segunda-feira, 13 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23346: Notas de leitura (1455): "Era Uma Vez na Tropa, Rescaldos da guerra em desfile de memórias", por Ireneu de Sousa Mac; Europa Editora, 2022 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2022:

Queridos amigos,

Permitam-me justificar a minha incredulidade face à leitura desta narrativa. Passado meio século, manda a sabedoria do perdão que acompanha os velhos, há ressentimentos, azedumes e horas más que passam para a categoria dos desperdícios. Irineu Mac apresenta-se como uma exceção, di-lo frontalmente: "Toda a guerra depois de finda ainda vive em nós. Uma guerra não acaba enquanto houver um último sobrevivente e enquanto os familiares ou amigos que sofreram danos colaterais tiverem memória. Aqui são retratadas as vivências de um miliciano, em jeito de alter ego, forçado a entrar numa guerra de causas e motivações alheias em condições muito adversas".

 É uma narrativa confessional, onde a guerra propriamente dita e a sua relação com os outros merece escassos parágrafos, no entanto, terá vivido uma experiência bem dura em territórios marcadamente hostis em derredor de Mansoa, foi cofundador e professor na escola regimental de Mansoa, voluntariou-se na escola primária da aldeia na preparação para exames de 4ª classe, são assuntos tratados de raspão, questionamos porquê, numa narrativa onde o timbre é dado pelos tais azedumes e recordações de que a idade nos liberta, tal como ele observa nos encontros de ex-combatentes teimamos nesta bonomia de avançar para o outro de braços abertos.

Um abraço do
Mário



Lembranças da CCAÇ 15 (1970-1971), com amargores e ressentimentos

Mário Beja Santos

É cada vez mais raro encontrar nas obras de cunho memorial sobre a guerra colonial algo que fez parte da 1.ª fase deste ramo literário: os ajustes de contas, a revolta incontida pelos comportamentos militarões, o azedume pelo facto da tropa ter impedido os estudos, a catilinária sobre a absurdez e a perversidade daquelas guerras. A idade e o peso da memória fazem outros escrutínios, é aquela sabedoria em que o fel e a bílis já não têm papel na nossa vida. "Era Uma Vez na Tropa, Rescaldos da guerra em desfile de memórias", por Ireneu de Sousa Mac, Europa Editora, 2022, é uma história pessoal de um furriel miliciano que pertenceu à Companhia de Caçadores Nativos, a 15, sediada em Mansoa. 

Revela que lhe interromperam os estudos, que o mundo desabou à sua volta, estava preste a concluir o 7.º ano de liceu. Quando regressou era uma amostra de si próprio, pesava 54kg com 170cm de altura, já tinha os dois irmãos mais velhos nas penas de África, ainda hoje não consegue esquecer o olhar de despedida e a compaixão de familiares e amigos quando lhe disse que ia para a Guiné. A guerra não acabou para Mac. É a vivência na Guiné que ele vai relatar. Antes, porém, conta-nos que estudou num colégio privado, chegou o dia mais infeliz da sua vida, assentou praça nas Caldas da Rainha, confessa que nunca foi capaz de abrir o baú e deixar que as memórias viajassem pelo mundo fora. Agora, já está mais descontraído, fala-nos da sopa intragável, dos treinos nas serranias laterais ao rio Séqua, estava desarranchado, tinha um companheiro de quarto que acabou por desertar. 

“As atitudes danosas e injustas da tropa, deixaram ao Mac marcas desagradáveis e de aversão, ainda hoje, à flor da mente e dentro da pele”.

Irineu Mac esboçou a arquitetura sobre a forma de diálogos com o amigo, há pergunta e resposta, e depois de se falar em classificações do curso, ei-lo que parte em rendição individual para CCAÇ Nat 15. 

“O mundo de Mac sofre um segundo terramoto. Faliram os projetos, desabaram os sonhos. Nunca mais o futuro se escreveu da mesma maneira”

E parte, em estado lúgubre, em 3 de fevereiro de 1970. Dá-nos a nota de rodapé a composição do quadro de oficiais, sargentos e praças oriundos da metrópole, juntam-se todos em Bolama, onde diz que as condições de vida eram péssimas. E partem para Mansoa, descobre que não pode vir a férias até à metrópole por ter 8 dias de prisão no cadastro, coisas que se passaram em Tavira, tudo má sorte. Tira carta de condução de mota. Foi forçado a ir votar num cidadão qualquer, coisas de eleições do Estado Novo. Conta a história de uma cobra que se escapuliu para um buraco da bota, segue-se um rol de peripécias, mete caça, comida, a vida em Cutia tinha as suas durezas. Não se escapa às considerações erótico-sexuais. Não lhe escapou à memória uma encenação feita para jornalistas estrangeiros, um simulacro de combate na mata, uma autêntica montagem cinematográfica. Há acidentes com armas, fala-se de ataques de abelhas.

Nova confissão, há ressentimentos que pesam: 

“Mac foi impelido para a tropa pela intimação, pela força da lei e dos homens dominados, pela obsessão na qual não navega a razão. Ainda tentei, por duas vias, adiar a tropa para a incorporação seguinte. Em especial porque queria muito concluir o ano letivo. Nunca obtive resposta. Voltei com a guerra às costas. Sem bater à porta, fez-se de convidada, entrou sem autorização e sentou-se à mesa da vida. Enquanto a malária, de febre em riste, entrava pelo postigo, pelas frestas das janelas e pelos interstícios dos telhados. Mas não penses que foi fácil regressar. Inventavam atrasos atrás de adiamentos. Já nos íamos adentrando pelo 25.º mês e ainda não tínhamos sido substituídos. Quanto mais o tempo passava, mais o medo aumentava e a coragem e a vontade de arriscar escasseavam. Ninguém queria morrer ao quebrar da onda na areia”.

Há referências esporádicas a operações, patrulhamentos, situações de fogo cruzado. E vem a história de Zé Mamede que em outubro de 1970 abalou de Mansoa em direção ao seu destacamento, Infandre. Chegou notícia cerca do meio-dia de ter havido uma emboscada entre Braia e Infandre, foi logo gente em auxílio. 17 feridos, 10 mortos, entre eles o Zé Mamede. O alter ego de Mac pergunta-lhe se o Zé Mamede deve ser homenageado enquanto heróis, resposta do Mac: 

“O Zé Mamede não é herói. É uma vítima, mortal, inocente, de estratégias alheias e inconsistentes das ideologias reinantes. O Zé é uma vítima de ambições de grandeza desproporcionadas, ultrapassadas e nefastas. O Zé é uma vítima da ambição errónea e condenável de outros. Da opção do orgulhosamente sós”.

Mais adiante, sentencia: 

“Jamais psicólogo algum ou alguma psiquiatria salvará do trauma a quem matou mesmo para sobreviver”.

O alter ego de Mac tem acesso à sua correspondência: 

“A solidão é a minha companheira. Oh esperança, não me abandones! Fica comigo. Agora. Alimenta e alenta a minha vida em frágil equilíbrio sobre o gume das armas. Agora.”

Escreveu poesia. Em jeito de rememoração, dá-nos a saber que fazia parte da estratégia de Spínola formar companhias de caçadores nativos de elite, Mac integrou uma força operacional, atuou nas matas cerradas. Deu trabalho, mas ao fim daquele tempo todo, foram metidos num avião, regresso a Lisboa. Ficamos a saber que entre a tropa metropolitana e os soldados africanos houvera solidariedade devido à luta vital conjunta que se travava. E descreve demoradamente as peripécias do regresso. Confessa ao seu alter ego: 

“Não tenho estátua, mas tenho um louvor e uma insígnia. Não me perguntes como nem porquê. Nem sei bem responder. O que posso garantir é que, decerto, não foi pela minha valentia ou por qualquer ato de heroísmo. Acredito que possa ter sido por me voluntariar a instaurar uma escola regimental para os soldados africanos aprenderem a ler. E isso bastou-me para obter benefícios propinários, deu-me direito a isenção de propinas extensível aos filhos. Cumpri deveres porque me sujeitei a eles. Também não abdiquei daquele direito. Contudo, preferia não os ter tido”.

