sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22633: (De)Caras (178): Viriato Madeira (1938-2011), ilustre cidadão da Ribeira Grande, ilha de S. Miguel, Açores, ex-alf mil, CCAÇ 557 (Cachil, Bafatá, Bissau, 1963/65), citado no "Diário de Guerra", do Cristóvão de Aguiar


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (1963/65) > 1964 > A contar da esquerda: o açoriano de Santa Bárbara, Ribeira Grande, ex- alferes miliciano Viriato Madeira, comandante do 1º pelotão; a seguir o também açoriano, picaroto, ex-alferes miliciano Mário Goulart, comandante do 3º pelotão que todos os anos faz questão de nos acompanhar no almoço de convívio da CCaç 557; o algarvio, ex-alferes miliciano, Ildefonso Leal, comandante do 2º pelotão; e, em primeiro palno, à direita, o aveirense, ex-tenente miliciano médico, Rogério Leitão [, já falecido, em 2010].

Esta e outras fotos, do Cachil,. 1964, sãoão de fraca qualidade devido aos meios que havia naquele tempo e, além disso, foram reproduzidas de slides de um DVD que tenho da estada, na Guiné, da  minha  CCAÇ 557. 

O quarto alferes miliciano, comandante do 4º pelotão e 2º comandante da companhia (, e que não aparece aqui neste fotograma,)  era o  José Augusto Rocha (1938-2018), destacado dirigente estudantil (em 1962) e depois advogado, defensor de muitos presos políticos sob o marcelismo. (Tinha uma posição radical sobre a guerra colonial, a da denúncia ativa, razão por que declinara, em 2015, delicadamente, o nosso convite para integrar a Tabanca Grande; era um hoem afável mas firme nas suas convicções.).

Foto (e legenda): © José Colaço (2011). Todos os direitos reservados
. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Viriato Madeira foi aqui citado no "Diário de Guerra", do Cristóvão de Aguiar (**):

Camamudo, 12 de Junho de 1965

Vim a este destacamento de Bafatá en­con­trar-me com o meu amigo Viriato Madeira, que está prestes a terminar a sua comis­são. Esteve anteriormente, com a sua companhia, na Ilha do Como, durante cerca de um ano, rodeado de arame farpado e sem poder sair do aquartelamento de cam­panha, im­plan­tado no chamado reino do Nino, onde ninguém se atre­via a entrar ou a sair. Vie­ram de lá todos bem marcados. 

Foi tal a nossa alegria, que chorámos como duas crianças perdidas que se reencontram e abraçam uma à outra. E, para festejar o nosso encon­tro, preparou-me uma bebida, que ele chama bomba, espécie de cocktail revolu­cio­nário, que me pôs a dormir ou em coma alcoólico quase ins­tan­tanea­mente. Quando des­pertei, já era tarde para seguir para Contuboel. Mandei um rádio a prevenir que passava a noite em Ba­fatá, na sede do batalhão.

2. Comentários ao poste P9360 (*):

José Câmara:

Caro Colaço: Por informação recebida de Carlos Cordeiro, o Alf Mil. Viriato Madeira faleceu o ano passado.

Segundo a mesma fonte, o Viriato mantinha grande actividade cívica. Por isso mesmo granjeou grande simpatia entre a população da Ribeira Grande, Ilha de São Miguel. (***)

Um abraço amigo,
José Câmara

16 de janeiro de 2012 às 04:14

Carlos Cordeiro:

Caros amigos,

De facto, o Viriato Madeira foi uma pessoa de notável intervenção cívica. A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores aprovou, por unanimidade, um voto de pesar pelo seu falecimento:
http://base.alra.pt:82/Doc_Voto/IXvoto354_11.pdf (que se reproduz emnoata de rodapé (***)

Um abraço,
Carlos Cordeiro

16 de janeiro de 2012 às 13:00

José Botelho Colaço: 

O ex-alferes Viriato Madeira era um grande comunicador,  sempre bem disposto, ultimamente os nossos contactos eram menos assíduos devido ao seu estado de saúde segundo me dizia era do foro pancreático-

Estive nos Açores não o visitei porque o programa não contemplava a visita à Ribeira Grande.
A sua deslocação aos almoços da CCaç 557 só uma vez esteve presente, primeiro por motivos de trabalho e ultimamente pelo seu estado de saúde não o permitir, iam ficando sempre adiado para o próximo ano.

O Viriato dizia-me sempre quando eu me deslocasse à Ribeira Grande que não me preocupasse com hotel porque punha a casa dele à minha ordem.

E assim é aqueles que da lei da vida se vão libertando, a roda da vida não pára. (***)

Um abraço, Colaço

16 de janeiro de 2012 às 14:17

_____________



(***) O seu nome foi dado, por exemplo, a um equipamento de grandes prestígio e utildiade público, o Coplezo de Piscinas Viriato Madeira. Entre outras funções cívias, foi presidemte da direção dos Bomabeiros Voluntários da Ribeira Gramnde (2001-2011).

A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores aprovou, por unanimidade, um voto de pesar pelo seu falecimento em 2011:






Disponível em: http://base.alra.pt:82/Doc_Voto/IXvoto354_11.pdf 

Guiné 61/74 - P22632: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (74): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Acabaram-se as férias em Lisboa, Annette e Paulo retomaram atividades, Annette escreve ao filho, lembra-lhe que ambos visitaram Florença, há uns bons anos, o jovem sentia-se magnetizado pelo esplendor da cidade, arquitetura, belas-artes, a disposição da cidade junto do Arno, tinham ficado em Fiesole, fizeram passeio juntos, e quando a mãe trabalhava como intérprete ele maravilhava-se pelas galerias de arte e pelos palácios e jardins. Há a promessa de um trabalho para Jules, ele veio psicologicamente mais alentado de Lisboa, a relação com Paulo já chegou à intimidade, Jules disse-lhe mesmo em Lisboa que se sentia feliz com a adoração com que ele tratava a mãe. Annette conta o trabalho do livro que está a organizar para Paulo, foi esse projeto que alavancou esta estreitíssima relação de que nenhum dos dois quer abdicar. Para surpresa de Annette, julgava que o projeto do livro findava quando findasse a comissão na Guiné, Paulo deu-lhe a notícia de que vai haver um desfecho inesperado, ela que não se esquecesse que é um romance dentro de um romance, muitas vezes o que converge pode divergir, neste caso, sossegou-lhe ele, não há divergências, ele promete um final de obra que seja a celebração do amor. Cá estaremos para ver.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (74): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon cher Jules, mon brave gamin, desejo do coração que te encontres bem de saúde. Telefonei-te mal cheguei a Bruxelas, quando regressei de Lisboa, ainda desconhecia a minha agenda de trabalhos, o meu chefe admitira, antes de nós os dois termos partido para Lisboa, que setembro me reservava reuniões de trabalho só na Bélgica e Luxemburgo. Não aconteceu assim, depois de dois dias de trabalho em Bruxelas parti para Florença, um grande seminário no Instituto Universitário Europeu de Florença, juntaram-se grandes mestres da política e da investigação académica para debater o alargamento europeu em curso, não sabes o que eu aprendi sobre estes novos países, tanto os do Norte como os do Sul. Recordo uma viagem que fiz aqui contigo, estavas no primeiro ano da universidade, lembro-me perfeitamente da tua alegria esfusiante no Palazzo Vecchio e na Piazza della Signoria, tirei-te uma fotografia junto da Fonte de Neptuno, e depois junto da escultura de Donatello, Judite com a Cabeça de Holofernes, e a cópia do David de Michelangelo, prometi-te que iriamos ver o original na Galleria dell’Accademia, não aconteceu, fomos visitar a Ponte Vecchio. Tu tinhas estudado o estilo toscano e quiseste conhecer a Igreja de S. Croce e onde estão os túmulos de Michelangelo, Maquiavel, Galileo, Rossini e Cherubini. Recordo que mais tarde visitámos a catedral e o batistério, tu estavas louco de alegria com estes tesouros florentinos, ainda projetámos visitar S. Miniato al Monte, não fomos, tu pediste para visitar o Giardino di Boboli, depois eu passei um dia a trabalhar, ocasião que aproveitaste para visitar a Galeria dos Ofícios e o Museu Marino Marini, um escultor que tu tanto aprecias e que me ensinaste a gostar. Tirei alguns registos fotográficos nas poucas horas livres que tive, depois vim apressadamente com os meus colegas apanhar o comboio que nos deixou no aeroporto. Isto tudo para te dizer que Bruxelas me reserva bastante trabalho nos próximos dias, o Paulo falou com o Gilles Jacquemain quanto à hipótese de ficares a dar apoio informático num novo serviço da Comissão Europeia, parece-me ser um contrato promissor com a duração de um ano. Prometo dar-te notícias em breve, Gilles irá telefonar-me ainda durante esta semana.

