segunda-feira, 29 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22048: Tabanca Grande (517): Jean Soares, ex-1º cabo de radiolocalização, Batalhão de Reconhecimento de Transmissões (Trafaria, e Maquela do Zombo, 1972/75): enfermeiro psiquiátrico reformado, a viver em França, em Caen, Normandia, e que está a tentar a recuperar a nacionalidade portuguesa que perdeu... Nasceu em Pirada... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 839.



Foto nº 1 > Guiné > Região de Gabu > Pirada > s/d  [c. meados 1950]  > O João Pinheiro Soares, talvez com 4 anos, brincando com um jipe da MP [Polícia Militar] dos EUA


Foto nº 2 > Guiné > Região de Gabu > Pirada > s/d  [c. 1960] > O jovem João Pinheiro Soares, na fronteira do Senegal, nas férias grandes, com um chefe de posto administrativo à sua direita e um alferes miliciano do Exército Português à sua èsquerda


Foto nº 2A >  Região de Gabu > Pirada > s/d  [c. 1960] > O nosso  jovem  , na fronteira do Senegal, nas férias grandes, com um chefe de posto administrativo   


Foto nº 2B Região de Gabu > Pirada > s/d  [c. 1960] > Possivelmente m alferes miliciano  do Exército Português, das primeiras subunidades que passaram por aquelas bandas. Esta foto deve ser anterior ao Carlos Geraldes (1941-2012),  ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.



Foto nº 3 >  Região de Gabu > Pirada > s/d  [c. meados de 1960 ] > O jovem João Pinheiro Soares, já com 13 ou 14 anos (o primeiro à direita), num jantar de família, tendo à sua direita a mãe,o pai, duas irmãs e outros familiares. Os dois  adultos, no lado esquerdo, devem ser militares.

 Sabemos, pelo nosso saudoso Carlos Geraldes, que foi amigo  e "hóspede" do comerciante de Pirada, que em 1964/65, era casado, tinha duas filhas e um filho e era natural de Lisboa. É possível o Carlos que  tenha intencionalmente  trocada os nomes dos familiares para proteger as suas verdadeiras identidades..., mas Luísa seria o nome da esposa, Rosa, o da  filha mais velha, e o filho do meio era José  (e estudava em Lisboa) (, na realidade era o nosso João, ou Jean Soares). A mais nova, Eva Lúcia, tinha nascido em 11/9/1957. O Carlos Geraldes chamava M. Santos ao Mário Soares. 

Por email de hoje, o Jean Soares acrescentou o seguinte a respeito desta foto:

(...) "O senhor Carlos Geraldes nâo tenho lembranças em o ter visto, infelizmente. Na fotografia da família está um alferes e o médico da companhia que gostava muito de fado. O nome da minha mãe era Irene ( morreu o ano passado com 102 anos) e as minhas irmãs sâo a Nini (Maria Irene) e a Ana Maria. O outro médico que esteve em Pirada foi o Dr. Luís Goes já falecido." (...)




Foto nº 4 > Guiné Região de Gabu > Pirada > s/d [c. meados de 1960 ] > O jovem João Pinheiro Soares, com um dos empregados da família. (Seria o Demba, de que nos fala o nosso saudoso camarada Carlos Geraldes, em 1964 ?)



Foto nº 5  > Bilhete de Identidade Militar do soldado recruta João Pinheiro L.P. Soares, emitido pelo R I 7 [, Leiria,] em 10/7/1972


Foto nº 5A > Assinatura do João Pinheiro L.P.Soares, nº mecanográfico 101687/72


Fotos (e legendas): © Jean Soares (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. Mensagem de Jean Soares, filho do c0merciante de Pirada, Mário [Rodrigues] Soares,vivendo desde 1975 em França, atualmente em Caen, Normandia.



Jean Soares, 70 anos, 
nascido em Pirada, Gabu, Guiné-Bissau.
Vive em França. Foto atual.



Sold reruta nº
mecanográfico  101687/72
 
Data - quarta, 24/03, 15:11 
Assunto - Mário Rodrigues Soares


Senhor Luís Graça,

Muito obrigado em ter publicado no seu blogue a minha história e tentar ajudar -me (*).

 Vou tentar responder às suas perguntas:


1. A minha história de vida:

Chamo-me Joâo Pinheiro Loio Pequito Soares, tenho 70 anos e nasçi em Pirada [, hoje Guiné-Bissau], aí vivi até aos 6 anos.


Nesse ano fui para Lisboa viver com a minha avó paterna, na calçada de Sant’ana [, freguesia da Pena], tendo feito os meus estudos até o serviço militar. 

Todos os anos ia a Pirada durante as férias grandes (4 meses).

Após o serviço militar ,  em 1975 fui para a França fazer os meus estudos , casei, e obtive a naçionalidade francesa. Fui enfermeiro em psiquiatria e estou reformado desde 2011. Tenho 2 filhos e 3 netos. Hoje moro na Normandia, na cidade de Caen.  [Hoje uma belíssima cidade, que foi quase totalmente destruída durante a II Guerra Mundial, justamente na sangrenta batalha da Normandia, iniciada em 6 de junho de 1944. (LG)]

2. Regresso de meu Pai a Lisboa, em  1975:

Quando chegou, foi para a prisâo de Caxias, por ordem do  pela Copcon,  tendo saído livre mais tarde.

Tentou uma nova vida em Aljezur,  criando uma fábrica de mármore e um restaurante mas sem sucesso e com muitos problemas pessoais (, incluindo o divórcio em 1983).

Das poucas relações que guardou em Portugal foi com o senhor Comandante Alpoim Calvão,
faleçido em 2014, em Cascais.

