quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24547: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (3): EPC - Escola Prática de Cavalaria - Santarém: Especialidade

Caldas da Rainha - João Moreira, em primeiro plano, no dia do juramento de bandeira


"A MINHA IDA À GUERRA"

3 - EPC - ESCOLA PRÁTICA DE CAVALARIA - ESPECIALIDADE

João Moreira


Mas, como eu não tinha "cunha" atribuíram-me a especialidade de atirador de cavalaria e lá segui eu para a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, onde se repetiu o meu martírio.

Passados poucos dias fui ao médico da EPC. Consultou-me e ouviu as minhas queixas. Mandou-me logo para o Hospital Militar de Tomar.

Após os exames e reconfirmada a minha "Espinha Bífida", mandaram-me para o Hospital Militar Principal, em Lisboa, por ser o único hospital militar que podia resolver os processos dos milicianos.

Em Lisboa confirmaram a minha deficiência... e deram-me alta. Voltei a Santarém. Como já tinha ultrapassado o número de faltas permitido mandaram-me para casa, com a especialidade perdida. (Era a segunda Especialidade perdida).

Em Outubro de 1969 voltei à Escola Prática de Cavalaria, em Santarém.
Falei com o 1.º sargento enfermeiro que ficou surpreendido por o Hospital Militar Principal, em Lisboa não me ter reclassificado ou mandado para casa, livre da tropa. Disse-me que ia pedir a minha ida a uma junta médica no Hospital Principal, em Lisboa, para resolverem a minha situação que já se arrastava havia 6 meses e, se perdesse a terceira especialidade, ia para o contingente geral.

Chegado ao Hospital Militar em Lisboa, fui à secretaria entregar a documentação que levava.
Disseram-me onde funcionava a Junta e para ir para lá e esperar que me chamassem.
Quando já era o único militar por chamar, e os médicos começaram a sair constatei que algo estava errado.

Dirigi-me a um médico que saiu e expliquei-lhe o que se estava a passar. Ele identificou-se como sendo o subdirector do Hospital e disse para ir com ele à secretaria para tratar do meu internamento.

Aí tocaram as "campainhas". Expliquei-lhe que não ficava internado, porque a perda da terceira especialidade significava a minha ida para o contingente geral. Por isso ia regressar a Santarém.
Ele garantiu-me que ia à Junta antes de acabar o prazo de faltas, e que não perdia a especialidade.

Também me disse que eu ia ser internado no Hospital Anexo, em Campolide, e que ele ia lá todas as manhãs. Disse para quando eu chegasse ao Anexo perguntasse onde era o gabinete do director do Hospital e fosse falar com ele às 10 horas da manhã seguinte, para pôr o meu processo a andar com urgência.

Na manhã seguinte, fui falar-lhe e ele chamou logo um 1.º sargento enfermeiro, e deu-lhe indicações para ele acompanhar o processo de forma a estar pronto a tempo de eu ir à Junta na semana seguinte.

A mim disse para ir todas as manhãs falar com ele, para o informar do que tinha feito, e chamava o 1.º sargento para confirmar se estava tudo a rolar para ir à Junta na semana seguinte. Na semana seguinte, antes de atingir o limite de faltas que originava a perda da especialidade, fui à Junta.

Quando fui chamado, o diretor do Hospital pegou no meu processo e disse que continuava com a mesma especialidade.

O subdirector, que tinha acompanhado o meu processo e sabia a gravidade da minha deficiência perguntou aos outros médicos se eles tinham lido o processo e se sabiam qual era a gravidade do meu problema.

Eles não responderam, e o director tomou a palavra e disse que "se eu fosse soldado ia já para casa", mas como era miliciano continuava como atirador de cavalaria porque havia falta de milicianos.

Com esta resposta dum coronel médico, director do Hospital Militar Principal, eu fiquei sem fala. Foi um choque tão grande que eu não consegui reagir.

Penso que se o subdirector reagisse adequadamente, a Junta tinha-me mandado para casa, ou no mínimo tinha-me reclassificado para uma especialidade que não tivesse actividade física.

Voltei à EPC em Santarém e falei com o 1.º sargento enfermeiro, que ficou incrédulo com o sucedido, e tomou a iniciativa de ir falar com o meu comandante de pelotão para me dispensar das provas físicas.

Como tinha boas notas nos testes, compensava para as provas físicas. E assim acabei a especialidade com aproveitamento.
Caldas da Rainha - Da esquerda para a direita: em pé: Seco, Castro, Daniel e João Moreira. Dos deitados não lembro os nomes.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24531: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (2): CIOE / Rangers - Especialidade em Lamego (Parte 2)

Guiné 61/74 - P24546: Fotos à procura de... uma legenda (176): A "rainha de Catió", fotografada em 1964/66 (pelo João Sacôto) e em 1972 (pelo Mário Arada Pinheiro)

Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > "Mulher grande, rainha de Catió". 

Foto do álbum do João Gabriel Sacôto Martins Fernandes, de seu nome completo, ex-alf mil da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66) e depois piloto da aviação civil onde chegou a comandante da TAP, reformado desde 1998. Conviveu com a população, fula e balanta, de Catió e arredores, incluindo Príame (a tabanca do cap 'comando' graduado João Bacar Jaló, 1929-1971).

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Região de Tombali > Catió > BCAÇ 2930 (Catió, 1970-72) >  O então maj inf Mário Arada Pinheiro, 2.º cmdt do BCAÇ 2930, com a "rainha de Catió" e algumas das suas netas (?)... Em chão nalu, ela era fula. As miúdas mais pequenas estão "meio escondidas", envergonhadas ou intimidadas (como era normal, na presença dos "tugas")... (**)

Foto (e legenda): © Mário Arada Pinheiro (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Será a mesma senhora? A "rainha do Catió", fotografada por volta de 1964/66, pelo João Sacôto, e seis ou oito anos mais tarde, em 1972, pelo Mário Arada Pinheiro?

Ambos os fotógrafos lhe chamam "rainha de Catió", " mulher grande", "fula em terra de nalus"... Mas o Cherno Baldé, o nosso assessor para as questões etnolinguísticas, tem dúvidas, tendo deixado este comentário no poste P24549 (*):

(...) "Em Catió, na altura, o Bairro dos fulas, melhor dizendo futa-fulas, era logo à entrada em Priame, onde também vivia a família do Cap 
Cmd João Bacar Jaló. Por isso, quer-me parecer que a mulher grande aqui apresentada como a "rainha de Catió" poderia muito bem ser uma das suas viúvas ou uma familiar muito próxima, para merecer as visitas de um alto oficial do Batalhão sediado em Catió.

"Os fulas não têm rainhas e muito menos no chão Nalú, mesmo estando em terras conquistadas pelos seus antepassados. Talvez o Mário Arada Pinheiro nos possa esclarecer a dúvida." (9 de agosto de 2023 às 16:29 (...)

