sábado, 1 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22160: Fotos à procura de... uma legenda (150): a continência à(s) bandeira(s) (Valdemar Queiroz)


Foto nº 1 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > CART 11 (Nova Lamego, Piche, Paunca, 1969/1970) > Nova Lamego > "Porta de armas": continência à bandeira nacional.

Foto (e legenda): © Abílio Duarte  (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Nhala > 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), > 1973 > Cerimónia do arriar da bandeira que ainda se repetiria por mais um ano, aproximadamente. Como se pode ver, estava um grupo de combate a entrar, que pára em sentido. Mesmo as mulheres que vinham da fonte com água à cabeça paravam nestas ocasiões, tal como os homens e as crianças.

Foto (e legenda): © António Murta (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]

 

Foto nº 3 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Janeiro / fevereiro de 1968 > A cerimónia cheia de significado da continência à bandeira nacional. Trata-se do hastear da bandeira, pela manhã, depois o arriar era às 18 horas, já quase noite. Hoje onde se vê disto? Em Bissau, por exemplo, toda a gente em sentido, até na Estrada principal, paravam os carros e saiam as pessoas com destino ou vindas de Bissau, a passar em Brá.

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 4 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > 1968 > CART 2339 (1968/69) > O Grupo de combate do Alf Mil Mendonça , antes de ser recambiado para Mansambo, para o trabalho de pá e pica , a construção do aquartelamento  > O arriar da bandeira ...  

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 5 > Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Subsetor do Xime > Xime > Posto Escolar Militar nº 8 > 1972 > Alunos participando na cerimónia do içar da Bandeira Nacional em 10 de junho de 1972. Ao centro o professor da Escola de Mansambo [?], presente a convite do camarada Carvalhido da Ponte.. [Um dos miúdos era o José Carlos Mussá Bai, hoje engenheiro florestal a trabalhar e a viver em Lisboa]

Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 6 > Guiné > Canjadude > 1974 > O PAIGC toma posse do antigo aquartelamento da CCAÇ 5 e hasteia a bandeira da nova República da Guiné-Bissau. 

Foto (e legenda): © João Carvalho (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 7 > Guiné > Região do Oio > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 > Uma foto para a história: O Fur Mil Op Esp Magalhães Ribeiro arriando a bandeira verde rubra... Esta terá sido a última cerimónia do arriar da bandeira portuguesa, no TO da Guiné, pelo menos com "honras de Estado", isto é, em cerimónia oficial, com altos representantes, de um lado (NT) e do outro (PAIGC)... Diz o Eduardo que estava prevista, inclusive, a presença do 'Nino' Vieira, anulada à última hora por razões (compreensíveis) de segurança.

Foto (e legenda): © Eduardo Magalhães Ribeiro (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; tem mais de 120 referências no nosso blogue, e é um activo e incansável comentador; vive em Agualva-Cacém]

Date: terça, 13/04/2021 à(s) 15:00
Subject: Fotografis à procura de uma legenda 

As grandes fotografias da cerimónia diária do içar e arriar da Bandeira, que estão publicadas no blogue, representam perfeitamente o que se passava diariamente dentro e fora dos nossos Aquartelamentos.

Era um momento de cerimónia militar e de grande respeito de toda a população. Parava tudo, dos miúdos às bajudas, dos mulheres grandes aos velhos.

Estas fotografias à procura de uma legenda foram escolhidas por representarem as várias situações que se verificavam nesta cerimónia diária. Mas é apenas uma pequena amostra.

Desde a imagem em Nova Lamego que até dentro de casa havia cumprimento, passando pela correcta Continência à Bandeira dos poucos militares que ficavam no Quartel da minha CART.11, a particularidade de em Nhala a Continência ser feita com um "enxada arma", provavelmente por hábito agrícola, ou em Fá Mandiga ser um Pelotão a fazer a cerimônia, ficamos com uma ideia do escrupuloso cumprimento desta cerimónia diária.

Na Continência à Bandeira do PAIGC, em Canjadude, ressalta o respeito mútuo, apenas com um nosso militar bem fardado estar um bocado à balda calhando por estar contra o acontecimento.