Paulo e eu estamos sempre a debater o futuro, os nossos filhos estão sempre na linha da frente nas nossas preocupações, a nossa felicidade passa por vos ver bem, embora saibamos que a realização profissional nos tempos de hoje tem pouco a ver com o percurso que nos esperava quando saíamos das universidades, parecia que havia emprego para toda a gente, havia uma maior facilidade em adquirir competências, as remunerações eram mais elevadas, e já não falo do grau de estabilidade que tínhamos no horizonte, na vida laboral. Paulo e eu ganhámos um certo poder de aceitação de vivermos a nossa realização conjugal com tanta distância, confesso-te que nem sempre é fácil para mim, tenho felizmente este dossiê que me acompanha para toda a parte com o projeto do romance que foi o nosso ponto de partida, tu não podes imaginar como me inseri nele, tornou-se obra do casal, naquele dia que nos conhecemos ele disse-me mesmo que o romance se intitularia Rua do Eclipse.

Imagina o meu trabalho a compilar estes escritos, leio aerogramas para vários destinatários, consulto cartas e mapas, vejo fotografias, anoto dúvidas, procuro esclarecer-me pelo mail ou pelo telefone. Tudo parece bem encaminhado, faltam cerca de dois meses ou pouco mais para o fim da comissão do Paulo na Guiné, curiosamente ele já me disse que tem em mente um desfecho inesperado para toda esta obra. É no ajuntamento destes dias, semanas e meses que eu também vou adubando um amor sempre crescente pelo meu adorado companheiro. Estou agora num período em que ele voltou a Missirá, o pretexto foi a inauguração do gerador elétrico, comoveu-se muito, pedira insistentemente, e meses a fio, este benefício, chegou depois de ele sair do Cuor, mas estava muito feliz com a chegada de luz elétrica. Em Bambadinca, onde vive, está a processar-se a transferência de batalhões, é um tempo em que a guerrilha é muito intensa junto de povoados que estão em autodefesa, gente que é fiel a Portugal, que vive dentro de arame farpado, tem armas e munições, ripostam quando são atacados. O Paulo foi convocado para ir a Bissau testemunhar no julgamento de um soldado seu, um homem bom que teve a fatalidade de, por imprevidência, de desfechar os tiros quando subia para uma viatura num outro camarada, vai ser julgado por homicídio involuntário. Há um curioso aerograma em que Paulo conta que se reuniu com esse soldado e com um 1º cabo africano que podia traduzir para crioulo os argumentos em que os dois se deviam sintonizar: que esse soldado, de nome Quebá Sissé, não esquecesse que tinha uma muito boa folha de serviços, que quando fosse interrogado devia afirmar que era amigo devotado do falecido Uam Sambu, que tudo aquilo fora um azar monstro, que mesmo o comandante do pelotão podia confirmar que todo o seu comportamento anterior de homem de paz, que nunca perdia a cabeça, talvez naquele dia de manhã cedo estivesse ainda pouco desperto e ao subir a viatura, inadvertidamente, a sua espingarda passara da patilha de segurança para a posição de fogo, confessava a sua negligência, etc. e tal.

O intérprete, o cabo Domingos Silva, que também era testemunha, prometeu ao Paulo que iria ainda ensaiar com Quebá Sissé o que ele devia dizer ao juiz, não esquecendo de afirmar que se sentia completamente inocente e arrependido do seu deslize fatal – o Domingos observava a Paulo que tudo isto era uma conversa que não encaixava muito bem na cabeça de Quebá Sissé, enfim, problemas culturais. Encontrei no outro aerograma uma descrição do julgamento, para grande alívio de Paulo, Quebá ia dando respostas sensatas no seu português um tanto cantado, respondeu a tudo, confessou-se inocente e arrependido, como o Paulo lhe pedira no ensaio-geral. Não deixei de sorrir com a descrição que o Paulo faz do depoimento do Domingos, a gesticular e a falar muito alto, parecia um distinto ator amador, às vezes virava-se para a assistência, como se estivesse a pedir palmas. O depoimento de Paulo tinha que estar à altura de um comandante de pelotão: elogiou o militar que tinha um tratamento terno com as crianças, que era um prodígio de cozinheiro sem nunca regatear as obrigações dos reforços como sentinela, chegando a colaborar nas emboscadas e patrulhamentos, na medida do razoável, ele era cozinheiro; que todo o pelotão recebera com profunda mágoa e consternação a notícia daquele medonho acidente, tanta e tão profunda era a amizade que unia a vítima ao homicida involuntário. Ouvidas estas testemunhas o juiz preveniu que a sentença seria conhecida mais tarde, e foi bem benévola para o amável Quebá Sissé, ele já tinha estado engaiolado, acabou por sair em liberdade, como a sua comissão terminara voltou para a terra-natal, Farim. O Paulo nunca mais o viu, esteve a trabalhar na Guiné em 1991, procurou por ele, ninguém lhe conhecia o paradeiro.

