domingo, 12 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23344: Agenda cultural (814): Tabanca dos Melros, 11 de junho de 2022: apresentação do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul" (2021) - Parte I: Intervenção de Luís Graça, representado pelo escritor António Carvalho, ex-fur mil enf, CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74)


Gondomar > Fânzeres > Tabanca dos Melros > 11 de junho de 2022 >  
Apresentação do livro “Memórias de Guerra de um Tigre Azul”,  de Joaquim Costa (Rio Tinto, Lugar da Palavra, 2021, 179 pp). Teve uma assistência na casa das 7 dezenas de pessoas. Da esquerda para a direita, na mesa (*), 

(i) António Carvalho (ex-fur mil enf, CART 6250/72, "Os Unidos de Mampatá", Mampatá, (1972/74), escritor, autor de "Um caminho de Quatro Passos", Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora,2021, 218 pp.,  vive em Medas, Gondomar; representou o nosso editor Luís Graça, de quem leu um texto de apresentação do livro do Joaquim Costa; 

(ii) Carlos Machado, engenheiro técnico, a viver em Lisboa, e ex-furriel dos Tigres do Cumbijã, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74);

(iii) Joaquim Costa, o autor do livro;

(iv) João Carlos Brito, professor, bibliotecário e escritor, em representação da Editora: Lugar da Palavra. com sede em Rio Tinto, Gondomar.

Foto ( e legenda): © Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Os Tigres do Cumbijã 
e os trabalhos de Sísifo

por Luís Graça


Começo por saudar o nosso novo escritor, o talentoso Joaquim Costa, que nos honra a todos, antigos combatentes da Guiné, e em especial a Tabanca Grande, a que ele pertence, com mais 861 camaradas e amigos da Guiné, entre vivos e mortos. E saúdo naturalmente a Tabanca dos Melros que, generosamente, abriu as suas portas para este evento, na pessoa de um dos seus régulos, e nosso anfitrião, o Gil Moutinho.

Uma saudação muito especial para a família do Joaquim, de que ele muito se orgulha (os filhos Ricardo e Tiago, a “minha maior obra”, como ele diz, bem como a sua heroína Isabel e os seus netos).

Um alfabravo (ABraço) para os Tigres do Cumbijã, alguns aqui presentes, a sua “família da guerra”, os seus irmãos de “sangue, suor e lágrimas”, que vieram com o corpo e a alma tatuados com topónimos guineenses que levarão para a cova: Cumbijã, Nhacobá, Colibuía, Aldeia Formosa (hoje Quebo), Buba, Mampatá… 

 Ele é capaz ainda hoje de se lembrar de boa parte dos seus nomes ou alcunhas… Destaque para o Carlos Machado, que veio propositadamente de Lisboa, e que tem algumas divertidas e elogiosas referências no livro, não só pelos preciosos mapas, que levava consigo no mato, para eventuais pedidos de apoio de artilharia (do 2º Pel Art, que tinha 3 obuses 10,5 em Cumbijã), como pelo seu famoso bigode que era um autêntico sensor, capaz de farejar e detetar à distância a presença de inimigos nas redondezas.

Um abraço para todos os presentes nesta sessão, homens e mulheres de boa vontade, que aqui comparecem, e que tomam as necessárias precauções, não baixando a guarda face à maldita Covid que não desarma e continua por aí a fazer estragos.

Um Oscarbravo (OBrigado) ao António Carvalho, outro dos nossos escritores, vizinho do Joaquim, de Mampatá, que aceitou a ingrata mas solidária tarefa de me dar voz, nessa sessão, e de me representar nesta mesa: ainda com um mês de pós-operatório (fiz uma artroplastia total do joelho), e ainda a andar a quatro patas, ser-me-ia muito penoso fazer mais de 600 quilómetros, num só dia, para poder estar nesta festa. 

Recordo que no passado dia 11 de setembro de 2021 tive a honra de estar presente, na Tabanca dos Melros, entre os convidados que apresentaram o livro de memórias do António, “Um caminho de quatro passos”. Amor com amor se paga…

Mas também é com muita pena que não posso estar desta vez, para mais em dia de festa… E começo por recordar e agradecer as palavras calorosas que o Joaquim escreveu na dedicatória autografada no exemplar do livro que me mandou para casa. Cito-o textualmente:

“Para o ‘Pai’ putativo do meu (nosso) livro de memórias de guerra, amigo recente mas já sentado na primeira fila das pessoas que mais prezo. O meu obrigado pelo contributo decisivo no nascimento do meu terceiro ‘filho’, bem como da ‘nota final’. Joaquim Costa, s/d.”

Joaquim: faço aqui uma “declaração de interesses”, não vá qualquer sombra de dúvida ficar a pairar sob o céu da Tabanca dos Melros: a paternidade e a maternidade deste teu “terceiro filho” são todas tuas… Se quiseres ser generoso comigo, aceito ficar na fotografia como uma das várias parteiras-aparadeiras que te ajudaram a ter um parto eutócico, normalíssimo, feliz, não obstante as contrariedades da pandemia de Covid-19.

O livro saiu em dezembro de 2021, sob a chancela da editora Lugar da Palavra, aqui de Rio Tinto, tem 179 páginas, 30 capítulos, e é ilustrado com cerca de nove dezenas de fotos. Felicito o editor, ou representante da editora, João Carlos Brito, aqui presente também. 

E o preço de capa, meus amigos e camaradas, são dois maços de cigarros. A vantagem é que o livro faz bem à alma e os cigarros fazem mal à saúde. A mortalidade atribuível ao tabaco, num só ano, é superior à mortalidade por todas as causas (combate, acidente e doença) devida à guerra colonial, nos longos 13 anos em que decorreu (10 mil mortos, nos vários teatros de operações).

Em boa hora, e ainda em plena pandemia de Covid-19, o Joaquim começou a pré-publicar alguns excertos (mais de 2 dezenas) do livro que deu à estampa no fim do ano de 2021. Demos um título à série, “Paz & Guerra: Memórias de um Tigre do Cumbijã”… Publicaram-se até à data 27 postes, desde 2 de fevereiro de 2022. (**)

A série publicada no blogue e a versão final, agora dada à estampa sob o título definitivo, não são exatamente iguais. Todos ficámos a ganhar, a começar pelo autor, que, ao expor-se à crítica dos leitores, muitos deles antigos combatentes, receberia em troca cerca de duas centenas de comentários “a quente”.

E mais: teve mais de 3700 visualizações diretas, isto é, leitores, que propositadamente carregaram num ou mais mais links dos postes da série… O que quer dizer que o seu livro já foi lido, “on line”, por algumas centenas de pessoas…

Interessante este “making of” do livro… O que seguramente ajudou a melhorar a sua versão final.

Cabe-me enquanto fundador e editor do nosso blogue, saudar e engradecer este livro de memórias que vem enriquecer o património literário e documental da Tabanca Grande, que é uma tertúlia virtual centrada na experiência de uma guerra, a guerra colonial (1961/74), e em particular a da Guiné, sendo porventura a maior tertúlia do género, em português, quer pelo número de visualizações do blogue (cerca de 13,5 milhões, desde 2004, fora a página do Facebook) quer pelo número dos seus membros registados (= 862) quer ainda pelo volume de memórias partilhadas (mais de 23300 postes). Memórias mas também afetos. E este livro do Joaquim é sobretudo um livro de afetos.

O Joaquim Costa é mais um talento literário que o nosso blogue veio revelar, com a particularidade de, sendo um bom minhoto,  natural de Vila Nova de Famalicão, a terra adotiva do autor de “A Brasileira de Prazins”, a sua prosa ter também belos nacos do português camiliano, a começar pela ironia, o pícaro, o humor e até o sarcasmo, tão bem patentes na reconstituição de algumas das suas memórias de infância e na evocação da sua família, bem como na descrição de cenas da vida castrense (a tropa e depois a guerra), cenas por que passámos muitos de nós, antigos combatentes aqui presentes, e que vivemos tão intensamente, das Caldas da Rainha até Bissau.

Perpassa pelo livro um subtil mas corrosivo humor de caserna que funcionou, na Guiné, durante a guerra colonial, em todo o lado, e sobretudo nos piores momentos... Ajudou muitos de nós a sobreviver ao Suplício de Sísifo que foi aquela estúpida, penosa, absurda e inútil guerra que nos obrigaram a manter, durante anos, sem solução, militar e sobretudo política, à vista… Até que se chega à tarde do dia 26 de Abril de 1974… 

Os rumores de um golpe de Estado em Lisboa, já transmitidos pela “Maria Turra” (a voz mais famosa, e quase familiar, da Rádio Libertação, do PAIGC, que emitia a partir de Conacri), são confirmados por um camarada. Escreveu o Joaquim:

“ (…) Na tarde do dia 26, vinha eu com a minha cerveja e o meu Norte Desportivo na mão, quando o Martins se vira para mim e me diz, de forma perentória: Costa!, há mesmo ‘merda’ em Lisboa” (…) (pág. 154 )….