Despede-se do leitor, desta vez sem azedumes nem ressentimentos:

“A guerra tira, mas também dá. Enobreceu em nós o espírito de entreajuda e o sentido da amizade. Continuamos unidos pela amizade construída sobre a solidariedade vivida nas matas do Oio, do Olossato, do Morés, do Changalana, do Locher. Eu sei que, ainda hoje, essa união se mantém na trajetória de muitos ex-combatentes. Eu sei porque tenho observado muitos dos seus almoços-convívios. Paro, sempre extasiado pelos abraços emotivos que vejo”.

Vista parcial do destacamento de Cutia. Foto: César Dias, com a devida vénia
Localização do destacamento de Cutia

Crachá da CCAÇ 15

Estandarte do CCAÇ 15
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23341: Notas de leitura (1454): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23345: Humor de caserna (55): O anedotário da Spinolândia (VI): no Cumbijã ouvi o nosso general a utilizar mais do que uma vez "a palavra que imortalizou Cambronne", para recriminar um oficial superior (Vasco da Gama, ex-cap mil cav, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74)


Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74) > Da direita: para a esquerda, o cap mil  cav Vasco da Gama, o general Spínola, o cap inf José Malheiro,  da CCaç 3399, de Aldeia Formosa, e o  comandante do BCaç 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73). Spínola visitiu três vezes a CCAV 8351 (em Aldeia Formosa, Cumbijã e Nhacobá). 

Foto (e legenda): © Vasco da Gama (2009). Todos os direitos reservados Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. É uma boa história, um bom naco de humor de caserna, que nos ajuda a compreender melhor  a personalidade e a conduta do gen Spínola enquanto foi comandante-chefe e governador geral da Guiné, entre meados de 1968 e meados de 1973.

Foi contada aqui há mais de 13 anos pelo comandante dos Tigres do Cumbijã, cap mil cav  Vasco da Gama, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74), os bravo de Nhacobá. 


Visita do General Spínola a Cumbijã em 14 de abril de 1973

por Vasco da Gama


Vasco da Gama
(...) Terminei o último capítulo da história da minha Companhia com o relato de um ataque ao arame no dia 9 de Abril de 1973, a um arremedo de aquartelamento que era o Cumbijã: duas fiadas de arame farpado, quinze ou vinte tendas de campanha, valas para protecção de eventuais ataques e uma cozinha de campanha. (...)

No dia 14 de Abril de 1973, mais uma vez recebemos a visita do General Spínola.

Parei este texto neste parágrafo, vai para mais de quinze dias. Problemas da vida pessoal, mas fundamentalmente o medo de não saber expressar, ou fazê-lo de forma menos correcta, os sentimentos acerca do General Spínola, homem controverso que suscitou, e pelos vistos continua a suscitar, sentimentos de amor e desamor, tão depressa acusado como louvado, que na guerra tentava encontrar soluções ou pela via diplomática junto de Senghor, ou invadindo países vizinhos, como aconteceu com a Operação Mar Verde, autor de "Portugal e o Futuro" (mais vale tarde que nunca), abandonando o Guileje ou pelo menos não lhe dando hipóteses de uma defesa racional, recusando o convite de Marcello Caetano para ministro do Ultramar em finais de 1973, recusando-se também e juntamente com o General Costa Gomes a fazer parte da Brigada do Reumático que foi prestar vassalagem a Caetano. 

Este homem, que foi também o primeiro Presidente da República,  após o dia da libertação – 25 de Abril de 1974  , este homem heterodoxo, será no decurso da história que vou escrevinhando acerca da minha Companhia, analisado apenas e só através de um discurso substantivo que se limitará a descrever a vivência que os Tigres do Cumbijã com ele tiveram.

No dia 14 de Abril de 1973 recebemos então a visita do General Spínola. Recordo-me da primeira pergunta que me fez:

−É do quadro ou miliciano?

Recordo-me da resposta imediata e eventualmente atrevida que lhe dei:

− Neste buraco?… Sou miliciano.

Vi nele o esboço de um sorriso, seguido de nova questão:

− Falta-lhe alguma coisa?

− Tudo |

− Tudo, o quê?

Seria fastidioso continuar esta conversa em discurso directo, pelo que os meus camaradas e amigos que são conhecedores das condições desumanas em que vivíamos, facilmente adivinharão o que durante alguns minutos lhe fui solicitando: 
  • cimento para construirmos casernas;
  • chapas de bidão cortadas;
  • apoio da Engenharia para que as coisas andassem mais rapidamente;
  • arcas frigoríficas a petróleo, pois não tínhamos direito a uma cerveja fresca;
  • um gerador;
  • e obuses, já que o apoio da artilharia quando éramos atacados nos era dado ou por Mampatá ou Aldeia Formosa, não tenho a certeza. 

A sua resposta ficou célebre entre os Tigres:

− Terá tudo isso na próxima LDG. Os obuses já estão tratados, o resto, repito, chega a Buba na próxima LDG, incluindo as arcas frigoríficas, nem que tenha de as ir buscar à messe dos oficiais de Bissau.

A parte final da frase obviamente era escusada, mas não imaginam a alegria que todos os soldados, e não só, sentiram ao ouvi-la. 

O General Spínola era exímio neste tipo de tiradas e nunca o ouvi a recriminar nenhum soldado, mas vi-o zangado com um grande do quadro, utilizando por várias vezes no seu discurso a palavra que imortalizou Cambronne (***), apesar da minha presença. 

Visitar-nos-ia ainda em Nhacobá, mas aí não houve tempo para discursos.

Só quero acrescentar que na LDG seguinte o prometido chegou! (...)

[ Seleção / revisão e fixação de texto para efeitos de publicação deste poste: LG]
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Notas do editor:


(***) Pierre Jacques Étienne Cambronne (1770 – 1842), francês, general de brigada do Primeiro Império, 1º Visconde de Cambrone, ficou célebre pelas palavras que terá  proferido na batalha de Waterloo, em 1815, à frente dos granadeiros da Velha Guarda de Napoleão.  Em inferioridade numérica,  cercado pelas pelas tropas do general inglês Charles Colville,  quando instado a render-se, com honra, ficou na história com a sua réplica: "La Garde meurt et ne se rend pas!" (A Guarda morre e não se rende!)... E terá acrescentado:  "Merde!", um típico vocábulo vernáculo dos gauleses... 

A expressão "a palavra que imortalizou Cambronne" (neste caso, "merde")  é um eufemismo, um figura de estilo com que se disfarçam as ideias desagradáveis ou as palavars grosseiras por meio de expressões ou palavaras  mais suaves...

domingo, 12 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23344: Agenda cultural (814): Tabanca dos Melros, 11 de junho de 2022: apresentação do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul" (2021) - Parte I: Intervenção de Luís Graça, representado pelo escritor António Carvalho, ex-fur mil enf, CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74)


Gondomar > Fânzeres > Tabanca dos Melros > 11 de junho de 2022 >  
Apresentação do livro “Memórias de Guerra de um Tigre Azul”,  de Joaquim Costa (Rio Tinto, Lugar da Palavra, 2021, 179 pp). Teve uma assistência na casa das 7 dezenas de pessoas. Da esquerda para a direita, na mesa (*), 

(i) António Carvalho (ex-fur mil enf, CART 6250/72, "Os Unidos de Mampatá", Mampatá, (1972/74), escritor, autor de "Um caminho de Quatro Passos", Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora,2021, 218 pp.,  vive em Medas, Gondomar; representou o nosso editor Luís Graça, de quem leu um texto de apresentação do livro do Joaquim Costa; 

(ii) Carlos Machado, engenheiro técnico, a viver em Lisboa, e ex-furriel dos Tigres do Cumbijã, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74);

(iii) Joaquim Costa, o autor do livro;

(iv) João Carlos Brito, professor, bibliotecário e escritor, em representação da Editora: Lugar da Palavra. com sede em Rio Tinto, Gondomar.