Paulo voltou para Bambadinca, para os afazeres do costume, andava frequentemente numa localidade onde decorria um reordenamento chamada Nhabijões, um empreendimento de vulto, casas com arruamentos, mesquita, escola, fontanários, casas familiares assentes em quatro pilares de cibe, as paredes eram feitas com blocos de adobe, fazia-se uma trama com rachas de cibe mais finas para o telhado, onde se pregavam chapas de zinco. Há também um outro aerograma em que ele refere os odores deste novo povoado, tudo a cheirar a fresco. E no ponto em que me encontro, está a partir um batalhão e a chegar outro, é um período de transferência, quem chega bem à defesa, por precaução quer saber rigorosamente o que encontra, para não ter que dar contas à justiça. Também no pelotão do Paulo partem e chegam soldados.

Interrompo agora, houve um grande ataque a um povoado chamado Demba Taco, o Paulo patrulhava a vários quilómetros de distância, mandou informar Bambadinca que avançava em auxílio dos atacados, pedia apoio com viaturas, é já muito tarde, saio pelas seis e meia da manhã em direção ao Luxemburgo, vou ter um daqueles dias em que só se fala de Estatística ou de especialidades farmacêuticas, felizmente que vem aí o fim de semana, mal chegue a Bruxelas combino contigo um almoço ou um jantar, meu adorado filho. À tantôt, Maman.

(continua)

Praça da Senhoria, Florença
Palazzo Vecchio, Florença
Giardino di Boboli, Florença
Basílica de Santa Cruz, Florença
Museu de Marino Marini, Florença
Quebá Sissé, conhecido por “Doutor”, o cozinheiro de Missirá. Fotografia do início do março de 1969. Em 1 de janeiro de 1970, no mais estúpido dos acidentes, ao subir uma viatura, mete o dedo no gatilho e mata um camarada, Uam Sambu. Vai agora ser julgado em Bissau, Paulo é convocado como uma das suas testemunhas
Aqui foi o porto de Bambadinca, estamos no Geba estreito, em frente à bolanha de Finete
Restos de um Unimog 411, era a primeira mina nos Nhabijões, faleceu o condutor, de nome Soares
Rua do Eclipse, Bruxelas
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE OUTUBRO DE 2021 Guiné 61/74 - P22610: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22631: Memórias cruzadas nas 'matas' da Região do Óio-Morés: o caso da queda do "T-6 FAP 1694", em 14out1963, incluido no documentário "Labanta Negro!", realizado pelo italiano Piero Nelli, 28 meses depois (fev 1966) (Jorge Araújo)


Foto 2 - Citação: (1963) “Lay Sek junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC”, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_de_43815 - matrícula 1694 – com a devida vénia.
 

Foto 3 - Citação: (1963) “População junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC”, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_de_ 43566 - matrícula 1694 – com a devida vénia.




O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo. Vive presentemente num dos países das "Arábias"...Tem cerca de 300  referências no nosso blogue.



MEMÓRIAS CRUZADAS
NAS ‘MATAS’ DA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS:

O CASO DA QUEDA DO «T-6 FAP 1694», EM 14OUT1963, INCLUÍDO EM DOCUMENTÁRIO PRODUZIDO PELO ITALIANO PIERO NELLI, VINTE E OITO MESES DEPOIS (FEV’1966)



Mapa da região do Óio-Morés com infografia da queda do «T-6 FAP 1694», pilotado pelo Cap Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, ocorrida em 14Out1963. Identificando-se, com pontos a azul, três das bases existentes naquela região.


1. - INTRODUÇÃO

Já aqui demos conta, com veemente convicção, de que a quantidade de documentação histórica, relativa à «Guerra do Ultramar», que continua em silêncio nos arquivos é de tal monta que será difícil, a cada um de nós, dela ter conhecimento e, deste modo, encontrar respostas às dúvidas que persistem… teimosamente!

É dessa teimosia, que se traduz em revisões continuadas do trabalho histórico, emergente da “pesquisa” e do seu estudo, que nos tem permitido, por adição de “factos” ou “verdades parciais”, ir mais longe na objectividade histórica, pois esta deverá ser consistente.

Com efeito, em novo regresso `ss "matas da região do Óio-Morés”, através de «Memórias Cruzadas» com quase seis décadas, foi possível juntar mais algumas peças ao nosso «puzzle» da “guerra” (dos dois lados), na medida em que continuará incompleto. Estamo-nos a referir ao caso da queda do «T-6 FAP 1694», ocorrida naquela região em 14 de Outubro de 1963, 2.ª feira, pilotado pelo Cap Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, cujo corpo não foi recuperado.



Sobre o caso em apreço, o que temos a dizer de novo vai no sentido de, para além de confirmar o que deixámos expresso nos dois trabalhos já publicados anteriormente:

lhe adicionar o conteúdo de mais algumas imagens resgatadas do documentário «LABANTA NEGRO», produzido pelo italiano Piero Nelli, durante a sua visita à Guiné [Conacri], entre 02 e 15 de Fevereiro de 1966, a convite do Secretário-Geral do PAIGC.


Tradução do texto em italiano: “Diário de paz e guerra entre os partidários da 'província portuguesa ultramarina' da Guiné e Cabo Verde”.


Tradução do texto em italiano: “Este documentário foi aceite pelo Comité de Descolonização da ONU [Comité dos 24], reunido em Argel de 16 a 21 de Junho de 1966, como prova testemunhal sobre a situação da 'província portuguesa ultramarina' da Guiné e Cabo Verde”.

Fonte: Arquivo Audiovisivo del Movimento Operaio e Democratico > Documentario "Labanta Megro!"  (1966)

http://patrimonio.aamod.it/aamod-web/film/detail/IL8200001651/22/labanta-negro.html?startPage=0&idFondo (com a devida vénia)


Foto 1 - Exemplo de um T-6 (matrícula 1688)



2. - SÍNTESE DOS ANTECEDENTES JÁ PUBLICADOS

O interesse pelo aprofundamento desta ocorrência, de que deixei expresso na narrativa publicada em 25 de Julho de 2019 – P20010 – a que dei o nome de «O T-6 FAP 1694 e o Cap Pilav João Rebelo Valente, desaparecido em 14/10/1963, na região do Óio-Morés», nasce da interrogação, do “mistério” e do “conflito histórico”, suscitados pela discrepância observada entre as fontes consultadas em que, no primeiro caso, a causa da queda foi consequência de “voo de experiência do avião, embatendo no solo ao fazer acrobacia a baixa altitude”, conforme registo abaixo:

No segundo caso, o acidente é descrito onde a mesma aeronave “ao colidir com o solo após manobra acrobática, em Olossato”, provocou a morte do Capitão Piloto aviador João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, facto que pode ser comprovado a seguir:



A recuperação das duas imagens que se apresentam abaixo [fotos 2 e 3], servem para testemunhar que a aeronave «T-6 FAP 1694» se despenhou na região do Óio e, segundo Pedro Pires (1934-), “muito próximo da base [Central] do Osvaldo Vieira, perto da tabanca de Morés.”

