sexta-feira, 9 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24381: Notas de leitura (1589): N’Krumah, o líder da unidade africana, o denunciante das tramas do neocolonialismo (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
O líder ganês foi uma figura altamente influente junto dos movimentos de libertação. Não escondia a sua propensão para a ideologia, teve mesmo ambições filosóficas, os seus apelos à unidade africana foram escutados por muitos políticos, Amílcar Cabral não foi insensível ao princípio do continente unido e aos perigos do neocolonialismo, deixou escrito que poderia ser uma ameaça à Guiné independente. Nkrumah escreve este seu último livro antes de ser deposto dando informação detalhadissima sobre os recursos africanos e como as antigas potências coloniais continuaram a influenciar o sistema económico-financeiro das nações formalmente independentes, privilegia a posse que tais monopólios tiveram das riquezas extraídas, desde estanho, alumínio e níquel, ao ouro e diamantes. O mundo da cobiça alterou-se profundamente, a China está por toda a parte, a Índia está a chegar em força e os grandes negócios ocidentais também precisam das matérias-primas fundamentais para dominarem o paradigma digital. Na posse desta informação, não deixa de ser curioso reler N'Krumah e perceber que a África tem sempre tutores que esvoaçam à volta para comprar barato a matéria-prima e vender caro o produto transformado.

Um abraço do
Mário



N’Krumah, o líder da unidade africana, o denunciante das tramas do neocolonialismo

Mário Beja Santos

Não se pode estudar o pan-africanismo, o movimento independentista africano e a ascensão do Movimento dos Não Alinhados sem trazer à colação o pensamento e a obra de N’Krumah [foto à direita], o presidente do Gana que foi deposto por um golpe de Estado em fevereiro de 1966, e posteriormente obrigado a viver no exílio. Os ditadores ganeses subsequentes deram diferentes razões para o golpe de Estado e uma delas era que N’Krumah fomentava a subversão na África. Este livro sobre o neocolonialismo foi editado em inglês em 1965 e editado em 1967 pela editora Civilização Brasileira. É um estudo impressionante pela documentação carreada sobre a presença inequívoca das antigas potências coloniais apoiadas por poderosíssimas multinacionais que cobiçavam matérias-primas, desde o cobre ao ouro e os diamantes.

É uma escrita de denúncia, como ele esclarece:
“Descolonização é uma palavra insincera e frequentemente usada com os porta-vozes imperialistas para descrever a transferência de controlo político, da soberania colonialista pan-africana. A pedra-mestre do colonialismo continua a controlar a soberania. As nações novas são ainda as fornecedoras de matérias-primas, as velhas de produtos manufaturados. A alteração das relações económicas entre as novas nações soberanas e os seus antigos senhores é apenas de forma. O colonialismo encontrou novo disfarce. E o neocolonialismo está-se entrincheirando rapidamente dentro do corpo de África, através de combinações de consórcios e monopólios. Esses interesses estão centralizados nas companhias mineradoras da África Central e do Sul. Da mineração, ramificam-se em uma trama complexa de companhias de investimento, interesses manufatureiros, organizações de transporte e utilidade pública, indústrias de petróleo e químicas, instalações nucleares e muitas empresas demasiado numerosas para se enunciar”.


Metodicamente, N’Krumah discorre sobre os recursos de África, a natureza dos obstáculos postos ao progresso económico africano, como atua a finança dos poderosos, como funciona a equação entre os recursos primários e os interesses estrangeiros, passa em revista os grandes grupos envolvidos, esclarece o mecanismo do neocolonialismo. Ao pôr o título Neocolonialismo – Último estágio do imperialismo, certamente convicto que era título impactante, a História encarregou-se de pôr em causa a asserção, na atualidade o imperialismo mudou de look e natureza, a China é uma presença poderosíssima e as multinacionais ocidentais disputam as matérias-primas que têm a ver com as tecnologias do futuro, sem prejuízo dos recursos profissionais. O líder carismático do pan-africanismo acreditava que as antigas potências coloniais olhavam para os seus antigos territórios como incapazes de desenvolvimento independente, procuraram desde a primeira hora da independência formal em manter vínculos, desde a preparação dos novos quadros dentro de uma lógica mental ocidental até à oferta da segurança militar. Manteve-se a lógica económica do passado, o que interessava eram as matérias-primas que continuavam a ser processadas no mundo ocidental, e os produtos acabados regressavam, acarretando grandes lucros às empresas fabricantes. Ele igualmente anota a disparidade dos preços atribuídos à matéria-prima comparado com o bem de consumo.

Não há riqueza que ele não estude, veja-se a título exemplificativo a exploração do diamante, neste tempo centralizada na Diamond Corporation, organização com papel aquisitivo central para os compradores internacionais de diamantes, tendo depois assento na Companhia de Diamantes de Angola, e com conexões com poderosos grupos, caso do Morgan Guaranty Trust. Morgan estava também associado ao Banque Belge que representava na direção da Companhia dos Diamantes de Angola outra empresa angolana, a Companhia de Pesquisas Mineiras de Angola. “A Angola Diamonds tem direitos monopolistas que lhe permitem extrair diamantes em quase um milhão de quilómetros quadrados de Angola. Estão em operação 43 minas, abertas para substituir outras tantas cujas reservas se extinguiam. A Companhia está registada em Portugal e o Governo de Angola tem nela interesse direto, como agente administrativo local do Governo Português. O Governo de Angola possui 200 mil ações, ligeiramente acima das 198.800 pertencentes à Société Générale. Cerca de metade dos trabalhadores africanos da Companhia são forçados, reunidos compulsivamente pelas autoridades. Os excelentes lucros da Companhia são divididos igualmente entre a província de Angola e os acionistas, depois de 6% terem sido reservados à administração (…) Diamond Corporation tem acordos contratuais para a compra da produção da Angola Diamond, que vinha sendo recentemente de mais de um milhão de quilates e poderá ser ainda maior, segundo as estimativas. Os diamantes preciosos representam 65% da produção”.

É impressionante o império que estava na mão da De Beers. E referindo-se aos interesses em minérios na África Central, N’Krumah lembra-nos a criação da British South Africa Company, obra de Cecil Rohdes para a construção de impérios. No início da década de 1890, impulsionou a compra de grandes extensões de terra governadas por chefes nativos, contribuiu para guerras entre etnias, com a colaboração de soldados da South African Company, os chefes enganados bem procuraram justiça, estava em marcha a criação de uma via entre Cape Town até ao Cairo, o governo de Londres limitou-se a intimidar as autoridades portuguesas, constituiu-se uma espinha dorsal de negócios que se estendeu pela Zâmbia, Rodésia e a antiga Bechuanalândia, entrando no Malawi, e com associações como a que estabelece com Harry Oppenheimer e a Angloamerican Corporation, o autor desenvolve a teia de mil fios entre a Rodésia e a Zâmbia, é um extenso trabalho em que põe a nu os interesses neocoloniais, que mistura com zonas monetárias e a presença da banca estrangeira. Não menos impressionante é o que ele revela sobre a importância estratégica dos negócios do Congo e a maquinação perpetrada pelos belgas para continuar à frente dos negócios congoleses.


Reclamando sempre a unidade africana, adverte que nenhuma potência imperial jamais concede a independência a uma colónia a não ser que as forças fossem tais que não houvesse outro caminho possível. “A unidade africana está ao alcance do povo africano. As empresas estrangeiras que exploram os nossos recursos de há muito compreenderam a força que pode ser obtida através da ação em escala pan-africana. As companhias aparentemente diferentes formaram de facto um enorme monopólio capitalista. O único meio efetivo de desafiar esse império económico e recuperar a posse da nossa herança é agirmos também em escala pan-africana, através de um governo unido. Ninguém poderia dizer que se todos os povos da África combinaram formar a sua unidade, a sua decisão poderia ser revogada pelas forças do neocolonialismo”.

Este trabalho de N’Krumah é hoje uma relíquia para investigadores. Poucos meses antes da sua deposição ele deixou esta radiografia de África, um admirável quadro clínico dos males que afligem os povos africanos e lhes estorvam o desenvolvimento. N’Krumah, diga-se em abono da verdade, era um intelectual de formação sólida, hesitando entre uma linha marxista autónoma e uma filiação do pan-africanismo ao Movimento dos Não-Alinhados. Utópico, é assim que hoje se classifica este sonhador, no entanto deixou a tal radiografia que se mantém inalterável, só que os jogos africanos hoje têm novos protagonistas, aqui se digladiam, com grande ferocidade, os interesses ocidentais e asiáticos. Chamem-lhe o que quiserem, mas não deixa de ser neocolonialismo.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24369: Notas de leitura (1588): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (3): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24380: (In)citações (247): Já comíamos ostras em Empada, em junho de 1969: abertas em chapa quente com o lume por baixo e passando depois pelo picante e limão... (José Manuel Samouco, ex-fur mil, CCAÇ 2381, 1968/70)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3

Guiné : Região de Quínara > Empada > Junho de 1969 > CCAÇ 2381, "Os Maiorais" (Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70) >  Já então se comiam ostras em Empada, em Buba... Os militares da foto nº 3 estão a extrair as ostras em conglemarados ou cachos agarrados aos "paus" do tarrafe...