2. Comentário do editor LG:

Obrigado, Cherno, estou agora, neste mês, quase todos os dias com o coronel Mário Arada Pinheiro, tem casa de férias aqui na Praia da Areia Branca... Pertencemos ambos ao GAPAB / Vigia (Grupo dos Amigos da Praia da Areia Branca). Vou-lhe "espicaçar" a memória, que é muito boa para quem já teve a felicidade de chegar aos 90 anos. (E ainda há dias o vi a conduzir aqui na Lourinhã.) Realmente nunca vi nenhuma rainha "fula"... Dos nalus conheci, em 2008, o "rei", Salifo Camará, falecido em 2011... Aliás, "Aladje Salifo Camará, régulo de Cadique Nalu e Lautchandé, antigo Combatente da Liberdade da Pátria, o rei dos nalus" (tinha 87 anos em 2008).

Em Angola, sim, houve várias rainhas, que ficaram na história, começando pela mais célebre, Mwene Nzinga Mbandi (c. 1582, - 1663), também conhecida por rainha Njinga ou Ginga, ou Ana de Sousa (para os portugueses).

Vamos lançar o desafio aos nossos dois fotógrafos e aos nossos camaradas que tenham passado por Catió... Quem é (era ou foi) esta "mulher grande, rainha de Catió"? (***)
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Notas do editor:

(*) Vd,. poste de 28 de março de 2019 : Guiné 61/74 - P19628: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte VII: Catió e arredores: contactos com a população civil

(**) 9 de agostoi de 2023 > Guiné 61/74 - P24540: Fotos do álbum do cor inf ref Mário Arada Pinheiro, antigo 2º cmd do BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72) e cmdt do Comando Geral de Milícias (Bissau, 1972/73)

(***) Último poste da série > 30 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24519 Fotos à procura de... uma legenda (175): Capinadores e "homens armadas" em Cutia, tabanca e destacamento no setor de Mansoa, ao tempo do BCAÇ 2885 (1969/71) (José Torres Neves, capelão)

Guiné 61/74 - P24545: Efemérides (406): Homenagem aos Antigos Combatentes da Guerra do Ultramar naturais da União de Freguesias de Felgueiras e Feirão, Concelho de Resende, a levar a efeito no dia 2 de Setembro de 2023 (Fátima Soledade / Fátima Silva)


1. Mensagem das nossas amigas Fátima Soledade e Fátima Silva, filhas de antigos combatentes do ultramar, enviada ao nosso Blogue no dia 9 de Agosto de 2023, com um convite para a cerimónia de homenagem aos Antigos Combatentes da Guerra do Ultramar naturais da União de Freguesias de Felgueiras e Feirão, Concelho de Resende, a levar a efeito no dia 2 de Setembro de 2023:

Caro amigo, Carlos Vinhal
Espero que se encontre bem e de boa saúde.
Mais uma vez, as Fátima`s solicitam a vossa colaboração, no sentido de dar a conhecer a próxima cerimónia que ocorrerá, no dia 2 de setembro, pelas 15h, no S. Cristóvão, em plena Serra de Montemuro de onde partiram muitos resendenses.

Serão homenageados todos os combatentes, onde se inclui dois mortos no cumprimento do seu dever em terras africanas - Augusto Pereira Dias, falecido no hospital militar em Lisboa, após ter sido gravemente ferido em Angola, no dia 4 de agosto de 1967, e Armando Pereira Coelho, falecido por motivo de acidente em Angola, no dia 25 de outubro de 1970.

Em anexo, enviamos o Convite de publicitação, ficando à Vossa Consideração.
Esperamos brevemente pela Vossa visita.
Recomendações sinceras para todos os responsáveis e colaboradores do blogue.

Muito gratas e com toda a estima,
Fátima Soledade e Fátima Silva (Fátima´s)

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24543: Efemérides (405): No dia 8 de Agosto de 1970, zarpou de Lisboa o N/M Carvalho Araújo, levando a bordo a açoriana CCAÇ 2753, aportando em Bissau no dia 17 do mesmo mês (José Carvalho, ex-Alf Mil Inf)

Guiné 61/74 - P24544: Parabéns a você (2192): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63)

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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24520: Parabéns a você (2191): Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil Cav da CCAV 8350/72 (Guileje, Gadamael, Quinhámel, Cumbijã e Colibuia, 1972/74)

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24543: Efemérides (405): No dia 8 de Agosto de 1970, zarpou de Lisboa o N/M Carvalho Araújo, levando a bordo a açoriana CCAÇ 2753, aportando em Bissau no dia 17 do mesmo mês (José Carvalho, ex-Alf Mil Inf)

José Carvalho, a bordo do N/M Carvalho Araújo, ao avistar a Ilha de S. Vicente


1. Mensagem do nosso camarada José Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 (Brá, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim e Mansabá, 1970/72), com data de hoje:


8 de Agosto de 1970

Decorrido mais de meio século, recordo a data de 8 de Agosto, pois foi nesse dia que a CCAÇ 2753, embarcou no N/M Carvalho Araújo, com destino a Bissau - Guiné.

A CCAÇ 2753, maioritariamente constituída por bravos militares açorianos e enquadrada por continentais, com excepção de três sargentos do quadro permanente, era uma companhia independente e muito miliciana.

A Companhia formada no BII 17, em Angra do Heroísmo, deixou aquela cidade em meados de Maio, com destino ao continente, sendo colocada no RI 1, Amadora. O IAO foi realizado na zona de D. Maria – Caneças.

Fez a CCAÇ 2753 parte das forças em parada nas cerimónias do Dia de Portugal, 10 de Junho, no Terreiro do Passo - Lisboa, dia em que as alterações climáticas já se faziam sentir.

Concluído o treino operacional, a Companhia no início de Julho, foi transferida para umas instalações militares desactivadas, situadas na margem sul, no Pragal, a curta distância do Cristo Rei, que eram utilizadas para alojar efectivos, enquanto aguardavam embarque para as ditas Províncias Ultramarinas.

Assim durante cerca de um mês, a independente CCAÇ viveu em independência absoluta, havendo no local rotativamente somente a presença de um sargento e de um oficial, que enquadravam os militares açorianos, que na esmagadora maioria não tinham familiares continentais, para onde se pudessem desenfiar!

Havia necessidade de alimentar a rapaziada e também manter actividades físicas, que não somente as praticadas nas praias da Caparica.

Não foi fácil manter alguma disciplina e controlo dos rapazes açorianos, vendo que os continentais gozavam fins-de-semana prolongados em casa dos seus familiares, desfrutando mais uns dias de férias. 

Assim era raro o dia em que a PM não ia ao Pragal, quase sempre durante a noite, entregar uns tantos que vagueavam por Lisboa e mesmo dada a novidade que para eles eram os comboios, encontravam-se perdidos algures, até na Figueira da Foz… 

 Durante este período registou-se o óbito do Prof. Oliveira Salazar [em 27 de julho de 1970] e a CCAÇ na madrugada do dia seguinte, foi mobilizada para formar três pelotões para as cerimónias fúnebres. Seriam recolhidos por viaturas do RI 1 no final dessa manhã. Gerou-se o pânico nos presentes, pois só estavam nas instalações um aspirante, um furriel e soldados quase só os açorianos.