3. Relações com o meu Pai :

Tenho a recordação de um pai "distante, ausente",  durante a minha infância. 

Na adolescência não partilhava as paixões dele,  como a política, a vida social, mas sempre o admirava.

De 1984 a 1995 (ano da sua morte), ficávamos muito juntos com a presença dos seus netos todos os anos durante as férias, na Quarteira,  com a sua segunda esposa.

Os meus respeitosos cumprimentos
Jean Soares

P.S. - Junto envio fotos de documentos militares meus [. Fotos nºs 5, 6 e 7], fotografias de oficiais em nossa casa em Pirada [, Foto nº 3]  e na fronteira com o Senegal [,Foto nº 2], uma  foto quando tinha 4 anos  [Foto nº 1] e que se parece com aquela em que me enganei (*),  assim como o livro que fala do meu pai, de António Ramalho de Almeida  (páginas 125 a 140) [Vd, capa, Foto nº 8]

Espero que compreenda, depois de ter lido a minha história e a do meu pai,  que vou passar o resto da minha vida a bater-me para recuperar a minha nacionalidade portuguesa e a minha caderneta militar.

Obrigado pela atenção.
 



Foto nº 6 > Passaporte militar: licença, com data de 6 de maio de 1975, assinada pelo comandante do Batalhão de Reconhecimento de Transmissões, autorizando o 1º cabo de radiolocalização nº 101687/72 João Pinheiro Loio [, no original Loiro, erro dactilográfico,] Pequito Soares, na situação de disponibilidade, a ausentar-se do país "a título eventual, por espaço de tempo não superior a noventa dias"...


Foto nº 7 > Documento passado pelo Consulado Português do Havre, com data de 10 de maio de 1978.


Foto nº 8 > Capa do livro de António Ramalho de Almeia (**), que conheceu em Pirada o comerciante Mário Soares. 


Luís Graça, editor

II.  Mensagem do editor LG, enviada no passado domingo, 28,às 11h23:


Jean, obrigado pela partilha. Vamos tratar-nos por tu, como mandam as nossas regras da Tabanca Grande. Facilita a comunicação. E de resto somos/fomos camaradas (de armas) e amigos da Guiné. O enfoque deste blogue (com 17 anos!) é a partilha de memórias (e de afetos). 

Vejo que estiveste ligado à saúde toda a vida. Este blogue deve ser salutogénico. Eu próprio sou da área da saúde: socíólogo, doutorado em saúde pública, docente da Escola Nacional de Saúde Pública. Estou com 74 anos, já aposentado. Tenho uma mana mais nova que é enfermeira e dois filhos "psis", ele psiquiatra (em oncologia) e ela psicóloga...

Diz-me se posso partilhar no blogue a tua história,incluindo as fotos... E se aceitas integrar a Tabanca Grande (tertúlia): já tenho as 2 fotos da praxe, uma atual e outra mais antiga. Se sim, passas a ser o membro nº 839. Temos um "livro de estilo" com 10 regras de "convívio" que todos procuramos respeitar.
 
Jean, tu dando a cara no blogue, facilitas também a resolução do teu problema. Haverá mais gente a interessar-se pelo teu caso. Tens o meu/nosso apoio. E vais reaver a tua nacionalidade portuguesa. O teu processo militar deve estar no Arquivo Histórico-Militar (de momento fechado, por causa da situação pandémica).

O autor do livro cuja capa nos manda,foi visita do teu pai, e é amigo de dos nossos coeditores, o Virgínio Briote

Fico à espera da tua resposta. Luís

4. Resposta pronta do novo membro da Tabanca Grande, nº 839. Jean Soares (***):

(...) "É com honra que aceito integrar a vossa Tabanca Grande com o número 839; li as 10 regras de »convívio" e aceito partihar no vosso blogue a minha história mais  as fotografias." (...)

_____________



(...) António Ramalho de Almeida, estudante de medicina em 1963, foi mandado apresentar-se em Mafra para efectuar a recruta, após a qual foi destacado para a EPC em Santarém, onde tirou a especialidade de autometralhadoras Panhard. Logo a seguir, que o tempo urgia, foi mobilizado para a Guiné como alferes miliciano, recebendo como missão dar instrução a naturais da então Província, organizando-os em companhias de milícias.

Neste livro, António Ramalho de Almeida aproveita para nos descrever os contrastes a que assistiu. A guerra, ainda no princípio mas já na brutalidade em mortos e estropiados pelas minas, armadilhas, emboscadas e flagelações, os olhos a perderem-se nas maravilhosas paisagens, a presença de Portugal de mais de 400 anos praticamente ausente no interior da Província, de tal forma que, em certos locais, se julgava o primeiro branco a pisá-los e a vê-los.
 
(...) Fui contemporâneo do António Ramalho, conhecido, entre nós, por Toni Ramalho. Éramos companheiros assíduos, sempre que coincidia estarmos presentes em Bissau, na esplanada do Bento e nos jantares à mesma mesa do hotel. Muito do que aqui conta, regressou-me, vi, ouvi e vivi naqueles anos. Quanto mais não fosse estou-lhe grato por isso.
 
(...) António Ramalho prometera à Mãe, antes de a ver morrer, que havia de ser médico. Fiel à promessa e ao desejo pessoal preparou-se para o ser e convenceu-se de que iria beneficiar do estatuto de adiamento de incorporação que o Exército então facultava, dada a escassez de médicos.