Com tanta excitação, o autor só se viria a lembrar do seu 24º aniversário (que foi a 27 de abril de 1974), uns dias depois, já nos princípios de maio…

O aquartelamento do Cumbijã (antiga tabanca abandonada nos primórdios da guerra), como muitos outros pela Guiné fora, do Cachil à Ponta do Inglês, de Gandembel a Mansambo, foi construído, a pá e a pica, a enxada e a motosserra, sem ajuda de máquinas e homens da Engenharia Militar… num esforço hercúleo, sobre-humano, um verdadeira epopeia que noutro país qualquer daria uma fabuloso filme...

Não é gratuito evocar-se aqui os trabalhos de Sísifo. Recorde-se que, segundo a mitologia grega, os deuses condenaram Sísifo a fazer rolar uma grande pedra de mármore, com suas próprias mãos,  até ao alto de uma montanha.... Uma vez alcançado o cume, a pedra rolava novamente pela encosta abaixo até ao ponto de partida, movida por uma misteriosa força irresistível. Tratava-se de uma condenação até à... eternidade!...

Por essa razão se diz que todas as tarefas que envolvem esforços gratuitos, inúteis e absurdos são trabalhos de Sísifo... A estrada (asfaltada) de Mampatá a Nhacobá, e que vinha de Buba e devia chegar a Mejo, fundamental para neutralizar a “corredor da morte” ou “corredor de Guileje” (também chamado, pelo outro lado, “caminho do povo”, “caminho da liberdade”) não chegou a ser concluída, com o fim da guerra… Foi um verdadeiro trabalho de Sísifo, tal com a ocupação de Cumbijã, Colibuía e Nhacobá….

O Joaquim escreveu um livro com uma parte da sua história de vida, dos seus verdes anos, história que é também a de muitos de nós, e fez questão dedicá-lo aos que o amam e o estimam. A sua narrativa tem momentos portentosos sobre a epopeia de Cumbijã e de Nhacobá, os seus bravos e as suas vítimas, os seus momentos mais dramáticos e trágicos.

Um dia, quando fizermos uma antologia dos nossos melhores textos, o seu testemunho, na 1ª pessoa, sobre a Op Balanço Final, a conquista e a ocupação de Nhacobá (17-23 maio 1973), por exemplo, terá que lá figurar, com toda a justiça.

A historiografia militar, a começar pelos livros da CECA – Comissão para o Estudo das Campanhas de África, pode, em meia dúzia de linhas secas, telegráficas, resumir aquela “guerra de baixa intensidade”, num contexto, altamente desfavorável a Portugal e às nossas forças armadas, contexto diplomático e geopolítico marcado pela guerra fria e o fim dos impérios, mas também pela crise económica de 1973 e a crescente contestação do Estado Novo, com o fim expectável do marcelismo. Não foi, em todo o uma guerra para “meninos de coro”, como todas as guerras...

Faltará sempre, à escrita do historiador, o nosso "sangue, suor e lágrimas", que no nosso tempo, na Guiné, não foi uma figura de retórica. E é bom que os nossos filhos e netos saibam, por fim, que ali não fizemos só a guerra mas também a paz. E que nenhum de nós escapou ao terrível dilema de matar ou morrer, incluindo os problemas de consciência que a violência armada impõe a qualquer ser humano.

Também, este livro tem belos apontamentos de grande lirismo em que o autor consegue abstrair-se da guerra e dos seus horrores ( as minas, as emboscadas, as flagelações, os ataques, o sofrimento físico e psíquico…), e ver beleza naquela terra e naquela gente, a começar pelas as lavadeiras (obrigatório ler e reler o cap. 11, “as nossas lavadeiras… e o furriel Pequenina, pp. 75 e seguintes).

Sem poder esquecer as intermináveis noites em que ficou emboscado na frente dos trabalhos de construção da estrada para Nhacobá, o Joaquim soube tirar algum prazer e encantamento da fruição da natureza. Vou citá-lo (vd. pág. 83):

  • “as noites escuras com o fresco do cacimbo limpando o suor dos 40º do dia, deixando-nos inebriar pelos sons da floresta húmida, ouvido os macacos ao longe e o ‘piar’ de uma ou outra ave;
  • “as noites de trovoada contínua, que nem nas festa da Sra. da Agonia, fazendo-se dia com as descargas elétricas violentas, de uma beleza indescritível;
  • “as noites de luar, lindas e quase românticas…, sublimando os pensamentos nas nossas namoradas ou madrinhas de guerra;
  • “as noites das primeiras chuvas que nos limpavam o corpo e a alma com o agradável cheiro a terra africana”…

Apesar de se sentirem permanentemente vigiados pelo inimigo, aos “Tigres do Cumbijã” ninguém lhes podia roubar aquele momento inefável da manhã: “ de manhãzinha, com banho tomado e roupa lavada e já seca, não disfarçávamos a alegria, ao vermos chegar a coluna com os dois grupos de combate que nos vinham substituir” (pág. 83).

Estamos gratos ao Joaquim por dar voz a muitos combatentes, não só do nosso lado, mas até do outro lado, que nunca tiveram nem terão oportunidade de escrever, e muito menos de publicar, sob chancela editorial, as suas “vivências” e “memórias doridas” (e algumas até boas) daquela guerra e daquela terra (que, estranhamente, acabou por ficar no nosso coração, contagiando até os nossos filhos, o Tiago Costa, o João Graça, e tantos outros).

E o problema é que muitas memórias vão morrer connosco...E por cada um de nós que morre, é um livro que não se escreveu…

Não quero acabar esta nota de apresentação sem referir os sucessivos “murros no estômago” que, metaforicamente falando, o autor evoca no seu livro, a começar pelo inevitável batismo de fogo, as primeiras minas e emboscadas, o primeiro morto...

Na realidade, aqueles de nós (e fomos muitos) que passámos por essa dura, trágica, traumática experiência, sabe dar valor às palavras do Joaquim onde há raiva e impotência mas também coragem e dignidade, quando ele fala do primeiro camarada que morre ao seu lado.

O batismo de fogo era sempre uma situação-limite... E cedo aprendíamos que um homem não pode uma guerra sem odiar ...Depois, era como tudo: a guerra (e a morte) banalizava-se, tornava-se uma certa rotina... Mas os "embrulhanços" eram sempre temidos, de um lado e do outro... As balas e os estilhaços das granada ou o sopro das minas (antipessoais e anticarro) não tinham código postal... Era a roleta russa...

Diga-se, por fim, que não é um livro panfletário. Mas, mesmo sem querer fazer juízos de valor sobre a legitimidade, a condução e o desfecho daquela guerra, o autor acaba por nos mostrar, com fino mas cáustico humor, que às vezes acontecia sentirmo-nos como um bando de cegos, comandados por outros cegos, à beira de um precipício.

Felizmente o Joaquim voltou, “são e salvo”, para escrever este livro, o seu “terceiro filho”, e dar mais valor e força à liberdade, à justiça, à paz e à solidariedade.

Joaquim, hoje é um dia importante na tua vida. E seguramente tens motivos de orgulho ao apresentar, oficialmente, na Tabanca dos Melros, o teu livro (que, diga-se de passagem merece uma segunda edição, revista, aumentada e melhorada).

Luís Graça, sociólogo, editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. (**)
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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 4 de junho de 2022> Guiné 61/74 - P23325: Agenda cultural (813): Afroencontro: fusão euroafricana de sonoridades... Camones CineBar, Bairro da Graça, Lisboa, sábado, 4 de junho, 21h00: Mamadu Baio, Avito Nanque, Sanassi de Gongoma e João Graça

sábado, 11 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23343: Os nossos seres, saberes e lazeres (507): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (54): Os jardins esplendentes do Palácio Nacional de Queluz - 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Se é facto que o Palácio Nacional de Queluz tem em si muito para ver, lá fora estão os jardins, elaborados para cenário de festas da Família Real, qualquer coisa como 20 hectares da antiga Quinta Nacional de Queluz, circundando o palácio fica-nos o assombro de constatar como estes jardins formam unidade com o edifício, não foi por acaso que as fachadas palatinas se prolongam em jardins de aparato, e assim podemos ir ao antigo jardim botânico, passar pelo jogo da pela, deambular pela Cascata Grande, o Lago das Conchas, o Jardim de Neptuno, o Lago da Nereida, passar pelo Pórtico da Fama, descer ao Canal dos Azulejos, daqui contemplar as Escadaria dos Leões e o Pavilhão Robillion, enfim, então pode dizer-se que a visita ficou quase completa, e diz-se quase porque ainda não se visitou o palácio, fica feita a promessa que em breve acontecerá.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (54):
Os jardins esplendentes do Palácio Nacional de Queluz – 3


Mário Beja Santos

Não há visita ao Palácio Nacional de Queluz que não culmine por passear pelos belos jardins, aliás ao percorrermos a Sala do Trono, a Sala de Música ou a Sala dos Embaixadores, é inevitável não darmos uma espiada sobre o Jardim de Malta, as estátuas de John Cheere, a magnificência dos jardins superiores, descer ao Canal de Azulejos, visitar a Alameda do Lago das Medalhas, passar pelo Pórtico da Fama e a Cascata Grande. É, o que de certo modo, e com muita satisfação, se pretende mostrar ao leitor.
Pan com a sua flauta e o seu especial sorriso malicioso
Quem percorre a região das estufas, todas elas recuperadas, contempla uma bela azulejaria onde se acolhem canteiros, o que há de mais surpreendente é que o motivo é sempre igual e nunca cansa, tal a festividade do colorido.
A estufa de ananases

