambiente está retratado na história da Companhia, através do ex-furriel João Borges, já falecido (mulher, filhos e netos continuam a participar no Encontro anual da 3ª Companhia), acusando o “método insólito e discriminatório” usado, uma vez que “o voluntariado nunca foi posto em causa” e que não podiam aceitar a divisão criada entre os camaradas. Chegou-se ao ponto das mesas separadas e dos reforços específicos só para os novos voluntários.

– Entretanto, o sargento Agapito, que parecia nunca ter gostado da minha pessoa, um dia, nesta fase final, teve a amabilidade de, em voz alta e em público, avisar-me: 'Ouve lá, ó Dionísio, vai arrumar as tuas malinhas para ires para os Adidos, para alinhares noutra comissão de serviço'.

O Dionísio, chateado, ainda perguntou:

– Quem foi que lhe disse que vou para os Adidos?

– Foi a informação que chegou do Quartel-General – respondeu o Sargento.

O Dionísio saiu ao encontro do Capitão:

– Então, meu Capitão, pedi-lhe para ficar integrado na 5ª Companhia e o Sargento diz-me que vou para os Adidos. Não foi isso que lhe pedi.

– Ouve lá, ó Dionísio, tu não fazes parte do grupo de voluntários para a última operação? – prguntou o Capitão.

– O meu Capitão sabe que sou sempre voluntário, desde que cheguei a Lamego, para formarmos a 3ª Companhia.

– Vamos lá para o Cantanhez e depois vamos ver o que se poderá fazer pela tua situação – disse o Capitão.

Antes da “Op Bola de Fogo”, a 3ª Companhia de Comandos ainda participou em acções de flagelação próximo do local do futuro aquartelamento Gandembel, na “Op Rolls Royce”. Foram 2 grupos a participar nessas operações de apoio.

(A Op Bola de Fogo teve início em 8 de Abril de 1968. A minha CART 1689, já experiente neste tipo de tarefa de apoio à construção de novos aquartelamentos, desempenhou o seu papel na progressão e escolha do local, bem como na sua defesa. Lá permaneceu até 15 de Maio, regressando para junto do Batalhão, em Catió, no dia 24, tendo sofrido 53 ataques, durante esta Operação).

Poucos dias antes da 3ª Companhia de Comandos regressar a Lisboa, o capitão chamou o Dionísio, para o informar de que, graças ao seu comportamento em toda a comissão e em particular no exemplo de voluntariado que deu nesta última operação, havia conseguido anular o seu castigo e que ele iria regressar com os seus camaradas.

O Dionísio afirmou ter sentido uma das maiores alegrias da sua vida.

– Todos os meus camaradas se sentiram felizes por este desfecho, o que justificou uma grande farra e uma das nossas maiores bebedeiras de sempre.

José Ferreira da Silva
___________

Post scriptum do autor:

Hoje, o Dionísio, um grande colaborador do Centro Social e Paroquial de Valbom, tornou-se num dos responsáveis promotores de Cursos sobre a Pastoral da Família, Preparação para o Matrimónio, Pais e Padrinhos, Acompanhamento de Casais com Problemas e Celebrações de Casamentos e outras festas religiosas.

Logo que chegou da guerra, o Dionísio tratou do seu casamento e, como tal, teve de se confessar. E como vivia preocupado com o passado recente da guerra, abriu-se com o padre, a quem expôs a sua preocupação:

– Sr. Padre, tenho uma preocupação que não me sai da cabeça.

– O que é isso, rapaz, que não se possa resolver?

– Olhe, eu tenho a certeza de que matei gente, e agora, como é?

– Deixa lá, Dionísio, matar na guerra não é pecado. Deus perdoa-te, até porque quem não mata, morre.

Foi então que o Dionísio rematou:
 
– Pois é, padre. Tudo bem se o Deus for branco, porque se for preto, estou fodido.