Depois de alguns contactos telefónicos, a maioria mal sucedidos, com alguns dos ausentes a mais de 200 Km. No meu caso, o telefonema foi recebido em casa dos meus Pais, estando no Baleal a mais de 100 km e aonde na altura só havia um ou dois telefones públicos. Depois de várias diligências, fui “capturado” por um primo que me transportou ao Pragal, aonde cheguei por volta do meio-dia.

Deparo com várias viaturas já com os militares sentados nas mesmas e para meu espanto e sossego já havia aspirantes e furriéis promovidos naquela manhã… Uma meia dúzia ou mais de soldados, tinham tirado das instalações dos oficiais e furriéis os galões e divisas! Era este o grande espírito de corpo desta companhia!

Depois de tudo preparado para seguirmos a caminho dos Jerónimos, eis que surge nova ordem, a libertar a companhia daquela missão!

Chegou por fim a alvorada do dia 8 de Agosto, desta vez fomos transportados para embarque no navio, que havia chegado dias antes, carregado de gado bovino, precisamente dos Açores.

Depois das cerimónias oficiais habituais, lá partiu no final da manha N/M Carvalho Araújo, creio que na sua ultima viagem, rumo a Bissau, com uma escala na Ilha de S. Vicente, aonde desembarcariam umas dezenas de afortunados militares.

José Carvalho, segundo a partir da direita, na Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, acompanhado por 3 outros alferes milicianos, companheiros de viagem a caminho da Guiné.


Antes do navio transpor o Bugio, já os nossos soldados protestavam pelas condições que lhe eram proporcionadas, nomeadamente o odor a gado vacum, que se respirava no convés e não só. Somente nos apercebemos que algo não estava bem quando visualizámos alguns colchões a voar para o mar… Serenados os ânimos,  conseguimos acalmar a “rebelião”, mas durante a viagem muitos soldados dormiram sempre no tombadilho.


A 17 de Agosto atracámos em Bissau.

Fotos (e legendas): © José Carvalho  (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24530: Efemérides (404): Foi há 60 anos que o padre missionário italiano Antonio Grillo (1925-2014), do PIME, foi preso (em 23/2/1963), "sob a acusação de atividades subversivas", e depois expulso de Portugal (libertado, em 4/6/1963, em homenagem ao novo sumo pontífice, o Papa Paulo VI)

Guiné 61/74 - P24542: Historiografia da presença portuguesa em África (380): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Jamais outro Presidente da República passará tanto tempo na Guiné como Craveiro Lopes, chegado a 2 de maio de 1955, parte na fragata Bartolomeu Dias com destino a Cabo Verde a 14 de maio. Bem vistas as coisas, vai visitar a obra de Sarmento Rodrigues, agora ministro do Ultramar, anda sempre a seu lado, e sempre ovacionado por régulos e população. Tirando o dia de repouso na praia de Varela, o Presidente da República não se escusou a dias com farta agenda, não eram só sessões de cumprimentos e desfiles, visitou obra feita e ainda por fazer, caso da ponte sob o Corubal. O programa foi bem talhado, não restam dúvidas, porventura Craveiro Lopes não se apercebeu que a grandeza dos empreendimentos que visitou do modo geral eram de fresca data, por ali andou um tufão de construções mal tinha acabado a Segunda Guerra Mundial e não havia discurso em que Sarmento Rodrigues não dissesse claramente que se impunha a reabilitar a condição humana daquela gente africana, empenhou-se em fazer escolas e instalações de saúde, remodelou os serviços relacionados com as doenças tropicais, esteve sempre bem acolitado por gente entusiasta como Manuel Pereira Crespo ou Avelino Teixeira da Mota. Não pôde reverter o irremediável, caso da decadência de Bolama, Bissau tornara-se macrocéfala, os negócios, quase todos, abandonaram a antiga capital, Bolama ficou reduzida a um mero entreposto, a uma cidade espectral onde avultavam alguns monumentos e uma bela tipografia. Curiosamente, por esse tempo da visita de Craveiro Lopes começa a vicejar, ainda que ténue, o sentimento nacionalista.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (6)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15 horas locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda, visitou Cufar e Catió, onde pernoitou. Segue para Bafatá, visita o Gabu, numa outra etapa vai até Farim, percorre o rio Cacheu a bordo do Mandovi, descansa na praia de Varela. Visita um vastíssimo número de empreendimentos, desde instalações de saúde, missionários, discursa, condecora e premeia, não faltarão desfiles étnicos, espetáculos musicais, dançarinos.

Entrámos na derradeira etapa, obrigatório visitar Cacheu, o jornalista Rodrigues Matias introduz uma nota histórica:
“Chipala, rei das terras dos Burames (será Brames?), tinha uma das suas mais florescentes povoações na margem do rio de S. Domingos, a 25 quilómetros da foz. E na povoação se fundara e prosperara, a primeira feitoria portuguesa da Guiné, de que será feitor Manuel Lopes Cardoso. Os Papéis de Cancanda admitiam em fraternal convívio os moradores portugueses da feitoria dentro da povoação Burame. E Lopes Cardoso insinuou a Chipala que bem andaria o rei se lhe permitisse a construção de um forte no lugar da feitoria, para defesa do porto e moradores. Chipala aquiesceu ao pedido e a fortaleza surgiu construída e artilhada à custa dos residentes portugueses, no ano de 1588. Houve tentativas de assalto, rechaçadas. Vieram a este porto navios embarcar mancarra, óleo de palma e coconote. Surgiu a Companhia de Cacheu e, mais tarde, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde. Depois, Farim concentrou o comércio da mancarra, do óleo de palma e das madeiras.”

Craveiro Lopes visita o velho forte pela manhã de 12 de maio, tinha sido restaurado em 1946. À saída do recinto, apresentam cumprimentos as Nharas ou Donas Cristoas, resquício da missionação católica dos velhos tempos da ocupação. Manda uma secular tradição que o Homem Grande de Lisboa seja transportado aos ombros das Donas, e Craveiro Lopes, manifestamente contrafeito, sentou-se numa cadeira enfeitada de panos, apoiada sobre duas longas varas. E as Nharas transportaram o Chefe-de-Estado, ele insistiu numa curta distância. Seguiu-se a visita ao monumento a Honório Pereira Barreto.

Regressa a Teixeira Pinto, sobe a uma tribuna sob uma chuva de pétalas de flores, recebe cumprimentos, houve desfile de grupos representativos dos povos da região, erguiam enormes listéis com os nomes de Costa de Baixo, Jata, Pecixe, Calequisse, entre outros; raparigas Manjacas de Pecixe, mulheres levando à cabeça esteiras, cestos, cabazes e mais artefactos de tecelagem manual de palha, mulheres pescadoras, caçadores, desfilaram garbosamente. Craveiro Lopes, no final, entregou prendas, desde medalhas a fotografias e bandeiras nacionais.