Fotos (e legenda): © José Manuel Samouco (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do José Manuel Samouco [ex-fur mil, CCAÇ 2381, "Os Maiorais" (Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada , 1968/70); vive em Torres Vedras; é membro da nossa Tabanca Grande desde 4 de abril de 2006]

Data - 8 jun 2023 16:24 
 
Assunto . Ainda as ostras (*)

Boa tarde,  Luís

Quando se fala de ostras até parece que sou dependente!

Resolvi escrever um pequeno texto, recordando coisas boas da Guiné.

Como é normal só publicam se entenderem, o mesmo com as fotos de Empada.

Um abraço, 
J. M. Samouco


Ainda as Ostras ! Empada, Junho de 1969 (**)

Finalmente os “Maiorais” reunem-se depois de praticamente 12 meses espalhados por onde havia guerra.. Não que em Empada não houvesse guerra. Mas agora com a Companhia reunida,  tinhamos a sensação de estar ainda mais fortes.

Alguém, entretanto regressado falou em ostras e como se devem comer e como as arranjar. Em Bissau são abertas em água quente como se fosse berbigão. e ficavam muito bem. Mas, boas, boas,  são abertas em chapas quentes com o lume por baixo e passando depois pelo picante e limão.

Foi como uma novidade que veio para ficar. Praticamente todas as semanas começaram a chegar em doses tais, que nem entravam na messe dos Sargentos. Numa das fotos que envio até o chefe de posto de Empada  (foto nº 1) veio sentar-se junto de nós.

Em 2015 voltei à Guiné, agora Guiné-Bissau, com camaradas da Tabanca de Matosinhos e até parece que as ostras estavam à minha espera. Foi um matar de saudades das ostras e ver calmamente a Guiné por onde tinhamos andado de G3.

Em 2017 voltei às ostras. Quinhamel esperava por mim.. Que maravilha.. A factura não engana. 4 pessoas :

7 minis, 3 sumos e 4 doses de ostras = 284,000 CFA (0,432 euros)

1 euro = 657,26 Franco CFA (BCEAO) em 14 março de 2017.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - 24376: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (36): As ostras do nosso (des)contentamento (Hélder Sousa / Luís Graça / José João Domingos / Valdemar Queiroz)

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24379 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (1): À porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas...


Foto: © Luís  Graça (2011). 

Contos com mural 
ao fundo (1) >
À porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas 


por Luís Graça




1. O que é que um gajo faz, das oito às nove, junto à entrada de um hospital, para mais oncológico ?


Aqui, esperas, desesperas, esperas. Que a esperança é a última coisa a morrer, diziam-te na tropa os gajos mais otimistas, os safados dos instrutores, sobretudo dos coirões, velhos, dos cabos RD, readmitidos, que sabiam que já não iam à guerra, nem nunca morreriam docemente pela Pátria.

Joga-se com a teoria das probabilidades: daqui a cinco a anos, terás cinco por cento de hipóteses de estar vivo, se te diagnosticarem um cancro no pâncreas, diz o teu amigo que está lá dentro a esta hora… Pálido como a cal da parede, sentado na sala de espera, esperando o pior, imaginas tu... Como o réu que aguarda a sentença de morte do coletivo de juizes...

Também ele espera, desespera, espera. Imaginas tu, que nunca entraste no IPO, por medo, por superstição, ou muito simplesmente porque nunca até agora precisaste de lá ir.  (Cruzes, canhoto!)... 

Enganas-te, já não se pintam paredes com cal, que era antigamente um bom desinfetante. Nem se cobrem os mortos com cal, hoje são cremados, sobretudo se morrerem de cancro. Dantes, no tempo em que morreu a tua mãe, não se pronunciava sequer a palavra cancro, escrevia-se nos jornais, na notícia necrológica, que o fulano ou fulana de tal morrera de doença de evolução prolongada. Ou grave e incurável. De doença maligna. Um eufemismo. Um pudor hipocrático. Uma hipocrisia social. Como se houvesse doenças benignas!...E uma boa morte! (É verdade, evitamos pronunciar palavras como cancro ou morte.)

Esperas dentro do carro, mal estacionado, em segunda fila. E, talvez para não desesperares, jogas o jogo do “voyeurista”. Não, não espreitas o mundo pelo buraco da fechadura, mas estás meio escondido, na semiobscuridade do interior do teu carro, a ver o que se passa lá fora, à tua volta… Simplesmente, para passar o tempo, fazer horas... Não sejas cínico. muito menos medricas: estás apenas a tentar a disfarçar o nervoso miudinho, a tentar esquecer ao que vieste, acompanhar um amigo em sofrimento, com uma espada de Dâmocles em cima da cabeça...

Do teu posto de observação, vê-se num raio de noventa graus. Aqui o teu olhar, mesmo distraído, é seletivo. O olho de periscópio do camaleão podia ter-te dado jeito lá na guerra, quando atravessavas a bolanha ou cambavas o rio, mas não aqui, que tens para ver apenas o que se passa entre o nº 15 e o nº 19 do prédio ou prédios, à tua frente, no início da Av Madame Curie.

Por uma questão, digamos, de eficiência oftalmológica, tens de estreitar o teu campo de visão. Tens duas palas nos olhos, com o o burro. É um ângulo de noventa graus, abarcando sensivelmente um quarto do pequeno, pequeníssimo, mundo que te circunda  e estrangula. Há gente que vive assim e morre na cama, feliz. Não acreditas, mas o que é que te contam: "felizardo, teve uma morte santa, não sofreu nada, foi um ar que lhe deu!|"...

Uma nesga do planeta que nada tem de deslumbrante, empolgante ou minimamente interessante . O que tu vês é o pequeno mundo do formigueiro humano, mesmo que seja gigante aos olhos da formiga: a saída de casa para a rua, o metro, o trabalho, o café, a creche, a escola, o hospital, ou o simples passeio higiénico com o cão pela trela… Nem sequer vês quem entra e quem sai do IPO, estás de costas. Uns com cancro,  outros sem cancro, e os outros  que cuidam de quem está doente, ou vai visitar um doente... Mas era talvez o único sítio que te deveria prender a atenção: daqui a um bocado o teu amigo (e antigo camarada de armas) sai, cabisbaixo ou de cabeça erguida…

Estás inclinado a apostar que ele sairá de cabeça erguida, mesmo com um prognóstico reservado: era, tanto quanto te lembras dele na Guiné, à distância de meio século,  um dos gajos tesos, que mostravam grande lucidez, dignidade, calculismo, sangue-frio  e coragem na adversidade. Qualidades, de resto, que lhe valeram um louvor, e que faltavam a outros tantos, com mais divisas ou galões do que ele.

Nunca tiveste grandes amigos na vida. Se é que tiveste amigos... E muito menos daqueles do peito, como se costuma dizer. Este é um deles, dos muito poucos que te ficaram para a vida.  Estiveram, ambos, na guerra, tu e ele. Sempre te tratou por "mano". Ele, o Zé Conde,  era um exímio caçador, e tu um reles fotógrafo amador, nas horas vagas. 

Ele sempre foi muito mais corajoso e determinado do que tu: como  caçador saía ao lusco-fusco, sempre convicto de que ia caçar alguma coisa de jeito, na orla da bolanha, no charco onde a bicharada ia dessedentar-se  ou, à noite, no fim da pista de aviação, onde crescia a erva que fazia as delícias de alguns animais.  Quem espera, sempre alcança. E ele apanhava lebres,  galinhas de mato, rolas, raramente caça grossa, quando muito uma gazela ou um javali. Qualquer coisa, enfim, com que a malta pudesse matar a malvada nos dias seguintes, lá na messe. 

Tu eras como o fotojornalista do quotidiano: punhas a tua máquina a tiracolo, uma Minolta (se bem te lembras) e ias dar um giro domingueiro pelas tabancas. Nunca foste capaz de levar a máquina para o mato, para uma operação. Aliás, nunca foste sequer um fotógrafo de jeito. E  perdeste tantos momentos de tirar fotos com sangue, suor e lágrimas,  ou seja com emoção, que é afinal o "spice of life", o sal da vida!