[Revisão / fixação de texto /título e subtítulos, 
para efeitos de publicação deste poste: LG. 
Com a devida vénia, ao José Ferreira da Silva e ao Dionísio Cunha]

 
2. Comentários dos nossos leitores [em 2013; repare-se que três, infelizmente, já não fazem parte da lista dos vivos: o Jorge Teixeira 'Portojo', o Luís Faria e o Mário Vasconcelos]  (*)

(i) Fernando Gouveia

Luís Graça: Aqui tens a história, inderectamente contada pelo próprio, estória um pouco romanceada incluida no meu livro NA KONTRA KA KONTRA, a páginas 139. O Dionildo da minha estória, como podes ver, chama-se efectivamente Dionísio. (...)
 
19 de março de 2013 às 13:12
 
(ii) Luís Graça

Fernando, tinha ideia de ter ouvido esta história ... do "arco da velha". Algures... Afinal, foi no teu livro. Dou os parabéns, aos dois, ao Dionísio e ao José Ferreira...

Não tenho razões para pôr em causa a veracidade do testemunho do Dionísio e o relato do Silva. De resto, no blogue é proibido julgar um camarada. Na América, esta história dava um filme. Em Portugal, não passaria de um "fait-divers" da guerra colonial, se o Fernando Gouveia e agora o José Ferreira da Silva não a tivessem posto em letra de forma.

Vou pedir ao Silva que traga esse camarada até nós, à Tabanca Grande. Eu próprio gostaria de o conhecer pessoalmente. Eu e mais o nosso batalhão da Tabanca Grande. (...)

19 de março de 2013 às 17:04

(iii) Carlos Silva

Olá,  Luís: A história do nosso camarada "melro" Dionísio Cunha e aqui contada pelo Zé Ferreira já é conhecida no seio da nossa Tabanca dos Melros, creio que desde a altura [2010/2011] que o Fernando Gouveia tomou conhecimento.

De facto a história das crianças é arrepiante ...

Quanto a conheceres pessoalmente o Dionísio Cunha, tu que vais várias vezes ao Norte, porque não apareces num 2º sábado de um mês à Tabanca para conviver com a rapaziada ?

Pode ser que ouças mais histórias por lá. (...)
 
19 de março de 2013 às 17:54

(iv) Jorge Teixeira

Eu estava lá, ou por outra, estava cá a ouvir com atenção a história do Dionísio (estava mesmo em frente dele), mas também estive lá na guerra e como costumo dizer, aquilo em certas situações mais parecia a guerra do Solnado:

- Porra! Mas o que é que eu estou aqui a fazer, esta guerra nem é minha, aproveito a boleia do Uíge e vou mas é para casa! Se bem o pensou, melhor o fez!

Também sei que se contam muitas "estórias", mas estar ali frente ao Dionísio a ouvir a sua narrativa fluída e sem artifícios, sem dar ares de quem se estava a armar, foi impressionante.

Se porventura inventou alguma coisa foi sem maldade, porque via-se mesmo que não era fanfarrão e não estava a inventar.

Tempos de guerra. (...=)

20 de março de 2013 às 00:29
 
(v) Luis Faria

Gostei de ler.

A crueza da passagem (?) referente às crianças, reconduziu-me lá para as bandas de Capó,  Teixeira Pinto (Balanguerez). Vd. Poste P7172 de 24 Out 2010.

Por vezes a guerra obriga a tomada de opções com potenciais implicações, sempre dificeis de tomar e a meu ver nunca mais esquecidas! (...)


20 de março de 2013 às 10:48

(vi)  Unknown [Jorge Teixeira 'Portojo']

Ao apresentar estes dois camaradas, sabia que o Silva era capaz, como ninguém, de anotar e escrever de forma notável esta história de vida do Dionísio.

Não conheço o relato do Fernando Gouveia, mas presumo que também deve ser interessante.

Se bem me lembro há uma "Pasta" aqui no blogue referente ao capítulo dos desertores. A quem muita gente chamou de covardes. Parte da história do Dionísio poderia ser contada e arquivada nessa "Pasta". Alguém teria coragem de lhe chamar covarde ? (...)

2 de abril de 2013 às 13:40

 (vii) Mário Vasconcelos

Na verdade, este testemunho ou depoimento dava um perfeito filme.

O Dionísio é de facto, pelas descrições feitas, um grande militar, ao qual acrescenta situações mirabolantes, mas compreensivas. A leitura deu-me um bom dia para hoje.

Um abraço ao nosso camarada com votos de uma vida cheia de tudo. Ele merece-o, como tantos outros afinal.