O jornalista Rodrigues Matias regressa à descrição de carater etnográfico e etnológico, desta vez foca-se nos manjacos e transcreve apontamentos do livro de António Carreira, Vida Social dos Manjacos. Após um magnífico almoço volante, a caravana ruma para Bissau, passando por Bula, Bissorã e Mansoa. Craveiro Lopes visita a Missão de Santo António de Bula, um internato com oficinas de mecânica, serralharia, carpintaria e alfaiataria. A viagem prossegue por Binar, Biambi, Encheia, houve paragem em Bissorã. O Presidente da República visita a Estação Zootécnica, recebe um presente, um magnífico exemplar de gato almiscarado, espécie rara que depois será enviada para o Jardim Zoológico de Lisboa. Rodrigues Matias dá-nos mais apontamentos, desta vez sobre a etnia Balanta, elaborados pelo administrador Alberto Gomes Pimentel.

A caravana chega a Mansoa, nova chuva de flores, apresenta-lhe cumprimentos o administrador, James Pinto Bull. Craveiro Lopes entrega medalhas, cinturões com talabarte, fotografias e bandeiras. Desfilam os povos da região: Donas, Porto Gole, Binar e Bissorã. É também presenteado com danças e o jornalista não resiste a descrever: “Um bailarino principiou a bailar. Paramentado como para as festas da circuncisão, viam-se-lhe apenas os pés. Envolvendo-lhe a cabeça até aos ombros, em que se apoiava um cesto alto, sustentando um monumental par de chifres. Ao fundo das costas, uma canasta pendurada, grandes abanicos nos ombros. Molhos de sisal a cobrirem-lhe os braços e as pernas.”

Ainda há uma curta paragem em Safim, segue-se uma entrada triunfal em Bissau, cortejos automóveis, carrinhas e camiões. Craveiro Lopes regressa ao Palácio do Governo e agradece a todos tão deslumbrante receção. Assim se chegou a 13 de maio, o Presidente da República visita no Biombo as enormes várzeas de arroz. O resto do dia estava destinado à receção de entidades que tinham assuntos a expor. Por seu lado, o ministro Sarmento Rodrigues recebeu um grupo de 22 diplomados pela Escola Superior Colonial (depois Instituto Superior de Estudos Ultramarinos). Craveiro Lopes ofereceu no Palácio do Governo um banquete seguido de receção e baile. Há brindes e o Presidente da República discursa, trata a Guiné como filha mais velha da expansão ultramarina, enumera e congratula-se com os progressos que observou.

Melo e Alvim agradece por seu turno e faz uma longa referência ao que se fez e ao que se pretende fazer. Destaca-se aqui um ponto: “Estudos recentemente levados a efeito parecem demonstrar a possibilidade da cultura do algodão. O cajueiro, a palmeira de Samatra, as fibras têxteis, a cana sacarina, as citrinas e bananas, podem constituir novos fatores de riqueza.” Há baile, assim acabou o último dia de digressão.

A 14 de maio, Craveiro Lopes e comitiva têm a partida assegurada para Cabo Verde. A Companhia de Caçadores Indígenas constitui a guarda de honra, junta-se uma multidão pela Avenida da República até o Pidjiquiti, sobem para a fragata Bartolomeu Dias, o Lima vai seguir na sua esteira. Também é hora do jornalista se despedir, ele confessa que vem altamente impressionado com a obra que o governador Sarmento Rodrigues deixou na Guiné.

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Craveiro Lopes e Salazar: no princípio do mandato presidencial mantiveram uma boa relação
Fortaleza de Cacheu
Canchungo
Os CTT de Mansoa
Fragata Bartolomeu Dias
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24529: Historiografia da presença portuguesa em África (379): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24541: História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte VI: 14 de abril de 1971: forte flagelação da vila e quartel de Catió, com foguetões 122, canhão s/r 82 e morteiro 82

Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Parada do quartel.

Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Um aspeto parcial do quartel.

Fotos (e legendas); Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados


1. Continuação da publicação de alguns alguns excertos da história da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedu, 1970/72) (*). É mais uma das subunidades, que estiveram no CTIG, e que não têm até à data nenhum representante (formal) na Tabanca Grande.

Uma cópia da história da unidade foi oferecida ao Centro de Documentação 25 de Abril, em vida, pelo então major general Monteiro Valente, ex-elemento do MFA, com papel de relevo nos acontecimentos do 25 de Abril, na Guarda (RI 12) e Vilar Formoso (PIDE/DGS), bem como no pós- 25 de Abril. (Foi também comandante da GNR, e era licenciado em História pela Universidade de Coimbra.)
 

Acrescente-se ainda que o cap inf Monteir0 Valente, entre outros cargos e funções, foi instrutor, comandante de companhia e diretor de cursos de Operações Especiais, no Centro de Instrução de Operações Especiais, em Lamego (1968-1970, 1972-1974). (Foto à direita, cortesia do blogue Rangers & Coisas do MR", do nosso coeditor, amigo e camarada Eduardo Magalhães Ribeiro).

Uma cópia (não integral) desta história da CCAÇ 2792, chegou-nos às mãos há uns largos tempos.


História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte VI:

14 de abril de 1971:  a forte flagelação da vila e quartel de Catió, com foguetões 122, canhão s/r 82 e morteiro 82


(...) Em 14, às 21h00 o IN flagelou Catió com foguetões 122 mm, canhão s/r 82 mm e morteiro 82 durante 75 minutos. Antes do início da flagelação, Catió  foi sobrevoada por um meio aéreo  não identificado.

A flagelação causou às NT 3 mortos (2 militares e 1 milícia) e 6 feridos graves, bem como 1 morto na população, vários feridos ligeiros e prejuízos materiais avultados da ordem dos 300 contos (em escudos da metrópole seriam o equivalente, a preços de hoje, a 78.216 euros).


Baixas, da subunidade: 

Mortos em combate: (i) fur mil  at inf  José António Rodrigues de Andrade; (ii) sold at inf João da Encarnação Góis.

Feridos graves: (iii) 1º cabo  reab mat Carlos Abílio Gomes Ferreira Antunes (virá a falecer em 1 de junho de 1971 no HM 241, em Bissau, em consequência dos ferimentos recebidos).

Apreciação:

A acção do IN, no dia 14, foi desencadeada em simultâneo com outras duas sobre aquartelamentos vizinhos (Cufar e Bedanda).

Nestas acções o IN revelou grande potencial de fogo e elevada precisão, conseguindo que todos os impactos do foguetão 122 mm  se verificassem dentro da vila de Catió e três dentro do aquartelamento, apesar da distância da base de fogos (cerca de 9 km).

De salientar também o conjunto de medidas e contra-informação utilizada pelo IN porquanto nenhum das guarnições atingidas suspeitava de qualquer ação IN.