Foto ( e legenda): © Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Os Tigres do Cumbijã 
e os trabalhos de Sísifo

por Luís Graça


Começo por saudar o nosso novo escritor, o talentoso Joaquim Costa, que nos honra a todos, antigos combatentes da Guiné, e em especial a Tabanca Grande, a que ele pertence, com mais 861 camaradas e amigos da Guiné, entre vivos e mortos. E saúdo naturalmente a Tabanca dos Melros que, generosamente, abriu as suas portas para este evento, na pessoa de um dos seus régulos, e nosso anfitrião, o Gil Moutinho.

Uma saudação muito especial para a família do Joaquim, de que ele muito se orgulha (os filhos Ricardo e Tiago, a “minha maior obra”, como ele diz, bem como a sua heroína Isabel e os seus netos).

Um alfabravo (ABraço) para os Tigres do Cumbijã, alguns aqui presentes, a sua “família da guerra”, os seus irmãos de “sangue, suor e lágrimas”, que vieram com o corpo e a alma tatuados com topónimos guineenses que levarão para a cova: Cumbijã, Nhacobá, Colibuía, Aldeia Formosa (hoje Quebo), Buba, Mampatá… 

 Ele é capaz ainda hoje de se lembrar de boa parte dos seus nomes ou alcunhas… Destaque para o Carlos Machado, que veio propositadamente de Lisboa, e que tem algumas divertidas e elogiosas referências no livro, não só pelos preciosos mapas, que levava consigo no mato, para eventuais pedidos de apoio de artilharia (do 2º Pel Art, que tinha 3 obuses 10,5 em Cumbijã), como pelo seu famoso bigode que era um autêntico sensor, capaz de farejar e detetar à distância a presença de inimigos nas redondezas.

Um abraço para todos os presentes nesta sessão, homens e mulheres de boa vontade, que aqui comparecem, e que tomam as necessárias precauções, não baixando a guarda face à maldita Covid que não desarma e continua por aí a fazer estragos.

Um Oscarbravo (OBrigado) ao António Carvalho, outro dos nossos escritores, vizinho do Joaquim, de Mampatá, que aceitou a ingrata mas solidária tarefa de me dar voz, nessa sessão, e de me representar nesta mesa: ainda com um mês de pós-operatório (fiz uma artroplastia total do joelho), e ainda a andar a quatro patas, ser-me-ia muito penoso fazer mais de 600 quilómetros, num só dia, para poder estar nesta festa. 

Recordo que no passado dia 11 de setembro de 2021 tive a honra de estar presente, na Tabanca dos Melros, entre os convidados que apresentaram o livro de memórias do António, “Um caminho de quatro passos”. Amor com amor se paga…

Mas também é com muita pena que não posso estar desta vez, para mais em dia de festa… E começo por recordar e agradecer as palavras calorosas que o Joaquim escreveu na dedicatória autografada no exemplar do livro que me mandou para casa. Cito-o textualmente:

“Para o ‘Pai’ putativo do meu (nosso) livro de memórias de guerra, amigo recente mas já sentado na primeira fila das pessoas que mais prezo. O meu obrigado pelo contributo decisivo no nascimento do meu terceiro ‘filho’, bem como da ‘nota final’. Joaquim Costa, s/d.”

Joaquim: faço aqui uma “declaração de interesses”, não vá qualquer sombra de dúvida ficar a pairar sob o céu da Tabanca dos Melros: a paternidade e a maternidade deste teu “terceiro filho” são todas tuas… Se quiseres ser generoso comigo, aceito ficar na fotografia como uma das várias parteiras-aparadeiras que te ajudaram a ter um parto eutócico, normalíssimo, feliz, não obstante as contrariedades da pandemia de Covid-19.

O livro saiu em dezembro de 2021, sob a chancela da editora Lugar da Palavra, aqui de Rio Tinto, tem 179 páginas, 30 capítulos, e é ilustrado com cerca de nove dezenas de fotos. Felicito o editor, ou representante da editora, João Carlos Brito, aqui presente também. 

E o preço de capa, meus amigos e camaradas, são dois maços de cigarros. A vantagem é que o livro faz bem à alma e os cigarros fazem mal à saúde. A mortalidade atribuível ao tabaco, num só ano, é superior à mortalidade por todas as causas (combate, acidente e doença) devida à guerra colonial, nos longos 13 anos em que decorreu (10 mil mortos, nos vários teatros de operações).

Em boa hora, e ainda em plena pandemia de Covid-19, o Joaquim começou a pré-publicar alguns excertos (mais de 2 dezenas) do livro que deu à estampa no fim do ano de 2021. Demos um título à série, “Paz & Guerra: Memórias de um Tigre do Cumbijã”… Publicaram-se até à data 27 postes, desde 2 de fevereiro de 2022. (**)

A série publicada no blogue e a versão final, agora dada à estampa sob o título definitivo, não são exatamente iguais. Todos ficámos a ganhar, a começar pelo autor, que, ao expor-se à crítica dos leitores, muitos deles antigos combatentes, receberia em troca cerca de duas centenas de comentários “a quente”.

E mais: teve mais de 3700 visualizações diretas, isto é, leitores, que propositadamente carregaram num ou mais mais links dos postes da série… O que quer dizer que o seu livro já foi lido, “on line”, por algumas centenas de pessoas…

Interessante este “making of” do livro… O que seguramente ajudou a melhorar a sua versão final.

Cabe-me enquanto fundador e editor do nosso blogue, saudar e engradecer este livro de memórias que vem enriquecer o património literário e documental da Tabanca Grande, que é uma tertúlia virtual centrada na experiência de uma guerra, a guerra colonial (1961/74), e em particular a da Guiné, sendo porventura a maior tertúlia do género, em português, quer pelo número de visualizações do blogue (cerca de 13,5 milhões, desde 2004, fora a página do Facebook) quer pelo número dos seus membros registados (= 862) quer ainda pelo volume de memórias partilhadas (mais de 23300 postes). Memórias mas também afetos. E este livro do Joaquim é sobretudo um livro de afetos.

O Joaquim Costa é mais um talento literário que o nosso blogue veio revelar, com a particularidade de, sendo um bom minhoto,  natural de Vila Nova de Famalicão, a terra adotiva do autor de “A Brasileira de Prazins”, a sua prosa ter também belos nacos do português camiliano, a começar pela ironia, o pícaro, o humor e até o sarcasmo, tão bem patentes na reconstituição de algumas das suas memórias de infância e na evocação da sua família, bem como na descrição de cenas da vida castrense (a tropa e depois a guerra), cenas por que passámos muitos de nós, antigos combatentes aqui presentes, e que vivemos tão intensamente, das Caldas da Rainha até Bissau.

Perpassa pelo livro um subtil mas corrosivo humor de caserna que funcionou, na Guiné, durante a guerra colonial, em todo o lado, e sobretudo nos piores momentos... Ajudou muitos de nós a sobreviver ao Suplício de Sísifo que foi aquela estúpida, penosa, absurda e inútil guerra que nos obrigaram a manter, durante anos, sem solução, militar e sobretudo política, à vista… Até que se chega à tarde do dia 26 de Abril de 1974… 

Os rumores de um golpe de Estado em Lisboa, já transmitidos pela “Maria Turra” (a voz mais famosa, e quase familiar, da Rádio Libertação, do PAIGC, que emitia a partir de Conacri), são confirmados por um camarada. Escreveu o Joaquim:

“ (…) Na tarde do dia 26, vinha eu com a minha cerveja e o meu Norte Desportivo na mão, quando o Martins se vira para mim e me diz, de forma perentória: Costa!, há mesmo ‘merda’ em Lisboa” (…) (pág. 154 )….