Já se observou que esta Quinta Real de Queluz tinha três tipos de espaços verdes: a zona agrícola, o parque e os jardins superiores, funcionando como prolongamento dos salões do palácio. Depois do Jardim da Malta, temos os Jardim Pênsil ou Neptuno. Descendo, à esquerda e ao fundo podemos ir visitar as estufas e a Cascata Grande. Por ora queremos mostrar o Canal de Azulejos, uma das obras mais notáveis do Palácio Nacional de Queluz. Foi construído por volta de 1756, tinha por objetivo canalizar o curso da ribeira do Jamor, mas foi preciso recorrer à abertura de minas e à construção de aquedutos e reservatórios. Montou-se um sistema de comportas de ferro, a água era represada, durante o verão, de modo a encher todo o canal formando um extenso lado artificial que permitia aos membros da Família Real aqui andarem de barco. Interiormente o canal era revestido de azulejos azuis e brancos. Como iremos ver, os temas tratados são diversos: torres, castelos, galeões e bergantins, portos de mar, paisagens. No exterior, as paredes estão recobertas de painéis azuis solares, policromados, basta ver a imagem seguinte, os temas decorativos agora são diferentes: cenas galantes, palacianas e de caça.
Exemplos do revestimento azulejar exterior do Canal de Azulejos
Exemplos do revestimento interior do Canal de Azulejos. No início do século XX, o rei D. Carlos ou a rainha D. Amélia incumbiram dois artífices de restaurar os azulejos do canal. Por essa altura foram colocados ao longo do canal vasos de faiança azul e branca e que são réplicas dos que se encontram no Jardim Pênsil. Ao longo do percurso da ribeira do Jamor foram plantadas amoreiras. O aproveitamento lúdico do canal e dos espaços envolventes levou a que existisse na parte central do canal uma casa de música.
Antes de percorrer a Alameda do Lago das Medalhas temos este elegantíssimo lago e a estátua de Caim matando Abel
Segundo se crê, esta alameda constituiria o eixo central a partir do qual teriam sido estruturados os jardins da casa de campo dos marqueses de Castelo Rodrigo, herdeiros de Cristóvão de Moura, o primeiro proprietário da Quinta de Queluz. É a alameda mais extensa destes jardins, tendo o seu arranque no largo onde se encontra o conjunto escultórico, que vimos na imagem anterior, da autoria de John Cheere, Caim matando Abel. É um percurso que termina no Tanque do Curro, antes passasse pelo Lagos das Medalhas e pela Fonte de Neptuno
Andando pelo Canal dos Azulejos temos em frente a Escadaria dos Leões e o Pavilhão Robillion. Por aqui se fazia o acesso principal ao Palácio de Queluz, sendo os visitantes conduzidos depois à Sala dos Embaixadores. Não deixa de surpreender a forte componente cenográfica, é uma escadaria de três lances divergentes, forma como Robillion encontrou solução para resolver o problema do desnível de cotas entre o palácio e a parte baixa do jardim, atenda-se à grande elegância da escadaria, à decoração com vasos de flores e estátuas de pedra.

Assim se põe termo a este percurso um tanto à la minuta pelos jardins, não se visitaram as hortas nem se contemplou a Cascata Grande nem se entrou no Pavilhão de D. Maria, hoje residência dos chefes de Estado estrangeiros em visita oficial a Portugal (foi no passado a residência de verão de Marcello Caetano). Fica para a próxima, ainda não se visitou, com o desvelo necessário, o interior do palácio, é um itinerário que já está em agenda.

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Nota do editor

Último poste da serie de 4 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23324: Os nossos seres, saberes e lazeres (506): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (53): Os jardins esplendentes do Palácio Nacional de Queluz - 2 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23342: Estórias do Zé Teixeira (51): Há festa na Tabanca (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Xitole, 2013 > Festa de casamento para a qual o José Teixeira fora convidado
Foto: © José Teixeira

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, QueboMampatá e Empada, 1968/70) com data de 10 de Junho de 2022, trazendo-nos mais uma das suas belíssimas estórias:


Há festa na Tabanca

Naquele princípio de noite de quinta-feira, o alferes notou que algo de anormal estava a ocorrer na tabanca. Do Iero, apenas recebera um alegre sorriso, quando o interpelou sobre o que estava acontecendo com a população. As mulheres andavam num algaraviado rodopio, as bajudas passaram a tarde no “cabeleireiro” apresentando-se com belos e inabituais penteados, os homens, como de costume, tagarelavam animadamente debaixo ao majestático poilão, que o alferes já fora tentado a abater, pois considerava que era um excelente ponto de mira para o inimigo e se ainda não o destruíra foi pelo respeito que lhe merecia aquela simpática gente. A sua frondosa sombra era a sala de honra onde os homens grandes se reuniam e tomavam as decisões importantes para a vida comunitária local, o salão de festas comunitário, a escolinha onde as crianças, sentadas no chão, ouviam o mestre, na sua aprendizagem corânica.

Ao apreciar esta azáfama deixou-se invadir por um sentimento de felicidade. A sua tabanca estava viva e ativa. Adorava aquela gente, o seu calor humano, os sorrisos que recebia e lhe preenchiam a alma. Havia um inimigo por perto que a todo o momento podia surgir e quebrar aquela harmonia, pelo que se decidiu a visitar, ao cair do sol, todos os abrigos e postos de sentinela e recomendar aos seus homens uma especial atenção para a noite que se aproximava. Como era seu hábito, ficava uns minutos largos numa silenciosa cavaqueira com cada militar em serviço de vigia e proteção, pelo que recolheu ao seu leito, um pouca tardiamente, depois de se refrescar à moda fula, com umas latadas de água colhida no bidon que tinha à porta da casa.

Sexta-feira, manhã cedo, foi acordado por uma voz feminina que o chamava docemente. Aferes! Alferes, vem, quero falar contigo!
Não reconheceu a voz de quem o estava a chamar. Olhou para o relógio, eram sete horas. Voltou-se para o outro lado e deixou-se ficar decumbente a saborear a manhã que se avizinhava bem cálida. Mas a voz insistiu; alferes! alferes, vem falar comigo! Sou a Djubae, a mãe do Adulai, o teu menino.

Levantou-se célere, enfaixou-se na toalha de banho e abriu a porta. Habitava uma casa típica local que lhe fora cedida pelo Iero. As paredes em cana entrançada recobertas de barro vermelho, encaixavam-se num chão térreo cobertas de palha de capim, que ladeava a casa até a um metro do chão providenciando ao espaço interior uma agradável frescura. Inclinou-se para passar a umbreira da porta e deparou com a Djubae toda aperaltada, com bonito vestido que lhe realçava a juventude e a beleza, com um lenço de seda pura na cabeça. Impulsivamente deixou-se espreguiçar enquanto o pensamento lhe devolvia o que tinha apreciado na tarde anterior e pensou: a festa vai continuar… que se passará com esta gente, meu Deus!?

- Alferes, o Adulai vem convidar-te para a sua festa!
- Que festa? Questionou, esfregando os olhos ensonados a precisar de uma chapada de água fresca para acordar.
- Hoje, a tabanca tem festa grande. Allah, louvada seja Ele, deu o dom da vida ao meu menino. Vem visitar-nos o grande Cherno Rachid para fazer oração a Allah o misericordioso, louvado seja Ele. Queremos que venhas à festa do Adulai, disse, num ato repentino como que a despejar um recado que lhe avassalava o coração e se atrofiava na garganta.
- Hum! Mas… O Cherno Rachid vem cá e vocês não me informaram para eu criar condições de segurança. Vou ter uma conversinha com o Iero!
- Tem calma alferes, o Aldje Cherno Rachid pode viajar por toda a Guiné sem risco de vida. É muito respeitado, até pelos bandidos que estão no mato. É um escolhido de Allah e só Allah é Deus protetor e misericordioso, disse calmamente, enquanto pegava na mão do alferes e a encostava ao seu coração.
- Djubae! Djubae! Faltavas tu para prenderes ainda mais o meu coração a esta terra maravilhosa, a esta gente de coração puro, que não merece a pouca sorte a que está votada. Maldita seja a puta da guerra! Vociferou aturdido pelo mavioso convite que acabara de receber. Uma lágrima libertou-se do seu coração e escorregou-lhe pela face duramente queimada pelo agreste sol africano. Lágrima que a Djubae recolheu religiosamente na manga do seu vestido domingueiro.
- Vai, disse meigamente o alferes, beijando ternamente a mão da Djubae. Eu não demoro. Quero alimentar-me do vosso júbilo, da vossa enorme vontade de viver. Vai, minha querida!