No mesmo sentido segue o conteúdo do relatório, da missão atribuída a Lourenço Gomes (1922-1999), realizada a bases da Região Norte da Guiné, entre 8 e 18 de Outubro de 1963, e publicado em narrativa de 8 de Julho de 2020 – P21151 – onde refere a sua chegada à “base do camarada Ambrósio Djassi” [Osvaldo Vieira; 1938-1974] no dia 09Out63, 4.ª feira, tendo depois visitado as três bases do Óio [Morés (Central), Fajonquito e Maqué] assinaladas a azul na infografia acima.

Depois, no dia 14Out63, 2.ª feira, perante a sua presença, os aviões portugueses ao tentarem atacar a base [Central do Morés], do Ambrósio Djassi [Osvaldo Vieira], os camaradas abateram três aviões inimigos [apenas um: o «T-6 FAP 1694», do Cap Pilav João Rebelo Valente]. (…) Nós tivemos nove mortos e oito feridos. Esses feridos deviam ser transferidos comigo para Samine [no Senegal], mas tiveram que voltar para o Óio, porque os portugueses descobriram uma cambança por onde deveríamos passar e tentaram apanhar-nos nesse mesmo sítio. (Vd.fotos nºs 2e 3, acima)


3. - O «T-6 FAP 1694» NO «LABANTA NEGRO» - DOCUMENTÁRIO REALIZADO PELO ITALIANO PIERO NELLI EM FEVEREIRO DE 1966

De acordo com o referido na introdução, o citado documentário foi [apresentado e] aceite pelo Comité de Descolonização da ONU, reunido em Argel de 16 a 21 de Junho de 1966, como [primeira] prova testemunhal [de informação e propaganda audiovisual do PAIGC] sobre a situação da “província portuguesa ultramarina” da Guiné e Cabo Verde [três anos e meio depois do início do conflito].

Este documentário produzido a preto e branco, em 1966, com uma duração de 39’ [curta-metragem], está alojado no sítio da «FUNDAÇÂO AAMOD» (Arquivo audiovisual do movimento operário e democrático), instituição italiana fundada em 13 de Fevereiro de 1985, em Roma, cujo logo se apresenta abaixo.



A sequência dos sete planos (fotogramas) que seguidamente se reproduz, serve exclusivamente para enquadrar a temática relacionada com a aeronave em título, tendo sido obtida a partir do visionamento do documentário supracitado, em particular no roteiro incluído na caminhada efectuada pela equipa técnica dirigida por Piero Nelli, na região do Óio (Base Central do Morés), iniciada a 04 de Fevereiro de 1966, 6.ª feira, como se demonstra no plano (fotograma) seguinte:


No documentário, as filmagens reportadas ao «T-6 FAP 1694» têm uma duração de 1 minuto (entre os 17’43” e 18’43”).


3.1 - OS SETE PLANOS DO «T-6 1694», RESGATADOS DO DOCUMENTÁRIO «LABANTA NEGRO!», NO ROTEIRO DO ÓIO (MORÉS), EM FEVEREIRO DE 1966


Plano 1 – Região do Óio em Fev’66 - Destroços do «T-6 FAP 1694» em «Labanta Negro!"; documentário do italiano Piero Nelli (1966) ( A preto e branco, sonoro, duração: c. 39 minutos)


Plano 2 – Região do Óio em Fev’66 - Destroços do «T-6 FAP 1694» em «Labanta Negro!»; documentário do italiano Piero Nelli (1966)


Plano 3 – Região do Óio em Fev’66 - Destroços do «T-6 FAP 1694» em «Labanta Negro!»; documentário do italiano Piero Nelli/(1966)


Plano 4 – Região do Óio em Fev’66 - Destroços do «T-6 FAP 1694» em «Labanta Negro»!; documentário do italiano Piero Nelli (1966)


Plano 5 – Região do Óio em Fev’66 - Destroços do «T-6 FAP 1694» em «Labanta Negro!»; documentário do italiano Piero Nelli (1966)


Plano 6 – Região do Óio em Fev’66 - Destroços do «T-6 FAP 1694» em «Labanta Negro!»; documentário do italiano Piero Nelli (1966)


Plano 7 – Região do Óio em Fev’66 - Destroços do «T-6 FAP 1694» em «Labanta Negro!»; documentário do italiano Piero Nelli (1966)

O vídeo (38' 44'') pode ser vistio aqui na íntegra, neste link. no You Tube. É  narrado em italiano. Aconselhável vê-lo em ecrã inteiro e ativar as legendas em italiano,

► Fontes consultadas:

Ø CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07075.147.046. Título: Relatório sobre a visita de Lourenço Gomes à região do Óio. Assunto: Relatório assinado por Lourenço Gomes sobre a sua visita ao interior, região de Óio. Visita aos locais onde foram abatidos os aviões portugueses; ataque à base de Ambrósio Djassi [Osvaldo Vieira]. Necessidade de medicamentos no interior. Material de Guerra. Despesas. Viatura para transporte dos feridos. Envio dos militares portuguesas, Fernandes Vaz e Fernando Fortes, para a base de Abel Djassi. Em anexo documento assinado por Pedro Pires, datado de 21 de Outubro de 1963, com as informações colhidas das declarações de Biagué. Data: Quinta, 24 de Outubro de 1963. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios XI 1961-1964. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.

Ø Outras: as referidas em cada caso.

Ø Arquivo Audiovisivo del Movimento Operaio e Democratico > Documentario "Labanta Megro!"  (1966)

http://patrimonio.aamod.it/aamod-web/film/detail/IL8200001651/22/labanta-negro.html?startPage=0&idFondo


Termino agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
12MAI2021
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quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Guiné 61/74 – P22630: (Ex)citações (395): 8º Encontro Ranger, 1º Turno de 1973, em Beja (José Saúde)



Beja > Taberna A Pipa > 2 de outubro de 2021 > 8º Encontro  Ranger, 1º Turni de 1973 


Fotos (e legendas): © JoséSaúde (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem:



8º Encontro Ranger, 1º Turno de 1973, em Beja

Beja foi a cidade que acolheu camaradas e alguns dos seus familiares.

Foi em Beja, cidade fundada 400 anos a.C. pelos celtas, e mais tarde denominada como Pax Júlia aquando da sua conquista pelo Império Romano, sendo o imperador Augusto o comandante das tropas, que no passado 2 de outubro, sábado, que se realizou o 8º Encontro Ranger, 1º Turno de 1973.

Após uma pausa, pois a Covid-19 assim o determinou, foi na Taberna “A Pipa”, propriedade da Chefe Saudade e do Jorge Maldonado, com a ajuda da funcionária Silvina, que o grupo de camaradas rangers se juntaram (41 contando com os seus familiares) e dissecaram pedaços de uma história que ficou marcada pela nossa presença na guerra colonial.

Na verdade, a Guiné, como foi o nosso caso, por lá passaram uma imensidão de camaradas que jamais esquecerão o mar de tréguas a que fomos então submetidos. Sim porque estes momentos, onde a amizade prolifera, leva-nos a uma viagem no tempo e recordar os climas difíceis que nós, jovens na casa dos 20, 21, 22, ou 23, obrigatoriamente suportámos.