Com tanta excitação, o autor só se viria a lembrar do seu 24º aniversário (que foi a 27 de abril de 1974), uns dias depois, já nos princípios de maio…

O aquartelamento do Cumbijã (antiga tabanca abandonada nos primórdios da guerra), como muitos outros pela Guiné fora, do Cachil à Ponta do Inglês, de Gandembel a Mansambo, foi construído, a pá e a pica, a enxada e a motosserra, sem ajuda de máquinas e homens da Engenharia Militar… num esforço hercúleo, sobre-humano, um verdadeira epopeia que noutro país qualquer daria uma fabuloso filme...

Não é gratuito evocar-se aqui os trabalhos de Sísifo. Recorde-se que, segundo a mitologia grega, os deuses condenaram Sísifo a fazer rolar uma grande pedra de mármore, com suas próprias mãos,  até ao alto de uma montanha.... Uma vez alcançado o cume, a pedra rolava novamente pela encosta abaixo até ao ponto de partida, movida por uma misteriosa força irresistível. Tratava-se de uma condenação até à... eternidade!...

Por essa razão se diz que todas as tarefas que envolvem esforços gratuitos, inúteis e absurdos são trabalhos de Sísifo... A estrada (asfaltada) de Mampatá a Nhacobá, e que vinha de Buba e devia chegar a Mejo, fundamental para neutralizar a “corredor da morte” ou “corredor de Guileje” (também chamado, pelo outro lado, “caminho do povo”, “caminho da liberdade”) não chegou a ser concluída, com o fim da guerra… Foi um verdadeiro trabalho de Sísifo, tal com a ocupação de Cumbijã, Colibuía e Nhacobá….

O Joaquim escreveu um livro com uma parte da sua história de vida, dos seus verdes anos, história que é também a de muitos de nós, e fez questão dedicá-lo aos que o amam e o estimam. A sua narrativa tem momentos portentosos sobre a epopeia de Cumbijã e de Nhacobá, os seus bravos e as suas vítimas, os seus momentos mais dramáticos e trágicos.

Um dia, quando fizermos uma antologia dos nossos melhores textos, o seu testemunho, na 1ª pessoa, sobre a Op Balanço Final, a conquista e a ocupação de Nhacobá (17-23 maio 1973), por exemplo, terá que lá figurar, com toda a justiça.

A historiografia militar, a começar pelos livros da CECA – Comissão para o Estudo das Campanhas de África, pode, em meia dúzia de linhas secas, telegráficas, resumir aquela “guerra de baixa intensidade”, num contexto, altamente desfavorável a Portugal e às nossas forças armadas, contexto diplomático e geopolítico marcado pela guerra fria e o fim dos impérios, mas também pela crise económica de 1973 e a crescente contestação do Estado Novo, com o fim expectável do marcelismo. Não foi, em todo o uma guerra para “meninos de coro”, como todas as guerras...

Faltará sempre, à escrita do historiador, o nosso "sangue, suor e lágrimas", que no nosso tempo, na Guiné, não foi uma figura de retórica. E é bom que os nossos filhos e netos saibam, por fim, que ali não fizemos só a guerra mas também a paz. E que nenhum de nós escapou ao terrível dilema de matar ou morrer, incluindo os problemas de consciência que a violência armada impõe a qualquer ser humano.

Também, este livro tem belos apontamentos de grande lirismo em que o autor consegue abstrair-se da guerra e dos seus horrores ( as minas, as emboscadas, as flagelações, os ataques, o sofrimento físico e psíquico…), e ver beleza naquela terra e naquela gente, a começar pelas as lavadeiras (obrigatório ler e reler o cap. 11, “as nossas lavadeiras… e o furriel Pequenina, pp. 75 e seguintes).

Sem poder esquecer as intermináveis noites em que ficou emboscado na frente dos trabalhos de construção da estrada para Nhacobá, o Joaquim soube tirar algum prazer e encantamento da fruição da natureza. Vou citá-lo (vd. pág. 83):

  • “as noites escuras com o fresco do cacimbo limpando o suor dos 40º do dia, deixando-nos inebriar pelos sons da floresta húmida, ouvido os macacos ao longe e o ‘piar’ de uma ou outra ave;
  • “as noites de trovoada contínua, que nem nas festa da Sra. da Agonia, fazendo-se dia com as descargas elétricas violentas, de uma beleza indescritível;
  • “as noites de luar, lindas e quase românticas…, sublimando os pensamentos nas nossas namoradas ou madrinhas de guerra;
  • “as noites das primeiras chuvas que nos limpavam o corpo e a alma com o agradável cheiro a terra africana”…

Apesar de se sentirem permanentemente vigiados pelo inimigo, aos “Tigres do Cumbijã” ninguém lhes podia roubar aquele momento inefável da manhã: “ de manhãzinha, com banho tomado e roupa lavada e já seca, não disfarçávamos a alegria, ao vermos chegar a coluna com os dois grupos de combate que nos vinham substituir” (pág. 83).

Estamos gratos ao Joaquim por dar voz a muitos combatentes, não só do nosso lado, mas até do outro lado, que nunca tiveram nem terão oportunidade de escrever, e muito menos de publicar, sob chancela editorial, as suas “vivências” e “memórias doridas” (e algumas até boas) daquela guerra e daquela terra (que, estranhamente, acabou por ficar no nosso coração, contagiando até os nossos filhos, o Tiago Costa, o João Graça, e tantos outros).

E o problema é que muitas memórias vão morrer connosco...E por cada um de nós que morre, é um livro que não se escreveu…

Não quero acabar esta nota de apresentação sem referir os sucessivos “murros no estômago” que, metaforicamente falando, o autor evoca no seu livro, a começar pelo inevitável batismo de fogo, as primeiras minas e emboscadas, o primeiro morto...

Na realidade, aqueles de nós (e fomos muitos) que passámos por essa dura, trágica, traumática experiência, sabe dar valor às palavras do Joaquim onde há raiva e impotência mas também coragem e dignidade, quando ele fala do primeiro camarada que morre ao seu lado.

O batismo de fogo era sempre uma situação-limite... E cedo aprendíamos que um homem não pode uma guerra sem odiar ...Depois, era como tudo: a guerra (e a morte) banalizava-se, tornava-se uma certa rotina... Mas os "embrulhanços" eram sempre temidos, de um lado e do outro... As balas e os estilhaços das granada ou o sopro das minas (antipessoais e anticarro) não tinham código postal... Era a roleta russa...

Diga-se, por fim, que não é um livro panfletário. Mas, mesmo sem querer fazer juízos de valor sobre a legitimidade, a condução e o desfecho daquela guerra, o autor acaba por nos mostrar, com fino mas cáustico humor, que às vezes acontecia sentirmo-nos como um bando de cegos, comandados por outros cegos, à beira de um precipício.

Felizmente o Joaquim voltou, “são e salvo”, para escrever este livro, o seu “terceiro filho”, e dar mais valor e força à liberdade, à justiça, à paz e à solidariedade.

Joaquim, hoje é um dia importante na tua vida. E seguramente tens motivos de orgulho ao apresentar, oficialmente, na Tabanca dos Melros, o teu livro (que, diga-se de passagem merece uma segunda edição, revista, aumentada e melhorada).