Foi na acção detectada grande interferência das transmissões das NT.
Estes factos revelam a boa técnica de coordenação (...)

Fonte: Excertos da história da unidade, cap II, pág. 43.

(Seleção / revisão e fixação de texto / substítulos / negritos: LG)

___________

Guiné 61/74 - P24540: Fotos do álbum do cor inf ref Mário Arada Pinheiro, antigo 2º cmd do BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72) e cmdt do Comando Geral de Milícias (Bissau, 1972/73)


Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Catió > BCAÇ 2930 (Catió, 1970-72) >  O então maj inf Mário Arada Pinheiro, 2º cmdt do BCAÇ 2930, com a "raínha de Catió" e algumas das suas filhas... Em chão nalu, ela era fula. As miúdas mais pequenas estão "meio escondidas", envergonhadas ou intimidadas (como era normal, na presença dos "tugas")...

Foto nº 1A > Guiné > Região de Tombali > Catió > BCAÇ 2930 (Catió, 1970-72) > O então maj inf Mário Arada Pinheiro, 2º cmdt do BCAÇ 2930, com a "raínha de Catió" e duas das suas netas... 


A raínha de Catió, Catió, 1972


O major inf Arada Pinheiro, 2º cmdt,
BCAÇ 2930, Catió, 1972



O Cmdt CCS / BCAÇ 2930, cap SGE Manuel Pereira
 de Carvalho (já falecido)


O major inf Arada Pinheiro, 2º cmdt,
BCAÇ 2930, à esquerda,  e o ten cor  
Ernesto Orlando Vieira Correia (já falecido)

1. Em complemento do poste P24275 (*), o nosso novo grã-tabanqueiro, nº 871, cor inf ref Mário Arada Pinheiro,  com 90 anos de idade (completados em 12/12/2022), mandou-nos  mais algumas fotos do seu tempo de Guiné,para completar o seu processo de adesão à Tabanca Grande.

Recorde-se que, após duas comissões de serviço em Moçambique, como capitão (em 1961/63 e 1968/70), foi mobilizado para a Guiné, como major, em rendição individual, e onde permaneceu, de 16/9/71 a 21/9/73.

Esteve um ano no comando do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73), em Catió, onde foi substituir o 2º comandante o maj inf Ernesto Orlando Vieira Correia, entretnato promovido a tenente coronele e cmdt do batalhão.  Também exerceu funções como oficial de  informações e operações. O 1º cmdt do BCAÇ 2930, ten Castro Ambrósio,  terá sido afastado, por Spín0ola, do comando da unidade por razões disciplinares.

O BCAÇ 2930 era apenas composto por Comando e CCS (cmdt, cap SGE, Manuel Pereira de Carvalho) não dispondo de subunidades operacionais orgânicas. Em 16dez70,  assumiu a responsabilidade do vasto Sector S3, com sede em Catió e abrangendo os subsectores de Bedanda, Catió, Cufar, Guileje, Gadamael e Cacine. 

Com as subunidades que lhe foram atribuídas, desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamento, reconhecimentos e de vigilância da fronteira, especialmente na zona do corredor do Guileje, tendo ainda os seus aquartelamentos e aldeamentos sido alvo de frequentes e fortes flagelações, especialmente quando situados junto da fronteira. Além disso, coordenou e impulsionou a execução dos trabalhos de construção dos reordenamentos de Catió, Cacine e Gadamael, entre outros e os trabalhos da estrada Catió-Cufar.

Em 21Ago72, foi rendido no sector pelo BCaç 4510/72 e recolheu a Bissau, onde se manteve aguardando embarque. Nessa altura, o Mário Arada Pinheiro foi colocado na 2ª Rep (Repartição de Operações), do QG/CCFAG, na Amura, cujo chefe era o tenente coronel Firmino Miguel. 

Cerca de 3 meses depois, foi convidao para (e nomeado) comandante do Comando Geral de Milícias, em substituição do major inf Carlos Fabião que regressara a Lisboa após 8 anos de Guiné.

Além das milícias, tinha também sob o seu comando as companhias africanas tal como os pelotões de caçadores nativos num total de cerca de 13000 militares.  

O hoje cor inf ref Arada Pinheiro estava no CTIG, colaborando diretamente com Spínola quando:

(i) o líder do PAIGC, Amílcar Cabral, é assassinado em Conacri, em 20 de janeiro de 1972: Spínola estava em reunião com a sua equipa quando o diretor da PIDE, em Bissau, o inspetor Fragoso Alas, considerado "seu homem de mão", o interrompeu com a trágica notícia; Spínola ficou visivelmente surpreendido e transtornado;

(ii) foi decidido ocupar o Cantanhez e lançar a Op Grande Empresa (iniciada em 11 de dezembro de 1972); a decisão foi tomada numa reunião a três (Spín0la, Arada Pinheiro e o chefe da Repartição de Operações, Manuel Batista, se não erro; Spínola exigiu total sigilo: "vocès nem às vossas mulheres fakam disto!"; e foi lançado, por sugestão do Mário Arada, na 5ª Rep (Café Bento) o boato de que ia ser desencadeada uma grande operação lá para o Nordeste do território, Buruntuma, etc.;

(iii) da crise dos mísseis Strela (a partir de 25 de março de 1973) (Spínola teve que "pegar na malta dos helis e pô-los a voar com ele"...).

No exercício das suas funçóes, o então major fez dezenas de viagens por via aérea (nomeadamente em DO-27 e heli) (falou-me em meia centena...) e apanhou dois valentes sustos... De uma vez, quando vinha para Bissau, de Cufar (via Cacine), o heli, que seguia ao longo da costa atlàntica, para evitar os "Strela", chocou contra uma gaivota; o impacto foi tão grande que estilhaçou e furou a carlinga do heli; o Mário Arada, que ia a dormitar, acordou com um estrondo e com os restos ensanguentrados do pássaro, colados no seu camuflado...

Outro susto teve a ver com uma DO-27 cujo motor parou, no regresso a Bissau...Ia a voar muito alto sobre a região de Quitafine; ele e o piloto (iam só eles os dois) decidiram fazer uma aterragem de emergència numa bolanha...O major preparou.se para ir "tomar um banho", descalçou as notas, etc... Quando a aeronave estava a 200 metros do solo (pouco mais de 600 pés), o motor voltou a funcionar!... Foi um grande alívio,  aterraram em Bissalanca onde tinham meia base à sua espera em grande alvoroço...
 