Julgo que os autores destas extraordinárias imagens não se importarão que eu as utilize, agora venham lá legendas para estas fotografias.

Abraço
Valdemar Queiroz
___________
 
Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22159: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VIII: A primeira visita... dos "vizinhos", com ataque ao arame!

Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > O meu grupo de combate (2.º pelotão) preparado para mais uma saída para o mato – É de meter medo !!! Eu sou o primeiro da esquerda (de pé), o Alferes Afonso o primeiro à direta (de pé), o Zé Carlos e a sua basuca o primeiro à esquerda (fila da frente), o Belinha o 3.º da primeira fila (da esquerda para a direita com a pica na mão, logo a seguir o homem de Castelo Branco com o seu morteiro...


Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Cavando, amassando... fazendo tijolos para a construção da nossa modesta casinha.


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > “Rambo” Costa - “O guardador”... de tijolos 


Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Nem tudo era mau,  camaradas: bom whisky a “pataco” (com o selo de garantia: CTIG). Religiosamente guardadas para comemorar o meu centenário (espero estar ainda em boa forma!). Se a publicação das minhas memórias se concretizar, talvez abra uma no dia da sua apresentação (para chamar mais clientes!).

Fotos (e legendas): © Joquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Joaquim Costa, ex- furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, Cumbijã (1972/74)

Date: quarta, 21/04/2021 à(s) 18:59
Subject: Memórias de um Tigre do Cumbijã


Meu caro Luís

Como escrevíamos antigamente para casa, nos míticos aerogramas, espero que esta te vá encontrar com ânimo bastante para venceres mais um obstáculo nesta prova de resistência que é as nossa vidas.

Por vezes, dado este meu ímpeto de colocar um pouco de humor em tudo, acabo por ser inconveniente. Espero que não seja o caso.

Por trás deste humor também há lágrimas…e obstáculos.

Felizmente tenho uma pequena costela de brasileiro pelo que por muitos obstáculos que surjam no caminho penso sempre que a coisa vai dar certo.

Meu caro Luís, o lema do Blogue é o mundo é pequeno mas a tabanca é grande. E assim é!

Já aqui fiz referência ao meu filho Tiago que esteve dois anos na Guiné na construção de uma ponte sobre o rio Geba, pois a sua esposa, enfermeira, fez a especialidade de medicina familiar onde o Luís chegou a ser o seu orientador. O mundo é mesmo pequeno.

Aproveito a oportunidade para te enviar mais um post sobre as minhas memórias de guerra- A primeira visita dos "vizinhos" (ataque ao arame).

Fica na calha para quando tiveres oportunidade(e achares que reúne condições) para ser publicado

Um abraço, Joaquim Costa




Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.



Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex- furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VIII (*)
 
A primeira visita… dos “vizinhos” 
(ataque ao arame)


Ninguém gosta de receber visitas em sua casa com esta em desalinho e ainda inacabada, contudo, foi o que aconteceu connosco poucos dias depois de nos instalarmos, de armas e bagagens, no Cumbijã.

Para se ter uma ideia do perigo e do escalar do conflito, a proteção do destacamento compreendia duas redes de arame farpado, separadas por alguns metros, com garrafas de cerveja colocadas em todo o perímetro, sobrepostas duas a duas (que tilintavam ao mínimo baloiçar das redes), e no espaço entre as duas redes eram colocados fornilhos (minas e/ou explosivos com vidros e e restos de material de ferro e aço). Tudo o que estava para além do arame farpado, literalmente, era IN.

Poucos dias depois de nos instalarmos no Cumbijã, ao fim da tarde, quando já toda a engenharia, bem como os grupos de proteção tinham regressado a Aldeia Formosa, tivemos a visita de um grupo IN, bastante numeroso, que nos intimidou com uma carga poderosa de morteiro, RPG e rajadas de metralhadora. Para os dois grupos da companhia presentes (os outros dois tinham ido para Aldeia Formosa, merecidamente, já que tinham aqui passado a noite anterior), foi o batismo de confronto direto com o IN.