Luís Graça, sociólogo, editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. (**)
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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 4 de junho de 2022> Guiné 61/74 - P23325: Agenda cultural (813): Afroencontro: fusão euroafricana de sonoridades... Camones CineBar, Bairro da Graça, Lisboa, sábado, 4 de junho, 21h00: Mamadu Baio, Avito Nanque, Sanassi de Gongoma e João Graça

sábado, 11 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23343: Os nossos seres, saberes e lazeres (507): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (54): Os jardins esplendentes do Palácio Nacional de Queluz - 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Se é facto que o Palácio Nacional de Queluz tem em si muito para ver, lá fora estão os jardins, elaborados para cenário de festas da Família Real, qualquer coisa como 20 hectares da antiga Quinta Nacional de Queluz, circundando o palácio fica-nos o assombro de constatar como estes jardins formam unidade com o edifício, não foi por acaso que as fachadas palatinas se prolongam em jardins de aparato, e assim podemos ir ao antigo jardim botânico, passar pelo jogo da pela, deambular pela Cascata Grande, o Lago das Conchas, o Jardim de Neptuno, o Lago da Nereida, passar pelo Pórtico da Fama, descer ao Canal dos Azulejos, daqui contemplar as Escadaria dos Leões e o Pavilhão Robillion, enfim, então pode dizer-se que a visita ficou quase completa, e diz-se quase porque ainda não se visitou o palácio, fica feita a promessa que em breve acontecerá.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (54):
Os jardins esplendentes do Palácio Nacional de Queluz – 3


Mário Beja Santos

Não há visita ao Palácio Nacional de Queluz que não culmine por passear pelos belos jardins, aliás ao percorrermos a Sala do Trono, a Sala de Música ou a Sala dos Embaixadores, é inevitável não darmos uma espiada sobre o Jardim de Malta, as estátuas de John Cheere, a magnificência dos jardins superiores, descer ao Canal de Azulejos, visitar a Alameda do Lago das Medalhas, passar pelo Pórtico da Fama e a Cascata Grande. É, o que de certo modo, e com muita satisfação, se pretende mostrar ao leitor.
Pan com a sua flauta e o seu especial sorriso malicioso
Quem percorre a região das estufas, todas elas recuperadas, contempla uma bela azulejaria onde se acolhem canteiros, o que há de mais surpreendente é que o motivo é sempre igual e nunca cansa, tal a festividade do colorido.
A estufa de ananases

Já se observou que esta Quinta Real de Queluz tinha três tipos de espaços verdes: a zona agrícola, o parque e os jardins superiores, funcionando como prolongamento dos salões do palácio. Depois do Jardim da Malta, temos os Jardim Pênsil ou Neptuno. Descendo, à esquerda e ao fundo podemos ir visitar as estufas e a Cascata Grande. Por ora queremos mostrar o Canal de Azulejos, uma das obras mais notáveis do Palácio Nacional de Queluz. Foi construído por volta de 1756, tinha por objetivo canalizar o curso da ribeira do Jamor, mas foi preciso recorrer à abertura de minas e à construção de aquedutos e reservatórios. Montou-se um sistema de comportas de ferro, a água era represada, durante o verão, de modo a encher todo o canal formando um extenso lado artificial que permitia aos membros da Família Real aqui andarem de barco. Interiormente o canal era revestido de azulejos azuis e brancos. Como iremos ver, os temas tratados são diversos: torres, castelos, galeões e bergantins, portos de mar, paisagens. No exterior, as paredes estão recobertas de painéis azuis solares, policromados, basta ver a imagem seguinte, os temas decorativos agora são diferentes: cenas galantes, palacianas e de caça.
Exemplos do revestimento azulejar exterior do Canal de Azulejos
Exemplos do revestimento interior do Canal de Azulejos. No início do século XX, o rei D. Carlos ou a rainha D. Amélia incumbiram dois artífices de restaurar os azulejos do canal. Por essa altura foram colocados ao longo do canal vasos de faiança azul e branca e que são réplicas dos que se encontram no Jardim Pênsil. Ao longo do percurso da ribeira do Jamor foram plantadas amoreiras. O aproveitamento lúdico do canal e dos espaços envolventes levou a que existisse na parte central do canal uma casa de música.
Antes de percorrer a Alameda do Lago das Medalhas temos este elegantíssimo lago e a estátua de Caim matando Abel
Segundo se crê, esta alameda constituiria o eixo central a partir do qual teriam sido estruturados os jardins da casa de campo dos marqueses de Castelo Rodrigo, herdeiros de Cristóvão de Moura, o primeiro proprietário da Quinta de Queluz. É a alameda mais extensa destes jardins, tendo o seu arranque no largo onde se encontra o conjunto escultórico, que vimos na imagem anterior, da autoria de John Cheere, Caim matando Abel. É um percurso que termina no Tanque do Curro, antes passasse pelo Lagos das Medalhas e pela Fonte de Neptuno
Andando pelo Canal dos Azulejos temos em frente a Escadaria dos Leões e o Pavilhão Robillion. Por aqui se fazia o acesso principal ao Palácio de Queluz, sendo os visitantes conduzidos depois à Sala dos Embaixadores. Não deixa de surpreender a forte componente cenográfica, é uma escadaria de três lances divergentes, forma como Robillion encontrou solução para resolver o problema do desnível de cotas entre o palácio e a parte baixa do jardim, atenda-se à grande elegância da escadaria, à decoração com vasos de flores e estátuas de pedra.

Assim se põe termo a este percurso um tanto à la minuta pelos jardins, não se visitaram as hortas nem se contemplou a Cascata Grande nem se entrou no Pavilhão de D. Maria, hoje residência dos chefes de Estado estrangeiros em visita oficial a Portugal (foi no passado a residência de verão de Marcello Caetano). Fica para a próxima, ainda não se visitou, com o desvelo necessário, o interior do palácio, é um itinerário que já está em agenda.

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Nota do editor

Último poste da serie de 4 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23324: Os nossos seres, saberes e lazeres (506): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (53): Os jardins esplendentes do Palácio Nacional de Queluz - 2 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23342: Estórias do Zé Teixeira (51): Há festa na Tabanca (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Xitole, 2013 > Festa de casamento para a qual o José Teixeira fora convidado
Foto: © José Teixeira

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, QueboMampatá e Empada, 1968/70) com data de 10 de Junho de 2022, trazendo-nos mais uma das suas belíssimas estórias:


Há festa na Tabanca

Naquele princípio de noite de quinta-feira, o alferes notou que algo de anormal estava a ocorrer na tabanca. Do Iero, apenas recebera um alegre sorriso, quando o interpelou sobre o que estava acontecendo com a população. As mulheres andavam num algaraviado rodopio, as bajudas passaram a tarde no “cabeleireiro” apresentando-se com belos e inabituais penteados, os homens, como de costume, tagarelavam animadamente debaixo ao majestático poilão, que o alferes já fora tentado a abater, pois considerava que era um excelente ponto de mira para o inimigo e se ainda não o destruíra foi pelo respeito que lhe merecia aquela simpática gente. A sua frondosa sombra era a sala de honra onde os homens grandes se reuniam e tomavam as decisões importantes para a vida comunitária local, o salão de festas comunitário, a escolinha onde as crianças, sentadas no chão, ouviam o mestre, na sua aprendizagem corânica.

Ao apreciar esta azáfama deixou-se invadir por um sentimento de felicidade. A sua tabanca estava viva e ativa. Adorava aquela gente, o seu calor humano, os sorrisos que recebia e lhe preenchiam a alma. Havia um inimigo por perto que a todo o momento podia surgir e quebrar aquela harmonia, pelo que se decidiu a visitar, ao cair do sol, todos os abrigos e postos de sentinela e recomendar aos seus homens uma especial atenção para a noite que se aproximava. Como era seu hábito, ficava uns minutos largos numa silenciosa cavaqueira com cada militar em serviço de vigia e proteção, pelo que recolheu ao seu leito, um pouca tardiamente, depois de se refrescar à moda fula, com umas latadas de água colhida no bidon que tinha à porta da casa.

Sexta-feira, manhã cedo, foi acordado por uma voz feminina que o chamava docemente. Aferes! Alferes, vem, quero falar contigo!
Não reconheceu a voz de quem o estava a chamar. Olhou para o relógio, eram sete horas. Voltou-se para o outro lado e deixou-se ficar decumbente a saborear a manhã que se avizinhava bem cálida. Mas a voz insistiu; alferes! alferes, vem falar comigo! Sou a Djubae, a mãe do Adulai, o teu menino.