14 de abril de 2014 às 13:18

 (viii) Ze de Lamego

Meus caros amigose camaradas.Adorei! Nunca tinha ouvido uma estoria deste cariz.Vou querer conhecer o ator.Consehuiu emocionar-me.Ao Ze Ferreira apenas dizer-lhe que continue a dar-nos o prazer de ler os seus escritos,pois são sempre de uma rigorosa veracidade.Abraço-vos. Ze de Lamego

14 de abril de 2014 às 14:17

 (ix)  Unknown [Jorge Teixeira 'Portojo']

Zé Lamego Pereira, já estiveste várias vezes ao lado dele. Pelo menos na mesma sala.
Na próxima vou-te apresentá-lo.

14 de abril de 2014 às 15:44

(x) Silva da Cart 1689 [José Ferreira da Silva]:

Caros amigos,

Tal como mostram algumas fotos, o Dionísio contou a história diante alguns camaradas, na Tabanca dos Melros (*). Daí até à sua publicação, foram vários meses. Como se tratava de um relato verídico, procurei que todo o resto também o fosse. Até porque os nomes se mantiveram os verdadeiros. 

Por outro lado, foi preciso aferir das coincidências ligadas à minha pessoa (Companhia de Comandos), ao desembarque do meu Batalhão, o  1913 (Uíge, Bissau, 1 de Maio de 1967) e à minha Cart 1689 (Gandembel, Op Bola de Fogo). Desloquei-me algumas vezes ao encontro do Dionísio e, com ele, efectuei algumas correcções.

Resta-me agradecer ao Dionísio pela sua disponibilidade e pela sua verticalidade nos testemunhos que me prestou. (...)

_________

Notas do editor:



Guiné 61/74 - P21854: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (38): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2021:

Queridos amigos,
As semanas passam, a vida profissional destes dois cinquentões é intensa, ocupam-se muito um do outro, estão a aprender a mitigar a distância, a vida de intérprete tem aspetos aliciantes, passeia-se um pouco por toda a Europa, gera um sentimento nómada onde não falta a saudade de regressar ao ninho, no caso dela; ele tem o dia todo ocupado, é funcionário público, desdobra-se na escrita, dá aulas, preserva uma certa vida social, também tem falta de regressar ao ninho, são as leituras, a doçura do ambiente, rodeado de fotografias e de pequenos objetos de arte. Correspondem-se, ela chamou a si o trabalho de organizar a comissão da Guiné dele, já se sonha com o romance, Rua do Eclipse, imagine-se, ele falou do título numa roda de amigos, houve quem ficasse intrigado, o que é que tinha a ver os tiroteios da bolanha e a vida de tabanca com o tal eclipse? Tudo se explicou e houve mesmo gente que aplaudiu a solução imaginativa de voltar ao passado com uma história de amor. Mas mesmo nessa mesma roda de amigos houve quem ficasse de boca à banda quando ele revelou que havia para ali dois romances, e que mais importante que pôr tudo em papel e trazer de volta a guerra da Guiné, acontecera que essa mesma guerra da Guiné espoletara uma bela história de amor, que aqueles dois, que se tinham conhecido numa conferência, já não podiam viver um sem o outro, acreditassem ou não era uma relação que gerara um eclipse total.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (38): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adorable Paulo, conversámos longamente ao telefone (e como foi bom para mim!), antes de partir para Viena, onde fui trabalhar numa conferência de dois dias referente aos doadores que apoiam projetos em África, Caraíbas e Pacífico. Momentos houve das exposições de responsáveis de projetos que me deixaram o coração contrito, ressurgem ditaduras, a impressionante corrupção das cliques à volta dos dirigentes totalitários, o desvio de fundos destinados a projetos de bem-estar para as contas desses dirigentes. Dentro e fora da cabine de interpretação, recordava as nossas conversas sobre as desditas da Guiné-Bissau, com os seus elefantes brancos, as sórdidas negociações com as duas Chinas, a ver quem dá mais, a riqueza dos dirigentes graças a apoios à agricultura, os atropelos e manigâncias perpetradas por um antigo valoroso líder militar que não se coibiu de meter as mãos no erário público e encher os bolsos. Numa das noites, a organização da conferência ofereceu-nos bilhetes para a Ópera de Viena, foi um espetáculo memorável, representou-se O Navio Fantasma, com interpretações de luxo. Mas na noite da chegada dediquei-me de alma e coração a organizar toda a cronologia dos tais meses de julho a novembro de 1969, que tu designas por um dos períodos mais ásperos da tua comissão na Guiné. Se em junho tenho o registo de três pequenas flagelações, a de 15 de julho, como tu escreves, teve um início brutal, foram todos apanhados de surpresa, mas a reação foi pronta, pouco depois de meia-hora o fogo da guerrilha esmoreceu, e durante horas ouviam-se tiros à distância, significava gente desaparecida ou desorientada ou gravemente ferida ou morta. Como se comprovou na manhã seguinte, a força hostil tivera um desaire. Tu tiveste no início do mês em Bissau, foste testemunha abonatória do tal cabo da milícia que deixara fugir um prisioneiro, no regresso deixaram-te em Nova Lamego e tiveste conhecimento de que havia flagelações com uma arma nova a que chamavam foguetões. Não deixei de sorrir com a descrição que tu fazes de um jantar a bordo de uma lancha, por convite do comandante Teixeira da Mota, um jantar quase cerimonioso, mas cá fora havia uma gritaria imensa de gente que experimentava as armas e que não se coibia de um bom palavrão – soubeste mais tarde, por aerograma enviado por Teixeira da Mota que eram fuzileiros que partiam de madrugada para um local da região do Xime onde irás várias vezes. Nessa flagelação de 15 de julho, também houve revezes do vosso lado, uma roquetada entrou pelo teto da casa de Quebá Soncó, as vigas aluíram e Nhamô, uma das mulheres de Quebá perdeu um braço na derrocada, tu guardas uma fotografia de braço dado com ela no dia em que foram ao Enxalé, voltarás a visitá-la na tua estadia em 1991. Registas também que o PAIGC estava muito ativo na região de Ponta Varela, na outra margem do Geba e a uma boa distância de Mato de Cão, vinham depois as embarcações civis altamente danificadas e as pessoas não escondiam o terror vivido.