…E chegou a hora da festa, chamemos-lhe de batizado, para melhor compreendermos o grande significado que tem para este povo, a entrada na comunidade de uma nova vida.
Xitole, 2013 > Festa de casamento
Foto © José Teixeira

Em tempo de guerra não é aconselhável usar o “bombolom” ou os “tam tam” para fazer o aviso e lançar o convite para a festa. Todavia, a tabanca enchera-se de caras que o alferes Barbosa não se lembrava de ter visto por ali. Os homens da terra e das tabancas vizinhas, vestidos de longa batina branca, com a cabeça coberta, solenemente sentados à sombra do poilão aguardavam a chegada do idolatrado Cherno Rachid, emblemático líder religioso a quem toda a Guiné muçulmana independentemente da opção político-militar, se curvava em respeito pelos seus profundos conhecimentos corânicos e pela sua forma de ser e estar no quotidiano da vida. Esta forma de viver tornara-o no homem de Deus mais respeitado em toda a Guiné e até países limítrofes, a quem o governador da província se inclinava com respeito e ousava consultar sobre os grandes problemas. Pelas mesmas razões era respeitado pelo bureau político da PAIGC e considerado intocável, pelo que se movia em paz pelas meandrosas picadas da Guiné, sem correr riscos de vida.

As mulheres grandes, aformoseadas nos seus trajes típicos, linguarejavam ruidosamente, sempre com o olho fixo na picada de onde surgiria o homem de Deus, enquanto a juventude se divertia a seu modo aguardando o momento mais solene.

O alferes José Barbosa sentado em lugar de honra no meio dos homens, ao lado do felizardo pai do Adulai, ouvia as conversas em linguagem crioula sobre o passado, o presente e o futuro da Guiné, tentando, nos seus parcos conhecimentos linguísticos locais, compreender de que falavam. O sentimento que tivera de se sentir a mais naquele meio desvanecera-se rapidamente. Sentia-se envolvido por um ambiente de bem-estar. Era como se fosse um filho da terra. Um estranho filho da terra.

Ao verem ao longe, no carreiro, a onda branca com o séquito do clérigo, gerou-se um alvoroço espontâneo:
- Dois jovens, engalanados com os mais belos trajes e pinturas guerreiras pelo corpo, munidos de estridentes assobios e braceletes musicais, agarraram os seus tambores, o djembé e o bougarabou, e prepararam-se para iniciar a festa.
- Quatro bajudas entre elas a Binta, aproximaram-se dos pilões e tomaram nos macetes, colocando-se em posição de começar a ação de pilar do arroz.
- O artista convidado afinava o Kora, um instrumento musical feito de madeira ou bambu com ranhuras transversais e uma caixa de ressonância obtida de uma cabaça partida ao meio. Instrumento de origem mandinga que gera uma musicalidade divinal, o que vai dar mais vida à festa do Adulai.
- O recém-nascido vestido apenas com o fato que a natureza divina lhe dera, é colocado no colo do avô, que tira do bolso uma farpa acastanhada de vidro, arrancada, talvez, de uma inútil garrafa de cerveja.
- O açougueiro segura, pelo pescoço, o carneiro que vai ser sacrificado em honra do glorioso, o senhor supremo do Universo, louvado seja Ele. Uma naifa afiada na mão espera pacientemente.
- A mulherada faz então uma longa roda que envolve todo este ambiente, fechado num silêncio espontâneo e expectante. Convidativo à meditação sobre o valor de uma vida. Uma vida humana que nasceu para ser feliz. Merece ser feliz.

O Califa, depois de ser cumprimentado religiosamente pelos presentes, entra no recinto, abre os braços aos céus e começa a orar.
Momento mágico para os olhos e coração do alferes que vê soltarem-se as mãos das bajudas, dos tocadores de batuque, das mulheres, de toda a gente, até do velho avô que começa a rapar com o vidro da gasta garrafa de cerveja, o cabelo negro do bebé Adulai, enquanto o carneiro dá o seu último mééé!

O início da festa que irrompe ritmadamente ao som do bater do pilão, dos toques e assobios dos tamborileiros, acompanhados por dezenas de mãos a baterem palmas, com os corpos a gingarem num frenesim e as vozes num harmonioso coro de louvor a Allah, o Criador. Não faltou o acender da fogueira com a panela devidamente colocada pelas ágeis mãos das cozinheiras de serviço. Tudo num simultâneo festejar da vida do Adulai.

A sonoridade do macete a bater no pilão, alimentado pela cantilena mais linda, que o alferes jamais ouvira, ritmada pelo bater de palmas das suas jovens manobradoras numa cadência alucinante, com os seios, o mais belo símbolo da sua feminilidade, a acompanharem o bailado, revolvendo-se majestaticamente nos seus bronzeados corpos a pingar longas gotas de suor. Um espetáculo divinal, a que aqueles sons arrancados vigorosamente do fundo dos tambores, alimentados pela musicalidade do kora, com o seu toque especial, davam vida e cuja mensagem não conseguia interpretar. Tudo isto transporta o alferes Barbosa ao seu Portugal, à sua terra, entre o Douro e o Minho das desfolhadas, dos bailaricos animados pela viola e pela concertina, das cantigas ao desafio, deixando-o por momentos perdido na saudade que o devorava.

Procurou o olhar da Binta, mas não o encontrou. Queria suavizar a dor que lhe ia na alma, lado a lado com a alegria de estar ali, a viver com o seu povo (assim o considerava) uma festa tão linda. Precisava de esquecer, nem que fosse por momentos, a sua aldeia natal, nos braços da mulher africana que lhe prendera o coração.
A Binta, sentia-se aturdida. Faltava-lhe o seu Braima, que tantas vezes animara festas como esta. “Agredia” o pilão com a raiva desmedida, enfiada dentro dela, cantando sem nexo. O seu coração bailava longe dali. Como ela adorava tê-lo por perto, para lhe transmitir num olhar sereno todo o afeto que lhe enchia a alma. Talvez não estivesse distante assim, pensou, tentando consolar-se. As boas notícias voam rapidamente… perdeu-se no ritmo da festa e continuou a cantarolar, olhando de través para o alferes de quem gostava, mas não se prendia de amores. A vida continuava, mesmo com seu o Braima escondido na mata, não a podia perder.

E assim se passou a manhã, enquanto as mulheres e bajudas davam o seu passo de dança típica e se libertavam dos maus irãs, os homens alinhavam em conversas soltas, até que chegou a hora do almoço. Homens a um lado, mulheres a outro, algumas com as suas crianças. Grandes bacias cheias de arroz e pedaços de cabrito envolvidos em saboroso molho de chabéu, são espalhadas no recinto. Aninhados no chão, depois de lavarem as mãos, os convidados banqueteiam-se calmamente conversando de tudo e nada, porque o importante é viver o momento.

Para o alferes reservaram uma pequena bacia de arroz, com a melhor tranche de cabrito e uma colher, que o Barbosa recusou preferindo aninhar-se junto do Iero e partilhar do almoço comum, para alegria dos presentes que o acolheram com um rasgado sorriso de contentamento.

A tarde foi serena. Alguma música e muita conversa. Os visitantes aproveitaram para, em convívio, trocarem ideias, recordarem velhos tempos, projetarem o futuro.
E foram partindo discretamente ante que o sol se escondesse para além da mata.
E chegou a noite. Voltou o silêncio. Voltaram os medos.

O Alferes foi ter com os seus homens. Em cada posto de sentinela uns olhos vigilantes espreitavam o futuro.
Sábado seria um novo dia.

José Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22441: Estórias do Zé Teixeira (50): Amores em tempo de guerra - O sonho da Luisinha (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23341: Notas de leitura (1454): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
O casal Éric e Jeanne Makédonsky dão como explicação de que este acervo apreciável de testemunhos recolhidos junto de intervenientes guineenses, cabo-verdianos e portugueses, entre 1980 e 1982, não foi publicado logo a seguir atendendo a que a aura de que a guerrilha guineense se cobrira de glória, no campo internacional, perdera-se, deixou de haver interesse em acompanhar o fenómeno revolucionário da Guiné-Bissau, entrara-se por um caminho sombrio, a própria investigação, que continuou a fazer-se, perdeu muito do interesse inicial. No entanto, a despeito de que todos estes testemunhos introduzam novidades de maior, a sequência cronológica como se estrutura a obra permite ao iniciado seguir a trama de forma sequencial, do princípio a uma quase atualidade. Tudo começou em estado de tormenta e em tormenta e profunda inquietação prossegue.

Um abraço do
Mário



Assitiram à independência da Guiné, décadas depois publicam livro (2)

Beja Santos

“La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky, L’Harmattan, 2018, é uma obra que forçosamente nos surpreende. Marido e mulher eram jornalistas que permaneceram longamente no continente africano. E abrem o seu livro explicando porquê, só agora, dão à estampa os testemunhos que recolheram décadas atrás. Entenderam os autores que a guerrilha guineense em poucos anos perdeu o furor e o entusiasmo com que eram vistos pelo movimento revolucionário à escala mundial. No entanto, não quiseram deixar de contribuir para que a investigação sobre os acontecimentos relacionados com a independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde perdesse a possibilidade de conhecer os testemunhos de inúmeras personalidades intervenientes, do lado guineense, cabo-verdiano e português.