Que a história, biografia e narração de factos, nunca esqueça de uma peleja (recente) onde se cruzaram gerações e que ditou números de mortos e feridos que citarei com o rigor extraído de fontes fidedignas e que relato no meu nono livro “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74”,  edição da Editora Colibri:



“A guerra de além-mar mobilizou mais de 800 mil combatentes, dizem os respetivos cadastros. Segundo dados oferecidos pelo Estado-Maior General das Forças Armadas, terão morrido na Guerra de África 8831 militares portugueses, sendo que em Angola se registaram 3455 mortes, em Moçambique 3136 e na Guiné 2240.

"Especificando o conteúdo de falecimentos nos três ramos das Forças Armadas, conclui-se: Exército, 8290; Força Aérea, 346 e Marinha de Guerra, 195.




"No que concerne à componente dos feridos, observa-se que cerca de 30.000 foram evacuados entre os demais de 100.000 registados nos censos militares.

"Um outro dado considerado importante, tendo em conta a diversidade de patentes dos antigos combatentes na guerra, certifica-se que a listagem atesta: 1 general, 2 brigadeiros, 3 coronéis, 15 tenentes-coronéis, 22 majores, 100 capitães, 40 tenentes, 300 alferes, 900 sargentos e furriéis, 1600 cabos, 5500 soldados e marinheiros”.

 Um abraço, camaradas

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74)
 
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série


Guiné 61/74 - P22629: In Memoriam (413): Torcato Mendonça (1944-2021), ex-alf mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69)... Homenageando também um casal que sempre soube, em vida, amparar-se mutuamemnte, "na saúde e na doença" (Luís Graça)


Fundão > 27 de Janeiro de 2007 >  O Torcato Mendonça (TM) que eu conheci, pessoalmente,no Fundão, sua terra adotiva... Foi lá que casou com a Ana Lurdes e onde nasceram os seus filhos, dois rapazes. O TM  que encintrou para a nossa Tabanca Grande em 2006, participou pelo menos em cinco dos nossos encontros nacionais, de 2007 a 2011.


Leiria > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > 17 de Maio de 2008 > III Encontro Nacional da Tabanca Grande > A Ana, que veio a conduzir do Fundão, para acompanhar o seu José (alter ego do Torcato Mendonça). 

A Ana Lourdes de Mendonça foi coordenadora dos serviços administrativos do conceituado Jornal do Fundão (que alguns de nós assinávamos na Guiné, ao tempo da guerra, a par do Comércio do Funchal, do Notícias da Amadora e outros).

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Agora que o nosso querido amigo, camarada e colaborador Torcato Mendonça deixou a Terra da Alegria (*), e nos deixou tristes, inconsoláveis e mais pobres, vou recuperar escritos antigos em que falo dos dois, do José e da Ana, um casal por quem sempre tive admiração e carinho porque souberam, ao longo da sua vida em comum,  amparar-se um ao outro "na saúde e na doença". A Ana, felizmente, continua viva e vai por certo continuar a acompnhar o nosso blogue (**)


Em 17 de maio de 2008, veio de longe, do Fundão, das faldas da Gardunha, a conduzir, com o seu José ao lado (que pode mas não deve fazer tantos quilómetros ao volante), só para estar com os seus (dele) camaradas da Guiné... Le coeur oblige, mon bijou... E o que tem de ser tem muita força, diz o provérbio: a doença, traiçoeira, que vem trazer negrura às nossas vidas, apreensão aos que nos amam, incerteza aos que nos rodeiam, finitude aos nossos projectos, angústia para o jantar, pesadelos às tantas da madrugada...

Nem um ai nem um ui: a Ana (Mendonça, por casamento) viveu, em silêncio, o seu drama, individual e familiar... No píncaro do Verão... Por uns tempos, o José desapareceu (ou melhor não apareceu, recolheu-se, não se expôs, preparou-se, como nos duros tempos de Mansambo, da CART 2339, mobilizou toda a sua energia para fazer face à devastação)....

Como é que a nós, distraídos com as nossas blogarias - tu, Carlos, tu, Virgínio, eu, Luís - , não nos ocorreu que algo estava errado nessa pesada cortina de silêncio, puxada pela mão do Torcato Mendonça, o TM, um homem com lugar ao sul e que gostava de pensar em voz alta ? 

Em meados de dezembro de 2008,  escrevi-lhe, ao TM,  o seguinte:

"Um bj para a tua Ana, que é uma mulher de armas e que já sei que voltou ao trabalho... A vida é dura, José, aqui ou em Mansambo... Mas também pode ser bela, se tiver afecto(s): amor, paixão, amizade, camaradagem, emoção, compaixão, poesia... 

Diverte-te, se puderes: 'Esta vida são dois dias e o Carnaval são três'... Mas há, pelo menos, uma certeza: 'Quem de novo não morre de velho não escapa'... 

Uma coisa que a guerra da Guiné não nos deu, foi serenidade... Pelo contrário, trouxe-nos inquietude (que é mais do que inquietação). Em contrapartida, aprendemos a enfrentar a morte e a não temê-la: 'Temer a morte é morrer duas vezes' ... E tu és, para nós todos, um exemplo vivo e corajoso, de como um homem pode sorrir à morte com meia cara ou meio coração, parafraseando o título da narrativa autobiográfica do grande escritor José Rodrigues Miguéis, um lisboeta de Alfama (1901) que morreu longe da Pátria, da Mátria e da Fátria (Manhattan, N.Y., 1980). 

Que esta tertúlia, a nossa Tabanaca Grande, seja, ao menos para ti, um pouco da Fátria perdida em Mansambo, em Bambadinca e em tantos lugares da Guiné onde sofremos e fomos solidários"...

A Ana, que voltou ao seu José, passou a acompanhar desde então com solicitude mas também com a máxima das discrições as nossas blogarias... E o Natal de 2008 surpreendeu-me (e emocionou-me) com o seguinte cartão do José onde se podia ler:

"Luís Graça: Um beijo agradecido pela simpatia posta na mensagem (de força) enviada através do Torcato e que eu li. Votos de um Feliz Natal extensivo a toda a Família. Ana Lourdes de Mendonça"...

Somos, afinal, um blogue de afectos e de histórias, mas também de gente solidária... Por um momento, por uma vez ao menos, eu senti que valeu (ou valia)  a pena esta tontaria de querer juntar o fio de tantas meadas, de destar tantos nós da memória, de inquirir estas tantas vidas que foram/são as nossas (parafraseando o belo título do antigo blogue do Virgínio Briote)... Por um dia senti que também podemos fazer bem a alguém...

Senti que as palavras também podem matar, também podem ferir, também podem destruir; senti que as palavras vêm muito antes das balas, e que são as palavras que nomeiam a morte e desencadeiam a guerra, muito antes dos obuzes e dos aviões e dos carros de combate, das minas e armadilhas...Mas também senti que as palavras, em seu sítio, também podem dar conforto, animar, dar força... Senti-me feliz por saber que a Ana, que eu mal conhecia, passava os testes todos de sobrevivência... e estava apta, apartir de então,  para enfrentar o futuro, pronta para o que desse e viesse...