Meu adorado, nunca imaginei o que era um tornado, as mudanças que tu notavas no céu, os relâmpagos, o lusco-fusco, e depois um dia de tons elétricos, guardei para mim e naturalmente que ficou registado o que tu escreveste, estavas a ver o tornado no fundo da bolanha de Finete á espera de cambar o rio Geba:
“Com ronco, ergue-se um redemoinho sobre o cais de Bambadinca e saltaram as primeiras chapas dos telhados. Do céu escuro estalavam mais relâmpagos, viam-se os animais a fugir, e depois as árvores de diferente porte a quererem desprender-se pelas raízes. Os militares no cais gritavam a pedir a clemência de Deus ou, espavoridos, fugiam para dentro dos armazéns. Os civis afastavam-se das árvores, certamente com medo dos raios. Do lado de cá do Geba, Bambadinca estava espetral: formavam-se e desapareciam os redemoinhos, as águas saltavam o cais, os arbustos voavam, as crianças fugiam, os adultos procuravam dar-lhes proteção. Estávamos a ser recebidos por um desses tornados que tornam o dia noite, que destroem casas, revolvem as florestas, despedaçam os bissilões, os poilões, o pau-de-cabaceira e o pau-de-mandjandjan. E de repente tudo se aquietou, como se a natureza estivesse cansada daquele grande grito da revolta, dos soluços e das imprecações dos sofredores”.

Registo patrulhamentos no Cuor, recebeste em estágio um pelotão de uma nova companhia africana. Naturalmente, amor da minha vida, solucei com a descrição daquela horrível noite de 3 de agosto em que numa emboscada noturna um dos teus colaboradores te chamou branco assassino por teres fogueado mortalmente o que se veio a descobrir ser uma mulher, e tu escreves que foi uma noite que mudou a tua vida. Esse mês de agosto foi um mês duríssimo, tu foste encontrar elementos em cartas que dirigiste a familiares e amigos. E recebeste a nota de punição, mesmo depois do teu recurso eram mantidos dois dias de prisão simples por “tendo sido chamado à atenção pelas deficientes condições de defesa e limpeza do seu aquartelamento, não ter dedicado o máximo do seu interesse à resolução de tais problemas”, percebe-se perfeitamente o grau de humilhação. Eu peço-te para ficarmos por aqui, temos neste momento inventariado todo o primeiro ano da tua comissão, desembarcaste em 29 de julho de 1968 e interrompo a 4 de agosto de 1969, isto para dizer que ainda há acontecimentos funestos, muito funestos, a contar, até à vossa partida para Bambadinca, em novembro.