Há tempos ele pediu-te para o acompanhares até ao IPO. "Alguma coisa de grave?", pergunta, estúpida, da tua parte. "Eh!, pá, porra, ainda não sei bem...,  parece que estou com um cancro", respondeu-te ele... Ele não disse logo cancro, disse carcinoma, neoplasia, linfoma, ou outra merda qualquer,  enfim, um vocábulo mais técnico, mais neutro, mais enganador... "Mas hoje não há nada que não tenha remédio, até o sacana do cancro", arrematou depois, com ironia. "Parece que estou  com um carcinoma na próstata, estou o PSA alto como o caraças... O urologista fez o toque recta e mandou-me fazer uma biópsia, nal sinal... Vou lá saber o veredicto".

Ficaste sem pinga de sangue, sem jeito para lhe responder, assim apanhado de chofre. Balbuciaste umas palavras, secas,  de circunstància, com mais compaixão do que de solidariedade. Tentaste gracejar, aliviar a tensão: "Não há de ser nada... Os amigos são para as ocasiões... Vou contigo ao IPO, nunca lá entrei, nem sei bem o caminho... mas a gente desenrasca-se".

Em Lisboa não tem ninguém. E dos dois filhos, o que está mais perto é em Angola, de quem, aliás,  és padrinho de casamento. Tem um outro na Austrália. Somos um raio de um povo repartido pelos cinco continentes, com os filhos, os sobrinhos  e os netos separados, por mares e oceanos, dos pais, dos tios e dos avós.  

E quem vem da província, não está habituado ao trânsito de Lisboa. Foste buscá-lo ontem a Sete Rios, que é ali perto do IPO. Desta vez, veio no "Expresso",    de vespera.  Ficou na tua "morança", agora demasiado grande para um homem que vive só. Ofereceste-te para ir buscá-lo a casa. Recusou, polidamente. Se tivesses insistido, teria aceite. Quando vier aos tratamentos, se vier (mas é o mais provável(, virá de ambulância. É sócio dos bombeiros da terra, não longe da capital, em Samora Correia. Trabalhou como técnico agrícola lá nas Lezírias. Acabara de se reformar há pouco tempo. ("Um gajo reeforma-se e, zás!, cai-lhe tudo em cima, mano!... Parece que alguém nos quer  cobrar a fatura por, continuando vivos, sermos um peso morto para os ativos"...)

2. Farmácia Curie, nº 15A. Frente à entrada principal do IPO. Grande cartaz publicitário, que cobre a montra. Faz propaganda a um “medicamento” que, depois, vai-se a saber, é apenas uma “vitamina”… Uma "mesinha", como se dizia na Guiné. Um placebo, uma droga para enganar doentes e sãos. Do Laboratório Militar, que dava para tudo, até para a tusa, o paludismo, a dor de corno, a blenorragia, a saudade, a neuratesnia, o medo... Tomavam-se com uísque, as "pastilhas LM"...

Mas qual a diferença entre uma coisa e outra, numa botica onde é pressuposto vender-se tudo o que te faz bem à saúde e até o que te envenena e te mata?!... E ainda por cima tem o nome de alguém, uma mulher, que nunca foi boticária, a Madame Curie, a avaliar pelo que tu sabes das palavras cruzadas. Prémio Nobel de qualquer coisa, física ou química, sabes lá. Que a tua incultura geral é do tipo Reader's Digest.

"Absorvit – don't worry, be happy!”: em inglês, em letras garrafais, para consumo do turista estrangeiro que, por engano, se aventurar por estas bandas da cidade onde o trânsito é caótico, por causa das obras na Praça de Espanha.

E, logo a seguir, em letras mais pequenas, tipo legenda de filme, para o indígena lusitano, tratado por você, por deferência ou cinismo: “Sente-se em baixo? Viva o seu lado positivo da vida”. (Eh!, pá, o gajo que traduziu a frase, devia ter apanhado um monumental chumbo no exame em inglês!).

Mas adiante: ficas a saber que o “Absorvit é muita vitamina”… E registas no teu bloco de notas: “A vida tem dois lados, ou dois polos: um positivo, outro negativo. E às vezes funde-se como as lâmpadas”. Já lá vai o tempo em que se fabricavam lâmpadas elétricas e fusíveis para toda a vida... Que bom, quando na vida não havia curto-circuitos ! (... Idiota, quem te meteu essa cabeça?!)

Fazes coleção de frases feitas, expressões lapidares, lugares comuns, grafitos, provérbios excêntricos, anexins, citações famosas... É um dos teus passatempos, além da sopa de letras, no café do teu bairro, com a bica depois do almoço. Disseram-te que era bom para prevenir o Alzheimer, ou pelo menos adiá-lo. És um hipocondríco de merda, tens um medo das doenças que te pelas. De resto, quem não tem? Até os médicos e os padres... 

Espantosamente os muros do IPO parecem estar livres dessa peste dos grafiteiros. Talvez os gajos  sejam supersticiosos e lá, no mais recôndito do seu íntimo, tenham um medo do caraças do deus do cancro que os vigia, qual big brother. Não acreditas em deus, mas começas a suspeitar que há um deus do cancro. Ou até que há um deus para tudo. 

E vem-te à cabeça, uma frase cruel que te impressionou, do Camilo Castelo Branco, nas "Memórias do Cárcere": 

"Ignoro (...) se Deus deixou remédio para os defeitos das suas obras; confesso só que é um blasfemo atrevimento querer-lhas corrigir"... 

Conhecias outra, um provérbio, que é ainda mais devastador para um crente: 

"Se Deus o marcou, é porque algum defeito lhe achou". 

De que vale, afinal, um gajo, lutar contra o destino, se o teu corpo já traz, logo à nascença, as marcas dos "defeitos de fabrico"?!... E as taras todas dos teus antepassados até à cagagésima geração!...

Mesmo assim, não te deixas intimidar: aqui estás, à porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas

Enfim, ficas pelo menos a saber que há um lado da vida que se trata com antibiótico, outro com vitamina. Antibiótico, faca, bisturi, laser, radioterapia, isótopos,  quimioterapia, penicilina, morfina, etc., vem tudo a dar no mesmo. O que será o que esconde aquela fachada do IPO onde nunca entraste? Daqui a uns anoos nem batas brancas haverá, serás tratado por robôs, muito mais inteligentes do que tu...

Não disfarças a tua ansiedade, confessa. Nunca lidaste bem com as doenças, sobretudo a dos outros. E muito menos com a morte dos que te eram queridos: a tua primeira mulher, ainda tão jovem, os teus pais, já velhotes... Estás a escrever furiosamente como se fumasses cigarros uns atrás dos outros. Já não fumas há muito. Desde os anos 80, quando apanhaste aquela maldita  pneumonia, a seguir a uma  vulgar gripe sazonal. Ou crise palúdica, febrões, sezões de África?! ... 

Chegaste a temer tratar-se da doença nova que então espalhava o terror entre a malta que estivera em África, o HIV-Sida. No teu caso, na Guiné e depois em Angola. Lembras-te do médico que não conseguiu escondeu o nervosismo: depois de te apalpar o baixo ventre, foi logo direitinho ao lavatório do cubículo para lavar as mãos... O que estranhaste: os médicos que tu conhecias, até então não lavavam as mãos à frente do doente... Afinal, o ato médico sempre foi revestido de uma certa sacralidade...

Deixaste de fumar por conselho médico, mas sobretudo por medo do cancro do pulmão. “O medo tem muita força, meu amigo”, diz-te o Zé Conde que está lá dentro à espera do veredicto dos médicos. Como se os médicos tivessem o poder da vida ou da morte. Ou não têm mesmo?!


3. Há mais carros em segunda fila. Estás no teu carro, no lugar do condutor, enquanto aguardas o regresso do teu amigo, teu "mano"  e teu compadre que vieste acompanhar.  Estás impaciente, vê-se que não gostas de esperar, muito menos à porta de um hospital, para mais oncológico. Até na barriga da tua mãe, não gostaste de esperar. Com medo do escuro, com  medo de ficar sufocado. Ficaste com a fobia do ventre materno. Acabaste por nascer prematuro.

Estás no lugar do condutor. O do morto é ao lado. Lembras-te das colunas logísticas que fazias na Guiné. Ias na GMC do tempo da guerra da Coreia. Sentado ao lado do condutor. No lugar do morto. Com os pés virados para a mata, sempre pronto a voares  ao primeiro tiro ou explosão...