Houve, porém, um acontecimento, que lhe alterou a vida. Em Maio de 1963, comemorou-se em Lisboa o Dia do Estudante e esse dia trouxe-lhe consequências. Quando deu por si estava em Mafra a fazer o COM. Depois seguiu-se Santarém, o RC6 (Porto), o RC8 em Sta. Margarida e o embarque, em 12 de Outubro de 1964, no Niassa, rumo à Guiné. (...)
 
Vd. também postes de:

16 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12048: Notas de leitura (520): "Guiné Mal Amada - O Inferno da Guerra", por António Ramalho de Almeida (Mário Beja Santos)

(...) alferes instrutor de milícias,  chega a Pirada, descreve o ambiente fronteiriço, a atmosfera de espionagem e o papel de levar e trazer atribuído ao comerciante Mário Soares. Tanto quanto parece, já não estamos na ficção, o que se descreve é real, os incidentes fronteiriços, com retaliações de premeio. (...)

1 de julho de  2014 > Guiné 63/74 - P13352: Notas de leitura (607): Livro de memórias de guerra, de António Ramalho de Almeida, médico pneumologista, do Porto, ex-alf mil, GG, Bissau, 1964/66

(***) Último poste da série > 19 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22019: Tabanca Grande (516): Joaquim da Silva Correia (Penalva do Castelo, 1946 - Oliveira de Azemeis, 2021), ex-1.º Cabo, Pel Mort 1242 (Buba, 1967/69): em sua memória, no dia do Pai (e em apreço ao gesto do seu filho, António Correia), reservamos o talhão n.º 838, sob o nosso simbólico poilão

domingo, 28 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22047: Manuscrito(s) (Luís Graça) (201): O pôr-do-sol no Atlântico, no tempo do não-tempo do confinamento (Luís Graça)




Lourinhã >Praia do Areal, Chakall > 27 de março de 2021 > 19h15 > Pôr-do-sol


Vídeo (0' 47'') > Alojado em You Tube > Luís Graça (2021).


1. Uma nuvem negra tapa metade do sol, na despedida do dia... enquanto a lua espreita, tímida, no seu posto de vigia, no campo oposto. São dois cultos, antagónicos, tão velhos como o homem, o culto solar e o culto lunar.

No tempo do não-tempo do confinamento, um outro dia há de chegar, com a noite de permeio. E esperas sempre uma manhã clara,  da cor da esperança. Mas amanhã muda a hora e sempre ganhas mais 60 minutos de vida, isto é, de luz. Ah!, a doce ilusão circadiana!

Na unidade 3 da radioterapia do IPO, o teu "céu" (iluminado) é a foto de um ramo de macieira [Malus domestica], com 17 flores (3 ainda em botão)... Cada uma das 14 flores tem cinco pétalas. brancas,  e 20 estames... Be patient!.... Afinal  é apenas meia hora por dia  em que tens de estar de barriga para o ar, absolutamente imóvel, as mãos pousadas no peito... O único escape a que te podes dar ao luxo é  (re)contar as flores, as pétalas e os estames das flores da macieira... projetadas no tecto.

É boa terapia para a ansiedade inicial e a claustrofobia: ajuda-te a  passar o tempo do não-tempo enquanto o robô anda à volta do teu corpo, "bombardeando-te" com radições ionisantes... Protésico e agora radioactivo... Não, emenda a radiologista. É um tratamento não invasivo,avançado, seguro... Confia nos teus anjos da guarda.

A flor, branca,  da macieira tem sobre os frágeis seres humanos (mesmo os mais durões que andaram na guerra)  um efeito mágico, ranquilizante, securizante e promissor. A esperança é uma crença poderosa. Talvez o "truque" não passe de um placebo, mas tem uma eficácia terapêutica simbólica, não menos poderosa que as radiações.  A flor da macieira não está lá por acaso, no meio daquele "bunker" das tecnologias da saúde de ponta... E ficas frustrado quando, por lapso, não acendem a luz do teto... (Dizem-me que nas outras unidades os motivos que enfeitam o céu do paciente, são diferentes: ondas do mar, palmeiras, outras árvores de fruto...)

A macieira simboliza a vida, a saúde, o amor, a sabedoria, a felicidade no  futuro mais que perfeito,.. Quiça a inortalidade. Na mitologia grega, a Mãe-Terra, Gaia,  deu uma macieira a Hera, como prenda de casamento com Zeus, o deus dos deuses... Na nossa cultura judaico-cristã, a macieira é a árvore do conhecimento e a maçã um fruto proibido...

Contas e recontas as 14 flores de macieira na tua nesga de céu, artificial, mais as 70 pétalas, brancas, e os 280 estames. Um pequeno suplício de Sísifo, aceitável, de segunda a sexta-feira. Só tens que aprender  a controlar os esfíncteres. Vais de bexiga cheia (e o reto limpo...) com 0,666 litros de água da EPAL (que sempre é mais barata). "Dia de purga, dia de amargura",  diz o aforismo hipocrático... Mas já lá  vai o tempo do nosso senhor dom João V em que se escrevia nos muros do Hospital Real de Todos os Santos: "Em Lisboa nem sangria má, nem purga boa"... Espantoso, não grafitos nos muros do IPO de Lisboa... Os grafiteiros têm medo do cancro que se pelam!

Um dia destes talvez saia um poema... à flor da macieira, e às meninas, delicadas e dedicadas,  da equipa multidisciplinar da  unidade 3 da radioterapia do IPO.  Mal comunicamos, porque está tudo cronometrado ao minuto. Há 7 unidades destas,  é um verdadeira linha de montagem. Segunda-feira, quando voltares ao tratamento,  no fim podes riscar mais um pauzinho no teu "vademecum": das 28 sessões prescritas faltar-te-ão só 22... E na terça, 21, e na quarta, 20, na quinta, 19...