Paulo, regressei a Bruxelas, cheguei a casa e era um tumulto pela tua falta, tumulto quer dizer inquietação, a minha vida sem sentido quando tu estás ausente, a minha cabeça sempre a girar, a recordar o que era a minha vida sem ti, como daquela curiosidade com que tu chegaste para me pedir ajuda e a transformação que se operou. Jean-Luc, como tu sabes, trabalha com um contrato precário, é aquilo que hoje se chama um mileurista, é uma expressão em voga para quem aufere à volta de mil euros, e o meu filho precisa da ajuda dos pais. Convidei-o para jantar ontem, está aborrecido com o que faz, é uma perfeita sensaboria, tirou habilitações universitárias para viver de um trabalho rotineiro, sem nenhuma chama. Fala em emigrar, para uma mãe é mais uma inquietação.

Paulo, vê se vens depressa, eu bem contrario estes pensamentos negros, procuro trazer à memória o que de melhor há na nossa vida conjunta, o conforto praticamente diário dos teus telefonemas, dos teus mails, dos subscritos com papéis da guerra, aerogramas e fotografias. Espero que percebas o meu desabafo, às vezes a tua ausência é-me insuportável. Foi o caso de hoje, foi um dia de trabalho excecional, compareci logo de manhã a uma reunião entre a Europa e a Coreia do Sul num dos edifícios da Comissão no Rond-point Schuman, já em direção ao Parque do Cinquentenário, de que tu gostas tanto. Ainda não eram quatro horas e a reunião terminara, europeus e asiáticos felizes por terem chegado a acordo quanto a novos termos de cooperação. Eu pensava desesperadamente em ti, meti-me no carro e lancei-me numa romagem de saudade. Primeiro fui a Laeken, sei muito bem que tu gostas das Estufas Reais, por ali me passeei. Escurecia quando vim até à Praça Real e pus-me a olhar o Museu Magritte, que tu tanto gostas, e depois prossegui até Ixelles, parei o carro e pus-me defronte do museu de que ambos gostamos tanto. Regressei a casa pela Avenida Louise, não sei se te recordas mas não muito longe da Universidade Livre há uma escultura que uma vez tiraste uma fotografia e que chama A Fénix, estavas muito contente quando regressaste ao carro disseste-me que eu era a tua fénix renascida, e renascida para todo o sempre, não sei o que te deu mas desataste a beijar-me, e eu com aquele sentimento ambivalente do teu toque de paixão e o meu convencionalismo de ver as pessoas passar na rua e a olharmo-nos, um tanto perplexas, como se o mais importante não fosse o tu me quereres, esqueci-me da minha idade e entreguei-me ao teu ardor como uma adolescente irrequieta, na idade das descobertas.

Para te dizer o quê, Paulo? Que te amo, que há momentos em que esta ausência é um escuro vazio que não sei aplacar, e pergunto-me se não seria melhor vivermos ao menos e eu ir para o pé de ti. Depois destes rompantes, arrefeço e tomo consciência de que estamos a agir bem, e sei perfeitamente que tu estás ansioso de voltar para o local do teu romance, aquele título que tu adoras, e naquele espaço onde nos entregamos, a Rua do Eclipse. Bien à toi, Annette.
A Escultura “Fénix 44″ d'Olivier Strebelle, Avenida Louise, Bruxelas
Pormenor das Estufas Reais de Laeken, Bruxelas
Detalhe do Museu Magritte em Bruxelas
Visita animada a uma exposição no Museu d’Ixelles, Bruxelas
Mapa da África Ocidental, 1901
Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21823: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (37): A funda que arremessa para o fundo da memória