Continuas mal estacionado, agora no lugar reservado às cargas e descargas da farmácia e estabelecimentos contíguos. A esta hora da manhã já não há lugares livres para estacionar. Aqui e no quarteirão à volta, delimitado pelos muros do IPO, a Av Madame Curie e a Rua Professor Lima Basto. Tiveste que fixar os nomes das ruas e chegar  ao IPO pelo GPS... Estás em Lisboa há uma porrada de anos, e ainda há sítios que tu mal conheces: ruas, becos, praças, calçadas, escadinhas, miradouros, vilas e até bairros...

Nem a pagantes, lá dentro ou cá fora, há lugares de estacionamento. O lisboeta não gosta de pagar o estacionamento do carro. Daqui um bocado o gajo da EMEL ou o polícia municipal vai chatear-te. Mas ainda é cedo. Não te enerves. 

À tua frente, ao lado da Farmácia, na esquina da Avenida Madame Curie, fica a tabacaria e papelaria Polana… Nº 17A, se bem descortinas o número de polícia. Deve ser de alguém que retornou de África, de Moçambique, uma das joias da coroa do nosso império colonial. Tens uma vaga ideia de ouvir falar do Hotel Polana, havia um dos gajos da companhia na Guiné que era moçambicano. Nunca fostes para esses lados do Índico. Trabalhaste em Angola. Há anos que não voltas lá, a última vez foi para estar  com
 o teu filho e o teu afilhado. E agora tens lá netos que ainda não conheces. Nem sabes se ainda vais ter tempo de os conhecer.

Há um corropio de gente que vai comprar tabaco ou cartões da raspadinha. E mais raramente o jornal... Acabam de entrar e sair dois jogadores compulsivos, com o ar de quem não acordou em dia de sorte. Para tudo é preciso sorte. No amor, no jogo, na caça, na política, na guerra. Mas tentam,  uma e outra vez. Contaste até seis, as raspadinhas que eles deitaram fora. Depois desistiram e perderam-se no meio da  multidão, ao dobrar da esquina. Irritados, chateados... Amanhã talvez tenham mais sorte. Afinal, só calha a quem joga. Também devem acreditar que há um deus da sorte, como há um deus do cancro, e do amor, e do jogo, e da caça, e do poder, e da guerra. 

As mães levam as criancinhas para a escola, logo de manhã. Vão com ar ensonado, as criancinhas, ainda a comer o resto do papo-seco. Por que é que, meu Deus,  dão pão de plástico às criancinhas?!... Passeiam os vizinhos os cãezinhos. Um pai, com ar apressado, leva um carrinho de bebé, com duas crianças, a mais velha dependurada no estribo, em posição instável. Já vão atrasados para a escolinha.

Os velhos, como tu, já apareceram nas esplanadas, a seguir à Tabacaria e Papelaria Polana, no nº 17A, se não erras.  Não perdem pitada dos primeiros raios de sol. E que raio de nome é o do restaurante, no nº 19? “Bogani Desperta Caxito”, lê-se no toldo. Café, pastelaria, take away, restaurante Caxito. Outro topónimo de ressonância africanista, neste caso uma cidade de Angola, a norte de Luanda, mas onde tu nunca foste quando lá  estiveste. 
Quanto a Bogani, é marca de café, deduzes tu. Bogani Desperta. Enquanto há gente que espera, desespera, espera, à porta do IPO..., ficas a saber que o Bogani Desperta, diz a publicidade no toldo.

Não é mal pensado, um  comes & bebes aqui à beira de um hospital, para mais oncológico, por onde passam centenas, milhares de pessoas, todos os dias. Um gajo pode estar a morrer de cancro, mas continua a comer todos os dias, nem que sejam bifanas, pizas ou hambúrgueres (se é assim que se escreve). 

E no nº 17 o restaurante Quinta Avenida. Que nome pomposo! Faltam-te os arranha-céus, para te sentires em Nova Iorque. O edifício mais alto, por aqui, ainda é o velhinho, quase centenário,  IPO, que não terá mais do que seis ou sete andares, se bem os contaste, por deformação profissional. Em Angola, eras o "senhor engenheiro pela Universidade Técnica de Lisboa". Cá, dizias, com graça, no tempo da Expo 98, que eras um "trolha da construção civil com diploma de engenheiro". 

Se o polícia te aparecer a chatear-te, dizes que estás à espera de um doente. O que é  verdade,  mas não adianta. Ele põe-te a mexer. E, se refilares, ameaça-te com  "o papelinho da multa", a arma dos pequenos poderes. Dantes, na tropa, embrulhavam-te em papel selado. Ainda és desse tempo, vê como estás velho. Agora acabaram com o papel selado. Azul. Vinte e cinco linhas. E margens regulamentares. Proibido escrever nas entrelinhas, muito menos nas margens.

Mas ainda é cedo para te preocupares com o polícia ou o fiscal da EMEL. A esta hora estão a fazer a barba para pegar ao serviço. Depois vão tomar a bica, dar uma olhadela pelo jornal "A Bola", no quiosque da esquina e, pelo meio da manhã, talvez venham para a rua exercer a função. 

4. Já função do pâncreas, náo sabes qual é!... Mas deve ser um órgão fodido... Devias saber mais da anatomia e fisiologia do corpo humano. E a função do fígado? E do baço? E da tripa? E do rim, e da bexiga ?... E até do raio da próstata!... Nunca deste conta da tua... Até um dia em que começares a mijar sangue e a levantares-te de noite, diversas vezes, para aliviar a bexiga...

"Don't worry, be happy": é a melhor frase do dia, regista-a aí, no teu caderninho. Se tu a repetires muitas vezes ao longo do dia, talvez resulte e tu consigas chegar à tua casa, vazia, onde ninguém te espera, nem um cão nem um gato, no Bairro de Santos, com o ar de quem ainda pode vir a esperar algumas coisas boas da vida, e até dar-se ao luxo de aspirar a ser feliz. Põe a felicidade na tua lista de desejos a pedir ao Pai Natal, se ainda acreditas nalguma coisa.

Segue as instruções do teu psicoterapeuta: "Relaxe, respire fundo, peito aberto, coração ao alto!"... Ou "ao largo? "... Há uns que são mais aviadores, e ordenam-te" "coração ao alto!". Outros são mais marinheiros, e berram "coração ao largo!". 

Mas, não, não tens psicoterapeuta, se calhar até gostavas de ter, a tua ex, a segunda, também tinha, as amigas dela também tinham... Os psis faziam parte da herança de família mas tu é que pagavas a conta... Nunca deu certo um gajo ir para África trabalhar que nem um mouro e deixar cá as gajas, o cão e o gato. Hoje não tens mulheres, nem cães, nem gatos.

"Don't worry, be happy!"... É bom saber que alguém te ajuda (ou pode vir a ajudar) quando estás na merda. Um condutor de ambulância do Alentejo profundo (Mértola, se bem consegues ver pelo retrovisor o que está escrito na frente da viatura...) veio para aqui, à esquina da farmácia, fumar um cigarro eletrónico. Agora também está na moda, o raio do cigarro eletrónico. 

Mas reparaste, logo à entrada do IPO, num cartaz de 2 por 2 metros com os dizeres: "IPO sem tabaco"... Ao fim destes anos todos?... Afinal, tu estás muito à frente do IPO... Tu conseguiste deixar de fumar, depois de apanhares um cagaço... O cagaço faz bem à saúde. Os fumadores deviam apanhar um cagaço. Um pequeno cagaço não lhes faria mal.

Uma jovem sai do nº 15 para o trabalho com a lancheira na mão. Também está na moda, a lancheira na mão, de casa  para o trabalho... O que fará ela?... "Call centre", adivinhas tu!... Bingo!... Mais uma aventura no país dos "call centers".

Há mais carros estacionados em segunda fila, com os condutores lá dentro e os piscas ligados, à espera de alguém que foi ao IPO. É um corropio de carros e ambulâncias a entrar e a sair do IPO, olhas tu pelo retrovisor do esquerdo.

Um assistente operacional (é assim que  se diz  agora?!, dantes dizia-se operário, houve uma "upgrade" da nomenclatura ...), com a bata do IPO, vem também à Tabacaria. Na esplanada há já quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, a fumar. Um condutor de ambulância da Cruz Vermelha Portuguesa compra o "Record". A menina do Restaurante Quinta Avenida monta o resto das mesas e cadeiras da esplanada que ocupa parte do passeio. O segurança do IPO também vem comprar raspadinhas. Há duas jovens a tomar café. Uma, mais gordinha, fuma. A outra, mais magrinha, também fuma e está ao telemóvel. Devia ser proibido fumar num raio de cem metros do IPO, apontas tu no teu bloco de notas. E agora até dizem que os telemóveis também fazem mal à saúde. Por causa das radiações. És um trolha da construção civil, não sabes nada de (ir)radiações, ionisantes ou não-ionisantes. 