Após o testemunho dos guineenses (Nino, Paulo Correia, Vasco Cabral, Fidelis Cabral d’Almada) que dão conta da evolução da luta a partir de 1968, fica-se com uma apreciação do quadro político e militar até ao assassinato de Amílcar Cabral. É um dado curioso, atenda-se que estes testemunhos são recolhidos entre 1980 e 1982, do lado cabo-verdiano já há insinuações de compromisso guineense ao mais alto nível. Aristides Pereira chega a dizer quando foi raptado e metido numa lancha cuja marcha foi travada em Boké, ouviu elementos do complô referir nomes de altos dirigentes do PAIGC naturais da Guiné. Mas não diz quais. Refere a reação dos órgãos diretivos e a intensificação da luta. Pedro Pires enfatiza a preparação e execução da operação Amílcar Cabral e as consequências associadas aos mísseis Strela e ao uso de viaturas já no interior do território da Guiné para lançar mísseis sobre os quarteis. Pedro Pires recorda o pedido que fez a Aristides Pereira, então em tratamento em Moscovo, era necessário mais artilharia pesada, canhões 122, novas rampas de lançamento de mísseis GRAD e os temíveis morteiros de 120 milímetros, bem como canhões B10 e de 85 e 76 mm. O Conselho Executivo da Luta dera luz verde para uma ofensiva prevista para os meses de novembro e dezembro de 1974 com blindados T34 e BRDM, isto num quadro em que ainda se desconhecia qual seria a decisão da Organização de Unidade Africana, que tinha apelado à formação de um exército africano para expulsar as forças portuguesas.

Sobre as mesmas matérias do assassinato e da reação político-militar do assassinato de Amílcar Cabral, depõem José Araújo, Manuel dos Santos, Osvaldo Lopes da Silva, entre outros. E seguem-se os testemunhos guineenses de Nino, Vasco Cabral e Fidelis Cabral d’Almada. Uns atribuem o complô a quadros que se tinham marginalizado e que até viviam do roubo, há também quem atribua um papel relevante a Momo Touré e Aristides Barbosa, na época era uma acusação que parecia vingar, ainda não se sopesara tal inviabilidade quando o complô, como se veio a apurar, envolvera centenas de participantes de diferentes perfis. Do lado português irão depor Carlos Fabião, Otelo Saraiva de Carvalho e Carlos Matos Gomes. Fabião nega perentoriamente qualquer envolvimento de Spínola ou das Forças Armadas, mas fica a pairar no ar a possibilidade de uma intervenção completamente fora das regras clássicas de Alpoim Calvão, que ao tempo dirigia um discreto serviço de informações em Lisboa. Mas não exclui uma intervenção da PIDE, a título meramente institucional. Otelo também se mostra persuadido da intervenção da PIDE e recorda que encontrou Alpoim Calvão em Bissau em dezembro de 1972. À distância destes anos todos, estes depoimentos revelam-se profundamente datados, presunções sem mostra de prova.

Chegamos ao 25 de Abril, há um conjunto de depoimentos sobre o que era possível fazer de descolonização da Guiné, como se atuou em 25 de Abril, como se abriram conversações com o PAIGC, etc. Obviamente que os testemunhos cabo-verdianos remetem-nos para a realidade do envio de quadros para Cabo Verde, o modo como tal se processou é contado por Aristides Pereira, Pedro Pires, José Araújo, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva, Julinho e Corsino Tolentino. Do lado guineense, Juvêncio Gomes confirma um depoimento que deu igualmente noutros locais sobre o seu papel de primeiro interlocutor do PAIGC após o 25 de Abril.

Insiste-se que a generalidade destes depoimentos não se reveste de aspetos inovadores. Nino Vieira, a propósito do golpe de 14 de novembro de 1980, repete que existia um quadro persecutório cabo-verdiano e que eram humilhantes para os guineenses os contextos institucionais existentes em Cabo Verde que inferiorizavam a Guiné, segundo Nino, Luís Cabral estava incapaz de ler a realidade. A linha guineense, caso de Fidelis Cabral d’ Almada, não deixará de referir os excessos da polícia de segurança, que gradualmente se tornou um Estado dentro do Estado. Dá-nos um quadro alucinante de uma pseudo insurreição dos antigos Comandos africanos, quando eles vieram do Senegal, aonde se tinham refugiado, apareceram praticamente sem qualquer armamento, quem os chamara dissera que vinham para apoiar Nino para fazer parte de um grande exército nacional, foram presos pela segurança e mais tarde executados.

No final desta recolha de depoimentos e dado que a sua publicação ocorreu em 2018, os autores dão-nos conta do que se passou com todos estes protagonistas: 

  • Fidelis Cabral d’Almada, Ministro da Justiça após o golpe de 14 de novembro de 1980, depois Ministro de Estado na Presidência, deixou a esfera pública em 1996 para se dedicar aos negócios, faleceu em 2002; 
  • José Araújo manteve-se em Bissau até ao golpe de 14 de novembro de 1980, foi para Cabo Verde onde seria Ministro da Educação, faleceu em 1982; 
  • Vasco Cabral manteve-se em funções governativas depois da rutura entre a Guiné e Cabo Verde, já faleceu;
  • Vítor Saúde Maria foi várias vezes ministro, será nomeado Secretário Permanente do PAIGC e membro do Conselho de Estado, faleceu em 2009; 
  • Paulo Correia irá ocupar altos cargos e será detido em 1986 acusado de tentativa de golpe de Estado, sujeito a espancamentos e depois fuzilado; 
  • Juvêncio Gomes será afastado do cargo de Presidente da Câmara Municipal de Bissau após o golpe de 14 de novembro, será depois recuperado e exercerá funções de responsabilidade, incluindo o Ministério do Interior, faleceu em 2016; 
  • Manuel dos Santos (também chamado Manecas) ficará na Guiné-Bissau depois do golpe de Estado e será várias vezes ministro, dedicar-se-á mais tarde aos seus negócios; não deixará de publicamente se insurgir quanto às pensões de miséria dos antigos combatentes, dando o exemplo de um velho combatente, com deficiência, não recebia mais de 21 euros de pensão; 
  • o destino de Nino é bem conhecido, irá gradualmente proceder como um ditador, será afastado do poder após o conflito político-militar de 1998-1999, para espanto geral regressa do exílio português e apresenta-se como candidato presidencial, será eleito, irá entrar em conflito frontal com as chefias militares, será acusado de ter mandado liquidar Tagmé Na Waié e em sua sequência, em março de 2009, morto em sua casa, de forma bárbara.

Reconheça-se que o trabalho de Éric e Jeanne Makédonsky merece realce relativamente à cronologia dos acontecimentos desde a era das independências africanas até ao período pós-independência da Guiné e Cabo Verde. São relatos após a recente rutura entre a Guiné e Cabo Verde, há, como é evidente, alguns indícios de ressentimentos, mas no essencial os testemunhos guineenses e cabo-verdianos mantiveram consistência ao longo de décadas.

Éric Makédonsky
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23331: Notas de leitura (1453): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23340: Lembrete (40): Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, amanhã, dia 11, às 11h00: apresentação do livro do Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74): "Memórias de Guerra de um Tigre Azul" (Rio Tinto, Lugar da Palavra Ed., 2021, 179 pp.)

 





Capa do livro do  Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", que vai ser lançado amanhã, dia 11 de junho de 2022, sábado, pelas 11h00, na Tabanca dos Melros, Quinta do Chouoal dos Melros, ria de Cabanas, 175, 4510-506 Fânzeres.  Apresentação a cargo do editor do nosso blogue, Luís Graça, que se fará representar pelo nosso amigo e camarada, e também ele escritor, António Carvalho.(`*)

O livro "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74". Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp., pode ser pedido diretamente ao autor, através do email jscosta68@gmail.com

O valor é de 10 € (livro + custas de envio), a transferir para o seu NIB que será enviado juntamente com o livro. Não esquecer de indicar o endereço postal.

Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, Os Tigres do Cumbijã (Cumbijã, 1972/74) é natural de V. N. Famalicão. Engenheiro ténico e professor reformado, vive em Fânzeres, Gondomar há mais de 20 anos.



1. Mensagem de Joaquim Costa, ex-fur mil at armas pesadas, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74) (**)


Data - sábado, 4/06, 12:16 (há 6 dias)

Apresentação do livro: Memórias de Guerra de um Tigre Azul

Olá Luís

Espero que essa recuperação esteja a correr pelo melhor.

Estando a aproximar-se o dia da apresentação do meu livro, como tinha prometido, aqui vai a constituição da mesa. Espero que o “bicho” não faça estragos.

Como sabes nunca pensei num plano B, pois a tua presença sempre a coloquei como imprescindível. Obviamente que continuas a ser o homem da apresentação, mas a farda sempre assenta melhor para quem foi feita.

Como tal, não ficaria de bem com a minha consciência se não fizesse um último esforço: O meu camarada, ex Furriel Carlos Machado, que vai fazer parte da mesa, vive em Lisboa e vem no seu carro no próprio dia da apresentação, regressando a Lisboa no fim do almoço /convívio. Ele próprio agradecia fazer a viagem com uma excelente companhia. Pensa nisso!!!