Em de dezembro de 2008, voltámos a pôr a Ana a sorrir, na nossa fotogaleria, como no dia 17 de Maio de 2008, na Ortigosa... E desejámos-lhe Boas Festas:

"Boas Festas,  quentes e boas como as castanhas da tua Cova da Beira... Há castanhas na Gardunha ? Por mim, só conhecia as cerejas, que são as melhores do mundo. E o requeijão... Ah! o requeijão do Fundão. Ah!, e o Torcato, o José, o Mendonça, o Viriato (o santo patrono da CART 2339)!... Ah!, e agora a Ana, mulher da vida do José, e nossa camariga."

Nessa altura aumentou o meu conhecimento (e reconhecimento) da geografia do amor, da amizade, da solidariedade, da humanidade... E por isso eu pedia paar lhe escreverem o nome, no quadro escuro, a giz, onde listamos as nossas mulheres, as nossas companheiras de uma vida, as nossas camarigas: Ana, simplesmente Ana.. Um exemplo de tenacidade e de coragem, para todos nós. 

E mais disse: 

"Temos orgulho em ti, José!... Temos orgulho em ti, Ana. Deixa-me, José, deixa-me, Ana, oferecer-vos, por fim, este poema do meu modesto poemário... Para ler nos dias de chuva miudinha e de tristeza, quando só apetece colar a cara à vidraça da janela virada para o absurdo da doença, do azar, da morte, com o maciço central da Serra da Estrela a aniquilar-nos... No fim, perceberás, Ana, e tu, José, o sentido do título. ("Poemombro, ou o ombro amigo", de Luís Graça,  2004. revisto em 2008) (**) .


PS - O TM (Torcato Mendonça) comentou seca e laconicamente: "Luís,  depois escrevo...agora não, agora não... abraço-te...somente...forte...sentido... desculpa se te molho o casaco...é uma lágrima de facto... recebe o meu abraço Amigo TM

19 de dezembro de 2008 às 10:03 (**)
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Guiné 61/74 - P22628: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VI: Contuboel (mai-set 1965), com gozo licença de férias nos Açores (de 24/8 a 25/9/1965) onde se foi casar...


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Bambadinca > Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)  > "A necessidade faz o órgão": com três pirogas, o Beja Santos improvisou  uma jangada, sem qualquer apoio técnico do BENG 447,  e, perante a incredulidade geral, levou um velho reboque para a outra margem (direita) do Rio Geba Estreito  e dali até Missirá... Ele tinha fama de levar tudo o que encontrava à mão na sede do batalhão,  o BCAÇ. 2852, já que em Missirá não tinha nada: por isso o pessoal de Bambadinca gritava uns para os outros, mal avistavam o Pel Caç Nat 52 a atravessar a bolanha de Finete: "Eh, malta, em guarda, vem aí o Tigre de Missirá!"... Como se fossem piores que  os corsários bérberes que infestavam as costas  algarvias no saudoso tempo do reino de Portugal e dos Algarves.

Três anos antes, o pessoal da CCAÇ 800 que chegou de viatura, de  Bissau, via Mansoa, até à margem direita do Rio Geba Estreito. frente a Bambadinca, deve ter utilizado a mesma engenhoca, uma jangada improvisada para cambar o rio e prosseguir viagem, via terrestre, até Bafatá e depois Contuboel. No seu "diário", o Cristóvão de Aguiar diz que esta simples operação de cambança levou "dois dias e duas noites" (25 e 26 maio de 1965). Chegaram a Bambadinca a 24 e a Contuboel a 27.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2006). 
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)




Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar



(Continuação)

Contuboel, 27 de Maio de 1965

Demorámos dois dias e duas noites para atra­ves­sar o rio Geba com todo o nosso material de campanha. Não tivemos outro re­médio senão comer rações de combate e beber água meio choca e bi­chen­ta. Dor­mi­mos, isto é, atravessámos as duas longas noites com muita mosquitada a atazanar os miolos e a pele. E não houve repelente que a afastasse. 

Chegámos ao que vai ser a sede da nossa companhia anteon­tem ao princípio da noite. Estavam aqui apenas nove homens e um furriel miliciano, que comandava a re­s­pectiva secção de armas pesadas. 

Com a guerri­lha a apertar cada vez mais, os chefes desta guerra estão a guarnecer melhor certas posições-chaves. Fui cum­primentar as forças vivas da terra: o chefe de posto, um branco, ex-furriel e ex-semi­narista, e dois comerciantes − um português, oriundo do concelho de Góis, ainda novo, e res­pectiva consorte; e um li­banês, tam­bém casado, cujo estabelecimento fica em frente da messe. 

Ambos os tra­ficantes não se podem ver um ao outro, como mandam as re­gras da boa vizi­nhan­ça. Não lhes dei grandes con­fianças, sobretudo ao chefe de posto que, para se mostrar valente diante de mim, es­bo­feteou um cipaio que se não levantou à minha passagem na varanda do posto. Cha­mei-lhe a atenção para o facto e ele pare­ceu-me que não ficou nada satis­feito, pelo menos senti-o pelo olhar, que agarrei pelo cabo e devolvi ao seu dono.


Contuboel, 1 de Junho de 1965

PROMESSA

Trago à cabeça
Um cesto de rimas
Que é uma promessa
De novas vindimas...

Meu Avô era tanoeiro:
Fazia pipas e selhas,
Tonéis, dornas e barris...
Meu Pai é serralheiro:
Forja foices e relhas,
Machados e picare­tas...
Somente eu pouco fiz:
- Apenas versos e tretas!



Camamudo, 12 de Junho de 1965

Vim a este destacamento de Bafatá en­con­trar-me com o meu amigo Viriato Madeira, que está prestes a terminar a sua comis­são. Esteve anteriormente, com a sua companhia, na Ilha do Como, durante cerca de um ano, rodeado de arame farpado e sem poder sair do aquartelamento de cam­panha, im­plan­tado no chamado reino do Nino, onde ninguém se atrevia a entrar ou a sair. 

Vie­ram de lá todos bem marcados. Foi tal a nossa alegria, que chorámos como duas crianças perdidas que se reencontram e abraçam uma à outra. E, para festejar o nosso encon­tro, preparou-me uma bebida, que ele chama bomba, espécie de cocktail revolu­cio­nário, que me pôs a dormir ou em coma alcoólico quase ins­tan­tanea­mente. Quando des­pertei, já era tarde para seguir para Contuboel. Mandei um rádio a prevenir que passava a noite em Ba­fatá, na sede do batalhão.


Contuboel, 22 de Junho de 1965

Acabei de riscar a sexagésima cruzinha no ca­len­dário. É uma espécie de desobriga que pratico todos os dias, à noite, antes de me dei­tar. Ainda faltam tantas centenas, meu Deus! Será que chego ao fim? Comprei doze livros de Aquilino Ribeiro num estabelecimento de Bafatá. Cada um custou-me qua­renta e cinco escudos. Tenho muito que ler, se para tal tiver cabeça.