Porra, afinal o que faz mal à saúde, é um gajo estar vivo!... A vida é que faz mal ao cancro!... O cancro da mama, do esófago, da próstata, do pâncreas, da pele, do fígado, dos pulmões...

Uma mulher de meia idade veio cá fora raspar um cartão. Raspa com raiva. Ou é fé e determinação? Não lhe saiu nada. A Santa Casa da Misericórida de Lisboa (SCML) tem um móvel, à porta das papelarias, com um caixote do lixo só para os restos da raspadinha. Ecológica, a Santa Casa, amiga do ambiente. Há de comemorar os mil anos daqui a quinhentos, a Santa Casa.

Tens um marco do correio, vermelho, mesmo à tua frente. Um senhor, já mais velho do que tu, muito para cima dos 80, mas ainda com farta cabeleira branca, com ar de ter sido inglês e diplomata no Extremo Oriente, na outra incarnação, vem pôr uma carta no marco do correio... Já não vias este gesto, civilizado, urbano, romântico, e sobretudo  tão terno,  pòr uma carta de amor no marco do correio,  há muitos anos. Quem será a felizarda da destinária? Afinal, nunca é tarde para amar... (Se bem te recordas, era uma canção italiana do teu tempo de Guiné.)

Um casal (ele, mestiço, não digas mulato que é racista) entra na papelaria. Mulatas são as mulas. Ela acaba de fumar e mandar a beata para o chão. Há gente sem educação cívica. Ou és tu que estás hoje mais sensível e intolerante?!... Em Luanda, fazias o mesmo... Mas Luanda tinha metros e metros cúbicos de lixo a cada esquina.

Mais uma mãe com a criancinha pela mão. Saem batas brancas, de vez em quando, do IPO. Vêm aqui tomar qualquer coisa na Pastelaria. Não dá para ver o que consomem nem muito menos para ouvir as conversas lá dentro. Uma bata branca sentou-se cá fora, puxa de um cigarro. O café puxa o cigarro, ainda te lembras do teu vício quando fumavas nos anos 80?... Grande camelo!... Gostavas do "Camel"!...

Uma jovem mãe também se senta, com um carrinho de bebé. Fuma e fala ao telemóvel. Desalmadamente. E é feliz ou parece sê-lo. A maternidade torna as mulheres felizes, aponta aí no teu caderninho.

A Farmácia Curie não tem mãos  a medir, tem muita clientela, velhos que vêm aviar receitas. É uma mina, a velhice, para os boticários, os médicos, os fisioterapeutas, os nutricionistas, os ginásios, os hospitais, os cafés, os centros de dia,  e até as juntas de freguesia. "Teme a velhice, que ela nunca vem só", apontaste há dias este provérbio dito popular, no teu caderninho. "Badameco" (do latim,  "vade mecum", vai contigo), também lhe chamas, quando estás irritado contigo e com o mundo.

Os estabelecimentos estão todos bem situados, só o nº 15 é que te parece ser uma entrada de um prédio de habitação, com porteira. Se contaste bem, o prédio tem quatro andares e, pelo estilo e estado de conservação, deve ser dos anos 30.  Disso percebes tu, que foste encarregado de obras, ganhaste bom patacão no tempo da Expo... ("Patacão", graveto, cacau... em crioulo da Guiné.)

A menina do restaurante Quinta Avenida veio, agora, fardada a rigor, de preto,  e com um guardanapo branco no braço, fumar cá fora um cigarro eletrónico. Adoras as mulheres fardadas, ficam com um ar sexy, quando combinam bem o preto e o branco. Um adolescente de origem africana, auscultadores nos ouvidos, passa a falar alto ao telemóvel, e a gesticular, com ar gingão de rapper angolano. Parece feliz. A vida é bela quando um gajo está na casa dos verdes anos e não tem que ir para a puta da guerra, como tu foste na idade dele. Ou não está à espera de um amigo, à porta do IPO. Nem de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas.

Mais um estúpido de um gajo a fumar à porta do Bolgani Desperta Caxito. Deve ter 60 anos. Sabes lá se tem 60 anos, nunca foste bom a tirar idades... Nem pintas.  Se tivesses tirado a pinta à tua, nunca te terias casado com ela, nem ela te deixaria viúvo aos 40 e picos anos. Porra, mal tiveste tempo de a amar!

Mais um jovem e uma velha a fumar na esplanada. Na papelaria, o negócio do tabaco e da raspadinha continua em alta, e ainda o dia é uma criança. Estás visivelmente irritado com a demora do teu amigo... E o IPO ali ao lado, a mexer-te com os nervos.

5. Desistes aqui do teu jogo, desistes de continuar a observar e a registar o formigueiro humano. Fechas o vidro do carrro mas ainda dá para ver a mulher da limpeza da farmácia a apanhar as beatas que formam  uns montinhos à porta. Tudo por causa da merda da raspadinha. Deviam depositar o lixo à porta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a tal fábrica de fazer milionários excêntricos.

Pelo retrovisor do lado direito, apercebes-te que o teu amigo, camarada e compadre está de volta, o rosto inexpressivo, impávido e sereno, como nos dias, de manhã muito cedo, em que iam, os dois, de Unimog, cada um a comandar a sua secção, encher os bidões de água na "Fonte das Bajudas" (ou das "beijudas", dizia ele, sempre maroto, brincalhão, gaiato, que nada tinha de marialvo, mesmo crescido na campina ribatejana).

– Está no ir, mano: começo para a semana a quimeoterapia, daqui a umas semanas a radioterapia!... Não vou morrer desta merda, e até pode ser que me safe, diz-me  o urologista...

Ligas o carro, fazes inversão de marcha, lês pela última vez o idiota do anúncio do Absorvit: "Don't worry, be happy!"... Que é como quem diz: "Foda-se, sê feliz!"

Não falaram mais  pelo caminho, foste levá-o a casa, a  40 e tal quilómetros de Lisboa. Mas reviste, nessa manhã, na viagem de regresso, todo o filme da morte do "Campino", alcunha de filho e neto de campinos, que era o condutor da GMC que transportava os bidões da água. Era um filme com cinquenta anos, a preto e a branco, com duas testemunhas,  mudas e impotentes, tu e o Zé Conde, o teu doente do IPO... 

Mas um gajo, por muito que queira, não esquece o que viu e sofreu. Há meses que não havia sinais de atividade do IN (abreviatura de Inimigo, o turra), nas imediações do quartel, a menos de dois ou três quilómetros.  Era uma operação de rotina, duas ou três vezes por semana. A água era racionada. Deixou de se picar o caminho quando se ia à água da "Fonte das Bajudas", de resto frequentada pela população local, maioritariamente fula... Os gajos nunca punham minas antipessoais naquele troço. Até esse dia fatídico em que o "Campino", que ia à frente,  acionou uma mina anticarro  reforçada, já no início da época das chuvas.  

Restos do seu corpo e da pesada viatura foram encontrados num raio de cento e tal metros. Era um puto porreiro, deixou viúva e uma filha que nunca chegou a conhecer. Falava muito com o furriel Zé Conde, eram os dois ribatejanos, e trabalhavam  antes da tropa na Quinta do Infantado, na Companhia das Lezírias,  ele na coudelaria. Adorava touros e cavalos.  Lembraste-te sempre dele, quando passas por aqui, por Porto Alto. 

Ao chegar a Samora Correia, à porta do restaurante, já conhecido,  onde almoçariam enguias fritas e umas sandochas de codorniz desossada, no Tretas & Olés, o Zé Conde, a partir de agora "o teu doente do IPO", só te disse, com um sorriso amarelo:

– Lembras-te?... Há cinquenta anos,  a gente costumava dizer um para o outro: não te chateies, mano, a vida continua... dentro de momentos!

– "Don't worry, be happy!" – martelaste tu, três vezes, com a cabeça no espelho retrovisor do lado do condutor...