Um grande abraço, Joaquim Costa

Constituição das mesa:

  • Luís Graça - sociólogo e editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, que fará a apresentação do livro . (Na impossibilidade física de estar presente, por razões de saúde, será representaddo pelo escritor António Carvalho, autor de "Um caminho de Quatro Passos",Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora,2021,  218 pp. ex-fur mil enf, CART 6250, "Os Unidos de Mampatá", Mampatá, (1972/74; vive em Medas, Gondomar, e lerá um texto que o nosso editor Luís Graça lhe enviou);
  • Carlos Machado - engenheiro técnico e  ex-furriel dos Tigres do Cumbijã, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74), que dirá de sua justiça, quanto à narrativo do autor e a sua versão dos factos.
  • João Carlos Brito - professor, bibliotecário e escritor, em representação da Editora: Lugar da Palavra
  • Joaquim Costa - o autor.




Guião da CCAV 8351/72

2. F
icha de unidade > Companhia de Cavalaria n.º 8351/72

Identificação CCav 8351/72

Unidade Mob: RC 3 - Estremoz

Cmdt: Cap Mil Cav Vasco Augusto Rodrigues da Gama

Divisa: -"... Na Guerra Conduta Mais Brilhante"

Partida: Embarque em 270ut72; desembarque em 270ut72 |  Regresso: Embarque em 27Ag074

Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 280ut72 a 17Nov72, no CMl,  em Cumeréseguiu, em 19Nov72, para Aldeia Formosa, a fim de efectuar o treino operacional sob orientação do BCaç 3852 e, a partir de 04Dez72, reforçar aquele batalhão e depois o BCaç 4513/72, com a missão prioritária de segurança e protecção dos trabalhos da estrada Mampatá-Cumbijã-Mejo, em cooperação com outras subunidades.

Em 03Abr73, quando os trabalhos da estrada atingiram Cumbijã, deslocou parte dos efectivos para esta povoação, a fim de garantir a segurança e protecção do parque de máquinas de engenharia e a continuação dos trabalhos.

Em 17Mai73, com a realização da  Op Balanço Final, instalou-se temporariamente em Nhacobá, até 26Mai73, após o que ficou em Cumbijã, com a mesma missão anterior.

Em 26Ju174, após substituição em Cumbijã por dois pelotões da CCav 8350/72, recolheu a Buba e depois a Cumeré.

Em 30Jun74, foi colocada em Bissau, onde passou a colaborar na segurança e vigilância periférica da cidade até ao seu embarque de regresso.

Observações - Não tem História da Unidade. Tem Resumo de Factos e Feitos (Caixa n." 128 – 2.ª Div/4.ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág.  520.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de maio de  2022 > Guiné 61/74 - P23245: Agenda cultural (811): Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, 11 de junho de 2022, sábado, 11h00: Luís Graça apresenta o livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul"

(**) Último poste da série > 27 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23301: Lembrete (39): Cerca de 80 participantes no 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca 1968/71 + CCAÇ 1439 (1965/67), que se realiza amanhã, nas Caldas da Rainha

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23339: Recortes de imprensa (123): Bubaque: alterações climáticas e educação ambiental (Excertos de reportagem de Carla Tomás, Expresso, 18 de abril de 2019, com a devida vénia...)




Guiné-Bissau > Região de Bolama-Bijagós > Ilhas de Bubaque e Rubane > 11-13 de dezembro de 2009 > Recantos, encantos e... armadilhas. Fotos do álbum de João Graça, médico e músico.

Fotos: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Cartaz do V Congresso Internacional de ed Educação Ambiental. Cortesia da página da ASPEA - Associação Portuguesa de Educação Ambiental.


1. Com a devida vénia à autora, a jornalista Carla Tomás, e ao editor, o semanário Expresso, tomamos a liberdade de reproduzir aqui alguns excertos de uma extensa e interessante reportagem sobre Bubaque, no coração do arquipélapo dos Bijagós, realizada aquando do V Congresso Internacional de Educação Ambiental.Crise Ecológica e Migrações: Leituras e Respostas da Educação Ambiental (Bijagós, 14.18 deabril de 2019).

A reportagem completa (incluindo as fotos da jornalista) pode ser vista, na íntegra aqui:

https://expresso.pt/sociedade/2019-04-18-Em-Bubaque-nos-Bijagos-pensa-se-como-a-educacao-ambiental-pode-ajudar-a-enfrentar-as-alteracoes-climaticas


Em Bubaque, nos Bijagós, pensa-se como a educação ambiental
 pode ajudar a enfrentar as alterações climáticas

Expresso > 18 de abril de 2019 20:04
Carla Tomás, jornalista


Num dos locais do planeta mais ameaçados pela subida do nível do mar e por fenómenos extremos, debate-se “ a crise climática e as migrações”. Mais de quatrocentas pessoas de quatro continentes trocaram experiências e saberes.

Manhã cedo ainda se sente o cheiro das fogueiras onde o lixo foi queimado ou ainda arde. Restos de plástico, pilhas e outros resíduos que não tenham sido limpos pelos abutres que pousam nos telhados, ou pelos cães, porcos ou cabras que andam pelas ruas, acabam incinerados ao lado das casas de adobe e telhado de zinco. Em redor das fogueiras veem-se crianças de roupas gastas e sujas a brincar sem a mínima noção das dioxinas que respiram.
 
Riem-se entusiasmadas com a enchente de gente de fora que inundou a ilha, Bubaque, capital do arquipélago das Bijagós, localizado a hora e meia de Bissau em lancha rápida ou a quatro horas numa espécie de ferry.

Entre 14 e 18 de abril, a pequena cidade de pouco mais de quatro mil habitantes recebeu o maior evento da CPLP organizado pela sociedade civil. Durante quatro dias, cerca de 416 pessoas — originárias de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor Leste e da Galiza — debateram “a crise ecológica e as migrações”, no quinto Congresso Internacional de Educação Ambiental, co-organizado, este ano, pela delegação guineense da Rede Lusófona e pela Associação Portuguesa de Educação Ambiental (Aspea).

(...) O arquipélago dos Bijagós e a costa ocidental da Guiné correm sérios riscos de ficar submersos com a acelerada subida do nível do mar. Esta “é uma ameaça muito relevante para a Guiné-Bissau”, confirma Meio Dia Có, técnico do Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas (IBAP) perante uma plateia oriunda de quatro continentes que quer saber mais sobre estas ilhas. Sentados nas velhas secretárias de madeira do liceu de Bubaque trocam saberes e experiências.

(...) A memória recente do ciclone Idai, que devastou a Beira em Moçambique, serve de alerta face à urgência de agir na proteção do ambiente e de preparar ou adaptar os países mais vulneráveis face às ameaças que sobre eles pairam, lembram vários dos intervenientes. (...)

(...) A Guiné é um dos 10 países mais vulneráveis às alterações climáticas. Em Bubaque, uma das 21 ilhas povoadas deste arquipélago que resultou da subida de um delta, a erosão costeira já se faz sentir. Com a maré alta a areia quase desaparece das praias e os mangais (ecossistemas que servem de berçário a muitas espécies, de proteção costeira e também de sumidouros de CO2) já refletem a pressão.

Como se as divindades animista por que se regem já os tivessem advertido dos perigos que espreitam, nas ilhas mais isoladas, como Canhabaque ou Orango, as tabancas (aldeias) ficam distantes das praias, algumas a uma hora de distância a pé.

(...) A intrusão salina já começa a afetar os recursos aquíferos e os arrozais. As chuvas tendem a chegar cada vez mais tarde e em menor quantidade e a seca faz-se sentir afetando as hortas comunitárias. O que ainda melhor resiste são as palmeiras de cujo fruto, o chabéu, fazem vinho ou óleo de palma ou de cujas folhas, casca ou ramos fazem materiais para construção.

(...) “A gestão do espaço e dos recursos do arquipélago sempre foi feita pelo povo bijagó seguindo as regras transmitidas oralmente pelos anciães”, conta Meio Dia perante a plateia atenta. “Ser bijagó significa passar pela escola do mato e a comunidade participa na gestão do território e os régulos de cada tabanca transmitem as regras aos que nelas vivem”. Em algumas ilhas estabelecem-se “tabus”, ou regras mais restritas, para impedir a construção de novos resorts turísticos, o crescimento da agricultura intensiva ou a sobrepesca.

“Estes países africanos estão entre os mais vulneráveis. E se não se adaptarem rapidamente, muitas mais pessoas vão morrer”, alerta Luísa Schmidt, Investigadora do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa e membro do conselho científico do congresso, reforçando que “a educação ambiental na escola pode ajudar na transformação”. (...)

(...) Mas aqui não se fala só de alterações climáticas. Investigadores, professores ou membros de organizações não governamentais assim como técnicos de entidades públicas ou até de empresas privadas apresentam os projetos que estão a desenvolver nos seus países ou em cooperação. Brígida Brito, investigadora na Universidade Autónoma,  explica como um projeto desenvolvido junto de uma comunidade de tartarugueiros de São Tomé e Príncipe conseguiu converter o seu modo de sustento. levando-os a parar de matar tartarugas e a passar a utilizar corno de cabra para fazer os objetos de artesanato que vendem a turistas.(...)