E no próximo fim de semana podes gozar, como o prisioneiro bem comportado, três dias  de liberdade condicional,  e ir "limpar a vista", como dizia o teu pai, teu velho, teu camarada, junto ao mar do Cerro, no oceano Atlântico, na ponta mais acidental da Europa... (Não digas a mais ocidental, porque essa é o ilhéu de Monchique, na ilha das Flores, e os florentinos ficariam ofendidos contigo.)

Como no tempo do não-tempo da Guiné, em que não havia calendário, e o tempo do não-tempo  da guerra era contado por riscos nas paredes sujas dos "bunkers"... ou das casernas. Não havia  céu nem imagens de flores de macieira, apenas rachas de cibes, chapas de bidão e terra batida.

Há quem se queixe de tudo e de nada. Podias queixar-te da Pátria que te roubou 36 meses de vida... Mas para quê ?  Afinal, entraste no segundo ano da "comissão de serviço" imposta por esta maldita pandemia de Covid-19. E ainda ninguém não te viu apresentar queixa na competente repartição do Olimpo. Disseram-te que não valia a pena: afinal, há casos muito mais graves que ocupam o tempo do não-tempo do  teu Criador...  
 
Espera, ao menos, que Zeus e Hera continuem a estimar, e a cultivar, nos jardins do Olimpo, as macieiras... E que Higia, a deusa da saúde, te proteja...E lembrando-te sempre que a palavra terapeuta vem do grego "therapeuthes", aquele que faz a ligação com  o deus que cura... Cuidar e curar não é a mesma coisa. Cuida-te. Ámen. 

Lourinhã, 27 de março de 2021.

Guiné 61/74 - P22046: Blogues da nossa blogosfera (156): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (65): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


COMO VEJO A TRANSCENDÊNCIA

ADÃO CRUZ
© Max Ernst

Sou suficiente humilde para não me considerar sábio em nada. Tudo aquilo que escrevo corresponde à minha maneira de ver as coisas, à minha opinião, àquilo a que eu chamo as minhas verdades. Há quem as aceite e há quem as rejeite.

Não vejo qualquer razão, sendo nós senhores da nossa Liberdade interior, para complicar as coisas. Quanto a mim, Transcendência é igual a desconhecimento. Transcende-nos sempre aquilo que não conhecemos. O Homem primitivo não se questionava, penso eu, sobre a origem do Universo, mas era para ele transcendente o facto de uma pedra cair e o fumo subir. A nós, transcende-nos a origem da vida, por exemplo, embora a Ciência tenha já avançado muito no caminho da sua explicação. Transcende-nos a origem do Universo, porque, embora haja teorias para a explicar, ainda não há nada que permita aceitá-la como Facto Científico. A Gravidade, a esfericidade e a Rotação da Terra, por exemplo, são Factos Científicos, isto é, fenómenos praticamente impossíveis de desmentir. Através dos séculos, especialmente nos últimos tempos, a Ciência, quanto a mim o único caminho da Verdade, sempre com muita humildade e prudência, conseguiu explicar e aceitar como Factos Científicos milhares de fenómenos que nos eram transcendentes, e de cuja origem quase ninguém duvida. Na minha maneira de ver, a complicação está em darmos à palavra Transcendental uma conotação sobrenatural, pondo de lado o pensamento e a razão. Como diz o povo, o mal está em pormos o carro à frente dos bois.

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Nota do editor

Último poste da série de 21 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22023: Blogues da nossa blogosfera (155): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (64): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P22045: Blogpoesia (726): "Desânimo"; Perdoar e desculpar"; "Lembrar e esquecer" e "Permanência e realidade", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Publicação semanal de poesia da autoria do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66):


Desânimo

Está negra a noite e cada dia.
Nuvens negras cobrem o céu e toldam nosso viver.
Vivemos acicatados.
Boca seca e olhos secos.
Amordaçou todos.
Sem discriminação.
Forte e fraco.
Rico e pobre.
Parecemos passarinhos de bico aberto
Esperando os pais.
Só que não estamos inocentes.
Temos o que semeamos.
É hora de arrepiar caminho...


Berlim, 21 de Março de 2021
15h e 2m
Jlmg


********************

Perdoar e desculpar

Sabe-se lá o que vai na alma de alguém.
"Quem vê caras não vê corações".
A vida não é pera doce para ninguém.
Mesmo os que parecem mais afortunados.
Tantas contrariedades leva o rio da vida.
Para todos.
Fortes e fracos.
Ricos e pobres.
A alegria é um estado excepcional.
Tudo tem de sr conquistado com a força do suor.
É nossa condição
A dita a Natureza.
O remanso da tranquilidade só acontece no intervalo das tempestades.


Berlim, 25 de Março de 2021
8h59m
Jlmg


********************

Lembrar e esquecer

A vida é um rio de noites e dias.
De claros e escuros.
Duas faces da mesma moeda.
Lembrar e esquecer faz parte de nós.
Nos tapa e destapa.
Se esquece e se lembra
O bem e o mal da mesma maneira.
É nossa defesa.
O bem deixa saudade.
O mal gera o negrume.
De tudo se compõe nossa vida.
É assim que está escrito.
Lembrar e esquecer,
Duas portas que abrem e fecham.


Berlim, 25 de Março de 2021
15h13m
Jlmg


********************

Permanência e realidade

Todo o real é permanente.
Mesmo quando ele muda.
Permanece igual em cada parte.
Fica aparente se não mudar.
É sonho ou ilusão.
O ser é combustão.
Se apaga se não vive.
Se mantém a vida
Mesmo que morra, fica a saudade.
É esse o reino da verdade.