© Luís Graça (202o). Última revisão: 8 de junho de 2023. (*)
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Nota do editor:

(*) Originalmente publicado em 13 de outubro de  2020 > Guiné 61/74 - P21447: A galeria dos meus heróis (38): Don't worry, be happy! / Não te chateies, sê feliz (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P24378: Efemérides (395): Homenagem aos Combatentes da Freguesia de Cárquere, Concelho de Resende: ainda vivos, caídos em campanha, falecidos já na vida civil e um recruta falecido durante a instrução militar em 1962, a levar a efeito no próximo dia 17 de Junho pelas 16,00 horas (Fátima Soledade / Fátima Silva)

C O N V I T E

1. Mensagem das nossas amigas Fátima Soledade e Fátima Silva, ambas filhas de antigos combatentes do ultramar, enviada ao nosso Blogue em 7 de Junho de 2023:

Caro amigo Carlos Vinhal
Espero que se encontre bem e de boa saúde.
Mais uma vez, as Fátima`s solicitam a vossa colaboração, no sentido de dar a conhecer a próxima cerimónia que ocorrerá, no dia 17 de junho, pelas 16h, na freguesia de Cárquere.
Serão homenageados todos os combatentes:
- mortos no cumprimento do seu dever em terras africanas:
André Rodrigues Pinto, Guiné, falecido no dia 25 de julho de 1968 e
Bernardo Pinto, Angola, falecido no dia 28 de janeiro de 1969);
- um soldado recruta que em consequência de um acidente num treino de ginástica, acabara por falecer no Hospital da Misericórdia de Abrantes, no dia 10 de maio de 1962;
- e os que nos deixaram na vida civil, bem como os que ainda se encontram entre nós.

Em anexo, enviamos o Cartaz de publicitação, ficando à Vossa Consideração.
Informamos que iremos ter mais duas nos dias 24 de junho e 1 de julho. Também haverá o lançamento de um livro do combatente José Ferreira no dia 25 de junho.
Esperamos brevemente pela Vossa visita.
Recomendações sinceras para todos os responsáveis e colaboradores do blogue.

Muito gratas e com toda a estima.
Fátima Soledade e Fátima Silva (Fátima´s)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24373: Efemérides (394): 10 de Junho de 2023 - Dia do Combatente Limiano - Homenagem aos Combatentes Limianos mortos ao serviço de Portugal (Manuel Oliveira Pereira)

Guiné 61/74 - P24377: Parabéns a você (2178): João Gabriel Sacôto Fernandes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 617/BCAÇ 619 (Bissau, Catió e Cachil, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24371: Parabéns a você (2177): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM/QG (Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74)

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Guiné 61/74 - 24376: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (36): As ostras do nosso (des)contentamento (Hélder Sousa / Luís Graça / José João Domingos / Valdemar Queiroz)


Guiné > Bissau > "O Arauto, 27 de Julho de 1967", o único jornal diário da província no nosso tempo> Anúncios de duas casas especializadas em ostras, em Bissau : Casa Afonso, no Chão de Papel; e o Miramar, que vendia uma travessa gigante de ostras (da rocha ou da pedra, em conglomerado) por 20 pesos... Dois anos depois ainda eram ao mesmo preço, quando por lá passei... E o Hélder Sousa também pagava 20 pesos, quatro anos depois, em 1971



Croqui da parte oriental da Bissau Velha, entre a Avenida da República (hoje, Av Amílcar Cabral) e a fortaleza da Amura. No 15 ficava o Hotel Miramar / Cais Bar... A antiga Rua Olivera Salazar é hoje a Rua Mendes Guerra. O Miramar ficava em frente à Casa Pintosinho (2, no croqui). Era aqui, ao lonmgo da década de 1960 e 1970, comíamos ostras, a 20 pesos cada travessa, quando vínhamos a Bissau... (*)

Infogravuras: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné



Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-te ao Mar (... e Não Tenhas Medo!) > Agosto de 2020  >  Ostras ao natural, anti-Covid 19... Não, são de Có, Quinhamel ou do Saltinho... São da Lagoa de Óbidos (**)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Há coisas engraçadas, mas que parecem não ter explicação: os portugueses têm nas suas rias, lagoas, estuários... bancos de ostras das melhores do mundo (dizem os entendidos, e dizem os franceses que lhes chamam "les portugaises"... sem qualquer discriminação ou  conotação sexual)... 

Mas a generaliddade dos portugueses prefere  outros moluscos: a ameijoa, 0 berbigão, a navalha ou lingueirão, o percebe, o mexilhão, para não falar do "tremoço"... Há um preconceito atávico em relação à ostra (nome científico: Crassostrea Angulata)  (talvez devido ao  aparentemente repulsivo aspeto do seu interior...).  

Quem foi  à Guiné, pelo contrário, passou a ser fã da ostra, seja da ria Formosa, dos estuários do Sado e do Tejo ou até da lagoa de Óbidos... Amarga foi, porém, a ostra que deu nome a um infeliz operação, em que as NT sofreram uma emboscada com dois mortos, em 18 de outibro de 1969, no sector de Bula,  testemunhada  e filmada por jornalistas franceses.

Mas falemos das ostras do nosso contentamento, que se apanhavam em Có, balaios e balaios delas, e  que depois eram vendidas e comidas em Bissau... Registamos aqui alguns comentários ao poste P24372 (***)


(i) Luís Graça:

Viva o esparguete, que foi o fiel amigo do combatente ao longo da guerra... Mais as cavalas de conserva... Já poucos se lembram disto...

Chamar-lhe, ao esparguete, "atacadores da PM" (os atacadores brancos das botas da Polícia Militar...) é que é um achado humorístico...

7 de junho de 2023 às 06:32 

 Tem piada, o português não gosta de ostras, um excelente alimento... As nossas ostras, das melhores do mundo, vão para França. É como a história do porco preto espanhol que vem engordar nos nossos soutos... Não sabemos fazer presunto...

7 de junho de 2023 às 11:17

(ii) Hélder Sousa:
 
(...) Quanto a essa coisa de "o português não gostar de ostras", claro que só pode ser uma generalização pois os portugueses que estiveram na Guiné apreciavam (e apreciam) bastante essa iguaria. Não esquecer também a "sopa de ostras", que faz parte do roteiro gastronómico da Guiné-Bissau.

Tanto assim é que em muitas das "viagens do turismo de saudade" não faltam as idas a Quinhamel para comer ostras. E eram bem boas, as muitas que comi em Bissau. Boas e relativamente baratas.

No entanto devo confessar que também eu tinha um preconceito quantos "às ostras". Lembrava-me sempre as expressões "populares" que acompanhavam a expulsão de escarretas, daquelas bem cheias de muco e ranho com "lá vai ostra" e daí associar as situações à visão da ostra.

Depois, a luta com as faquinhas para chegar à ostra naqueles pedaços de "ostra da pedra", bem quentinhas, o molho de limão com piri-piri, o convívio, a visão das enormes travessas bem cheias, as "bazucas" a acompanhar, tudo isso ainda hoje é inesquecível.

Por cá havia viveiros naturais de ostras no Tejo e no Sado.

Quando regressei da Guiné e ainda antes vir para Setúbal, apanhando o "balanço" das experiências guineenses e o facto de o meu camarada TSF ser daqui de Setúbal e o pai trabalhar num despachante oficial que tratava dos despachos para França, onde são muito apreciadas, sempre voltei a comer essas iguarias.

Depois disso, com a entrada em funcionamento dos estaleiros navais da então Setenave, as ostras do Sado foram desaparecendo, dado que são muito sensíveis a elementos poluentes, embora agora se estejam a regenerar alguns bancos de ostras e que depois são tratadas em estação de depuramento.

Mas concedo que, na generalidade, os portugueses "não gostam de ostras"...

7 de junho de 2023 às 11:51  

(iii) Luís Graça

Também há ostras aqui perto da Lourinhã,  na Lagoa de Óbidos e, felizmente, cá em casa todos gostamos. Sou eu que as preparo.(**)

Confesso que também foi na Guiné, em Bissau, que comecei a apreciá-las. Depois quando ia à Galiza, passava por  Vigo, não perdendo a oportunidade de as voltar a saborear... As deliciosas ostras das "rias bajas".

Acho que temos de fazer mais pela divulgação da nossa ostra, que é um excelente alimento e é rica em cálcio... Vou publicar o teu comentário... E mais algum que apareça sobre as ostras de Có, ou de Quinhamel, ou do Saltinho (parece que também as há no Corubal)...

No meu tempo em Bambadinca tínhamos o camarão ou o lagostim do rio Geba... Nunca apanhei uma diarreia por causa  do marisco... Em África é sempre problemático comer marisco. 

7 de junho de 2023 às 12:54

2. Já agora vai aqui um destaque para um texto do José João Braga Domingos sobre "as outras de Bissau" (****):

(...) Instalados no Ilondé, desde outubro de 1973, passamos a usufruir de vez em quando do consumo de ostras em Bissau.

Vários estabelecimentos de Bissau vendiam ostras mas, não sei porquê, frequentava sempre um estabelecimento que ficava no passeio do Pelicano, mais ou menos ao meio da rua, quase em frente ao Mussá, e tinha uma pequena esplanada.