(...) Nesta ilha, onde não há água potável, nem saneamento básico, nem tratamento e recolha adequada de lixo, um guineense fica incrédulo quando Sofia Quaresma e Paula Sobral, da Associação Portuguesa de Lixo Marinho, explicam que o flagelo da poluição de plástico não se fica pelo que é visível, mas que é muito maior se pensarmos nos microplásticos ou nanoplásticos que resultam da degradação dos plásticos no mar ou das microfibras das roupas sintéticas que lavamos.

Durante os dias do congresso não se vê muito lixo pelo chão, nem nas praias dos hotéis. Em alguns pontos surgem amontoados, prontos para a fogueira. Um jovem da associação ambiental local Andorinha explica que recolhem alguns dos resíduos para diferentes fins: muitas garrafas de plástico e de vidro são reutilizadas por quem vai buscar água aos poços espalhados pelas ilhas ou por quem faz vinho ou óleo de palma, outras acabam compactadas e transformadas em blocos para construção. (...)

(...) Nesta troca de aprendizagens e de projetos novas ideias surgem. Janó Face Te, da associação de Jovens pela Produção do Ambiente, com sede em Bissau,  fica entusiasmado com a possibilidade de replicação do projeto da ONG portuguesa Educafrica, que promete levar luz elétrica a muitas aldeias que não a têm. Dirigido por Inês Rodrigues, uma professora em constante nomadismo profissional, o projeto iniciado em 2011 permite transformar uma simples garrafa de plástico numa lâmpada solar. (...)

Carla Tomás

[ Seleção / revisão e fixação de textos  para efeitos de publicação deste poste: LG ]

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23338: Fotos à procura de... uma legenda (165): A Mona Lisa de Bubaque, 2008: "O que dizem os teus olhos, mulher bijagó ?" (Tiago Costa / Joaquim Costa)...

 


Guiné-Bissau > Arquipélago de Bijagós > Bubaque > 2008 > “O que dizem os teus olhos, mulher bijagó”?


Foto (e legenda) © Tiago Costa / Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Esta foto tem 14 anos. Foi tirada pelo Tiago Costa, engenheiro, da empresa Soares da Costa, num fim de semana de descontração e passeio a Bubaque, nos arquipélago dos Bijagós. O Tiago e os seus colegas da empresa estavam então a construir a ponte sobre o rio Cacheu, em São Vicente (*). 

O nosso camarada Joaquim Costa (ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74) nunca foi a Bubaque, onde não havia guerra. Muitos de nós nunca fomos a Bubaque. Um ou outro, mais felizardo, conseguiu lá dar um salto durante a guerra (1961/74).  

O Joaquim Costa nunca mais voltou à Guiné, com pena sua. Mas "regressou lá em pensamento" através das fotos do filho. E a esta (reproduzida acima) põs uma legenda interrogativa: "O que dizem os teus olhos, mulher bijagó?"...

Está lançado o mote para mais um poste desta série "Fotos à procura de...uma legenda" (**).


2. Já temos três comentários... Oxalá os nossos inspirados leitores acrescentem mais uns tantos... Afinal há qualquer coisa de intrigante, sedutor, misterioso, desafiante, irónico, quiçá de angustiante e de  trágico... no olhar desta Mona Lisa de Bubaque. É um olhar humano, que pode ter mil e uma leituras... (**)

Recorde-se que os Bijagós já há muito que está colocado na lista dos 10 lugares mais ameaçados do planeta face às mudanças climáticas. E Bubaque restá a sofrer forte pressão humana e turística... mas não tem água potável, saneamento básico, recolha de lixo...

(i) Cherno Baldé:

Caro amigo Joaquim Costa,

“O que dizem os seus olhos” ?

Os seus olhos dizem o que , de facto, ela é, mulher bijagó, orgulhosa, simples e sem medo, ligada à terra e às suas profundas raizes culturais. Os seus olhos trazem em si o desassossego das águas do mar Atlântico e a resiliência de quem sempre lutou para continuar a existir por si e ainda acredita na infinidade da vida e do mundo que os rodeiam e dão sentido à sua existência.
Ali, num espaço de uns reduzidos 2 metros quadrados, tens a descriçao completa do mundo bijagó:

  • a força da tradição, expressa numa saia de fibras extraidas de ramos da palmeira;
  • os seus utensilios artesanais de carga e de transporte, com que se constrói a vida diária da mulher bijagó;
  • as folhas de plantas com que fabricam as esteiras entrelaçadas, utilizadas como camas:
  • e, sobretudo "o chabéu" os frutos da palmeira (tchebém em Crioulo), a arvore “fétiche” e polivalente que fornece mais de que metade da alimentaçao diaria do povo Bijago, sem precisar , quase, de nenhuma assistância do exterior..

Um olhar de confiança e de aconchego que convida os estrangeiros para uma convivência plena e pacífica, num mundo que pertence a todos.

Conta-se sobre os bijagós que, numa das muitas campanhas (guerras) de pacificação vs repressao entre portugueses e bijagós, particularmente na Ilha “rebelde” de Canhabaque, derrotados mas não convencidos, foram-lhes impostos condiões de rendição segundo as quais deveriam pagar de forma imediata e sem derrogações, todos os impostos em dívida durante muitos anos de rebeldia e ainda acrescidos de coimas por incumprimento de prazos legais. 

O chefe ou a chefe dos bijagós pediu aos seus para que trouxessem o que chamou de dinheiro bijagó. E assim, diante do Comandante, foram depositos os sacos cheios de nozes do fruto da palmeira (coconotes) sobre os quais o chefe, retomando as palavras iniciais dirigidas aos brancos e seus auxiliares fulas, informou que o coconote (fruto da palmeira) era o único bem valioso que o bijagó conhecia e detinha, porque o outro bem ou dinheiro ao qual, certamente, o chefe fazia alusão era dos brancos, fabricado na sua terra de origem e com a efige do seu rei e soberano a que eles, bijagós, nao dizia respeito e nem possuiam na sua humilde terra para se servirem como meio de pagamento.

Os bijagós eram assim, simples, directos e destemidos.
Com um abraço amigo, Cherno Baldé

8 de junho de 2022 às 16:17

(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

Magnifico comentário, Cherno, grande homenagem às mulheres e aos homens bijagós, gente que faz gala da sua dignidade e orgulho.

Mantenhas.

8 de junho de 2022 às 16:24

(iii) Joaquim Costa:

Obrigado, Cherno. Pela tua extraordinária, e quase comovente, descrição sobre esta linda mulher Bijagó

Este olhar não deixa ninguém indiferente. É um olhar que alcança muito para além daquilo que os olhos vêm.

Neste olhar não há tristeza, não há medo, não há rancor… Há LIBERDADE

Joaquim Costa

8 de junho de 2022 às 16:46

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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P23337: Historiografia da presença portuguesa em África (320): Grande polémica (1): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Permanecem muitos pontos de interrogação quanto às razões fundadas que poderão ter levado à extinção da Liga Guineense, instituição declaradamente republicana, outrora reconhecida como muitíssimo útil e que passa a ser tratada como uma entidade demoníaca por se ter oposto aos planos perpetrados pelo Capitão Teixeira Pinto para submeter os indígenas de Bissau. Como ficou demonstrado, Abdul Indjai saqueou e destruiu por anos a economia dos Papéis e dos Grumetes da ilha. Não se conhece melhor documento que rebata as teses triunfalistas pró-Teixeira Pinto que o opúsculo escrito por Luís Loff de Vasconcelos, conceituado escritor cabo-verdiano que seguramente teve acesso a depoimentos que a versão oficial silenciou.

 É inaceitável que a História da Guiné Portuguesa deixe na penumbra uma investigação determinante para se perceber não só o caráter da campanha de pacificação mas pelo facto de se dever atribuir o sucesso da mesma a um saqueador que foi régulo e déspota tão turbulento que pela segunda vez foi levado ao exílio. 

Respeitando o contraditório, vamos ver agora as teses que se opõem.

Um abraço do
Mário



Grande polémica (1):
Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai


Mário Beja Santos

O papel da Liga Guineense e a sua extinção continua envolto em mistério. Tendo denunciado as atrocidades e roubos perpetrados por Abdul Indjai e os seus auxiliares ao serviço da chamada Campanha de Pacificação da ilha de Bissau, em 1915, sabe-se que alguns dos seus dirigentes foram presos, que um governador da Guiné entendeu haver motivos para o desaparecimento da Liga e entretanto um conhecido escritor e publicista nascido em Cabo Verde, Luís Loff de Vasconcelos, escreveu no ano seguinte uma demolidora catilinária que intitulou A defesa das vítimas da guerra de Bissau, o extermínio da Guiné, editado pela Imprensa Libânio da Silva, Lisboa, 1916. 

O  documento pode ser consultado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Como é óbvio, dar-se-á depois direito ao contraditório, e para tal usar-se-á a obra de Armando Tavares da Silva.