Ficamos todos muito “chateados” (como diria o Almirante e ex primeiro ministro, que deu nome à minha rua – Pinheiro de Azevedo), pela visita ter lugar numa altura em que a casa ainda não estava acabada e arrumada. Só estava colocada metade da primeira fiada de arame farpado e ainda não tínhamos valas. Pela surpresa, chegámos a temer que conseguissem romper as nossas defesas, pois alguns de nós conseguíamos vê-los a aproximarem-se até muito perto do arame farpado.

Aguentámos, sem baixas, com alguns feridos ligeiros e uma das nossas tendas desfeitas, mas com a reputação em alta perante o IN e os camaradas das outras companhias da região que nos passaram a chamar: “Os Tigres do Cumbijã”.

A minha ajuda na defesa do destacamento neste ataque, de má vizinhança, foi nula já que a minha G3 encravou ao primeiro tiro.

Agora que estou ficando velho, mais dado à contemplação (mística dos factos objetivos – como dizia um camarada amigo e já cacimbado, imitando o professor de uma antiga novela brasileira), muita vezes me questiono: será que em algum momento nos diferentes contactos com o IN atingi mortalmente alguém?

Estes pensamentos, que nunca me ocorreram antes, são recorrentes nestes dias de desocupação, perturbando o meu sono que sempre foi o de um homem justo e de bem com o mundo (passe a presunção). Hoje, recordo este incidente com algum alívio, dizendo: tendo em conta o desfecho do ataque (4 feridos ligeiros... e 6 desalojados!), ainda bem que a G3 encravou!

No dia seguinte, ao fazermos o reconhecimento ao local do ataque, eram evidentes os vestígios de que do lado do IN as consequências foram bem mais gravosas.

O que antes para todos nós era “ronco”, ao verificarmos os estragos causados ao IN, hoje, ao escrever estas minhas memórias de guerra, um turbilhão de sentimentos contraditórios me desassossegam.

Ao mesmo tempo que avançava a construção da estrada para Nhacobá e os trabalhos de adaptação do Cumbijã para receber e unir definitivamente toda a família da CCav 8351, ia-se criando, em cada um de nós, a sensação, agridoce que estávamos a construir a nossa modesta casinha, porventura, no sítio menos aconselhável.

O “cacimbo” já nos começava a afetar pois que reagíamos com naturalidade à forma como os nossos camaradas de outras companhias, que participavam na proteção da estrada, se despediam de nós, com um semblante de quem está a abandonar um amigo e o deixa à sua sorte no meio de mil perigos. Ao mesmo tempo era visível nas suas caras uma sensação de alívio por saírem daquele buraco a caminho de Aldeia Formosa, uma autêntica fortaleza com todas as comodidades, comparadas com aquele buraco.

E ali ficávamos nós, a comer a nossa ração de combate e a dormir no chão em pequenas tendas, nas condições mais que precárias de conforto e segurança (só com a nossa G3, dois pequenos Morteiros 60 e duas bazucas). Entretanto em Aldeia Formosa tomava-se banho de chuveiro, de água sem saber a gasóleo, jantava-se numa messe a sério, com comida (mais ou menos) a sério, jogava-se king acompanhado com whisky em copos a sério, e dormia-se em lençóis a sério, em camas a sério e em casernas a sério…

Passou a ser habitual, e quase rotineiro, sofrermos, com muita frequência, flagelações de canhão sem recuo. Inicialmente as granadas caiam fora do perímetro do destacadamente, mas aos poucos iam-se aproximando até começarem a cair em cima das nossa cabeças, o que nos deixava intrigados, já que a experiência nos dizia que tal só era possível com informação saída do destacamento da correção do tiro!

Nos patrulhamentos quase diários o objetivo prioritário, e absoluto, era o de encontrar o local de onde eram lançados os ataques utilizando, para além da intuição, a matemática e as leis da física, já que não suportavamos mais sermos incomodados durante o jantar (demasiado frequente, tendo em conta os verdadeiros ataques e os falsos alarmes).