Berlim, 27 de Março de 2021
17h16m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 21 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22022: Blogpoesia (725): "Cacho de uvas"; Quando não há pão..."; "Chove nas vielas" e "Suavemente", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sábado, 27 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22044: Memória dos lugares (420): Ainda a bonita e hospitaleira vila de Sonaco do meu tempo (Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil, CCAÇ 3547 / BCAÇ 3884, Contuboel e Sonaco, 1972/74)

1. Mensagem do Manuel Oliveira Pereira [ex-fur mil, CCAÇ 3547 / BCAÇ 3884 (Contuboel, 1972//74), é membro da nossa Tabanca Grande, da primeira hora; é hoje jurista  e vive em Ponte de Lima]

Data - 26 mar 2021 17h03
Assunto - Legendas das fotos relativas a Sonaco


Caro Luís,

As minhas saudações.

Em resposta ao tey pedido de identificação das fotos, relativamente ao poste P22003 (*), já o fiz, mas talvez, erradamente. Fi-lo na página do "facebook"  da Tabanca Grande Luís Graça , isto porque não vi a minha resposta. 

Nesse sentido, aqui segue em anexo um texto com o solicitado.
Com abraço,

Manuel Oliveira Pereira
 

2. Memória dos lugares > Ainda Sonaco

Para melhor identificação das fotografias, supra publicadas, e porque sou o autor (*), à excepção dos mapas (Google): todas se reportam à bonita e hospitaleira (pelo menos à época) vila de Sonaco, localidade com Destacamento, cuja guarnição era constituída por um Grupo de combate,e um outro de Milícia, pertencente à quadricula (jurisdição) da Companhia sediada em Contuboel.

Assim temos:


Foto n.º 1 > Da esquerda para direita, em "T" invertido, vê-se a estrada que vinha de Jabicunda (leste) para Contuboel (oeste), e na esquina desta o Mercado. Também à esquerda, com telhado claro, o antigo Aquartelamento, agora Mesquita (, assinalada com rectângulo a vermelho).

Já na Rua Principal, a meio, e assinalado com seta a vermelho o estabelecimento do Sr. Orlando, e quase no fim, um Largo, ladeado pela Igreja (telhado claro e traseiras com arvoredo) e do lado contrário a Casa do Chefe de Posto Administrativo (a sede de circunscrição ou concelho era Bafatá, já elevada então a cidade).

O Sr. Orlando era um comerciante com estabelecimento de café e mercearia e ainda com outros negócios, nomeadamente o  gado bovino. A sua loja, situava-se, pois, a meio da "avenida", no sentido do antigo Aquartelamento  (hoje Mesquita) para casa do Chefe de posto.


Foto n.º 2 >  Estrada Jabicunda/Contuboel, e na esquina desta o Mercado, com arvoredo na frente, e ao lado direito o Aquartelamento (hoje Mesquita,  assinalada com rectângulo vermelho)


Foto n.º 3 >  De forma mais visível, a estrada de Jabicunda/Contuboel. Na parte inferior o Aquartelamento (, hoje Mesquita, assinalada com rectângulo vermelho). À direita fazendo esquina o Mercado. 

Na parte superior.  e onde Rua Principal, após passar o Largo à esquerda e a sombra de uma "árvore" parece cortar a estrada, vemos em forma de "Y", à direita, situava-se a Pista de Aviação (aeródromo) e o Equipamento de Meteorologia  (vd. sinal de localização, a vermelho)


Foto n.º 4 >  O mesmo que a anterior, mas ampliada e com sinal de localização a vermelho na Pista de Aviação.

Infografias (fotos de 1 a 4): Manuel Oliveira Pereira (2021) (com a devida vénia ao Google Earth]


Foto n.º 5 > Guiné > Região de Bafatá > CCAÇ 3547 (Contuboel, 1972/74) > Sonaco >   Natal de 1973 > O Comandante  da companhia (Cap mil inf Carlos Rabaçal Martins) no café do Sr. Orlando;


Foto n.º 6 > Guiné > Região de Bafatá > CCAÇ 3547 (Contuboel, 1972/74) > Sonaco > Natal de 1973 > Eu e a “minha guarnição” no interior do Aquartelamento.


Foto n.º 7 >  
Guiné > Região de Bafatá > CCAÇ 3547 (Contuboel, 1972/74) > Sonaco > Natal de 1973 > O meu Grupo (parte) à entrada do Aquartelamento.

Fotos (e legendas): © Manuel Oliveira Pereira (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Nota: As fotografias n.ºs 5, 6 e 7 foram tiradas na Noite de Natal  de 1973. Por ser um dia especial, fazíamos 18 meses de comissão, autorizei, que para a “Ceia”, todos, à excepção da Milícia, se vestissem à civil. 

Estivemos assim, cerca de hora e meia. Obviamente que tive a anuência do Capitão, que optou por fazer o mesmo, já que nos fez companhia nessa noite. 

Durante alguns dias que antecederam a “Ceia”, ninguém dormiu com lençóis. Assim, permitiu que os mesmos fossem várias vezes lavados, desinfetados e viessem, como vieram, a ser usados como “toalhas” na mesa natalícia. Para dar maior ar festivo, a “Porta de Armas” e o interior do Aquartelamento, foram ornamentados com ramos de “cibos”. (**)

2. Nota do editor LG:

A CCaç 3547 partiu para o TO da Guiné em 25 de março de 1972 e regressou a 25 de junho de 1974. Pertenceu ao BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74).As outras unidades de quadrícula eram a CCAÇ 3548 (Geba) e CCAÇ 3549 (Fajonquito).