Pedíamos travessas de ostras, que eram enormes, e, munidos de uma pequena faca, lá íamos abrindo as ostras que mergulhávamos no molho de limão bem picante e acompanhávamos com cerveja que, na altura, já era fabricada na Guiné. As cascas eram depositadas numa enorme caixa de cartão.

Mas, para além do petisco, a casa apresentava outra atração consubstanciada no jovem guineense que servia os clientes, de seu nome Joãozinho, que por acaso já tinha estado em Lisboa.

Dava gosto ouvir as suas histórias das quais me lembro de duas.

A primeira: Joãozinho não acreditava que a ponte sobre o Tejo, em Lisboa, tivesse sido feita com intervenção humana, antes tinha brotado espontâneamente do mar e ninguém o convencia do contrário.

A segunda: na sua estada em Lisboa, Joãozinho foi visitar o Jardim de "Orloge", como ele dizia, e, durante a visita aos répteis, saiu disparado (“no goss”) do recinto com medo “dos cobra”.

Perante a amostra é fácil perceber porque nunca mudei de fornecedor de ostras.
 
3. E, como as ostras são como as cerejas (o mal é começar), finalizamos com um comentário do Valdemar Queiroz ao poste P20388 (*),que vem enriqucer esta nossa série "No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande" (*****)

(...) Pois, estarei a fazer confusão. Estava convencido que seria na esplanada da 'Ultramarina', então seria na 'Miramar', na rua em frente do 'Pintosinho'... Já lá vai meio século.

E quanto a ostras, já as tinha comido e de grandes barrigadas. Nos anos 1961-62-63-64 era hábito o campismo selvagem em Troia, e eu mais três amigalhaços da Estefânia (Lisboa) íamos pra lá acampar no Verão.

Naquele tempo, Troia tinha o cais dos barcos, umas casas da colónia da GNR, no lado do rio, o resto era deserto, uns pequenos palheiros, uns poços abertos na areia e centenas de tendas de campismo.

Andava-se para os lados da Comporta e, antes de chegar à Carrasqueira, havia uma zona com um grande 'filão' de ameijoa branca e ostras, aos milhares. Era encher grandes sacadas à pressa, por causa da subida da maré, e depois nas tendas grandes barrigadas: ameijoas e ostras abertas numa panela, com um pouco de água no fundo e apenas temperadas com sal, só faltava a cervejola. 

Bons tempos, agora tudo aquilo faz parte do 'calote do BES'

28 de novembro de 2019 às 00:32 
___________

Notas do editor:



(...) Confesso:
aprendi a comer ostras em Bissau,
à beira do Geba,
no intervalo da guerra...
Ao natural, as ostras,
apenas com lima e piripiri.
Passei por Tavira
mas não me lembro das ostras que lá comi.
Se é que havia ostras, no último trimestre de 68,
na ria Formosa que servia de campo de tiro.
E, se as comi, eram amargas.
 
Se calhar, a maior parte de nós,
dos ex-combatentes,
aprendeu a comer ostras em Bissau...
Calhaus de ostras!...
Conglomerados!...
Com molho de lima e piripiri...
Passava-se um tarde
a matar a fome e a sede, 
à volta de uma travessa de ostras,
longe do Vietname,
que começava logo ali a partir de Nhacra.
A 20 pesos a travessa.
Não havia exercício mais anti-stressante
do que esse, de abrir e comer ostras,
nas esplanadas de Bissau,
à beira rio, com o cheiro a tarrafe,
e saudades do Tejo ou do Douro,
cada um tinha o seu rio de estimação. (...)

(***) Vd. poste de 6 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24372: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte II: A imaginação que era preciso ter para se comer "atacadores da PM com estilhaços"!... Trocando carne do restaurante "Solar dos 10", em Bissau, por produtos locais de Có (camarão, ostras, tomate...) (Mário Vargas Cardoso, 1935-2023)

(****) Vd. poste de 16 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21907: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (8): "As colunas para Farim e Guidaje", "Os engraxadores" e "As ostras de Bissau"

(*****) Último poste da série >  12 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24310: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (35): chegou a primavera (mesmo sem "abril, águas mil"), que vai bem com (diz a 'Chef' Alice): (i) favas com casca, suadas, à moda alentejana; (ii) carapauzinhos fritos com arroz de tomate; e (iii) favas suadas à moda da Maria da Graça... Sem esquecer: (iv) o festival literário "Livros a Oeste (11ª edição, Lourinhã, 9-13 mai 2023); e ainda (v) a 14ª quinzena gastronómica do polvo (Lourinhã, 17-31 mai 2023)...

Guiné 61/74 - P24375: Historiografia da presença portuguesa em África (371): As campanhas de pacificação na Guiné no livro "História do Exército Português", pelo General Ferreira Martins; Editorial Inquérito, 1945 (Mário Beja Santos)

Com a devida vénia a Cabral Moncada Leilões. Foto editada


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Não se pode dizer que a narrativa do general Ferreira Martins traga algo de novo àquilo que se tem vindo aqui ilustrar sobre as campanhas de pacificação, chamemos a este texto um exercício de divulgação. Há aqui algumas falhas de peso, não se fala na bravura de Graça Falcão no Oio, pelo que de novo se recomenda a quem queira estudar este período o importante levantamento documental efetuado por Armando Tavares da Silva que tem o título "A presença portuguesa na Guiné: história política e militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016.

Um abraço do
Mário



As campanhas de pacificação na Guiné no livro História do Exército Português, pelo General Ferreira Martins

Mário Beja Santos

Trata-se de uma obra de divulgação que fez a sua época, publicada em 1945 pela Editorial Inquérito. Veremos adiante que há de facto uma poderosa intervenção do Exército no caso vertente da Guiné, mas antes do Capitão Teixeira Pinto destacaram-se briosos oficiais da Marinha. Para quem se interessa pela matéria, a partir da página 470 deste tomo ir-se-á falar da pacificação da colónia da Guiné. Vamos ao que escreve o general Ferreira Martins.

Logo no começo do século XX, sendo governador o Primeiro-Tenente da Marinha Júdice Biker, houve que reprimir revoltas em Jafunco (1901) e no Oio (1902) utilizando as poucas tropas disponíveis, mas contando com a cooperação de canhoneiras e a intervenção de auxiliares indígenas. Houve sublevação do gentio do Churo (Cacheu), reprimida pelo novo governador, Soveral Martins, também oficial da Marinha, em 1904. O autor enfatiza que estas operações não foram completadas por uma ocupação efetiva e cita o marechal Bugeaud: “Em África uma expedição não seguida de ocupação não deixa mais vestígios do que o sulco de um navio no oceano”. Governava a Guiné em 1907 o Primeiro-Tenente Oliveira Muzanty, outro oficial da Marinha, a quem se deve a ocupação da ilha Formosa (Bijagós), quando se deu a sublevação de régulo do Cuor, Infali Soncó. Embora à espera de uma expedição metropolitana, Muzanty lançou-se numa coluna de operações sobre a região revoltada do Cuor. Infali aliciara os régulos de Badora e do Xime. Muzanty foi temporariamente bem-sucedido, assaltou com sucesso a tabanca de Campampe, que estava solidamente fortificada. Por curto tempo, a margem esquerda do Geba, entre Xime e Bafatá, ficou pacificada.

No princípio de 1908, um outro destacamento constituído por praças da Marinha e outros militares europeus foi encarregado de, sob o comando do Capitão Ilídio Nazaré, efetuar a reparação das linhas telegráficas danificadas por rebeldes no Quinara, efetuou-se a reparação e castigaram-se os rebeldes. Em março, o Capitão Botelho Moniz bateu os Felupes de Varela, que se negavam ao pagamento do imposto. E a 19 desse mesmo mês chegou a tão desejada expedição metropolitana que trazia uma companhia de Infantaria 13, alguma artilharia deficiente e uma força de engenharia. Muzanty viu-se obrigado a reforçar o grupo expedicionário com uma companhia da Marinha e uma companhia mista de Infantaria (deportados europeus e atiradores indígenas). Irão bater a margem direita do Geba. O primeiro combate deu-se em Canturé, em 6 de abril, os Biafadas bateram-se bravamente, a povoação foi incendiada, a expedição seguiu para Sambel Nhantá, esta era a sede do regulado, régulo e sua comitiva fugiram, a coluna avançou para Madina que após hora e meia de combate foi tomada incendiada. Em 1 de abril, hasteava-se a bandeira portuguesa no Cuor, neste regulado, em Caranquecunda ficou uma companhia de Infantaria macua, dispondo de armamento velho.