Levantou-se célere, enfaixou-se na toalha de banho e abriu a porta. Habitava uma casa típica local que lhe fora cedida pelo Iero. As paredes em cana entrançada recobertas de barro vermelho, encaixavam-se num chão térreo cobertas de palha de capim, que ladeava a casa até a um metro do chão providenciando ao espaço interior uma agradável frescura. Inclinou-se para passar a umbreira da porta e deparou com a Djubae toda aperaltada, com bonito vestido que lhe realçava a juventude e a beleza, com um lenço de seda pura na cabeça. Impulsivamente deixou-se espreguiçar enquanto o pensamento lhe devolvia o que tinha apreciado na tarde anterior e pensou: a festa vai continuar… que se passará com esta gente, meu Deus!?

- Alferes, o Adulai vem convidar-te para a sua festa!
- Que festa? Questionou, esfregando os olhos ensonados a precisar de uma chapada de água fresca para acordar.
- Hoje, a tabanca tem festa grande. Allah, louvada seja Ele, deu o dom da vida ao meu menino. Vem visitar-nos o grande Cherno Rachid para fazer oração a Allah o misericordioso, louvado seja Ele. Queremos que venhas à festa do Adulai, disse, num ato repentino como que a despejar um recado que lhe avassalava o coração e se atrofiava na garganta.
- Hum! Mas… O Cherno Rachid vem cá e vocês não me informaram para eu criar condições de segurança. Vou ter uma conversinha com o Iero!
- Tem calma alferes, o Aldje Cherno Rachid pode viajar por toda a Guiné sem risco de vida. É muito respeitado, até pelos bandidos que estão no mato. É um escolhido de Allah e só Allah é Deus protetor e misericordioso, disse calmamente, enquanto pegava na mão do alferes e a encostava ao seu coração.
- Djubae! Djubae! Faltavas tu para prenderes ainda mais o meu coração a esta terra maravilhosa, a esta gente de coração puro, que não merece a pouca sorte a que está votada. Maldita seja a puta da guerra! Vociferou aturdido pelo mavioso convite que acabara de receber. Uma lágrima libertou-se do seu coração e escorregou-lhe pela face duramente queimada pelo agreste sol africano. Lágrima que a Djubae recolheu religiosamente na manga do seu vestido domingueiro.
- Vai, disse meigamente o alferes, beijando ternamente a mão da Djubae. Eu não demoro. Quero alimentar-me do vosso júbilo, da vossa enorme vontade de viver. Vai, minha querida!

…E chegou a hora da festa, chamemos-lhe de batizado, para melhor compreendermos o grande significado que tem para este povo, a entrada na comunidade de uma nova vida.
Xitole, 2013 > Festa de casamento
Foto © José Teixeira

Em tempo de guerra não é aconselhável usar o “bombolom” ou os “tam tam” para fazer o aviso e lançar o convite para a festa. Todavia, a tabanca enchera-se de caras que o alferes Barbosa não se lembrava de ter visto por ali. Os homens da terra e das tabancas vizinhas, vestidos de longa batina branca, com a cabeça coberta, solenemente sentados à sombra do poilão aguardavam a chegada do idolatrado Cherno Rachid, emblemático líder religioso a quem toda a Guiné muçulmana independentemente da opção político-militar, se curvava em respeito pelos seus profundos conhecimentos corânicos e pela sua forma de ser e estar no quotidiano da vida. Esta forma de viver tornara-o no homem de Deus mais respeitado em toda a Guiné e até países limítrofes, a quem o governador da província se inclinava com respeito e ousava consultar sobre os grandes problemas. Pelas mesmas razões era respeitado pelo bureau político da PAIGC e considerado intocável, pelo que se movia em paz pelas meandrosas picadas da Guiné, sem correr riscos de vida.

As mulheres grandes, aformoseadas nos seus trajes típicos, linguarejavam ruidosamente, sempre com o olho fixo na picada de onde surgiria o homem de Deus, enquanto a juventude se divertia a seu modo aguardando o momento mais solene.

O alferes José Barbosa sentado em lugar de honra no meio dos homens, ao lado do felizardo pai do Adulai, ouvia as conversas em linguagem crioula sobre o passado, o presente e o futuro da Guiné, tentando, nos seus parcos conhecimentos linguísticos locais, compreender de que falavam. O sentimento que tivera de se sentir a mais naquele meio desvanecera-se rapidamente. Sentia-se envolvido por um ambiente de bem-estar. Era como se fosse um filho da terra. Um estranho filho da terra.

Ao verem ao longe, no carreiro, a onda branca com o séquito do clérigo, gerou-se um alvoroço espontâneo:
- Dois jovens, engalanados com os mais belos trajes e pinturas guerreiras pelo corpo, munidos de estridentes assobios e braceletes musicais, agarraram os seus tambores, o djembé e o bougarabou, e prepararam-se para iniciar a festa.
- Quatro bajudas entre elas a Binta, aproximaram-se dos pilões e tomaram nos macetes, colocando-se em posição de começar a ação de pilar do arroz.
- O artista convidado afinava o Kora, um instrumento musical feito de madeira ou bambu com ranhuras transversais e uma caixa de ressonância obtida de uma cabaça partida ao meio. Instrumento de origem mandinga que gera uma musicalidade divinal, o que vai dar mais vida à festa do Adulai.
- O recém-nascido vestido apenas com o fato que a natureza divina lhe dera, é colocado no colo do avô, que tira do bolso uma farpa acastanhada de vidro, arrancada, talvez, de uma inútil garrafa de cerveja.
- O açougueiro segura, pelo pescoço, o carneiro que vai ser sacrificado em honra do glorioso, o senhor supremo do Universo, louvado seja Ele. Uma naifa afiada na mão espera pacientemente.
- A mulherada faz então uma longa roda que envolve todo este ambiente, fechado num silêncio espontâneo e expectante. Convidativo à meditação sobre o valor de uma vida. Uma vida humana que nasceu para ser feliz. Merece ser feliz.

O Califa, depois de ser cumprimentado religiosamente pelos presentes, entra no recinto, abre os braços aos céus e começa a orar.
Momento mágico para os olhos e coração do alferes que vê soltarem-se as mãos das bajudas, dos tocadores de batuque, das mulheres, de toda a gente, até do velho avô que começa a rapar com o vidro da gasta garrafa de cerveja, o cabelo negro do bebé Adulai, enquanto o carneiro dá o seu último mééé!

O início da festa que irrompe ritmadamente ao som do bater do pilão, dos toques e assobios dos tamborileiros, acompanhados por dezenas de mãos a baterem palmas, com os corpos a gingarem num frenesim e as vozes num harmonioso coro de louvor a Allah, o Criador. Não faltou o acender da fogueira com a panela devidamente colocada pelas ágeis mãos das cozinheiras de serviço. Tudo num simultâneo festejar da vida do Adulai.

A sonoridade do macete a bater no pilão, alimentado pela cantilena mais linda, que o alferes jamais ouvira, ritmada pelo bater de palmas das suas jovens manobradoras numa cadência alucinante, com os seios, o mais belo símbolo da sua feminilidade, a acompanharem o bailado, revolvendo-se majestaticamente nos seus bronzeados corpos a pingar longas gotas de suor. Um espetáculo divinal, a que aqueles sons arrancados vigorosamente do fundo dos tambores, alimentados pela musicalidade do kora, com o seu toque especial, davam vida e cuja mensagem não conseguia interpretar. Tudo isto transporta o alferes Barbosa ao seu Portugal, à sua terra, entre o Douro e o Minho das desfolhadas, dos bailaricos animados pela viola e pela concertina, das cantigas ao desafio, deixando-o por momentos perdido na saudade que o devorava.

Procurou o olhar da Binta, mas não o encontrou. Queria suavizar a dor que lhe ia na alma, lado a lado com a alegria de estar ali, a viver com o seu povo (assim o considerava) uma festa tão linda. Precisava de esquecer, nem que fosse por momentos, a sua aldeia natal, nos braços da mulher africana que lhe prendera o coração.
A Binta, sentia-se aturdida. Faltava-lhe o seu Braima, que tantas vezes animara festas como esta. “Agredia” o pilão com a raiva desmedida, enfiada dentro dela, cantando sem nexo. O seu coração bailava longe dali. Como ela adorava tê-lo por perto, para lhe transmitir num olhar sereno todo o afeto que lhe enchia a alma. Talvez não estivesse distante assim, pensou, tentando consolar-se. As boas notícias voam rapidamente… perdeu-se no ritmo da festa e continuou a cantarolar, olhando de través para o alferes de quem gostava, mas não se prendia de amores. A vida continuava, mesmo com seu o Braima escondido na mata, não a podia perder.

E assim se passou a manhã, enquanto as mulheres e bajudas davam o seu passo de dança típica e se libertavam dos maus irãs, os homens alinhavam em conversas soltas, até que chegou a hora do almoço. Homens a um lado, mulheres a outro, algumas com as suas crianças. Grandes bacias cheias de arroz e pedaços de cabrito envolvidos em saboroso molho de chabéu, são espalhadas no recinto. Aninhados no chão, depois de lavarem as mãos, os convidados banqueteiam-se calmamente conversando de tudo e nada, porque o importante é viver o momento.

Para o alferes reservaram uma pequena bacia de arroz, com a melhor tranche de cabrito e uma colher, que o Barbosa recusou preferindo aninhar-se junto do Iero e partilhar do almoço comum, para alegria dos presentes que o acolheram com um rasgado sorriso de contentamento.

A tarde foi serena. Alguma música e muita conversa. Os visitantes aproveitaram para, em convívio, trocarem ideias, recordarem velhos tempos, projetarem o futuro.
E foram partindo discretamente ante que o sol se escondesse para além da mata.
E chegou a noite. Voltou o silêncio. Voltaram os medos.

O Alferes foi ter com os seus homens. Em cada posto de sentinela uns olhos vigilantes espreitavam o futuro.
Sábado seria um novo dia.

José Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22441: Estórias do Zé Teixeira (50): Amores em tempo de guerra - O sonho da Luisinha (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23341: Notas de leitura (1454): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
O casal Éric e Jeanne Makédonsky dão como explicação de que este acervo apreciável de testemunhos recolhidos junto de intervenientes guineenses, cabo-verdianos e portugueses, entre 1980 e 1982, não foi publicado logo a seguir atendendo a que a aura de que a guerrilha guineense se cobrira de glória, no campo internacional, perdera-se, deixou de haver interesse em acompanhar o fenómeno revolucionário da Guiné-Bissau, entrara-se por um caminho sombrio, a própria investigação, que continuou a fazer-se, perdeu muito do interesse inicial. No entanto, a despeito de que todos estes testemunhos introduzam novidades de maior, a sequência cronológica como se estrutura a obra permite ao iniciado seguir a trama de forma sequencial, do princípio a uma quase atualidade. Tudo começou em estado de tormenta e em tormenta e profunda inquietação prossegue.

Um abraço do
Mário



Assitiram à independência da Guiné, décadas depois publicam livro (2)

Beja Santos

“La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky, L’Harmattan, 2018, é uma obra que forçosamente nos surpreende. Marido e mulher eram jornalistas que permaneceram longamente no continente africano. E abrem o seu livro explicando porquê, só agora, dão à estampa os testemunhos que recolheram décadas atrás. Entenderam os autores que a guerrilha guineense em poucos anos perdeu o furor e o entusiasmo com que eram vistos pelo movimento revolucionário à escala mundial. No entanto, não quiseram deixar de contribuir para que a investigação sobre os acontecimentos relacionados com a independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde perdesse a possibilidade de conhecer os testemunhos de inúmeras personalidades intervenientes, do lado guineense, cabo-verdiano e português.

Após o testemunho dos guineenses (Nino, Paulo Correia, Vasco Cabral, Fidelis Cabral d’Almada) que dão conta da evolução da luta a partir de 1968, fica-se com uma apreciação do quadro político e militar até ao assassinato de Amílcar Cabral. É um dado curioso, atenda-se que estes testemunhos são recolhidos entre 1980 e 1982, do lado cabo-verdiano já há insinuações de compromisso guineense ao mais alto nível. Aristides Pereira chega a dizer quando foi raptado e metido numa lancha cuja marcha foi travada em Boké, ouviu elementos do complô referir nomes de altos dirigentes do PAIGC naturais da Guiné. Mas não diz quais. Refere a reação dos órgãos diretivos e a intensificação da luta. Pedro Pires enfatiza a preparação e execução da operação Amílcar Cabral e as consequências associadas aos mísseis Strela e ao uso de viaturas já no interior do território da Guiné para lançar mísseis sobre os quarteis. Pedro Pires recorda o pedido que fez a Aristides Pereira, então em tratamento em Moscovo, era necessário mais artilharia pesada, canhões 122, novas rampas de lançamento de mísseis GRAD e os temíveis morteiros de 120 milímetros, bem como canhões B10 e de 85 e 76 mm. O Conselho Executivo da Luta dera luz verde para uma ofensiva prevista para os meses de novembro e dezembro de 1974 com blindados T34 e BRDM, isto num quadro em que ainda se desconhecia qual seria a decisão da Organização de Unidade Africana, que tinha apelado à formação de um exército africano para expulsar as forças portuguesas.

Sobre as mesmas matérias do assassinato e da reação político-militar do assassinato de Amílcar Cabral, depõem José Araújo, Manuel dos Santos, Osvaldo Lopes da Silva, entre outros. E seguem-se os testemunhos guineenses de Nino, Vasco Cabral e Fidelis Cabral d’Almada. Uns atribuem o complô a quadros que se tinham marginalizado e que até viviam do roubo, há também quem atribua um papel relevante a Momo Touré e Aristides Barbosa, na época era uma acusação que parecia vingar, ainda não se sopesara tal inviabilidade quando o complô, como se veio a apurar, envolvera centenas de participantes de diferentes perfis. Do lado português irão depor Carlos Fabião, Otelo Saraiva de Carvalho e Carlos Matos Gomes. Fabião nega perentoriamente qualquer envolvimento de Spínola ou das Forças Armadas, mas fica a pairar no ar a possibilidade de uma intervenção completamente fora das regras clássicas de Alpoim Calvão, que ao tempo dirigia um discreto serviço de informações em Lisboa. Mas não exclui uma intervenção da PIDE, a título meramente institucional. Otelo também se mostra persuadido da intervenção da PIDE e recorda que encontrou Alpoim Calvão em Bissau em dezembro de 1972. À distância destes anos todos, estes depoimentos revelam-se profundamente datados, presunções sem mostra de prova.

Chegamos ao 25 de Abril, há um conjunto de depoimentos sobre o que era possível fazer de descolonização da Guiné, como se atuou em 25 de Abril, como se abriram conversações com o PAIGC, etc. Obviamente que os testemunhos cabo-verdianos remetem-nos para a realidade do envio de quadros para Cabo Verde, o modo como tal se processou é contado por Aristides Pereira, Pedro Pires, José Araújo, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva, Julinho e Corsino Tolentino. Do lado guineense, Juvêncio Gomes confirma um depoimento que deu igualmente noutros locais sobre o seu papel de primeiro interlocutor do PAIGC após o 25 de Abril.

Insiste-se que a generalidade destes depoimentos não se reveste de aspetos inovadores. Nino Vieira, a propósito do golpe de 14 de novembro de 1980, repete que existia um quadro persecutório cabo-verdiano e que eram humilhantes para os guineenses os contextos institucionais existentes em Cabo Verde que inferiorizavam a Guiné, segundo Nino, Luís Cabral estava incapaz de ler a realidade. A linha guineense, caso de Fidelis Cabral d’ Almada, não deixará de referir os excessos da polícia de segurança, que gradualmente se tornou um Estado dentro do Estado. Dá-nos um quadro alucinante de uma pseudo insurreição dos antigos Comandos africanos, quando eles vieram do Senegal, aonde se tinham refugiado, apareceram praticamente sem qualquer armamento, quem os chamara dissera que vinham para apoiar Nino para fazer parte de um grande exército nacional, foram presos pela segurança e mais tarde executados.