Batalhão de Caçadores n.º  2930 (1970/72)

Identificação: BCaç 2930

Unidade Mob: BC 10 - Chaves

Cmdt: TCor Inf Castro Ambrósio | TCor Inf Carlos Frederico Lopes da Rocha Peixoto | TCor Inf Ernesto Orlando Vieira Correia

2º  Cmdt: Maj Inf Ernesto Orlando Vieira Correia | Maj Inf  Mário Arada de Almeida Pinheiro

OInfOp/ Adj: Maj Inf Duarte Leite Pereira | Maj Inf Mário Arada de Almeida Pinheiro

Cmdt CCS: Cap SGE Manuel Pereira de Carvalho

Divisa: "Sempre Excelentes e Valorosos"

Partida: Embarque em 25Nov70; desembarque em 04Dez70 | Regresso: Embarque em 130ut72


Síntese da Actividade Operacional


Era apenas composto por Comando e CCS, não dispondo de subunidades operacionais orgânicas.

Em 16dez70, após sobreposição com o BArt 2865, desde 7dez70, assumiu a responsabilidade do Sector S3, com sede em Catió e abrangendo os subsectores de Bedanda, Catió, Cufar, Guileje, Gadamael e Cacine.

Com as subunidades que lhe foram atribuídas, desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamento, reconhecimentos e de vigilância da fronteira, especialmente na zona do corredor do Guileje, tendo ainda os seus aquartelamentos e aldeamentos sido alvo de frequentes e fortes flagelações, especialmente quando situados junto da fronteira. 

Além disso, coordenou e impulsionou a execução dos trabalhos de construção dos reordenamentos de Catió, Cacine e Gadamael, entre outros e os trabalhos da estrada Catió-Cufar.

Dentre o material capturado mais significativo, salienta-se: 4 pistolas-metralhadoras, 4 espingardas, 2 lança-granadas foguete, 87 granadas de espingarda e 68 minas.

Em 21Ago72, foi rendido no sector pelo BCaç 4510/72 e recolheu a Bissau, onde se manteve aguardando embarque.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n.º 92 - 2ª. Div/4.ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: fichas das unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 150

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24275: Tabanca Grande (549): As "fotos da praxe" do cor inf ref Mário Arada Pinheiro, que completou 90 anos em 12/12/2022... Foi 2.º cmdt do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73) e Cmdt do Comando Geral de Milícias (1973)

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24539: Questões politicamente (in)correctas (58): Ainda a própósito do eventual recurso ao "trabalho forçado" (teoricamente abolido em 1961, por Adriano Moreira) (Cherno Baldé)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339> Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada I.

Foto do álbum do Albano Gomes, que vive em Chaves, e que foi 1.º cabo op cripto, CART 2339 (Mansambo, 1968/69).

Foto (e legenda): © Albano Gomes (2008). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339> Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada I > Milhares de nativos  (c. 7 mil) são requisitados pela administração do concelho de Bafatá para capinar a estrada de Bambadinca - Mansambo - Xitole (cerca de 30 km), de um lado e de outro, numa faixa (variável) de 100 a 200 metros.

Fotos do álbum de Torcato Mendonça (ex-alf mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69) (1944-2021)

Fotos (e legendas): © Torcato Mendonça (2007). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa) >  BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Capinagem  

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. É mais uma questão "politicamente incorreta" (*), aqui levantada pelo nosso arguto, sagaz e frontal  Cherno Baldé, a propósito do trabalho de capinagem ou desmatação (**): era ou não, "de jure et de facto", "trabalho forçado", teoricamente abolido em 1961 nas províncias ultramarinas portuguesas, no âmbito das reformas do ministro do ultramar Adriano Moreira (1922-2022)?

(i) Comentário de Cherno Baldé (**):

Voltando ao Poste do dia e sobre o fundo da questão, acho que estamos na presença de imagens que, na linguagem da época da Guiné portuguesa, se designava por "trabalho obrigatório" ou "trabalho forçado". 

Do ponto de vista oficial, era trabalho voluntário de limpeza das vias e arredores dos aquartelamentos, mas na realidade e para a população civil era um trabalho a que eram obrigados a fazer por ordens dos chefes de Postos e autoridades tradicionais legítimas ou impostas.

A presença dos individuos armados com mauseres e G3 no meio dos trabalhadores tanto poderia ser para a segurança assim como um meio de pressão psicológica e de intimidação, tratando-se sobretudo de jovens pertencentes a etnia Balanta de Cutia e arredores.

É a minha opinião à luz da realidade dos anos 60/70 de que fui testemunho e participante. No meio disso tudo, alguns elementos da tropa metropolitana, mal preparada previamente, sobre os reais objectivos e fundamentos da colonização, paradoxalmente, contrariavam estas linhas de orientação que muitas vezes não compreendiam e mal aceitavam excepção feita aos oficiais superiores que estavam melhor informados. 

Na fase final da guerra, o General Spínola tentou acabar com estas práticas, consideradas muito nocivas e que não se enquadravam na nova política "Por uma Guiné melhor" chocando-se fortemente com hábitos há muito estabelecidos e que davam jeito aos comandantes e chefes de Postos nos aquartelamentos do mato a braços com problemas de meios humanos, financeiros e materiais para todas as tarefas necessárias.

(ii) Comentário do editor LG (a propósito da Op Cabeça Rapada( (***):

É um número impressionante de trabalhadores de etnia fula e mandinga, mas também balanta, naturais dos regulados de Badora (e talvez do Corubal). Desconheço se foram recrutados "voluntariamente" e "devidamente pagos"... É muito provável que tenham sido apenas pagos em géneros: em alimentação e  mais um suplemento em arroz... A tradição da administração colonial, antes do início da guerra, e teoricamente até pelo menos a 1961, era a do "trabalho forçado", puro e duro (...).

Recorde-se que, segundo a História do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), "a população de um modo geral é-nos favorável [no sector L1], sendo de destacar o regulado de Badora que tem como Chefe/Régulo um homem de valor e considerado pela população como um Deus" (sic).

Tratava-se do tenente de 2ª linha Mamadu Bonco Sanhá ( que será fuzilado, sem julgamento,  pelo PAIGC a seguir à independência), "um homem (...) já conhecido no meio militar pelos seus feitos valorosos e dignos de exemplo. Da outra população [balantas, biafadas e mandingas...] fortes dúvidas se tem,  especialmente as dos Nhabijões, Xime e Mero" (História do BCAÇ 2852... Cap. II, pag. 1).

Conheci o tenente de 2ª classe, régulo e chefe máximo das milícias de Badora.O quer se dizia sobre ele era manifestamente exagerado: o tenente Mamadu Bonco Sanhá era respeitado e sobretudo temido pelos seus súbditos, mas é manifestamente grosseiro, etnocêntrico e até ofensivo dizer que a população, muçulmana, o "considerava como um Deus"... Convenhamos que é uma figura de estilo"... 

O administrador do concelho de Bafaté (Guerra Ribeiro) e o régulo de Badora eram, na altura, figuras poderosas, com capacidade para recrutar milhares de braços...

Recorde-se que, segundo a Convenção nº 29 da OIT - Organização Internacional do Trabalho (adotada em 1930, e ratificada por Portugal em... 1956)), trabalho forçado ou obrigatório é todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de uma sanção e para o qual a pessoa não se ofereceu espontaneamente (nº 1 do artº 2ª)... Mas depois havia as exceções do nº 2 do artº 2º...