Após treino operacional e sobreposição com a CArt 2741, assumiu, em 28Mai72, a responsabilidade do subsector de Contuboel, tendo tido um pelotão destacado em Bafatá e em Sonaco. Manteve também dois pelotões em reforço do BCaç 4518/73, em Galomaro, de 10Abr74 a 10Jun74.

Em 15Jun74, foi rendida pela 1ª Comp/BCaç 4514/72 e recolheu a Bissau, e, fim de comissão.
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(**) Último poste da série > 25 de março de  2021 > Guiné 61/74 - P22034: Memória dos lugares (419): Ilha do Sal, ao tempo da CART 566 (17/10/1963 - 25/7/1964) (José Augusto Ribeiro, 1939-2020)

Guiné 61/74 - P22043: Os nossos seres, saberes e lazeres (443): Quando vi nascer a Avenida de Roma (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Os confinamentos remetem-nos para passeios pedestres, em horas avessas ao bulício. Assim como alguém escreveu uma viagem à volta do seu quarto, regressei a um significativo local da minha infância e da minha adolescência e vou usar e abusar do privilégio que me foi concedido de ver nascer um importante troço da Avenida de Roma que em tempo meteórico apontou até à Praça de Londres, tornou-se numa artéria de grande significado, acolheu estratos da média burguesia, e ficou na memória um certo comércio que ainda hoje goza de lenda, cinemas, cafés, livrarias, discoteca, papelaria, loja dos cafés, para já não falar da roupa janota e mais tarde um centro comercial. Gerou uma imagem de culto, com as linhas aerodinâmicas de certos arrojos arquitetónicos, basta pensar em Jorge Segurado e Cassiano Branco, os cafés eram diversificados, quem frequentava o café Londres não era a mesma clientela do Café Roma, quem ia ao Tique-Taque não era a mesma clientela de Luanda ou da Sul América. Havia a tertúlia da Livraria Barata e o ponto de encontro dos intelectuais mais jovens no café Vá-Vá.
Um mundo que se extinguiu, compreende-se, já lá vão quase 70 anos. E a gente vai continuar a rememorar.

Um abraço do
Mário


Quando vi nascer a Avenida de Roma (1)

Mário Beja Santos

Desta feita, procedo a uma incursão pelo passado, retomo a um livro meu autobiográfico, intitulado O Fedelho Exuberante, Uma crónica familiar pequeno-burguesa no pós-guerra, Âncora Editora, 2015. Para criar atmosfera às imagens e texto que se segue, levo o leitor aos diferentes locais onde decorre a narrativa, como tudo começou. Em 1952, quando fui viver na Rua António Patrício, no chamado Bairro Social de Alvalade, a rua tinha um aspeto insólito, um enfiamento de prédios que vinham da Avenida de Roma e terminavam na Rua Afonso Lopes Vieira. Ao cimo, junto da Avenida de Roma, havia um quarteirão de casas de bairro social que culminava numa construção já diferente, dois prédios de gaveto a olhar para os muros oitocentistas da Quinta do Visconde de Alvalade. Tínhamos uma rua alcatroada, prédios do lado esquerdo de fachada semelhante, e a velha quinta onde a miudagem se entretinha. Vestígios do passado não faltavam. Logo a velha esquadra, um dos nossos colegas, o Aniceto, filho de agente da dita esquadra, tinha autorização para levar amigos para andarmos a brincar nos calabouços, foi sorte de pouca dura, um dia fechámos o Zeca numa das celas vazias, coisa mais lúgubre não conhecíamos, com uma janela gradeada lá no alto e um estrado de pau e uma pia no canto, o Zeca berrou, veio o agente de serviço, acabou-se a brincadeira, mesmo em dia em que não havia presos. Mas o dado mais extraordinário que a memória reteve foi termos visto nascer a Avenida dos Estados Unidos da América, a partir da sua ligação com a Avenida de Roma. Talvez valha a pena reproduzir o que se escreveu no sobredito livro autobiográfico:
Ao princípio da tarde, o Hipólito, que tinha ido levar comida à avó, no Hospital do Rego, entrou esbaforido na sala de aula e gritou a informação: Malta, já chegaram as máquinas grandes, estão a deitar abaixo o olival! Dona Emília, a nossa professora, bem gesticulava a tentar pôr a ordem, dentro da sua folgada bata branca, o ponteiro que empunhava na mão direita sibilava na nossa direção, era o pandemónio fora das carteiras, a fazer perguntas ao Hipólito, Dona Emília berrava a plenos pulmões: Ordem! Todos sentados!
Aguentámos a custo até ao toque da campainha, tirando a malta de Telheiras que precisava de lanchar e encher a barriga, nós, os rapazes do Bairro das Caixas, fomos a correr para junto da Estátua dos Heróis da Guerra Peninsular, do outro lado estava a Avenida 28 de Maio, nós na placa circular da Praça Mouzinho de Albuquerque, queríamos ver o grandioso espetáculo de baixo para cima. E o que estávamos a ver eram os caterpílares a remover a terra e a abrir o estradão da futura Avenida dos Estados Unidos da América. Diante dos nossos olhos, o olival da quinta estava a desaparecer, dentro de um ano teríamos ali uma avenida alcatroada, prédios altos, todos esverdeados, do lado esquerdo, prédios da arquitetura moderna, mais baixos, do lado direito, ali ficava o cinema Quarteto, saudosa memória. Por ali passarão, ao longo dos anos, o maestro Frederico de Freitas, o general Arnaldo Schulz, o marechal Costa Gomes, o compositor Joly Braga Santos a trautear as suas composições, pretéritas e futuras. Lá em cima teremos o café Vá-Vá, ali irão pontificar Eduardo Prado Coelho e Lauro António, à sombra de um painel de azulejos de Menez, que felizmente se conserva.
A malta perdeu um olival, baloiços, esconderijos, lugares de brincadeira. Desapareceram armazéns de toda a espécie de traquitana, um dia mais tarde será ali implantada a Clínica de São João de Deus. A Lisboa dos anos 1950 crescia, estendia tentáculos, uma forma de progresso arrancava aquele lugar chamado Alvalade, que confinava com as Avenidas Novas.
Estátua dos Heróis da Guerra Peninsular, à esquerda o início do coberto florestal do Campo Grande, para cima a nascente Avenida dos Estados Unidos da América, no lado esquerdo o Bairro Social de Alvalade, a primeira rua é a António Patrício, tendo em frente a Quinta do Visconde de Alvalade, onde a petizada brincava alegremente, em meados da década de 1950 tudo se transformará. Foi este o mundo que eu vi nascer e o outro que eu encontrei quando aqui cheguei, em 8 de março de 1952.
A velha esquadra do Campo Grande, já fora escola, será demolida para dar lugar a um enfiamento de prédios novos.