O escritor cabo-verdiano dirige-se ao Ministro das Colónias, ao Governador da Guiné, Andrade Sequeira, à justiça portuguesa e ao povo português, e logo desembainha a espada:

“É triste dizê-lo, mas a Guiné Portuguesa esteve durante longos meses no domínio de uma ditadura feroz e de um temor indiscritível. Desde 1914, até à chegada do atual governador, Andrade Sequeira, não se respirava livremente nesta colónia. A Guiné era um teatro de guerra, mas não uma colónia habitável. Deu-se a invasão das hostes guerreiras de Abdul Indjai, arvorado em chefe dos irregulares e poderoso auxiliar das nossas reduzidíssimas forças militares regulares, comandadas pelo Chefe de Estado Maior, sob a razão ostensiva de se focar rebeliões que não existiam senão na fantasia e no cérebro doentio e ardente de alguns megalómanos, e ainda sob o fundamento da resistência dos indígenas em pagar o imposto de palhota.

Abdul Indjai aproveitou-se dessas incursões militares; as importantes presas de guerra eram para ele e seus guerreiros, recrutados aqui e acolá, compostos da pior gente de todas as raças da Guiné. Era uma quadrilha de bandidos, assolando e saqueando o território ocupado por outras tribos, mascarados e disfarçados em auxiliares das nossas forças!

 Quadrilha aguerrida, composta também de muitos Torancas (indígenas da colónia francesa) profissionais da guerra e do saque. Abdul Indjai recorreu a um ardil: declarou-se que os Papéis não acudiam ao apelo da civilização, à subordinação ao governo, à entrega de armas e ao pagamento do imposto de palhota e que, portanto, estavam em estado de rebelião, a que era indispensável pôr termo”.

Loff de Vasconcelos (na foto à direita) elabora a minuta de agravo, apresenta a relação dos acusados como autores e chefes do incitamento à chamada rebelião dos Papéis de Bissau, e prossegue a sua perlengada:

“A história das operações militares dirigidas contra os indígenas da ilha de Bissau, em maio de 1915, é fácil fazer-se e mais fácil ainda de compreender-se. Pela portaria de 13 de maio de 1915, do governador Oliveira Duque, foi imposto aos indígenas da ilha de Bissau a entrega de armas e o pagamento do imposto de palhota. Atribuiu-se que fizeram desacatos e não permitiram no arrolamento, desrespeitando a nossa soberania, pelo que foi determinado a criação de uma coluna de operações para submeter os indígenas rebeldes de Bissau".

Ora, diz Loff de Vasconcelos, as coisas passaram-se de modo muito diferente. Os Papéis pegaram em armas, não por espírito de rebelião, mas porque suspeitavam que Abdul Indjai conspirava contra eles, intrigando-os com as autoridades da colónia, interessava-lhes provocar a guerra para saquear. Abdul foi o chefe de guerra, à frente de 1500 irregulares, incluindo 200 cavaleiros. 

Não se enganaram na suspeita; enganaram-se, porém, na vitória que esperavam alcançar contra esse temível e temido inimigo da sua raça e a derrota sofrida custou-lhe tudo o que tinham em gado e mantimentos, foi parar às mãos da gente de Abdul. Deu-se este absurdo: uma das razões da guerra foi a recusa do pagamento de imposto de palhota. Ora, tendo-lhes sido confiscados os bens perderam os recursos – os meios prejudicaram os fins.

Esta guerra fez-se não para servir os interesses da colónia mas pura e simplesmente e com a anuência inqualificável do Governador Oliveira Duque para vingar a morte do seu filho. 

E Loff Vasconcelos traça-nos o retrato de Abdul Indjai: é um emigrado de Ziguinchor, foi para Cacheu e Costa de Baixo, fez comércio e conseguiu ser um pequeno cliente da Casa Alemã Soller, ia pagando os calotes com as cabeças de gado que foi apresando na guerra aos Balantas e no Oio. Descreve episódios de negócios frustrados, vivia em Geba quando ocorreu que os Oincas não quiseram satisfazer o pagamento do imposto de palhota, ele então ofereceu-se para recolher o imposto, levou homens armados, nem tudo correu bem, conseguiu escapar milagrosamente. Na região de Geba roubava, pilhava e atacava caravanas. O comandante de Geba deu-lhe voz de prisão, Abdul foi levado para Bissau e deportado para São Tomé pelo governador Oliveira Muzanty. Em São Tomé foi perdoado pelo príncipe real Luís Filipe.

Loff de Vasconcelos acrescenta ainda outros dados biográficos que ele considera eloquentes. Em 11 de maio de 1915, dois dias antes da declaração de guerra de Bissau, Abdul era investido no cargo de régulo do Oio – falamos de um homem que tinha sido deportado para São Tomé em 1906 como inconveniente à tranquilidade da província e cujas tropelias chegaram a ameaçar as nossas boas relações com as autoridades estrangeiras vizinhas.

 Em 3 de junho de 1915, Teixeira Pinto e a força maioritariamente constituída pelos auxiliares e regulares invadiu as populações de Antim, Bandim e Antula. Seguiu-se carnificina e fuga; todo o rico e extenso território habitado pelos Papéis está hoje na maior desolação e miséria. Calcula-se que cerca de cinco mil cabeças de gado vacum foram apresados pelos irregulares. E Loff de Vasconcelos assegura que a maioria da população civilizada da Guiné foi contrária a esta guerra. E segue-se a parte jurídica.

Logo a declaração do prisioneiro de guerra, António Gomes, que dissera que a rebeldia do gentio Papel e dos Grumetes em não prestar obediência ao Governo se devia aos Grumetes Grandes que pertenciam à Liga Guineense – é este o único depoimento concreto em todo o monstruoso processo, em que foram inquiridas 45 testemunhas. 

Ora um prisioneiro de guerra que se presume estar em estado de coação, o seu testemunho não tem valor jurídico. Foram proferidas acusações gravíssimas à Liga Guineense. Loff mostra carta de Teixeira Pinto com data de 9 de março de 1913 em que se exalta a página brilhante escrita pelos Grumetes de Bissau para a consolidação da soberania portuguesa, aludindo ao castigo infligido a Balantas e Felupes em 1912. E Loff diz que o governo se aproveitou dos serviços da Liga Guineense para seus fins, sempre que deles carecia chamando-lhes prestimosa Liga, segue-se a petição de queixa e participação contra o capitão Teixeira Pinto e Abdul Indjai, vem o rol dos queixosos acusados de instigadores da revolta dos Papéis de Bissau, e Loff argumenta:

“Como poderiam os agravantes estar implicados num crime de rebelião se eles sempre se esforçaram para evitar essa desastrosa guerra de Bissau como provam alguns documentos? Não cabe na mente de nenhum cérebro regularmente organizado e regulamentado a suposição de que os agravantes poderiam ter tido a vaidade de instigar essa guerra? 

Era ao agravante António Teixeira, um velho respeitável, caráter pacífico e concentrado, exemplaríssimo chefe de família, amigo dos portugueses e comerciante abastado, a quem poderia convir a guerra de Bissau?

 Era Augusto Domingos da Costa, antigo empregado e tesoureiro de alfândega, louvado pela coragem e sangue-frio com que resistiu às ameaças dos gentios que em grande número assaltaram o Posto de Arame, que teria interesse na revolta dos Papéis? 

Era Gomes Barbosa, Alvarenga, Robalo, Gomes e Lopes, prestimosos cidadãos, que têm prestado relevantes serviços a esta colónia, que desejariam a rebelião dos Papéis e a guerra de Bissau? 

Certamente que não. Todos eles tinham interesse no contrário, como sempre manifestaram. O culpado é quase sempre aquele a quem o delito aproveita. Procurem-se os verdadeiros culpados, hão de encontrá-los – que não os agravantes. Os hoje acusados poderão converter-se amanhã em acusadores”.

Para Loff de Vasconcelos, a declaração do estado de sítio e organização da coluna para submeter os chamados rebeldes de Bissau não era mais do que a continuação do plano de guerra de 1913. Mas os tempos tinham mudado. Em maio de 1915, uma grande parte das povoações de Bissau já tinha começado a pagar o imposto de palhota e os régulos pediam insistentemente ao governo para não lhes fazer a guerra e se não pagavam mais foi porque lhes diziam que quem não pagasse teria a visita de Abdul Indjai. 

Era público e notório que a Liga Guineense se opunha tenazmente à guerra. Depois de descrever a calamidade em que ficara a ilha de Bissau, Loff junta à lista dos testemunhos dos atos de barbaridade praticados e vai acusar diretamente Teixeira Pinto. Ele era comandante das operações militares, organizou um inquérito na povoação de Bissau e na vila de Bolama, levantando de motu proprio autos de investigação, procedendo a buscas e apreensões, requisitando e ordenando capturas de pessoas não militares, usurpando as funções de agentes da polícia judiciária militar. Mandou prender os queixosos, deixando de cumprir, mesmo que tivesse competência legal para o fazer, os preceitos correlativos do Código do Processo Criminal Militar.

É este o escopo essencial do documento elaborado por Loff Vasconcelos. Convém agora ouvir argumentação que se opõe e na sua sequência damos a palavra à argumentação utilizada por Armando Tavares da Silva na sua obra Presença Portuguesa na Guiné: história política e militar, 1878-1926.

(continua)

João Teixeira Pinto
Abdul Indjai
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23318: Historiografia da presença portuguesa em África (319): “História das Colónias Portuguesas, Obra Patriótica sob o Patrocínio do Diário de Notícias", da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa; Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade, 1933 (Mário Beja Santos)