No final desta recolha de depoimentos e dado que a sua publicação ocorreu em 2018, os autores dão-nos conta do que se passou com todos estes protagonistas: 

  • Fidelis Cabral d’Almada, Ministro da Justiça após o golpe de 14 de novembro de 1980, depois Ministro de Estado na Presidência, deixou a esfera pública em 1996 para se dedicar aos negócios, faleceu em 2002; 
  • José Araújo manteve-se em Bissau até ao golpe de 14 de novembro de 1980, foi para Cabo Verde onde seria Ministro da Educação, faleceu em 1982; 
  • Vasco Cabral manteve-se em funções governativas depois da rutura entre a Guiné e Cabo Verde, já faleceu;
  • Vítor Saúde Maria foi várias vezes ministro, será nomeado Secretário Permanente do PAIGC e membro do Conselho de Estado, faleceu em 2009; 
  • Paulo Correia irá ocupar altos cargos e será detido em 1986 acusado de tentativa de golpe de Estado, sujeito a espancamentos e depois fuzilado; 
  • Juvêncio Gomes será afastado do cargo de Presidente da Câmara Municipal de Bissau após o golpe de 14 de novembro, será depois recuperado e exercerá funções de responsabilidade, incluindo o Ministério do Interior, faleceu em 2016; 
  • Manuel dos Santos (também chamado Manecas) ficará na Guiné-Bissau depois do golpe de Estado e será várias vezes ministro, dedicar-se-á mais tarde aos seus negócios; não deixará de publicamente se insurgir quanto às pensões de miséria dos antigos combatentes, dando o exemplo de um velho combatente, com deficiência, não recebia mais de 21 euros de pensão; 
  • o destino de Nino é bem conhecido, irá gradualmente proceder como um ditador, será afastado do poder após o conflito político-militar de 1998-1999, para espanto geral regressa do exílio português e apresenta-se como candidato presidencial, será eleito, irá entrar em conflito frontal com as chefias militares, será acusado de ter mandado liquidar Tagmé Na Waié e em sua sequência, em março de 2009, morto em sua casa, de forma bárbara.

Reconheça-se que o trabalho de Éric e Jeanne Makédonsky merece realce relativamente à cronologia dos acontecimentos desde a era das independências africanas até ao período pós-independência da Guiné e Cabo Verde. São relatos após a recente rutura entre a Guiné e Cabo Verde, há, como é evidente, alguns indícios de ressentimentos, mas no essencial os testemunhos guineenses e cabo-verdianos mantiveram consistência ao longo de décadas.

Éric Makédonsky
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23331: Notas de leitura (1453): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23340: Lembrete (40): Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, amanhã, dia 11, às 11h00: apresentação do livro do Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74): "Memórias de Guerra de um Tigre Azul" (Rio Tinto, Lugar da Palavra Ed., 2021, 179 pp.)

 





Capa do livro do  Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", que vai ser lançado amanhã, dia 11 de junho de 2022, sábado, pelas 11h00, na Tabanca dos Melros, Quinta do Chouoal dos Melros, ria de Cabanas, 175, 4510-506 Fânzeres.  Apresentação a cargo do editor do nosso blogue, Luís Graça, que se fará representar pelo nosso amigo e camarada, e também ele escritor, António Carvalho.(`*)

O livro "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74". Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp., pode ser pedido diretamente ao autor, através do email jscosta68@gmail.com

O valor é de 10 € (livro + custas de envio), a transferir para o seu NIB que será enviado juntamente com o livro. Não esquecer de indicar o endereço postal.

Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, Os Tigres do Cumbijã (Cumbijã, 1972/74) é natural de V. N. Famalicão. Engenheiro ténico e professor reformado, vive em Fânzeres, Gondomar há mais de 20 anos.



1. Mensagem de Joaquim Costa, ex-fur mil at armas pesadas, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74) (**)


Data - sábado, 4/06, 12:16 (há 6 dias)

Apresentação do livro: Memórias de Guerra de um Tigre Azul

Olá Luís

Espero que essa recuperação esteja a correr pelo melhor.

Estando a aproximar-se o dia da apresentação do meu livro, como tinha prometido, aqui vai a constituição da mesa. Espero que o “bicho” não faça estragos.

Como sabes nunca pensei num plano B, pois a tua presença sempre a coloquei como imprescindível. Obviamente que continuas a ser o homem da apresentação, mas a farda sempre assenta melhor para quem foi feita.

Como tal, não ficaria de bem com a minha consciência se não fizesse um último esforço: O meu camarada, ex Furriel Carlos Machado, que vai fazer parte da mesa, vive em Lisboa e vem no seu carro no próprio dia da apresentação, regressando a Lisboa no fim do almoço /convívio. Ele próprio agradecia fazer a viagem com uma excelente companhia. Pensa nisso!!!

Um grande abraço, Joaquim Costa

Constituição das mesa:

  • Luís Graça - sociólogo e editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, que fará a apresentação do livro . (Na impossibilidade física de estar presente, por razões de saúde, será representaddo pelo escritor António Carvalho, autor de "Um caminho de Quatro Passos",Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora,2021,  218 pp. ex-fur mil enf, CART 6250, "Os Unidos de Mampatá", Mampatá, (1972/74; vive em Medas, Gondomar, e lerá um texto que o nosso editor Luís Graça lhe enviou);
  • Carlos Machado - engenheiro técnico e  ex-furriel dos Tigres do Cumbijã, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74), que dirá de sua justiça, quanto à narrativo do autor e a sua versão dos factos.
  • João Carlos Brito - professor, bibliotecário e escritor, em representação da Editora: Lugar da Palavra
  • Joaquim Costa - o autor.




Guião da CCAV 8351/72

2. F
icha de unidade > Companhia de Cavalaria n.º 8351/72

Identificação CCav 8351/72

Unidade Mob: RC 3 - Estremoz

Cmdt: Cap Mil Cav Vasco Augusto Rodrigues da Gama

Divisa: -"... Na Guerra Conduta Mais Brilhante"

Partida: Embarque em 270ut72; desembarque em 270ut72 |  Regresso: Embarque em 27Ag074

Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 280ut72 a 17Nov72, no CMl,  em Cumeréseguiu, em 19Nov72, para Aldeia Formosa, a fim de efectuar o treino operacional sob orientação do BCaç 3852 e, a partir de 04Dez72, reforçar aquele batalhão e depois o BCaç 4513/72, com a missão prioritária de segurança e protecção dos trabalhos da estrada Mampatá-Cumbijã-Mejo, em cooperação com outras subunidades.

Em 03Abr73, quando os trabalhos da estrada atingiram Cumbijã, deslocou parte dos efectivos para esta povoação, a fim de garantir a segurança e protecção do parque de máquinas de engenharia e a continuação dos trabalhos.

Em 17Mai73, com a realização da  Op Balanço Final, instalou-se temporariamente em Nhacobá, até 26Mai73, após o que ficou em Cumbijã, com a mesma missão anterior.

Em 26Ju174, após substituição em Cumbijã por dois pelotões da CCav 8350/72, recolheu a Buba e depois a Cumeré.

Em 30Jun74, foi colocada em Bissau, onde passou a colaborar na segurança e vigilância periférica da cidade até ao seu embarque de regresso.

Observações - Não tem História da Unidade. Tem Resumo de Factos e Feitos (Caixa n." 128 – 2.ª Div/4.ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág.  520.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de maio de  2022 > Guiné 61/74 - P23245: Agenda cultural (811): Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, 11 de junho de 2022, sábado, 11h00: Luís Graça apresenta o livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul"

(**) Último poste da série > 27 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23301: Lembrete (39): Cerca de 80 participantes no 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca 1968/71 + CCAÇ 1439 (1965/67), que se realiza amanhã, nas Caldas da Rainha