Contuboel, 29 de Junho de 1965

Fui com o meu pelotão reforçar a com­pa­nhia de Fajonquito numa operação de dois dias ao mato do Caresse. Chegámos ontem. Ao descalçar as botas de lona e tirar as peúgas grossas, encardidas, vieram-me pe­daços de pele a elas agarrada. 

Anteontem, a um domingo logo de manhã, ainda an­tes da missa na minha freguesia, na Ilha, onde assisti, durante a emboscada, à en­trada e à saída para lhe receber o sorriso e ficar comungado para o resto do dia, tive então o meu baptismo de fogo. 

Foi cerca de uma hora e meia (o tempo da missa ar­rastada do senhor padre Joaquim) que estive debaixo de metralha constante. Não vi nenhum ini­migo, mas senti-lhe a presença. Fumei quase um maço de cigarros Sa­gres e bebi toda a água do meu cantil e a do meu guarda-costas. 

Os velhinhos da companhia a que nos juntámos, a quatro meses apenas do fim da comissão, estão tão tarimbados nisto, que nem fizeram grande caso do tiroteio, nem sequer respon­deram. A dada altura, piraram-se no en­calço do capitão, para uma clareira onde já não havia perigo de maior. E fiquei mais o meu pelotão ainda durante algum tempo na mira dos guerrilheiros, mas não houve nem mortos nem feridos.


Contuboel, 25 de Julho de 1965

O TEU ANIVERSÁRIO

Neste dia dos teus vinte e um anos,
Dependurei uma violeta
No meu lembrar-te.
Queria oferecer-te açafates
De ternura
E beijos buliçosos
Como estes pássaros
Nos fios de alta tensão...

Lembrei-te
Como quem se demora
No beber uma memória antiga
Em fotografias desmaiadas...


O meu recordar-te
Foi um cortejo de martírio
Ao longo de canadas íntimas
Do saber-te cada vez mais longe,
Fictícia,
E no entanto perto,
Tão aconchegada ao meu peito,
Que deixaste de ser fora de mim...



Bissau, 23 de Agosto de 1965

Parto amanhã para Lisboa em gozo de férias. Vou dar um passo importante na vida e, se calhar, não estou para ele preparado nem ama­du­re­cido. Que se lixe. Preciso urgentemente de um descendente que me pro­longue, no caso de vir a morrer com um tiro na cabeça um dia destes nesta desal­mada guerra de nervos e do resto. 

O livrinho que publiquei não vai dar boa conta de mim [. "Mãos vazias", poesia, 1965]. Precipitei-me. Já tinha plantado uma árvore. Tem apanhado bordoada da críti­ca, que até ar­repia. Vide Pinheiro Torres, no Diário de Lis­boa, e Jaime Gama, no Açores

Quanto ao as­sunto que me leva de viagem, devia es­pe­rar mais algum tempo para depois ler, com outra reflexão e outro descanso, Um Casamento do Pós-guerra, de Carlo Cas­sola.

Pico da Pedra [, terra natal do escritor, ilha de São Miguel] , 19 de Setembro de 1965

Domingo de procissão de Nossa Se­nho­ra dos Prazeres. Durante o almoço familiar, estalejaram alguns foguetes, anun­ciando o le­vantar a Deus da missa da festa. Quando dei por mim, estava deitado no chão, de­baixo da mesa. O que são os reflexos condicionados! Na guerra, temos de actuar o mais rápido possível: mal se ouve um tiro ou qualquer detona­ção, tem uma pessoa de se ati­rar logo para o chão, caso contrário.


Pico da Pedra, 23 de Setembro de 1965

SONS DE DESPEDIDA

No magoado cantar desta chuva,
Es­cuto tristes sons de despedida:
- Amargurados prantos de viúva
Suplicando que o amante torne à vida.

Partir só de braços livres, sem destino,
Como esta chuva caindo sem fim:
- Ter um barco e um sonho de menino,
Que o mar já o trago dentro de mim.

Partir é soltar a tranca da porta
Desta alma que vive quase morta
Na jaula duma luta que se não cansa...

Se o mar que me deixaram em herança,
Me desse uma resposta, uma esperança,
Eu fingiria um tiro na lembrança...


Lisboa, 25 de Setembro de 1965

Acabaram-se as tréguas. Vou de novo de re­gresso a Bissau, sem ânimo de qualidade nenhuma. Quando chegar ao mato, vão de­certo al­guns estranhar que tenha voltado. O sargento Cabaço dizia, em segredo, an­tes de eu vir a férias, que o alferes Aguiar nunca mais poria os pés no teatro de guerra, com certeza iria desertar. E teimava que o sabia de fonte limpa e segura.


Contuboel, 29 de Setembro de 1965

EU E A NOITE

Abro as mãos
E a noite poisa,
A noite pesa-me.

Trago a noite
Vestida
Muito justa
No corpo todo.

Se fecho as mãos,
Não esmago
A noite,
Porque a noite
É tudo
E eu sou
A própria noite.

A noite não se anula
No fogo das estrelas...
Nem a guerra se cala
Na boca das ar­mas.

Nas mãos estendidas,
O peso da noite
E um vendaval de tosse
Na casa­mata do peito...

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Notas do editor

(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22627: Historiografia da presença portuguesa em África (285): História breve da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Creio que se recordam que aqui se fez a recensão de um livro memorável História das Missões Católicas na Guiné, do Padre Henrique Pinto Rema, é indiscutivelmente a obra com mais significado no campo missionário. Fiz uma súmula de cerca de doze páginas deste incontornável trabalho, espero inseri-lo num livro em preparação "Guiné, Bilhete de Identidade", quem dele quiser ter acesso é só pedir-me. Atenda-se ao espírito da época em que Jorge Velez Caroço exige mais às missões, articula o seu trabalho com a implantação do espírito de ser português, a religião é tida como um dado civilizacional, uma outra acepção do patriotismo, revela o administrador colonial uma manifesta propensão para o uso do crioulo, um passo para a língua portuguesa, e recorda ao governador Carvalho Viegas que onde se põe uma igreja também se deve pôr uma mesquita. Algo mudará nos anos seguintes, com o Ato Missionário, em consequência da Concordata de 1940, mas serão os italianos a aparecer com mais força, como se sabe.