O maior perigo era o da(s) primeira(s) granadas,  já que estas chegavam mais rápido que o som provocado pelas saídas das mesmas, apanhando-nos desprevenidos (com consequências dramáticas,  como vamos ver mais à frente).

Lá conseguíamos encontrar o local de lançamento das granadas de canhão sem recuo (uma arma muito ágil, fácil de montar, desmontar e de transportar - segundo algumas informações manobrada por cubanos), deixando aí vestígios evidentes da nossa presença…

Não obstante esta descoberta as flagelações continuaram, porém, doutro local, o que nos dava algum descanso até conseguirem corrigir novamente o tiro.

As flagelações constantes de canhão sem recuo e os ataques ao arame, eram de um grande desgaste psicológico já que nem dentro do destacamento havia momentos de total tranquilidade, dando-nos a sensação de vivermos e dormimos com o inimigo e de estarmos constantemente a ser vigiados. Eram constantes os disparos dos vigias durante a noite ao mínimo tilintar de garrafas no arame ou movimentos suspeitos durante a noite (dada a proximidade com a base do PAIGC a maior parte das vezes era imaginação, mas que para os sentinelas eram mesmo “eles” que estavam ao arame)

A estrada ia avançando, com deteção e levantamento de minas e o jogo do rato e do gato com o IN.

Durante a noite ficavam dois grupos a proteger as máquinas evitando a colocação de minas, e rebentavam-nos mais atrás os pontões, atrasando o avanço da obra. Emboscavamo-nos junto dos pontões e passavamos a ter minas na frente de trabalho.

As minas e os ataques à coluna que se deslocava para a frentes de trabalhos, com mais frequência iam causando feridos graves (geralmente minas) e vários feridos ligeiros.

As condições de segurança e habitabilidade no Cumbijã, paulatinamente, lá foram melhorando com o esforço e entusiasmo de todos nós.

A maior empreitada foi construir casernas para toda a companhia, aqui já toda reunida, utilizando o que o português tem de melhor, o “desenrascanço”, a saber:

  • Fazer tijolos utilizando terra com capim e água amassando com os pés;
  • Colocar esta argamassa em formas, de tijolo, e pôr a secar:
  • Cortar palmeiras para as traves da cobertura:
  • “Chagar” a cabeça dos altos comandos do ar condicionado de Bissau que precisavamos de chapas de zinco para a cobertura das futuras casernas

Os primeiros dias no Cumbijã foram um duro teste às nossas capacidades físicas e psicológicas:

  • O stress das minas - a qualquer passo que dava-mos corria-mos sérios riscos de pisar uma pessoal ou mesmo anti carro;
  • As flagelações constantes de canhão sem recuo - 24 sobre 24 horas em alerta máxima, nunca conseguindo 10 minutos de sono profundo (com os disparos constantes dos sentinelas);
  • Os ataques ao arame - criando em nós a sensação de estarmos a viver e a dormir com o inimigo;
  • As condições do dia a dia - foi muito tempo a viver em tendas, dormindo no chão e alimentados à base de rações de combate;
  • A falta de higiene diária - muitos dias sem tomar banho. A água vinha de Aldeia Formosa em bidões a saber a gasóleo;
  • O cansaço - muito patrulhamento e proteção aos trabalhos de engenharia ao qual se juntou a construção, a pulso, das nossas casernas.
  • Outros imponderáveis - ver as nossa tendas voarem para fora do arame farpado com os nosso parcos haveres, depois de sermos visitados por um enorme tornado, deixando o destacamento num caos.

A melhoria das condições do destacamento foi muito importante para elevar o moral das tropas e assim vencer paulatinamente todas as dificuldades que nos eram colocadas pelo IN e pelo isolamento. Contudo, foi este mesmo isolamento que criou entre todos nós um grande espírito de grupo e, também, uma grande sensação de liberdade.

Libertámo-nos das “paranóias” militares como a preocupação com a farda, com a barba, o cabelo, as vénias e continências aos superiores. Estas “paranóias”, embora não ao nível de Bissau (preocupados com o meu bigode - como vamos ver mais à frente) eram comuns em Aldeia Formosa.

O Cumbijã para nós era uma verdadeira Aldeia do Astérix em África:

  • Não havia messe de oficiais e Sargentos;
  • Não havia um rancho para oficiais e Sargentos e outro para os soldados. A panela era a mesma para todo o pessoal da companhia;
  • Ninguém se preocupava com a farda, com o cabelo com o bigode (bem evidente na fotografia do meu grupo de combate preparado para sair para uma operação no mato)…
  • Cada um sabia qual o seu papel naquela organizada “bagunça”, onde todos eram conhecidos pelo seu nome próprio e não pela sua patente.
  • Eramos verdadeiramente um grupo de bandalhos, mas nunca no destacamento houve bandalheira. Como diziam os Sargentos de carreira: serviço é serviço, conhaque é conhaque.

Nota: Se a visita se tivesse realizado em Maio de 1974, talvez tivessemos recebido os vizinhos mais próximos (de Nhacobá), fazendo-os entrar pela porta de armas (virtual) “deitando abaixo”, entre sorrisos e abraços [??] as lindas” botelhas” da Foto nº 4. 

Como foi antes do 25 de Abril de 1974, foram recebidos de “sachola” em punho, fazendo lembrar vizinhos desavindos por demarcação de terrenos no Minho.

(Continua…)

___________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 13 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22100: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VII: Cumbijã: a nossa modesta casinha, os picadores e a crueldade das minas

Guiné 61/74 - P22158: Parabéns a você (1958): Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705 (Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de Abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22150: Parabéns a você (1957): Giselda Pessoa, ex-Sarg Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Bissau, 1974/74)

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22157: Consultório militar do José Martins (64): Análise ao Artigo 19 (Honras Fúnebres) do Estatuto do Antigo Combatente - Anexos


Porque nunca é demais informar, o nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), em mensagem de 28 de Abril de 2021, mandou-nos um trabalho com a sua análise ao Artigo 19 (Honras Fúnebres) do Estatuto do Antigo Combatente.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22156: Consultório militar do José Martins (63): Análise ao Artigo 19 (Honras Fúnebres) do Estatuto do Antigo Combatente

Guiné 61/74 - P22156: Consultório militar do José Martins (63): Análise ao Artigo 19 (Honras Fúnebres) do Estatuto do Antigo Combatente


Porque nunca é demais informar, o nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), em mensagem de 28 de Abril de 2021, mandou-nos um trabalho com a sua análise ao Artigo 19 (Honras Fúnebres) do Estatuto do Antigo Combatente.

OBS: - Seguem-se os Anexos referidos no texto
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22153: Consultório militar do José Martins (62): X Recenseamento Geral da População Portuguesa de 1960

Guiné 61/74 - P22155: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (50): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se exprime o desapontamento quanto aos trabalhos que impunha a intervenção na sede do Batalhão, em Bambadinca, foi adaptação difícil para quem vivera aqueles 17 meses nos confins do mato.
Annette pesquisa na Flandres túmulos de um amigo de Paulo, para ela foi um aliciante e um pretexto para revisitar Ypres e voltar a ver uma tia quase nonagenária. Interrogou-se em Poperinge quando visitou um museu referente às centenas de execuções dos chamados desertores ou cobardes ou opositores de consciência, escutou um vídeo em que o neuropsiquiatra justificava que a generalidade das situações se prendiam a stress pós-traumático de guerra, e questionou-se sobre estas leis humanas em que um ser humano doente tem que estar implacavelmente enquadrado dentro das regras que justificam o denodo, a total disponibilidade para sair da trincheira e avançar para as metralhadoras e praticar o heroísmo. Mas Annette está feliz, sabe que está a organizar um passeio para gozar da companhia do seu amado, e um dos tombados em combate até justifica um outro passeio, ao Memorial de Arras, em Pas de Calais, cemitérios não faltam, houve tantos milhões de mortos. Como escreve Annette, ela não precisa de se conduzir como uma Penélope, o seu Ulisses é praticamente omnipresente, telefona e escreve, e a renda que lhe coube nas mãos é este relato de uma guerra que há poucos anos atrás ela totalmente desconhecia, num ponto de África que hoje se chama Guiné-Bissau. Relato que tem factos e dados impressionantes, ainda faltam muitos meses para registar o que foi a guerra de Paulo Guilherme e prevê-se ainda faltam uns bons anos para que os dois amantes vivam juntos, onde quer que seja.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (50): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo adoré, Tive a sorte de sair de Bruxelas e proporcionou-se ir fazer uma exploração na Flandres, nos imensos cemitérios onde tombaram centenas de milhares de militares, na região de Ypres, foi o pedido que tu me fizeste para esclarecer o teu amigo. Na terça-feira saí cedo para trabalhar em plena Antuérpia numa conferência europeia sobre regras de portos de pesca e normalização de procedimentos aduaneiros. Nós já tivemos em Antuérpia, lembro-me do imenso prazer de nos passearmos pela área portuária, espero dar-te satisfação com estas imagens que te mando, recordação dos nossos dias tão felizes. O meu diretor dera-me uma agenda para dois dias, a reunião dos portos de pesca terminou à hora do almoço e a equipa de intérpretes seguiu para Bruges, nova conferência europeia, tema completamente diferente, uma reunião dos médicos de família, tinha a ver com a reorganização dos serviços de saúde e com o diálogo com os outros profissionais. Ainda não te falei da minha tia Charlotte, a irmã mais nova da minha irmã adotiva, vive nos arredores de Ypres, quinta-feira nós não tínhamos trabalho, julguei ser a feliz circunstância para lhe telefonar e pedir que me deixasse ficar na sua companhia, inventei que no dia seguinte havia trabalho em Ypres. Tomei em atenção os nomes que me distribuíste, John Sinclair Minto, um sapador falecido em 19 de junho de 1917, está no novo cemitério militar de Poperinge. Confesso que foi um momento de grande aflição, entrei numa área museológica onde se mostrava o local das execuções de desertores, daqueles que se recusavam a combater, visitei as salas de julgamento sumário, tive em conta um vídeo em que se mostrava, através das relações de um médico, que houvera um número elevado de execuções dos chamados desertores ou cobardes que no fundo sofriam perturbação de stress pós-traumático. Confesso-te, meu adorado amor, que não foi uma experiência muito agradável. O velho cemitério militar corresponde aos mortos na primeira batalha de Ypres, junho de 1915. Visitar cemitérios não tem sido hábito meu, percorri a Normandia e toda a região entre Lille e a Flandres, pejada de cemitérios. Encontrei também referência do túmulo de um outro parente desta família Minto, John Archibald, morto em combate em 21 de março de 1918, pertencia ao Royal Scots Fusiliers. Nos arquivos de Ypres, que visitei à tarde, e devo-te dizer que é esmagador passar por aquele arco onde gravaram uma infinidade de nomes, descobri que August Lance Minto está sepultado em Arras, tenho agora os elementos todos da sua sepultura, é tudo uma questão de nas férias grandes irmos a Pas de Calais.

Não trouxe comigo o dossiê que estou a organizar sobre os teus primeiros tempos em Bambadinca, mas deu imediatamente para perceber o grau de deceção que sentiste nos trabalhos que vos distribuíram, e que tu abominaste, cito expressões tuas: na obrigação de andar às voltas perto do campo de aviação, um género de patrulhamento noturno, com a hipótese de emboscar, tu protestaste veementemente alegando que dois bons atiradores escondidos na mata abateriam a coluna em movimento sem dificuldade; depois há aquele corrupio de levar mantimentos a uma secção que está em Sinchã Mamajã, vir depois a Afiá e trazer doentes à consulta em Bambadinca, deixando ali sacos de arroz, seguir de Bambadinca para Bafatá para levar correio e expediente para o coronel do agrupamento; a seguir ao almoço patrulhar nos Nabijões, regressar no lusco-fusco, jantar e emboscar de novo. E muito me impressionou uma carta tua que se tu achares bem deverá fazer parte do livro:
Estou na mesma messe de oficiais de onde partir em 4 de agosto do ano passado na companhia de Saiegh, de Mamadu Camará, Abdulai Djaló e Sadjo Baldé, rumo ao Cuor. O ambiente é o mesmo dessa época, os oficiais são outros. As noites são suaves, joga-se bridge, xadrez e damas, nalguns quartos joga-se lerpa, perde-se e ganha-se dinheiro. Os meus soldados africanos vivem na tabanca que se estende desde os baixios da rampa até ao porto, mesmo a beijar o Geba. Fui fiador de todos eles, por razões de despesas de instalação, ninguém pode imaginar o que é o dia dos pagamentos com a lista de descontos, incluindo os empréstimos e as dívidas entre eles. Para a segurança de todos, as caixas de munições, as bazucas e os morteiros estão depositadas no paiol do quartel. A tropa europeia fica em casernas, bem perto de mim, por detrás da capela e da escola. Este ritmo trepidante tem o condão de me destruir o sono repousante, venho de madrugada, demoro imenso a conciliar o sono, não paro de pensar nas voltas que damos à volta de uma pista de aviação iluminada, como fáceis alvos humanos a abater. Já tinha tido vida de quartel, é evidente, mas depois do Cuor tive que me habituar ao barulho das portas a abrir e a fechar, às casquinadas, às permanentes chegadas e partidas de oficiais de todas estas unidades do Leste. Este mês tenho que poupar dinheiro, vim de Missirá com a roupa toda destruída pela Binta. Dentro de dois dias mudo de agenda, passo as noites num local fétido chamado a ponte do rio Undunduma. Amanhã tenho um imprevisto, vamos a Amedalai, um destacamento de milícias a caminho do Xime, uma grua de 16 toneladas guinou para dentro da bolanha, toda a equipa de desempanadores vai para lá e tem de montar segurança. Às vezes cumpre-me ser oficial do dia, faço o mesmo que fazia nos Arrifes, na ilha de São Miguel: assistir às refeições e às formaturas, tomar nota das ocorrências, fazer rondas e outras rotinas. Recebi uma longa carta do meu querido amigo Carlos Sampaio, que está de férias na Anadia, muitíssimo triste, dá-me notícia que encontrou no ateliê, olhou para todos os seus quadros, e esquartejou-os. não sabe bem porquê, sente-se à deriva, o que construiu com a sua visão da arte acha que não merece ficar para o futuro.

O comandante do batalhão tentou praxar-me, inventou que eu seria um género de mestre de cerimónias da professora da escola. A senhora é gentil, foi professora no Cuor antes da guerra, é um prazer ouvi-la falar desses tempos de paz. Disse-me que havia livros sobre as guerras travadas no princípio do século, vai falar com alguns amigos que os possuem e depois empresta-mos. A professora vive com a mãe, gosta de me convidar para beber chá, numa das visitas achou por bem desabafar, não sabia o que lhe responder: “Vivo numa terra de brutos. Aqui ninguém lê Stendhal, Flaubert, Balzac, Camilo ou Eça de Queirós. Os brancos são, de um modo geral, uns analfabetos que só pensam em compras e vendas. Não pode imaginar a solidão em que vivo”. Meu adorado Paulo, na tua ausência podes imaginar o consolo que para mim representa mergulhar neste passado, ver fotografias, até mandei ampliar aquela em que tu participaste na cerimónia do Ramadão em dezembro de 1968, dizes ter comprado 14 metros de sarja e que a camisa tinha um lindo bordado em linha púrpura, aqui te vejo empunhar uma espada e a sorrir. E eu interrogo-me o que é a vitalidade dos teus 23 anos, a superação das canseiras entregando-te a causas ligadas ao bem-estar de quem vivia naquele ambiente sempre à espera da guerra e da destruição.

E assim me despeço, Penélope iludia aqueles que queriam passar com ela desfazendo de manhã o que rendilhara à noite, era essa a sua contumaz fidelidade a Ulisses, eu não preciso de desfazer renda, tenho o privilégio de receber os teus telefonemas, o anúncio que virás em breve e que só anseias, em definitivo, viver na minha companhia. O que mais pode esperar a tua Annette que este amor verdadeiro que transformou as nossas vidas? Bisous, muitos mil e multiplicados, bien à toi, Annette
Uma escultura icónica, homenagem ao trabalho, Antuérpia
A torre da catedral ao fundo, a ponte que nos leva ao magnífico porto de Antuérpia
O esplendor de Bruges
Aspeto parcial do cemitério militar de Poperinge, Flandres
A lápide de Robert Minto
Outro detalhe do cemitério de Poperinge
Quartel de Bambadinca tal como eu o conheci em 1968
Em indumentário estreada para os festejos do Ramadão, Missirá, dezembro de 1968, empunhando a espada que o régulo Malã Soncó me emprestou
____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22127: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (49): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22154: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte II: Buenos Aires, Argentina, janeiro de 2020



Foto nº 1 > Argentina > Buenos Aires > Bairro de la Recoleta > Café La Biela > Janeiro de 2020 > O António Graça de Abreu, à mesa com José Luís Borges (ao centro) (1899-1986)... À direita o  amigo de Borges e também escritor, Bioy Casares (1914-1999).



Foto nº 2 > Argentina > Buenos Aires > Bairro de la Recoleta > Efíge no jazigo de Eva Peron


Foto nº 3 > Argentina > Buenos Aires > Janeiro de 2020 > Praça de Maio > A Casa Rosada, sede da Presidência da República



Foto nº 4 > Argentina > Buenos Aires > Janeiro de 2020 > A catedral onde o atual papa Francisco foi arcebispo

Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Continuação da nova série (*)  de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: escritor e docente universitário, epecialista em língua, literatura e história da China; natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros, é casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos dessa união, João e Pedro; membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 270 referências no blogue]



Buenos Aires, Argentina, Janeiro 2020

Comecei o dia no bairro de La Recoleta, com dois ilustres falecidos, Jorge Luís Borges e Eva Perón.

Com Borg
es, de corpo inteiro no café de La Biela (Foto nº 1), conversámos sobre o seu bisavô transmontano, de Torre de Moncorvo, e questionei uma frase sua: “La democracia es una superstición bien difundida, es uno abuso de las estatísticas y además no creo que tenga ningún valor.” No rosto envelhecido de Borges, talhado a golpes de cinzel, aflorou-lhe um levíssimo sorriso. “Quer perguntar mais alguma coisa?” Eu queria, mas não perguntei mais nada.


Fui depois ao encontro de Eva Perón, no jazigo de mármore negro onde descansa, o corpo embalsamado resguardado a cinco metros sob a terra. Passei a palma da minha mão numa placa de latão com a efigie de Evita (Foto nº 2). Antes e depois de morta, houve ainda tanta jornada pelo mundo! Descansa em paz, senhora.

Na Praça de Maio, a Casa Rosada (Foto nº 3), o instável poder político, as mães e avós todas as semanas pedindo justiça pelos seus filhos desaparecidos, assassinados há quatro décadas. A paz, ao lado, na catedral do arcebispo da diocese, hoje papa Francisco (Foto nº 4).

Dias de Buenos Aires, o bairro de San Telmo, compras na feira ao ar livre, comidas, parrilhadas, o bife de chorizo, o bom vinho argentino.

A sul de San Telmo, outro bairro, La Boca. Uma rua chamada Caminito é também nome de tango. Por perto, o mítico estádio de futebol conhecido por La Bombonera, com a forma de uma caixa de bombons. Por aqui, no Boca Juniors, singrou e brilhou Diego Maradona.

Jantar-espectáculo com doze bailarinos, uma cantora e cinco músicos, piano, percursão, bandameón, violino e viola baixo. O sentir dos corpos, o libertar da alma. Caída de um limbo celestial, uma jovem cantora, imaculadamente vestida de branco, tal como Evita Perón, cantou:

No llores por mi Argentina,
Mi alma está contigo,
Mi vida intera te la dedico,
Mas no te alejes, te necessito.


Grande tango, boa noite, Buenos Aires!

__________

Nota do editor:

quinta-feira, 29 de abril de 2021