(iii) Comentário do Torcato Mendonça (1944-2021) (vd. poste P9541) (****):


(...) Vou tentar contar-vos, sem grandes pormenores, a maior operação de Acção Psico Social – chamemos-lhe assim – a que assisti. Bem planeada e meticulosamente preparada por quem sabia.

Tudo com o aval do Comandante-chefe e teve o nome de “Operação Cabeça Rapada”. Desenrolou-se de finais de Março a meados de Maio de 69, talvez por seis fases ou seis operações [na realidade, quatro.]

O objectivo era capinar – cortar e desmatar – toda a vegetação numa faixa de trinta ou quarenta metros, talvez mais, para lá do arame que delimitava o perímetro de Mansambo e igualmente, em largura, uma faixa similar para lá das bermas das estradas (picadas) de Mansambo a Bambadinca e daqui até ao Xime. Só nas zonas mais propícias a emboscadas.

Outras desmatações menores,  à volta de algumas Tabancas, por exemplo Amedalai e outros locais, sofreram igual corte.

Estas Operações queriam vincar três pontos:

  • dizer que o IN tinha sido derrotado na Operação Lança Afiada [, 8.19 de março de 1969]; 
  • mostrar que as populações estavam com as NT;
  • fortalecer o slogan “Por uma Guiné Melhor”.

Análise despretensiosa e sem petulância minha. É uma não análise… talvez.

As populações envolveram-se fortemente depois do excelente planeamento. Muitas centenas, talvez um ou dois milhares de civis, muitos militares  [na realidade, 7 mil, na Op Cabeça Rapada I], e uma logística enorme: viaturas civis e militares, alimentação e uma bem montada segurança, próxima e afastada, para dissuadir ou minimizar o efeito de qualquer ataque e, também, colaborar activamente com apoio rápido à resolução de algum acidente e incidente.

Não seria difícil ao IN disparar umas morteiradas e provocar o pânico. Uma ou duas granadas eram suficientes. Não o fez e nós não sabíamos, quantos daqueles homens eram simpatizantes deles e trabalhavam naquela desmatação para obterem informações. Havia certamente.

Lembro-me da enorme confusão da manhã do primeiro dia. Eram muitas centenas e centenas de homens e suas catanas a chegarem a Mansambo. Organizar tudo seria tarefa difícil mas foi conseguido.

A nossa missão, a do meu Grupo, era outra e rapidamente saímos do aquartelamento para a segurança. No fim de toda esta Operação, faseada e por tanto tempo, quando acabou uma dúvida, em mim, se levantou:  "
Aquela desmatação não iria abrir o campo de tiro ao IN?".

Caí, em meados de Maio, numa forte emboscada no Pontão do Almami e, em inicio de Abril, já tinha havido outra no mesmo local. Felizmente as árvores que ladeavam a estrada foram poupadas.

No dia 28 de Maio de 1969 a sede do Batalhão, em Bambadinca, foi atacada pela primeira vez. As tabancas de Taibatá, Moricanhe e Amedalai, sofreram igualmente ataques.

Era a represália do IN. Teve auxílio vindo do Sul e do Norte? Certamente. Mas provava que estava vivo e não fora aniquilado na Lança Afiada e esta não respeitara certas regras básicas de contra guerrilha. O IN não foi aniquilado. Tanto assim que começou a bater forte, a tentar infiltrar-se e a exigir um esforço maior de contenção das NT. 

Só em meados de Agosto. o IN veio a sofrer um forte revés e ficou decapitado - como sinónimo de sem comando [, o comandante Mamadu Indjai, gravememte ferido em emboscada montada por forças da CART 2339].

Nada de relevante ou muito grave aconteceu até ao fim da nossa Comissão, em finais de Novembro de 1969. Emboscadas, ataques a tabancas e aquartelamento, umas baixas sempre lastimáveis e uma ou outra operação igual a tantas outras. A rotina habitual com ou sem desmatações. Embarcámos em 4 de Dezembro de 1969 [de regresso a casa]. (...)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 16 de junho de 2022 Guiné 61/74 - P23355: Questões politicamente (in)correctas (57): O luso-tropicalismo e os seus mitos (José Belo, Suécia e EUA)

(**) Vd. poste de 30 de julho de 2023 Guiné 61/74 - P24519 Fotos à procura de... uma legenda (175): Capinadores e "homens armadas" em Cutia, tabanca e destacamento no setor de Mansoa, ao tempo do BCAÇ 2885 (1969/71) (José Torres Neves, capelão)


Vd.também postes de:




segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24538: Notas de leitura (1604): Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Será porventura a mais recente das biografias de Amílcar Cabral, trabalho mais de ruminação, sem acompanhamento de factos novos. Está bem estruturado, tem uma descrição cronológica relativamente bem montada, cai constantemente na hagiografia, o que significa que o autor cuidou pouco do distanciamento, foge em permanência das questões fracturantes, caso predominante da unidade Guiné - Cabo Verde. Não cuidou de bibliografia recente, esquece trabalhos de Toby Green, Joshua Forrest, Carlos Cardoso ou António Duarte Silva.Talvez útil para alunos das universidades norte-americanas, não traz inspiração para investigações guineenses ou mesmo portuguesas.

Um abraço do
Mário



Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy

Mário Beja Santos

Será porventura a mais recente biografia de Amílcar Cabral, Peter Karibe Mendy é um gambiano filho de guineenses de Bissau, ganhou notoriedade com a sua tese de doutoramento A tradição da resistência na Guiné-Bissau, 1879-1959; é professor de História e de Estudos Africanos no Rhode Island College, Providence, esta biografia foi ditada pela Ohio University Press em 2019.

Há que deplorar não trazer nada de significativo relativamente aos trabalhos mais recentes de Patrick Chabal, Toby Green, Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa. Tem-se a sensação de que o investigador leu muito o que já sobre Cabral se escreveu, ficou espartilhado por considerações hagiográficas que não têm o cuidado em depurar, usa pouco o contraditório e sente-se incapaz de nos dar uma observação refrescada sobre a atualidade do legado ideológico de Cabral. Reconheça-se, no entanto, que a biografia goza de uma estrutura bem organizada e acolhe os passos mais significativos da vida e do pensamento de Cabral.

Em Terra Natal, procura contextualizar a colónia da Guiné em que o líder do PAIGC nasceu, fala-nos da sua família, da ancestralidade cabo-verdiana e em Terra Ancestral insere a educação de Cabral em Cabo Verde, entre 1932 e 1945. Observa bem a atmosfera cabo-verdiana e não se esforça por fazer a distinção entre os aspetos radicalmente diferentes que separam duas formas de civilização e cultura, Guiné e Cabo Verde, e deixa no limbo o ressentimento multisecular dos guineenses face aos cabo-verdianos, que virá a ser exacerbado durante o período da governação de Spínola. Segue-se a preparação universitária do fundador do PAIGC em Portugal, a Mãe Pátria, continuamos sem novidades, e bem interessante seria que o autor tivesse invocado a obra de Dalila Mateus que ilumina como nenhuma outra a vida destes estudantes coloniais no pós-guerra do Estado Novo, as suas expetativas, laços de amizade, pois só assim se tornará compreensível a devoção de Cabral numa prática corrente de pan-africanismo com os líderes das outras colónias portuguesas.