Muzanty foi depois defrontar-se com os papéis que em 1894 o Governador Vasconcelos e Sá não conseguiu dominar. Depois de bombardeadas pela artilharia da fortaleza de Bissau, as povoações de Intim, Bandim e Antula, marchou uma desfalcada coluna sobre Intim, onde foi violentamente atacada mas a povoação foi ocupada e destruída. Prosseguiu a operação para Contume, celeiro natural da ilha, deu-se aqui um violento combate que custou a vida ao alferes Jaime Duque. Os Papéis não desarmaram e atacaram a coluna, a resposta foi enérgica, dentro de um quadrado que Papéis e Balantas não conseguiam desarticular, e os rebeldes acabaram por fugir. Com este violente combate de Intim terminou na Guiné a campanha de 1908.

O autor fala agora das operações de 1909, cita um livro do antigo governador Carvalho Viegas, donde extrai a seguinte observação: “Foi o Balanta, talvez o indígena que maior resistência opôs à expansão do propósito colonizador, enfrentado com decisão e valentia as colunas enviadas a recontros em que as armas de fogo não puderam contê-lo à distância.”

Foi este o inimigo com que se defrontaram os portugueses em 1909 quando na região de Gole (Porto Gole) gente sublevada atacou na manhã de 21 de fevereiro o posto militar, a guarnição conseguiu repelir o atacante. Havendo indícios de que em breve voltariam os Balantas a atacar o fortim com mais numerosos elementos, mandou o governador Muzanty reforçar a guarnição com tropas de infantaria e artilharia. E pela primeira vez é referida a presença de Abdul Indjai, ele é o régulo do Cuor. Sucediam-se os ataques dos sublevados, sem êxitos.

Estamos agora em 1912, não se pode ainda falar na ocupação definitiva da Guiné, as rebeliões sucedem-se. Em 1912, o Governador Carlos Pereira, também ele oficial de Marinha, organizou uma coluna de operações para castigar revoltosos, dirigiram-se primeiramente a Binar, foram depois a Cacheu, foram sucessivamente punindo rebeldes. É neste contexto que aparece na Guiné o Capitão João Teixeira Pinto. Começa por castigar rebeldes do Oio, leva consigo Abdul Indjai, conta com a colaboração de duas lanchas e de um grupo armado pela administração de Geba. Em 1913, Teixeira Pinto, quase só com irregulares de Abdul Indjai e de outro oficial de segunda linha, Mamadu Sissé, foi a Cacheu e bateu o gentio de Churo. As sublevações acalmaram mas não desapareceram. Em fevereiro de 1914, os balantas de Braia trucidaram o Alferes Manuel Pedro e o seu pelotão de cavalaria, houve chacina, coube ao Capitão Teixeira Pinto vingar os desditosos camaradas trucidados. Coube a Teixeira Pinto responder, obteve a pacificação de toda a região Balanta entre Mansoa e Geba.

Graças ao seu crescente prestígio, o governo aproveitou para em 1915 submeter definitivamente os Papéis e Grumetes de Bissau, a sua rebeldia era permanente. Teixeira Pinto pôs-se à frente de uma numerosa coluna, contava com os irregulares de Abdul Indjai, travou com os rebeldes renhidos combates de Intim e Bandim, cujas posições foram tomadas depois de um bombardeamento. Teixeira Pinto atacou ainda outras povoações, lutando sempre com a inaudita resistência dos rebeldes. Teixeira Pinto é preferido em Safim, recolhe-se a Bissau, mas a coluna, sob o comando do Tenente Sousa Guerra, continua o avanço e tomou de assalto outras posições. Depois de dois meses de operações em que as forças de Teixeira Pinto tinham sofrido 47 mortos e 202 feridos, tomaram-se de assalto outras posições rebeldes e a ilha de Bissau foi considerada como submetida. O autor fala da ilha de Canhabaque, houve operações em 1917, comandadas pelo Major Ivo Ferreira (Governador da Guiné entre 1917 e 1919), tais operações demoraram oito meses, mas os atos de rebeldia continuaram. Em 1925, o novo Governador, Vellez Caroço, viu-se forçado a realizar novas operações na ilha, apreendeu armas e munições, parecia que o castigo tinha sido duro, pura ilusão, as operações foram retomadas em 1935-1936, são consideradas como o termo das operações de pacificação, daí o monumento em Canhabaque, evocativo que era tido como o fim das rebeliões. O General Ferreira Martins concluiu assim as suas referências às campanhas de pacificação.


General Luís Augusto Ferreira Martins (1875-1967)
Joaquim Pedro Vieira Júdice Biker (1867-1926)
Alfredo Cardoso de Soveral Martins (1869-1938)
Imagem da guerra do Cuor, fotografia de José Henriques de Mello, 1908
No Xime, no decurso da guerra do Cuor, fotografia de José Henriques de Mello, 1908
Estátua do Capitão João de Teixeira Pinto
Monumento aos heróis da pacificação de Canhabaque, imagem retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, fotografia de Francisco Nogueira, Edições Tinta-de-China, 2016, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24357: Historiografia da presença portuguesa em África (370): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (3) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 6 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24374: (In)citações (246): O regresso dos Soldados (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Foto: © Luís Graça

1. Em mensagem de 3 de Junho de 2023, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos um texto que intitulou:


O Regresso dos Soldados


Nós os homens dos vinte anos feitos ou a fazer nas décadas de 60 e 70 do século passado, sonhámos com o dia 25 de Abril de 1974, mais do que os hebreus com o dia da libertação do Egipto.

Soldados em formação ou soldados prontos, milicianos, forçados a combater em savanas, matas e bolanhas, de Angola, Moçambique e Guiné, contra a sua consciência ou sem entenderem as razões dessas batalhas, a defenderem territórios habitados por africanos, gentes de outras cores, outras raças, de outras crenças e colonos brancos, tão longe das suas aldeias, dos seus bairros, das suas vilas e cidades, nessa África quente e desconhecida, que a alguns matavam e a outros feriam no corpo e na alma.

Muita da alegria de viver, que ficou por lá, entre sonhos e pesadelos de juventude perdida, os ex-combatentes procuram hoje recuperá-la, em convívios e almoços, em conversas longas só entre eles, sobre picadas, emboscadas, ataques, balas, rebentamentos, colunas, bajudas, homens grandes, mortos e feridos para libertarem o espírito e ganharem alento para fazerem a última caminhada com dignidade. Com o clarão das bombas ao rebentar, o cheiro da pólvora, o matraquear das espingardas e das metralhadoras todos transportam o desgosto imenso dos anos perdidos da juventude, quando outros da sua idade, os mais infelizes, perdiam a saúde e a vida, imolados no altar da Pátria, que nunca reconheceu o seu sacrifício supremo. Todos os que sobreviveram transportam a raiva pelo esquecimento a que foram votados pela sociedade civil e pelos governos depois da ditadura, os feridos e mortos em combate, que heróis ou não, foram seus amigos e seus irmãos, como se a Nação ao condenar o ditador e as suas políticas coloniais, devesse também condenar os ex-combatentes que foram forçados a fazer a guerra colonial.

Fomos nós que fechamos o ciclo penoso dos descobrimentos e da expansão marítima, que os gloriosos marinheiros portugueses iniciaram no século XV, com a morte de muitos por tempestades nos mares que destruíam as frágeis caravelas, pela fome, pelo escorbuto, doença terrível, por incursões em sítios onde aportavam. Entre nós, os últimos soldados do Império e os soldados e marinheiros lançados a desbravar caminhos dos mares de terras distantes, muitos outros soldados se sacrificaram até à morte, nos séculos que medeiam, a tentar dominar revoltas de reinos e tribos indígenas e na Primeira Guerra Mundial, contra grandes potências colonizadoras. O Velho do Restelo, a consciência crítica dos Lusíadas, por muitos interpretado como a consciência de Luís de Camões alertava para todas as desgraças e horrores que iriam acontecer, que nada de bom trariam a Portugal.

Ao reflectir sobre o meu passado procuro interpretar os pensamentos e sentimentos da minha geração e tentar desfazer o novelo, da teia de incompreensão, com que fomos recebidos, como se tivéssemos que corrigir todos os erros da nossa História antiga e recente.

"Viver parece-me um erro metafísico da matéria, um descuido da inacção". "Tenho mais sono íntimo do que cabe em mim. E não quero nada, não prefiro nada , não há nada a que fugir".

Bernardo Soares, do "Livro do Desassossego".

Somos o princípio e o fim de uma ilusão que se esvai num curto espaço, a que se chama vida.

Francisco Baptista

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24365: (In)citações (245): "Pequena conversa com a Arte", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)