Um abraço do
Mário



Acerca das missões religiosas na Guiné, década de 1930

Mário Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, com o n.º Res1-Est145, Pasta P-N.º9 consta um relatório assinado pelo Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, Jorge Frederico Torres Vellez Caroço, com data de 19 de maio de 1934, dirigido ao Governador Carvalho Viegas. O assunto tem a ver com as missões religiosas na Guiné e inicia-se num tom um tanto bombástico:
“Serão talvez as minhas palavras a minha sentença de morte como elemento de ação funcional nesta colónia, mas não importa, pois que, acima dos interesses pessoais e dos interesses de coletividade estão os da Nação. Abordo, Sr. Governador, o problema das Missões Religiosas.
Tem colhido benéficos resultados para a colónia vizinha a ação desenvolvida pelos seus missionários e o seu cuidado vem sendo tal que têm educado e feito missionários indígenas – conforme em tempos idos em Portugal se praticava – entre os quais se contam um Felupe e um Manjaco. Sabe V.ª Ex.ª quem são estes dois indígenas? Um Felupe de Jufunco e um Manjaco da Costa de Baixo. Dois indígenas da nossa colónia. Preferiram estes aos seus próprios indígenas. Sabe V. Ex.ª qual é a língua que estes e outros missionários franceses da região do Casamansa falam aos indígenas da sua própria colónia? O crioulo. Cito até um facto curioso e muito interessante. Em 1932 fez-se em Cacheu uma festa religiosa à Nossa Senhora da Candelária, a santa padroeira daquela vila. Vieram assistir à festa os missionários da colónia vizinha – a pedido dos missionários de Santo António de Bula – e autorizado pelo então vigário-geral nesta colónia, que impôs a condição de os missionários franceses pregarem obrigatoriamente em português e, de facto, tendo um deles subido ao púlpito para pregar disse o seu sermão em crioulo da Guiné, fazendo-se compreender por toda a gente melhor que os nossos próprios missionários. Mas há mais. Até o catecismo que é distribuído aos indígenas é escrito em crioulo da Guiné. Como eles cuidam de tudo, em que nós nem sequer pensamos…


É desolador, Sr. Governador, entrarmos em território estrangeiro e vê-lo repleto de indígenas portugueses, e a toda a hora nós vemos os missionários nas suas bicicletas percorrendo toda a região sem olharem a perigos. Numa palavra, as Missões Religiosas Francesas cumprem religiosamente a sua missão; as nossas têm até hoje sido nulas ou quase nulas, procurando instalar-se apenas nos grandes meios, ou nos meios mais pacíficos, rodeados unicamente dos indígenas chamados cristãos, desenvolvendo apenas o seu papel de padres e tendo até hoje posto completamente de parte a sua ação missionária e civilizadora. Até em Bula, único meio indígena onde instalaram a sua ação, longe trazer benefícios à colónia, tem trazido inconvenientes.

Caraterizava outrora os nossos missionários o espírito de sacrifício levado ao exagero, ao serviço da Cruz, sim, mas ao serviço da Nacionalidade, carateriza-se hoje o espírito da conveniência e do comodismo, com um desapego quase absoluto pelos interesses da nação, preocupando-se apenas com o que convém à sua comunidade e querendo apenas ser padres. Têm oposto, como V.ª Ex.ª sabe, uma resistência passiva enorme à sua ida para os Felupes e os Bijagós. Para que são necessários missionários em Cacheu e Geba? Para que são necessários três missionários em Bula? Porque não se vão estabelecer nas regiões em que os interesses da Pátria exigem a sua presença? A sua função na colónia não é dizer missa, não é para isso que ela faz o sacrifício de centenas de contos. Se as populações católicas das povoações aonde estão fixados querem padres que façam como se faz na Metrópole, que os mantenham, porque os missionários são necessários para outros fins, e estes não se resumem apenas em aumentar o número de adeptos à religião cristã, circunstância que dentro do importantíssimo papel que lhes compete desempenhar deve ocupar apenas um lugar secundário. Vejamos o que dizia esse grande português e colonial que se chamou António Enes, no seu relatório de 1893: ‘O catolicismo já dispôs de toda a África Portuguesa durante séculos, quando também dispunha de heróis e mártires para o apostolado, quando a espado servia de haste à Cruz, quando eram de oiro as conchas dos batizados, quando se exterminavam povos para lhes salvar as almas, quando os mosteiros eram paços tendo reinos por cercas, e, todavia, da sua propaganda e da sua tutela, servidos pelo poder civil de joelhos, impostas pelas armas quando não logravam fazer-se aceitar pela palavra, ajudados por todas as fascinações da riqueza, só ficaram ruínas pomposas nos sertões e nas crónicas memórias elegíacas de sacrifícios estéreis, ou triunfos efémeros! As ordens religiosas prestaram em África serviços que não se podiam exigir do seu caráter. Ensinaram coisas novas e muitas ciências, revelaram descobrimentos à Geografia, deram valiosos socorros à Política. Mas não deixaram arvorada a cruz senão onde a força ficou de guarda e esse símbolo da religião do amor não entranharam nos espíritos, nos sentimentos, nos costumes dos povos não ficou uma recordação do Cristianismo. Dos milhões de indígenas que batizaram não se gerou um cristão. De tantas conversões de régulos que operaram, não resultou uma única modificação no estado social das raças africanas".

E Jorge Velez Caroço continua:
“Em Portugal apenas se fazem padres e não os padres que nós necessitamos. É uma utopia pensar em aniquilar as crenças religiosas dos indígenas. Mas se o indígena for ao mesmo tempo educado no respeito pela Nação e identificado nas vantagens que do seu domínio resultam para o seu bem moral e material, teremos atingido os fins que a Nação exige, e a religião terá conquistado sempre o mesmo número de adeptos. É, pois, este último, o critério que devemos adotar. Há dias foi o administrador da circunscrição de Suzana procurado em Ziguinchor por indígenas Brames que do nosso passaram para o território francês, manifestaram-lhe a pretensão de voltarem e de se fixarem na área da circunscrição de Suzana, região de S. Domingos, desde que lhe dessem um padre e uma igreja, acrescentando ser grande – algumas centenas – o número de indígenas que tanto desejavam. Só a necessidade absoluta de instalar uma missão em plena região dos Felupes não fosse já indiscutível e imprescindível, a conveniência e a oportunidade de podermos povoar a quase deserta região de S. Domingos, só por si também impõe essa medida, e, assim, Sr. Governador, afigura-se-me indispensável a intervenção do governo da colónia na ação das missões religiosas aqui instaladas, impondo-lhes a obrigação de se fixarem onde os interesses da Nação assim o exigem, visto que a iniciativa com elas pouco os preocupa. As conveniências dos cristãos de Cacheu, Geba e outros pontos nada valem, em face dos interesses da Nacionalidade e obrigarem as missões a cumprirem o seu dever será motivo bastante para que elas amanhã agradeçam a quem as despertou do marasmo.
Pode V.ª Ex.ª com os meios de que dispõe auxiliá-los na construção de casa própria para a sua instalação e uma igreja na região dos Felupes, Suzana ou Varela podiam ser os pontos a escolher. A construção de uma pequena ermida em S. Domingos é também indispensável. Na região de S. Domingos há muitos indígenas que professam a religião muçulmana, e como estes não têm contato algum com aqueles que se aproximam dos princípios da religião cristã – porque o pediram já e porque tanto convém ao repovoamento da região – aconselhável se torna que auxiliemos também a construção de uma mesquita. Assina em Bolama, em 8 de março de 1934, Jorge Frederico Torres Velez Caroço".

Igreja de S. José de Bolama na atualidade
Casas da Rua de São José, na região de Alfândega, Bissau, década de 1890
Bissau na década de 1960, ao fundo a estátua de Honório Pereira Barreto
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22604: Historiografia da presença portuguesa em África (284): História breve da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)