E temos o regresso à Terra Natal, chega à Guiné em 1952, irá trabalhar na Granja de Pessubé, entrega-se devotadamente ao recenseamento agrícola, estabelece uma rede de amizades que preparará a ligação dos quadros cabo-verdiano e guineense que despontará formalmente em 1959. Como é sabido, dentro das diferentes desmontagens mitológicas, palavra de Julião Soares Sousa, este põe em causa o significado da reunião de 19 de setembro de 1956 que se tornará a mantra anos depois. O próprio Leopoldo Amado, em entrevistas feitas a dirigentes do PAIGC, a propósito da biografia de Aristides Pereira, encontrará incongruências e profundas hesitações entre aqueles que disseram ter estado no ato fundador do PAIGC em 1956. Como também faz parte da mitologia a expulsão de Amílcar Cabral da Guiné, ele regressou a Lisboa acompanhado da mulher, vinham profundamente doentes.

Peter Mendy dá-nos uma boa síntese da Lisboa da década de 1950 e a emergência provocada pelo desejo de libertação dos países inseridos em impérios coloniais. Cabral irá trabalhar para Angola e estará presente em agosto de 1959 na reunião determinante para a criação do PAI, embrião do PAIGC, de quem só se falará a partir dos anos 1960. Encetada a estratégia por ele delineada, fica um núcleo subversivo no interior da Guiné dirigido por Rafael Barbosa, Cabral parte para o exílio em Conacri, em condições precárias lança uma escola piloto e começa a obter apoios internacionais, o de maior realce é a preparação de jovens quadros na Academia Militar de Nanquim, serão estes que irão irromper em cena a partir do segundo semestre de 1962, o PAIGC procura responder de forma congruente às ações desenvolvidas pelo Movimento de Libertação da Guiné no ano anterior. Escolhe-se a região Sul para desencadear a subversão, a catequização e o ajuntamento de populações apoiantes da independência.

O autor, sem justificar as bases da sua afirmação, considera que as autoridades de Bissau estavam à espera de ações do tipo da UPA em Angola e que por isso começaram a disseminar forças militares pela extensa região fronteiriça, em rigor isso não é verdade, o contingente português ainda é muito pequeno, houve a noção elementar, logo no início da subversão, de que era necessário apoiar os núcleos populacionais que se temiam ser afetados, o êxito do PAIGC na região Sul decorreu da forma como foi bem recebida a subversão e como se isolaram povoações como Cacine, Catió ou Cufar, no Sul, ou Jabadá, no rio Geba. Quínara e Tombali, pela própria natureza do terreno, garantiram uma relativa segurança à presença das forças subversivas.

Quando se diz que Peter Mendy cai na armadilha da hagiografia basta ler a flagrante explicação que ele dá para a Operação Tridente, como se fosse um êxito absoluto do PAIGC. A ilha do Como, como é bem sabido, perdeu rapidamente a importância estratégica que a propaganda do PAIGC lhe atribuiu, encontraram-se outras posições no Sul muito mais influentes.

Chegamos ao Congresso de Cassacá e não se sabe por que carga de água é que aparece o nome de Inocêncio Kani, um dos futuros assassinos de Amílcar Cabral, acusado de ter vendido um motor, coisa que não aconteceu em 1964, mas sim em 1971.

Também a biografia nada traz de novo sobre o apoio cubano, as referências a Schulz é de um comandante-chefe que larga bombas de napalm e fósforo branco por toda a parte e que é obrigado a abandonar a colónia depois de um ataque perto de Bissalanca, onde o autor inventa a destruição de aviões e hangares, mais outra prova que não teve tempo ou interesse em ler o contraditório. Segue-se a descrição do período de Spínola, parece-me formalmente correto, tal como o capítulo subsequente sobre a solidariedade pan-africana e a ascensão mediática do líder do PAIGC. E assim chegamos ao assassinato, novo quadro hagiográfico, mais uma vez a incriminação da PIDE que se teria aproveitado do ressentimento dos guineenses contra os cabo-verdianos.

Peter Mendy esquece-se de referir que não se conhece o teor das sessões dos interrogatórios às centenas de acusados e às dezenas de incriminados, todo o documento escrito e magnético desapareceu. Em nenhum arquivo português se encontrou qualquer dado útil para a implicação das autoridades guineenses ou da PIDE de Bissau ou de Lisboa. Em nenhuma circunstância Peter Mendy manifesta vontade em dissecar a fragilidade da conceção teórica da unidade Guiné – Cabo Verde, ele fala de insurreições dos povos guineenses contra a ocupação portuguesa, nem uma palavra sobre as guerras sanguinolentas desencadeadas no século XIX com a queda do Kaabú e a ascensão dos Fulas que conduziram ao período dramático das guerras do Forreá, está possuído de um raciocínio limitativo de que as etnias guineenses viviam pacificamente entre si e coligavam-se para fazer frente ao opressor colonial português.

O capítulo A Luta Continua descreve a viragem da luta em 1973 e assim chegamos ao legado de Amílcar. Peter Mendy enfatiza documentos da maior importância produzidos por Cabral que denotam o seu génio, o vigor da sua habilidade diplomática, a sua comunicação e inspiração mantêm pertinentes: as suas advertências para o perigo de uma pequena burguesia gananciosa querer aspirar a ganhos pessoais aliando-se ao neocolonialismo; a essência de uma democracia revolucionária, baseada na participação das populações, no idealismo pan-africanista que exigia a descolonização mental. A atualidade do seu pensamento é ainda maior quando toda esta região de África caiu nas mãos de líderes populistas e tirânicos e todo este espaço se tornou uma rota de droga e da ameaça do radicalismo islâmico.

Um livro feito de muita mastigação, de grande candura face ao líder admirado, talvez útil para quem nada conheça sobre a vida e a obra deste gigante do movimento revolucionário.

Amílcar Cabral no gabinete de trabalho em Conacri, do acervo fotográfico de Bruna Polimeni, com a devida vénia
O “carocha” de Amílcar Cabral, que ele utilizou no dia em que foi assassinado
A devida vénia a Didinho.org
Palestra de Amílcar Cabral em Conacri, dirigindo-se aos seus quadros, com Aristides Pereira ao fundo, do acervo fotográfico de Bruna Polimeni, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24533: Notas de leitura (1603): "Análise de Alguns Tipos de Resistência", por Amílcar Cabral; edição conjunta de Monde Diplomatique e Outro Modo Cooperativa Cultural, 2020 (Mário Beja Santos)