Em 1952, erigia-se um arrojado projeto de Jorge Segurado, quatro prédios monumentais esquinando a Avenida dos Estados Unidos da América com a Avenida de Roma, a petizada saía da escola e deslumbrava-se com aqueles longos andaimes e um estilo arquitetónico totalmente diferente do que se praticava no nosso bairro. Passeávamos demoradamente no estaleiro que era a Avenida de Roma, íamos bisbilhotar o Bairro de São Miguel, também distinto do nosso, o nosso era conhecido por Bairro das Caixas, dele se falará mais adiante, também era conhecido por Bairro das Caixas de Previdência, o meu prédio pertencia à Caixa de Previdência dos Empregados da Assistência e estava ladeado por um prédio da Caixa de Previdência dos Médicos e Caixa de Previdência do Pessoal da CUF, quando se começara a construir os chamados prédios verdes entre a Rua António Patrícia e a Avenida dos Estados Unidos da América preponderão a Caixa de Previdência do Ministério da Educação e o Cofre de Previdência das Forças Armadas.
Com o passar dos anos, observámos que o comércio mais atrativo se implantara do cruzamento entre a Avenida dos Estados Unidos da América e a Avenida de Roma até à Praça de Londres, no sentido contrário, isto é, entre o cruzamento e a Avenida do Brasil, tendo ao alto o Hospital Júlio de Matos, havia pequenos cafés, caso do Jacaré Paguá (que ainda sobrevive) e o cinema Alvalade, de saudosa memória, recordo os ciclos de cinema que ali passavam no verão com filmes de culto. Demolido, deu lugar a uma outra construção, o que resta é um fresco da pintora Estrela Faria.
Havia a preocupação de incrustar motivos escultóricos nos novos edifícios, motivos algo mitológicos, desde sereias a centauros, quem por ali passava sentia que a nova classe residente gostava de viver com as paredes aprimoradas, um género de baixo-relevos introduzia um toque de classe.
Aproveita-se o espaço do lintel e neste caso a senhora deitada parece estar a convocar a Natureza úbere ou a fecundidade
Mulheres desnudadas não faltam pela Avenida de Roma, esta amazona leva os louros a triunfador qualquer, o cavalo olha-a com profunda admiração
As ruas laterais da Avenida de Roma abrem-se aos novos bairros que então surgiam, esta é a Rua Frei Amador Arrais, uma entrada para o Bairro de São Miguel, vai por aí fora até à Rua de Entrecampos, desemboca na Avenida de Roma, tem pracetas e a sua arquitetura, mesmo a uma escala mais baixa, tem o seu parentesco com a dos residentes da Avenida de Roma. Aqui na esquina funciona o Fruta Almeidas, procurado pelos sumos, frutas e legumes, pastelaria sobretudo os lendários pastéis de massa tenra
Um dos aspetos mais curiosos desta arquitetura é dado pela variedade de materiais usados nas portas de entrada para os residentes; a chamada porta de serviço, entrada das criadas, do leiteiro e do padeiro é de grande modéstia. Passadas todas estas décadas, continuo a parar regularmente frente a esta porta, tem a sua majestade mas também anuncia uma rutura com as linhas convencionais, felizmente que no restauro lhe conservaram as cores de origem, gera-se o sentimento que se entra num prédio de gente com as suas posses. A nova média burguesia tinha nestas entradas um belo cartão de visita. Vasco Pulido Valente dedicou um dia um artigo à Avenida de Roma, aos novos residentes, oficiais das Forças Armadas, chefias da administração, gente dos negócios. Décadas depois, a artéria deixara de ser uma referência, as crianças de outrora, agora gestores, quadros, professores, etc., mudavam-se para Miraflores ou para a linha do Estoril, ficaram os seniores, deu-se um notório envelhecimento dos residentes, pensionistas com um certo caráter de remediados.
Muitos dos edifícios da Avenida de Roma caprichavam com as suas portas em metal, era então uma novidade, com molduras em mármore e boa escadaria até ao elevador. Países como a Alemanha classificam hoje este tipo de ornamentos, são verdadeiramente símbolos de uma época, não se podem alterar
A Sinfonia, considerada hoje loja com história, vem dos tempos primitivos, o seu interior é impressionante, em madeiras da época, um belo design de interiores, tem conhecido dificuldades e a pandemia agravou a sobrevivência. Quando a pandemia passar e o leitor tiver oportunidade de deambular ali à porta não se escuse a entrar, tem um interior com largas décadas, foi uma livraria com grande prestígio, a sua rival, a Barata fica no outro lado da Avenida, umas escassas centenas de metros à frente, perto da Avenida João XXI, era ali que nós íamos à procura dos livros proibidos
Imagine o leitor o que era a petizada do bairro social de Alvalade sair da escola primária nº 151 e vir praticamente todos os dias assistir à construção deste troço da Avenida de Roma, olhávamos embasbacados as linhas aerodinâmicas das varandas, em frente a loja era a Pastelaria Suprema, infelizmente perdida, tinha mezanino e nos últimos anos era ali que iam comer os seniores da zona (ali ou no Café Luanda). Recordação desaparecida. Olho agora para a cave ali à direita, está ligada a um filme de culto.
O filme Os Verdes Anos, de Paulo Rocha (saído em 1963) com Isabel Ruth e Rui Gomes, marca o início do Novo Cinema português, história dramática de um jovem que vem do campo para a capital, integra-se com enorme dificuldade num universo todo em construção, ainda marcado pela ruralidade ali bem perto, trabalha como sapateiro e namora com uma criada de servir nas chamadas Avenidas Novas. Tudo vai correr mal. A música de Carlos Paredes atinge níveis do sublime.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22020: Os nossos seres, saberes e lazeres (442): Convento de Jesus de Setúbal, com o restauro recente, ainda mais belo! (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22042: Parabéns a você (1944): Armando Pires, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2861 (Bula e Bissorã, 1969/70); Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) e Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil Op Esp da CCS/BCAÇ 4612/74 (Mansoa, 1974)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22033: Parabéns a você (1943): Rui Silva, ex-2.º Sarg Mil Inf da CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato e Mansoa, 1965/67)

sexta-feira, 26 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22041: In Memoriam (389): Ilídio Sebastião Vaz (1945/2021), ex-fur mil enf, CCaç 14 (Bolama e Cuntima, 1969/1971): morreu em Havana, Cuba, em sequência da Covid-19 (Eduardo Estrela)



Convívio do pessoal da CCAÇ 14 >s/l > s/d> À direita está o Ilídio Vaz (Zé Vaz ) e á esquerda o Vítor Dores.

Foto (e legenda): © EduardoEstrela  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Eduardo Estrela (ex-Fur Mil da CCAÇ 14, Cuntima, 1969/71)

Data . sexta feira, 26 de março de 2021, 15h23

Assunto . Em memória do Zé Vaz

Boa, tarde Luís!

Mais um camarada que nos deixa privados da sua presença física. Em Cuba, onde ia com alguma frequência, faleceu o companheiro Ilídio Sebastião Vaz (1945/2021). Foi Fur Mil Enf da C.Caç 14 (1969/1971). 

Deixa-nos um enorme vazio pois em cada um dos que com ele privaram nas agruras da Guiné, cimentou laços fraternos de solidariedade. Na zona operacional onde estávamos instalados, sempre esteve disponível para alinhar em toda a actividade militar, sendo mais um dos enfermeiros da Companhia, de modo a que o pessoal que comandava ficasse um pouco mais aliviado. 

Para poder viajar fez um teste á Covid que deu negativo, mas outro feito na chegada a Havana deu positivo, foi hospitalizado e permaneceu perto de mês e meio numa unidade de saúde. Quatro dias após a alta hospitalar não resistiu a uma paragem cardiorrespiratoria.

Um grupo de camaradas, encabeçado pelo António Bartolomeu, ainda se disponibilizou para repatriar o corpo para Portugal, mas a verba que inicialmente foi pedida depressa subiu para quase o dobro e a iniciativa ficou votada ao insucesso.

Fica na nossa memória e nos nossos corações. A sua verdadeira família éramos nós. Que descanse em Paz.

Anexo foto dum dos nossos convívios, onde á direita está o Ilídio Vaz ( Zé Vaz ) e á esquerda o Vítor Dores.

Se achares por bem, publica no blog.
Grande abraço, 
Eduardo Estrela

2. Comentário do LG:

Eduardo, o Zé Vaz tinha que ser um bom homem e um bom camarada para tu evocares,de maneira tão sensível e generosa a sua memória.  



O Ilídio Sebastião Vaz em 2019.
Fotograma de vídeo do Museu do Aljube.
Com a devida vénia

Apurámos que o teu/nosso camarada era
 natural de Lisboa e vivia em Almada. Tinha página no Facebook, que utilizava pouco, a última "postagem" datava de 13 de novembro de 2019. Via-se que tinha "vários amigos do Facebook", originários de Cuba. 

Ainda em 2019 dera uma longa entrevista ao Museu do Aljube e Resistência e Lisberdade, de que foi publicado um pequeno excerto (3' 20'') no You Tube, disponível aqui.  A versão completa  deve estar disponível no Centro de Documentação do Museu do Aljube.

[Sinopse: Ilídio Sebastião Vaz deixou-nos o seu testemunho repleto de memórias, de familiares e as suas próprias, desde as referentes aos “amigos” que ele sabia serem da PIDE e dos negócios destes com a prostituição, ao terror do franquismo, até à sua experiência como enfermeiro na guerra colonial, na Guiné, sem qualquer tipo de formação.]

Um abraço para ti, o António Bartolomeu e demais camaradas da CCAÇ 2592 / CCAÇ 14:  partimos ttodos juntos para a Guiné no mesmo navio, o T/T Niassa, em 24 de maio de 1969. Infelizmente não me lembro Zé Vaz, já que ele foi para o CIM Bolama e nós (CCAÇ  2590/ CCAÇ 12) para o CIM Contuboel, mais o António Bartolomeu que ali formou um pelotão mandinga.
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Nota do editor: