sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25129: Notas de leitura (1663): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (10) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Chegou a hora de fazer um balanço ao conjunto de operações da Força Aérea com o intuito de aniquilar os sistemas antiaéreos em poder do PAIGC. Numa reunião de comandos efetuada em abril de 1968, porventura em hora de despedida do general Arnaldo Schulz da Guiné, dava-se como provado que reduzira substancialmente o poder antiaéreo do PAIGC, e compulsaram-se dados de 1965 até àquela data. É notório que o PAIGC não tinha hipóteses de contrariar a supremacia aérea, naquelas circunstâncias, precisou de uma arma maleável e letal, como os mísseis terra-ar que entraram em ação em 1973. Fica para a história o que estes aviadores escreveram quanto à bravura dos artilheiros do PAIGC naqueles três pontos cruciais no Sul da Guiné e, igualmente, fica comprovado que durante a governação de Schulz se usaram de todos os meios possíveis e oferecidos àquele teatro de operações para contrariar a combatividade e mesmo o destemor de quem lutava pela sua independência.Vamos agora ver a vida operacional da Força Aérea no tempo do governador Spínola. 

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (10)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 3: “Eram eles ou nós”


Os autores têm evidenciado as alterações operadas quer nos equipamentos e armamentos da Força Aérea quer nas respostas encontradas pelo PAIGC para procurar intimidar a supremacia dos ares, graças a sistemas defensivos de origem soviética. As principais inovações do lado português deveram-se à chegada do Fiat e do Alouette III e deste com o helicanhão. Na região Sul, no Cantanhez e no Quitafine, o PAIGC pôs-se em confronto com a aviação portuguesa, e daí termos enunciado um conjunto de operações que visavam destroçar totalmente tais equipamentos.

Do lado da Força Aérea, considerava-se que o material bélico não era adequado para operações no Quitafine. O General Nico recordou que tal material não era muito eficaz naquele terreno instável, a força explosiva dissipava-se no terreno macio e arenoso. “Mesmo quando os impactos ocorreram relativamente perto deles, logo que a poeira assentava e passava a dor de ouvidos, os guerrilheiros continuavam a atirar.”, observou o general. Felizmente para os aviadores portugueses, as mesmas características do solo que silenciavam os efeitos das suas bombas também realçavam as posições dos canhões dos sistemas de defesa antiaérea. “Os revestimentos destes sistemas em terra brilhavam intensamente sob o sol fortíssimo da Guiné e tornavam a localização do alvo muito mais fácil”, continuou o General Nico. O Tenente-coronel Costa Gomes rebate tal opinião alegando que “com os alvos a dispararem contra nós, a probabilidade de colocar uma bomba em tal pequeno círculo era muito estreita.” Apesar destes prós e contras, a Zona Aérea respondeu com uma outra série de operações contra os sistemas de defesa antiaérea no Sul da Guiné, no início de 1968.

Os aviadores portugueses inauguraram o novo ano com a Operação Faísca, um ataque de dois dias a posições antiaéreas identificadas em Dameol e Banir, na Península do Quitafine, lançaram 5400 kg de bombas em dois locais em 19 surtidas, destruindo uma ZPU de 14,5 mm em Banir e uma DShK de 12,7 mm em Dameol. Os aviadores portugueses, no regresso destas surtidas, reportaram que os outros locais estavam “possivelmente destruídos, tendo sido completamente abandonados pelo inimigo”. Durante todo o mês de janeiro de 1968, os Fiat também retaliaram contra o fogo antiaéreo. Fizeram-se relatórios mencionando que se tinham destruído pelo menos mais quatro armas do sistema de defesa antiaéreo.

No entanto, estes sucessos não conseguiram afastar a ameaça da atividade antiaérea. Em fevereiro, a Zona Aérea levou a efeito uma outra campanha no Quitafine, três operações batizadas de Operação Martelada I, II e III. A primeira fase da operação procurava responder a um ataque aéreo perto da localidade de Quitafine, Calaque Manjaco, que ocorreu em 9 de fevereiro. Perto das 13 horas, quatro Fiat partiram de Bissalanca, cada um carregando quatro bombas de 50 kg e duas bombas de 200 kg, e atacaram posições em Cassebeche e Calaque Manjaco, fazendo explodir aqueles locais com 24 bombas em menos de 30 segundos; uma segunda onda aconteceu às 16 horas, e encontrou as posições do PAIGC abandonadas; os Fiat baseados em Bissalanca fizeram um total de 10 surtidas para a Operação Martelada I, lançando 4800 kg de bombas e destruindo duas das posições de defesa antiaérea na Península do Quitafine; dois dias depois, a Zona Aérea lançou a Operação Martelada II, em resposta ao fogo da metralhadora pesada dirigida contra os Fiat quando estes sobrevoavam Cassebeche; nove surtidas de Fiat atingiram no local uma DShK de 12,7 mm com oito bombas de 50 kg, seis bombas de 200 kg e oito embalagens de napalm, alegadamente destruíram uma posição de bateria antiaérea e forçaram à evacuação de outras duas. No final do dia fez-se um reconhecimento a estes locais, e não houve resposta do PAIGC. Os resultados satisfatórios das Operações Martelada coincidiram com a melhoria da disponibilidade de munições, o que induziu o comando da Zona Aérea e o GO 1201 a planear futuros ataques com ondas de quatro a cinco Fiat largando cargas máximas em tempos muitíssimo rápidos. Era tal a violência destes ataques que os guerrilheiros antiaéreos se sentiam obrigados a abandonar as posições, mas não havia a certeza de que eles e as suas armas tinham sobrevivido a tal ataque inicial.

O perigo que decorria dos aviões baseados em Bissalanca tornou-se um alvo tentador ao PAIGC, o que levou a que tivesse feito um ataque sem precedentes contra a instalação, durou 6 minutos, começou às 23h30 de 18 de fevereiro de 1968, foram 10 tiros de morteiro e usaram-se granadas de propulsão, foi tudo disparado de fora do perímetro de segurança, registaram-se dois mortos e doze feridos em milícias acampados na base, mas não teve qualquer impacto nos aviões e causou apenas danos materiais “insignificantes”. Com efeito, na manhã seguinte, de Bissalanca partiram 30 surtidas para operações que estavam a decorrer, incluindo uma missão aérea de cariz empresarial. No entanto, o PAIGC bem tentou fazer propaganda da operação, dizendo que tinha sido um grande sucesso, reivindicou a destruição de dois aviões, três hangares e a torre de controlo. O líder do PAIGC condecorou os 13 guerrilheiros que tinham participado na operação com a “Estrela Negra do Partido”. Pondo de parte a verborreia da propaganda, ficou claro que o PAIGC adquirira capacidade de infiltrar militantes fortemente armados em Bissau e arredores, atacar e retirar-se sem ser intercetado.

E ficou a pairar no ar a possibilidade do PAIGC “bombardear campos de aviação, realizar emboscadas e atacar aviões à medida que estes descolavam”, era o que já constava numa diretiva do partido de 1965. Na verdade, o PAIGC já tinha reivindicado, de uma forma totalmente irrealista, mais de 20 ataques contra pistas de aterragem, dizendo mesmo que tinham deixado o campo de aviação de Cufar “inutilizável para a aviação”, tinha sido uma destruidora operação com morteiros. Estes ataques da propaganda não perturbaram a campanha antiaérea da Zona Aérea no Quitafine, e os Fiat do GO 1201 regressaram a Cassebeche para a Operação Martelada III, em 7 de março. Uma vaga de quatro Fiat lançou 12 bombas de 50 kg, 6 bombas de 200 kg e 2 bombas de napalm contra um sistema antiaéreo ZPU-4 de 14,5 mm, destruindo-o. Os Fiat também metralharam quatro posições DShK 12,7 mm que estavam próximas, o que levou os artilheiros a transferirem-se para locais mais seguros. O reconhecimento fotográfico posterior confirmou a “aniquilação brutal do complexo” que “quebrou a capacidade de reação do inimigo”, como lembrou o General Nico.

A Operação Martelada III seria a última operação planeada pela Zona Aérea, embora tivessem continuado ataques de viação contra o fogo antiaéreo do PAIGC. Estas iniciativas da Zona Aérea atacando os sistemas antiaéreos do PAIG terão feito diminuir as iniciativas destes: os ataques antiaéreos em 1966 foram em número 110 e passaram para 29 em 1968, houve uma queda acentuada no Setor Sul que, incorporava como Cantanhez e Quitafine. Numa reunião de comandos presidida por Schulz, em abril de 1968, houve consenso quanto a uma diminuição significativa no fogo hostil dirigido contra aviões portugueses. Nem um único avião português fora derrubado por fogo hostil em todo o país, entre 1965 e o primeiro semestre de 1968.

A Zona Aérea sofreu perdas acidentais durante esses anos, conforme se pode ver no anexo III. Em 21 de julho de 1966, um DO-27, em voo de rotina e transportando correspondência, desviou-se para o espaço aéreo senegalês e caiu no mar, os pilotos, os alferes José de Sousa e Manuel Lima Leite, foram resgatados por um navio alemão, detidos algum tempo em Dacar e depois devolvidos a Bissau em 4 de agosto. No início do ano seguinte, em 22 de fevereiro, a Esquadra 121 sofreu a sua primeira perda operacional de um avião Fiat. O comandante da Esquadra, Major Armando dos Santos Moreira, estava a bombardear uma suposta posição antiaérea perto de Gã Pedro, na região de Quinara, quando o seu avião ficou danificado por estilhaços da sua própria bomba de fragmentação de 200 kg, possivelmente devido a uma detonação prematura. Acompanhado pelo seu asa, Tenente Egídio Lopes, Moreira tentou trazer o seu avião de volta a Bissalanca, mas os danos eram muitíssimos elevados e foi forçado a ejetar-se a uma altitude de 2000 pés durante a sua aproximação, foi recuperado e evacuado para convalescença, o seu avião ficou totalmente perdido. Finalmente, em 15 de junho de 1968, um T-6 sofreu uma falha de motor e caiu entre Chéché e Madina do Boé. No dia seguinte, paraquedistas helitransportados recuperaram a aeronave danificada que foi posteriormente desfeita.
Operações da Zona Aérea entre janeiro e maio de 1968 (Matthew M. Hurley)
Detalhe da posição de uma ZPU-4 em Cassebeche, assinalada durante a Operação Martelada III
(Coleção José Nico)
A mesma posição antiaérea a seguir a um ataque português por Fiat (Arquivo da Defesa Nacional)
Operações helitransportadas entre janeiro e junho de 1968 (Matthew M. Hurley)
Os Alouette III foram muito ativos na primeira metade de 1968, especialmente em operações helitransportadas
(Coleção Helder Ferreira)

(continua)
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Notas do editor

Post anterior de 26 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25112: Notas de leitura (1661): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (9) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 29 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25121: Notas de leitura (1662): "Os três rostos da Igreja Católica na Guiné" (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25128: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte II: embarque de tropas expedicionárias para os Açores, em maio de 1941

 


Legenda (não há indicação do autor da foto):  "O sr. capitão Santos Costa, Subsecretário de Estado da Guerra, passa revista a mais um contingente de tropas para reforçar a guarniçáo militar dos Açores.  Desta vez foi um contingente de engenharia que embarcou para aquele arquipélago, no 'Carvalho Araújo' "... (O glorioso paquete "Carvalho Araújo" que navegou durante 4 décadas entre as ilhas e o continente e transportaria ainda tropas para a Guiné, no nosso tempo, antes de chegar oa fim dos seus dias...)

Capa da "Vida mundial ilustrada : semanário gráfico de actualidades": ano I, nº 2, 29 de maio  de 1941. Preço: 1 escudo. (*)

(A imagem foi reditada, com a devida vénia... LG; cortesia de Hemeroteca Digital de Lisboa / Câmara Municioal de Lisboa





Legenda: "Soldados Portugueses cotinuam a seguir para várias pates do Império onde a sua presença se torna necessária para afirmação da nossa soberania.  Damos, em cima, dois aspetos do último embarque de tropas para os Açores".
  

1. É desconhecido,  da maior parte dos nossos leitores, o esforço que Portugal teve que fazer na II Guerra Mundial para se defender e defender os seus territórios ultramarinos, com destaque para os arquipélagos atlânticos de maior interesse estratégico para os beligerantes: as potências do Eixo (Alemanha, Itália,  etc.) e os Aliados (Inglaterra, EUA, etc.).

Sobre os planos de defesa de Cabo Verde, já aqui temos falado (**)... Cerca de seis mil homens foram enviados para Cabo Verde, com destaque para as ilhas do Sal e de São Vicente. Para os Açores, form quase cinco vezes mais: 28 mil homens.

Era então Subsecretário de Estado da Guerra, braço direito de Salazar, considerado um "germanófilo",  o capitão Santos Costa (1899 - 1982)  (***).

Eis alguns resumos e excertos da dissertação de mestrado de Tiago Henrique Magalhães da Silva (2010), abaixo citado:

(,...) "Com o início da guerra, e até 1940, dão-se algumas alterações militares" (...) O  exército ordena uma mobilização parcial, passando de c. de 32,6 mil homens, em 1939, para 48,9 mil. Não há ainda preocupaçõea com a defesa das ilhas (e em especial dos Açores).

(...) "O Exército reforça também significativamente as ilhas a partir de Abril de 1941. Será a maior força expedicionária portuguesa, a dos Açores, contabilizando 28 000 homens, o que corresponde a duas divisões. Apesar da grandeza do dispositivo, as carências de armamento não podem ser mais claras, apenas o número das armas ligeiras está de acordo com as necessidades do exército." (...)

Há um reforço de três batalhões de infantaria expedicionários: 
  • o BI 8, para o Faial:
  • o BI 9, para S. Miguel:
  • e o BI 10, para Angra.

Em Julho de 1941, chega aos Açores a terceira vaga dos reforços, incluindo mais batalhões de infantaria: o BI 12 e o BI 14, ambos para S. Miguel. 

Em novembro de 1941, a quarta (e última) vaga vem completar, no essencial, o dispositivo militar  do arquipélago.

Nas próprias ilhas também se fazia, entretanto,  um importante esforço de mobilização: são criando-se vários batalhões de infantaria a partir das duas unidades-mãe: os batalhões independentes de infantaria, o BII 17 (Terceira) e o BII 18 (S. Miguel).

O número de 28 000 homens apontado por António José Telo (historidor, professor catedrático aposentado da Academia Militar) poderá, eventualmente, corresponder à totalidade de efectivos contabilizando substituições, ou talvez, englobando os efectivos da Marinha.

Segundo António José Telo  ("Os Açores e o controlo do Atlântico: 1898 – 1948. Porto: ASA, 1993, pág. 276, cit, por Silva, 2010, pág. 86):

(...) "Em 1941, o comando militar dos Açores dirige já uma guarnição distribuída por três ilhas, com uma presença simbólica nas outras. O grosso das forças está em S. Miguel, sede de três regimentos de infantaria (RI 18, 21, 22), companhias de metralhadoras, artilharia antiaérea e de campanha e as baterias de defesa de costa de Ponta Delgada. O RI 17 está na Terceira e o RI 20 no Faial, ambas as ilhas reforçadas com unidades de artilharia de campanha, antiaérea e auxiliares”. (...)

Fonte; Adapt. de Tiago Henrique Magalhães da Silva - "Operação dos Açores 1941". Dissertação de Mestrado em História Contemporânea. Porto:  Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2010, 117 pp. (Sob a orientação do Professor Doutor Manuel Loff). 


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Notas do editor

(*) Vd.  29 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25120: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte I: embarque de tropas expedicionárias para Cabo Verde, em junho de 1941.... "Partiram alegres e confiantes"...

(***) Sobre o gen Fernando dos Santos Costa   (1899-1982)

Militar e político que foi figura destacada do regime salazarista. Entre 13 de Maio de 1936 e 6 de Setembro de 1944 ocupou o cargo de Subsecretário de Estado no Ministério da Guerra, de cuja pasta era titular o próprio Presidente do Conselho, Salazar, a quem sucederá à frente do Ministério da Guerra entre 6 de Agosto de 1944 e 2 de Agosto de 1950. Quando a pasta da Defesa substituiu a da Guerra, manteve-se à frente do novo Ministério até 4 de Agosto de 1958, data em que foi afastado do governo. Em 1961 foi promovido a General. (José Martins)

Vd. a publicação Correspondência do General Santos da Costa (1936-1982). Organização e prefácio: Manuel Braga da Cruz . Editora: Verbo, Lisboa, 2004,

"O General Fernando Santos Costa foi um dos mais estreitos colaboradores de Salazar e um dos mais longevos ministros dos seus governos. Ao longo dos 22 anos que esteve no Governo, onde ocupou os cargos de subsecretário de Estado da Guerra e de ministro da Guerra e da Defesa, foi a figura mais importante do regime junto do Presidente do Conselho de Ministros. Principal fautor da reestruturação das Forças Armadas e da sua subordinação ao poder político, Santos Costa participou ao lado de Salazar, de modo decisivo, na formulação da política de guerra, desde o deflagrar da Guerra Civil de Espanha até ao início da Guerra Fria, depois do termo da II Guerra Mundial (****), assumindo desse modo relevante papel não só nacional como internacional. 

"A documentação que se reúne nesta obra, com prefácio de Manuel Braga da Cruz, contribuirá seguramente para uma maior compreensão da personalidade de Santos Costa e de suas ideias e orientações políticas".

(****) Portugal e a II Guerra Mundial - Cronologia breve (LG):

1939

17 de Março - Assinado por Salazar e Franco o Pacto Ibérico, Tratado de Amizade e Não Agressão

1 de Setembro - Invasão alemã da Polónia. Início da II Guerra Mundial. Portugal, no dia seguinte, declara a sua posição de neutralidade no conflito europeu.

1940

Começam a afluir a Portugal dezenas e dezenas de milhares de refugiados, na sua maioria judeus, e nomeadamente em trânsito para os EUA.

6/7 de Junho - A Alemanha invade a França que irá capitular. Reafirmação da "estrita neutralidade" de Portugal. Conhecimento dos planos (secretos) da "Operação Félix" (invasão de Espanha e, eventualmente, Portugal, para a conquista e ocupação de Gibraltar, vital para o controlo do Mediterrâneo). Os ingleses fazem todos os esforços para manter a neutralidade da Península Ibérica.

Dezembro - Plano de retirada do governo português para os Açores na hipótese (temida pelos ingleses e levada a sério por Salazar) de invasão do país pela Alemanha e pela Espanha. O arquipélago dos Açores chegará a ter quase 3 dezenas de milhares de homens em armas, com equipamento inglês.

1941

22 de Junho – A URSS é invadida pela Alemanha. Aumenta a germanofilia em Portugal,  nomeadamente. Estreitam-se os laços económicos com a Alemanha.

Dezembro - Declaração de guerra dos Estados Unidos contra as pptências do Eixo, após o ataque japonês a Pearl Harbour. Reforça-se em Portugal o receio de ocupação, pelos Aliados, das ilhas atlânticas. Aumenta a importância estratégica dos Açores. Em 1941 Portugal perde 4 navios, três dos quais da marinha mercante, incluindo o Cassequel, de 122 m, da Companhia Colonial de Navegação. No final do conflito, terã perdido 18 mil t, o equivalente a 7% do total da arequeação bruta

1942

Março - Racionamento de bens essenciais, na sequência de Bloqueio económico imposto pelos Aliados. Portugal é obrigado a aceitar, no verão desse ano, um acordo comercial favorável aos interesses do seu velho aliado que lhe garante a independência da metrópole e das ilhas adjacentes bem como a soberania das colónias.

Novembro/Dezembro - A sorte das armas começa a virar-se para os Aliados.

1943

Janeiro - Capitulação dos alemães em Estalinegrado.

Maio – Queda da Tunísia a favor dos aliados. Ameaça sobre os Açores, vital para o abastecimento de aviões provenientes da América. Negociação com os ingleses e depois com os americanos.

Agosto - Cedência das bases das Lajes, nos Açores. O Governo Britânico compromete-se a dar apoio e auxílio militar a Portugal, em caso de ataque. Modernização das nossas Forças Armadas.

Junho - Portugal cancela a exportação do volfrâmio, face ao braço de ferro mantido com a Inglaterra. O principal cliente deste minério, essencial para a indústria de armamento, tinha sido a Alemanha.

1944

Maio - II Congresso da União Nacional. Delineada a estratégia de sobrevivência do regime de Salazar.

6 de Junho – O tão esperado Dia D (Desembarque nas praias da Normandia pelas forças aliadas).
Novembro - Acordo (secreto) de concessão de facilidades militares nos Açores, assinado por Portugal e os Estados Unidos.

1945

30 de Abril – Morte de Hitler em Berlim. Três dias de luto oficial decretados pelo governo português.

Maio – Capitulação das tropas alemãs.

6 e 9 de Agosto - Lançamento de bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, que irão apressar a rendição japonesa (a 2 de Setembro)

27 de Setembro – O território de Timor volta à administração portuguesa, depois da ocupação japonesa (mas também australiana e holandesa).

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Nota do editor:

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25127: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (28): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Julho de 1971



"A MINHA IDA À GUERRA"

28 - HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: CAPÍTULO II - ACTIVIDADES NO TO DA GUINÉ

João Moreira


MÊS DE JULHO 1971

Abrigo em Nhacra
Capela no quartel de Nhacra
Instalações da Emissora Oficial da Guiné, que ficavam no terreno ao lado do quartel em Nhacra

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25110: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (27): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Junho de 1971

Guiné 61/74 - P25126: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLII: No rasto do PAIGC, a última saída da CCAÇ 21: apanhada de surpresa, em Canjufa, pela notícia do golpe de estado do 25 de Abril (pp. 272/276)


Guiné > Região de Gabu > Carta de Nova Lamego (1957) ( Escala 1/50 mil) > Posição relativa dos topónimos referidos por Amadu Djaló: Unago, Canjufa (na estrada Nova Lamego-Bajocunda-Pirada), Pajama e várias tabancas com o nome de Ufoia. Não localizámos Ufra, perto de uma lagoa, que deve ser Vendu Finjor, local de transumância na época seca... Foi em Canjufa que a CCAÇ 21 foi apanhada pela notícia do golpe de estado do  25 de Abril, em Lisboa... E já, antes, numa das tabancas de Ufoia, o tenente Jamanca, comandante da CCAÇ 21, terá perdido a indispensável serenidade de espírito e o imprescindível autocontrolo emocional: desautorizando o Amadu Djal terá dito, alto e bom som, para
 "dizer(em) ao pessoal do PAIGC que, disparassem ou não contra nós, ele Abdulai Jamanca, comandante da companhia, dava ordens para atacar com toda a força". E mais acrescentando que  "ainda tinha 150 balas de AK 47 e que,  depois disparar contra a guerrilha, a última que faltava era para ele" (Amadu Djaló, p, op cit,. 2010, pag. 273)

Infografia: Blogue Luís Graça / Camaradas da Guiné (2024)


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem mais de nove dezenas de referências no nosso blogue. Tinha um 2º volume em preparação, que a doença e a morte não  lhe permitaram ultimar.



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné-Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra)M

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor;

(xxiii) vamos vê-lo a dar instrução a futuros 'comandos' no CIM de Mansabá, na região do Oio, no primeiros meses do ano de 1973, e a fazer algumas "saídas" extras (e bem pagas) com o grupo do Marcelino, ao serviço do COE (Comando de Operações Especiais), que era então comandado pelo major Bruno de Almeida; mas não nos diz uma única sobre essas secretas missões; ao fim de 12 anos de tropa, é 2º sargento e confessa que está cansado;

(xxiv) antes de ir para CCAÇ 21, como sede em Bambadinca, como alferes 'graduado" (e sob o comando do tenente graduado Abdulai Jamanca, ainda irá participar na dramática Op Ametista Real, contra a base do PAIGC, Cumbamori, no Senegal, em 19 de maio de 1973;  esta parte do seu  livro de memórias  (pp. 248-260) já aqui foi transcrita no poste P23625;

(xxv) no leste, começa por atuar no subsetor do Xime, em meados de 1973;

(xxvi) em setembro de 1973, quando estava em Piche, já na CCAÇ 21, recebe a terrível notícia da morte do seu querido irmão mais novo, Braima Djaló, da 3ª CCmds;

(xxvii)  embora amargurado com a morte do seu irmão mais novo, e cansado, ao fim de 12 anos de tropa e de  guerra, o Amadu Djaló mantem-se na CCAÇ 21, como alferes graduado; vemo-lo agora no início de 1974 em Canquelifá, em reforço da CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74);

(xxviii) a CCAÇ 21 está n leste, na região de Gabu, ao serviço dfo CAOP2, e mais exatamente em Canjufa, quando sabe da notícia do golpe de estado do 25 de Abril em Lisboa; só no dia 27, de manhã, regressa a Bambadinca, onde estava sediada.


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLII:


No rasto do PAIGC, a última saída da CCAÇ 21: apanhada de surpresa, em Canjufa,  pela notícia do golpe de estado do 25 de Abril (pp. 272/276)


O Batalhão estacionado em Piche tinha um serviço de informadores civis que, sempre que saíamos, nos seguiam para ver se cumpríamos as missões. Havia um, fula, residente em Piche,  que se deslocava numa bicicleta de tabanca em tabanca vendendo às populações a cola, que transportava num cesto. Nas visitas que fazia às tabancas recolhia informações que transmitia, depois, ao comandante do Agrupamento[1].

Estávamos numa fase de grande actividade operacional. A minha companhia saía constantemente para operações, tanto no leste como na zona de Bambadinca.

Havia informações que na zona de Piche o PAIGC visitava as tabancas, deslocando-se de aldeia em aldeia, contactando as populações.

No dia 22 de Abril de 1974 encarregaram-nos de seguir o PAIGC, visitar também essas tabancas procurando obter informações sobre a actividade da guerrilha. O plano era sair de Piche, a pé, passar pelas tabancas de Ufoias, Pajama, Ufra e Unago e passar a noite numa tabanca abandonada, entre Unago e Canjufa.

Deixámos Piche[2], de manhã muito cedo e fomos passando de tabanca em tabanca, até à última, Ufoia. Nesta área havia três tabancas todas com o mesmo nome, Ufoia.

O meu pelotão seguia à frente e, quando estávamos a sair dessa última tabanca.  avistei um homem já velhote. Perguntei-lhe para onde é que ele ia e respondeu que vivia ali naquela tabanca. Que, em todos os anos nesta altura, os poços secavam, ficavam sem água, e, como tinham gado e precisavam de muita, então mudavam-se para Ufra, onde havia uma lagoa, com água em toda as épocas do ano. E que era por esse motivo que todas as tabancas em redor se mudavam para Ufra. E só regressavam, depois das duas ou três primeiras chuvas da época.

Quando o velhote acabou de falar, perguntei-lhe se o PAIGC andava por ali.

  − Todos os dias  −respondeu.

E contou mais coisas. Que o comandante, um dia,  lhe tinha levado o filho. E que fora ter com o PAIGC para lhes pedir para não o levarem, porque era o único que tinha e que estava velho para pastorear o gado. Deram-lhe o filho outra vez e levaram-no ao armazém. O comandante disse-lhe a ele e ao filho para levarem o que pudessem, arroz, açúcar, óleo e manteiga.

Contou ainda que o comandante o avisara de que uma companhia de africanos andava na zona, mas que o PAIGC não os atacava, nem que os vissem.

 − Se não dispararem contra nós, nós também respondemos da mesma foram, não disparaqmos contra eles  − disse eu.

O tenente Jamanca, que estava lá para trás, no meio da companhia, foi-se aproximando e chegou nesta altura da conversa. Então, o Jamanca disse para o velhote dizer ao pessoal do PAIGC que, disparassem ou não contra nós, ele Abdulai Jamanca, comandante da companhia, dava ordens para atacar com toda a força. E acrescentou ainda que tinha 150 balas de AK 47 e que,  depois de disparar contra a guerrilha,  a última que faltava era para ele. 

− Diz isto que te disse, ao PAIGC. 

Acabou a conversa assim, com o velhote.

Depois de recomeçarmos a marcha, a pouca distância dali, encontrámos uma velhota. Outra vez, a mesma pergunta, de onde vinha. 

− De Ufra  −   respondeu. 

− E para onde vai? 

 − Buscar algumas coisas que estão a fazer falta no acampamento, onde tinha o gado guardado.

 − O PAIGC vem a Ufra?  − Perguntei.

− Sim, vem.

E mais acrescventou que tinha vindo, "agora mesmo, com uma companhia do PAIGC, que foi para Pajama e que se tinha separado deles, ali no cruzamento".

 − Quantos são ?  − perguntou o tenente. 

 − Que não sabia quantos eram  −  respondeu a velhota.

Seguimos para o cruzamento e,  quando chegámos,  o tenente disse que não os íamos perseguir, porque se os atacássemos em Pajama, eles iriam resistir e iria morrer muita gente que não tinha culpa, crianças, velhotes, mulheres. Que não valia a pena, não iriam faltar oportunidades.

Saímos dali, virámos à direita na direcção de Ufra. Quando chegámos à tabanca, vimos pouca gente. Pareceram estar a olhar para nós, com medo,  e isso também nos pareceu estranho. Notava-se nos olhos daquelas pessoas que estavam a esconder qualquer coisa, qualquer segredo que não nos queriam revelar.

Perguntámos o que se estava a passar e respondiam "nada". Um soldado meu, que tinha muito gado à guarda do irmão mais novo, viu-o ao longe e chamou-o. Cumprimentaram-se, o soldado perguntou-lhe pelo gado e depois apresentou-nos o mano. Cumprimentámo-nos e nos olhos dele vimos também qualquer coisa de estranho.

 − O que se está a passar? 

 − Nada − a mesma resposta dos outros. 

Perguntou para onde íamos e eu respondi para Unano.

O meu soldado, Djao Djaló, tinha mais de 100 cabeças de gado e tinha ido para a tropa para poder defender a sua manada. O pai tinha morrido quando ainda não tinha dez anos, depois,  chegado a esta idade, o irmão mais velho que um dia estava a pastorear,  foi mordido por uma cobra venenosa e morreu. Era o único herdeiro e,  como o irmão mais novo não era filho do mesmo pai, não tinha direito à herança e foi por isso que o Djao Djaló ficou herdeiro do gado.

Depois das respostas da população, que não nos pareceram verdadeiras, tivemos que abandonar o local. Via-se mesmo na cara das pessoas que o perigo estava ali, na tabanca, a rondar-nos[3].

Na saída para Unago havia uma clareira com 500 metros, mais ou menos, e a companhia não podia entrar toda ao mesmo tempo, era perigoso. Pedi ao meu grupo quatro voluntários para a atravessar comigo.

Depois de chegarmos ao outro lado, fizemos sinal para a companhia começar a travessia, pelotão a pelotão, da mesma forma como nós tínhamos feito. Dali seguimos para uma tabanca, onde eu tinha um parente e amigo, o Adulai Djaló Unago. Ficava a pouca distância, demorou pouco mais de duas horas a chegarmos lá.

Fomos muito bem recebidos. Mandou os filhos buscar uma cabra e disse que era para o nosso almoço. Apresentei-lhe os meus colegas e almoçámos tarde, já passavam das 16h00. Depois, ainda ficámos quase uma hora na conversa até o tenente dizer que tínhamos de ir embora para o quartel.

Não fomos, deslocámo-nos para o nosso objectivo, onde chegámos pelas 18h00, e passámos a noite numa tabanca abandonada há muitos anos. Quando amanheceu, deslocámo-nos para a tabanca de Canjufa.

Quando entrámos na tabanca, dirigi-me à casa do Régulo, Serifo Inum Embaló. Mandou reunir todos os chefes das famílias para nos cumprimentarmos. Os milícias que lá estavam ofereceram-nos comida, uma cabra também, para o nosso almoço.

De manhã, tínhamos recebido, por rádio, a ordem de retirada. E depois dessa hora, nunca mais nos contactaram. Estávamos no dia 24 de Abril de 1974.

Passámos a noite em Canjufa, com a intenção de recolhermos ao Gabu 
[Nova Lamego, sede do CAOP 2]  . No dia seguinte, 25 de Abril, às 09h00, ouvimos o rádio. Golpe de estado em Lisboa?

Ficámos todo o dia à espera de mais notícias e decidimos permanecer no local até nova ordem.

Depois começámos a chamar pelo rádio, todos os postos. Piche, Pirada, Gabu, Bambadinca, ninguém respondia. Mais uma noite aqui, ordenou o Jamanca.

No dia 26, já passava das 16h00, depois de constantes chamadas pelo rádio, fomos contactados pelo comando-chefe, em Bissau. Que estavam a ouvir as nossas chamadas e perguntavam-nos quem éramos.

Jamanca respondeu, disse quem éramos e do comando-chefe mandaram-nos continuar em escuta. Ouvimo-los chamar o Gabu, dando-lhes ordem para nos virem buscar. Já passavam das 18 horas e ficámos a aguardar, até que mais ou menos uma hora depois, chegaram três Unimogues 404 para levar uma companhia inteira. Ocupámos, como pudemos, as viaturas e rumámos para o Gabu. O coronel, comandante do CAOP2, estava com um major, num gabinete, à espera que chegássemos.

Recebeu o Jamanca assim:

− Estou fodido contigo[4], Jamanca!

− Eu também estou, meu coronel.

E foi-se embora, deixou-nos ali, aos cinco oficiais, a olhar uns para os outros.

Sentámo-nos, todos calados. Uns minutos depois, chegou um major, em passo calmo.

 − Vocês estão aí, à espera de quê? Se é do nosso coronel, não adianta esperá-lo, ele só vem amanhã de manhã. É melhor irem à engenharia, para verem se há camas para vocês dormirem. E quem têm cá famílias, pode ir ter com elas passar a noite. Depois do pequeno-almoço, há uma coluna para Bambadinca. 

Assim fizemos. No dia seguinte[5], de manhã, regressámos à nossa unidade, a Bambadinca.

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Notas do autor ou do editor literário, o VB:

[1] Nota do editor: Coronel paraquedista João José Curado Leitão [o útimo comandante do CAOP Lestre / CAOP 2, extinto em 9/9/1974] 

[2] Nota do editor: em 23 de abril de 1974.

[3] Mais tarde viemos a saber que, naquela mesma altura, um grupo do PAIGC se encontrava de visita à tabanca. Os guerrilheiros estavam dentro das casas a observaram os nossos movimentos.

[4] Nós não sabíamos que o homem que andava de bicicleta a vender noz de cola quando regressou, foi falar com o coronel, comandante do CAOP2, informando-o que não tínhamos ido a Pajama e que, por esse motivo, não encontrámos o PAIGC.

[5] Nota do editor: 27 de abril de 1974.

(Seleção, fixação / revisão de texto, negritos, links, fotos, notas adicionais, título, subtítulo: síntese das partes anteriores: LG)
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Nota do editor:

Ultimo poste da série > 10 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25053: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLI: Canquelifá, a ferro e fogo, no 1º trimestre de 1974

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25125: Jorge Cabral (1944-2021): Histórias de um Professor de Direito: Antologia - Parte I: "25. No Regimento de cavalaria"...


Capa do livro de Jorge Cabral, "Histórias de um professor de Direito: colectânea de testes da cadeira de Direito da Família e Direito de Menores (Lisboa: APSS - Associação de Profissionais de Serviço Social; Alfredo Henriques, 2007, 71 pp. ; ISBN; Alfredo Henriques - 972-98840-05 | APSS - 972 - 95805-1-0)

Dedicatória manuscrita para o edit0or do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné: 

“Para o Luís,  camarada, companheiro e amigo, um conjunto de testes, frequências e exames que até parecem ‘estórias'. 

Lx, , Fev  2007, Jorge Cabral."

O Jorge Cabral  (1944-2021) foi af mil art, cmdt do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71). Tem 253 referências no nosso blogue. Era (é) um histórico: ingressou na Tabanca Grande em 21 de dezembro de 2005.

Cartaz da conferência sobre "Mutilação Genital Feminina: uma abordagem multidisciplinar". Lisboa, Centro de Formação do Hospital dos Capuchos,  17 de Maio de 2006, 16h00.

Foto: Fórum de Santo António dos Capuchos (2006) (com a devida vénia...) 

[O Fórum de Santo António dos Capuchos era, na altura,  uma iniciativa de profissionais de Serviço Social, organizada pelo Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social (CPIHTS), pelo Serviço Social dos Hospitais dos Capuchos, Desterro, Miguel Bombarda, Liga dos Amigos e Utentes do Hospital dos Capuchos (LAU) e do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona.] 

Lisboa > Hospital dos Capuchos > Centro de Formação >  17 de Maio de 2006 > Conferência sobre "Mutilação Genital Feminina: uma abordagem multidisciplinar" >  Na mesa, os drs Jorge Cabral, Alfredo Henriquez e Cristina Carvajal Isabel (assistente social colombiana, com vasta experiência em trabalho social na América Latina e Europa)

Lisboa > Hospital dos Capuchos > Centro de Formação >  17 de Maio de 2006 > Conferência sobre "Mutilação Genital Feminina: uma abordagem multidisciplinar" >  Na mesa, os drs. Jorge Cabral (docente da Universidade Lusófona, presidente do Instituto de Criminologia, especialista na área da Infância, direito penal, escritor, ex-combatente da guerra colonial na Guiné) e o Alfredo Henriquez (presidente do Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social), que presidiu à conferência. (*)

Fotos: Fórum de Santo António dos Capuchos (2006) (com a devida vénia...).

1. Há muito que ando para citar e divulgar este livrinho do nosso sempre chorado e lembrado "alfero Cabral", o  Jorge Cabral (1944-2021). Redescobri-o há tempos na minha biblioteca. Já não recordo, com precisão, em que cirunstâncias é que o autor me ofereceu um exemplar autografado das suas "Histórias de um Professor de Direito"... 

Conhecidos da Guiné, de Bambadinca, do período de 1969/71, reencontrámo-nos muito mais tarde, primeiro no blogue (e depois nos encontros anuais da Tabanca Grande) mas também no Instituto Superior de Serviço Social e ainda na Universidade Lusófona. Participámos em algumas iniciativas como, por exemplo, na Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina (Lisboa, Hospital dos Capuchos, 17 de maio de 2006).

Em homenagem ao nosso "alfero Cabral" (1944-2021),  de quem publicámos na íntegra as "estórias cabralianas", aqui fica uma das provas a que ele submeteu os seus alunos (na sua grande maioria, alunas) da licenciatura em serviço social, na avaliação de conhecimentos da cadeira de Direito da Família e Direito de Menores. Reconhecemos, nestas três dezenas e meia de "Histórias de um Professor de Direito" a mesma verve, o mesmo  estilo narrativo, o mesmo poder  de observação, a mesma imaginação criativa, a mesma brejeirice, o mesmo  humor negro, etc., das "estórias cabralianas"... Mas agora  também com um registo mais forte de inquietação, compaixão e empatia, para com aqueles e aquelas que vivem paredes meias com a marginalidade social, a exclusão, a pobreza, a discriminação, a transgressão, a violência...

2. Comecemos com alguns excertos do prefácio dos editores. 

(...) A presente obra, "Histórias de um professor de direito".  traz-nos o testemunho brilhante de um docente que ao longo de anos, e de forma pioneira, tem vindo a reflectir sobre a problemática  humana que o Direito te,m tem vindo a classificar  como uma disciplina autónoma: o Direito de Menores e da Família. 

"O Doutor Jorge Cabral terá sido um dos primeiros docentes a introduzir, na década dos anos 70, esta disciplina no programas do ensino superior, através das suas aulas no Instituto Superior de Serviço Social. O seu estilo irreverente e profano, já evidenciado noutras obras e nas inúmeras conferências, revela,  na sua ousadia, este conhecimento profundo da cotidianeidade dos seres humanos mais vulnerabilizados e excluídos,Das cerca de histórias das cerca de 30 histórias.ades e excluídos com as quais ele tem assumido carinhosamente ao longo dos anos o seu compromisso profissional na defesa dos seus direitos". (...) 

Dr. Alfredo Henriques C

(...) Foi com enorme prazer que (re)li as 'estórias' que agora se publicam, fazendo-me voltar atrás mais de 10 anos e recordar as aulas do Professor Jorge Cabral. Fizeram despertar em mim afectos que foram verdadeiramente marcantes, reconhecendo, sem margem de dúvida,  que os seus ensinamentos foram dos mais ricos,  invulgares e eficazes na minha formaçöão. 

Dr. Maria André Farinha, direção da APSS [Associação dce Profissionais de Serviço Social]    .

As histórias aqui reunidas neste livrinho são 35, ao todo. Estão classificadas, de acordo com o índice, em três capítulos ou partes:

I... Do Casamento. Amam-se- Desamam-se. Enganam-se. Desenganam-se.   [Ao todo, são 15 . ] 

II... Da Filiação. As mães são. Os pais talvez. [Ao todo, são 16.   ] 

III... Dos Filhos.  Nascidos de encontros, desencontros, equívocos e mentiras.... [As restantes quatro  ] 


Histórias de um Pofessor de Direito: "25. No Regimento de Cavalaria" (pp. 54/56) 

por Jorge Cabral

Passa das oito da noite. Estou no escritório ainda. Preciso de escrever uma contestação para amanhã sem falta. Tocam à campainha, cinco toques. Quem será? Penso não abrir a porta. Fngir que não estou. É algum chato a fazer uma pergunta. Abro, não abro. Hesito, mas abro a porta. 

Entram. Tresandam a um perfume intenso daqueles que permanece e agoniam.  Ele baixo, entroncado, um bigode fininho, para o moreno, traz uma penso na testa. Ela usa uma saia de criança que só lhe tapa três quartos das coxas e na testa uma fita que não segura cabelo nenhum. Irá jogar ténis ? 

Pergunto-lhe os nomes e finjo tomar nota. Marieta e José. Casados um com o outro. Dois filhos pequeninos. 

 −Então o que o traz por cá?   − interrogo com  simpatia, enquanto os observo. Não respondem. Insisto. 

 − Alguma herança ?  Acidente ?  Uma ação de despejo ?  Problemas de droga ?

 Começam a falar ao mesmo tempo. Brigaram. Odeiam-se. Ela anda na vida e ele vive à custa dela. 

 − Falo eu que sou homem  − diz José.

  −Isso é que era bom    − grita Maria. 

 − Falam os dois  mas um de cada vez   −  interrompo.  O senhor vai ali para o lado.  Já o chamo. 

Ele foi de má vontade. Ea fica e começa:

 − Vou começar pelo princípio e contar tudo, que isto de advogados é como os padres. Há dez anos, inha eu dezassete,. vim servir para Lisboa em casa de um coronel. Chamava-se Alvarenga e tinha uma mulher chata. A Dona Lúcia.  A casa deles era dentro do quartel, o Regimento de Cavalaria 4, na Rua das Almas. O Doutor está a ver,  uma rapariga nova no meio de tantos homens. O primeiro foi o sargento, depois o furriel. Mas nunca foram tantos como por lá constava.  A fama tive. Sabe como é que é. José era ordenança do coronel. E que diferente ele era.  Tímido, envergonhado, sempre com medo de tudo e de todos. Fui eu que o cobicei,  quasi que o obriguei. Ele saiu da tropa em fevereiro de 83 e  nós casámos no 25 de Abril do mesmo ano, seis  meses antes do nascimento do Joca o meu filho mais velho.  José ganhava pouco, bebia, começou a acompanhar com vadios e galdérios. Tinha o Joca dois meses, pôs-me na rua. Eu que ganhasse algum. A princípio custou-me. Depois fiz de conta. José deixou de trabalhar. Saca-me a massa toda. Trata mal os putos e o Zeca tem só dezasseis meses. Estou farta, farta. Quero ir para o Algarve. Ganha-se lá muito mais. Conheço uma senhora que fica com os miúdos. Diz que os vai adotar. É mulher de um engenheiro, já pssou os qquarenta e  não pode ter filhos. Quero o divórcio e  rápido. Tudo legal. Eu não quero problemas. 

 − Pode sair agora. Entre ,  senhor José. 

Ele entrou irritado. 

 − Não sei o que ela disse, mas é tudo mentira. Para já não assim nenhum divórcio. Ela dava-me tudo. Fiz dela uma senhora. Quando a conheci, era uma sopeira.  Se me chateia muito,  tiro o nome aos miúdos. Eu sei lá se são meus filhos Antes de casar, andou com meio regimento. E depois é o que se vê. Diga lá o Doutor se  não tenho razão. Posso deixar de ser pai, não posso ? Diz que vai dar os putos. E se Eu não deixar ? Eu até lhes possa tirar. É verdade ou não é? Provo que ela anda na vida, e pronto. Se ela for para o Algarve, vou lá e arrebento-lhe  as ventas. Tenho esse direito. Pois, não sou o marido ?. 

Chame os dois. Informo-os  que vou estudar o assunto. Marco uma entrevista para daqui a oito dias. Despedem-se. Esquecem-se de pagar. 

Está visto que não poderei ser advogado  dos dois. Mas vocês podem.  E é o que vão fazer. Vão apreciar as razões de cada um e tentar encontrar as soluções jurídicas. 

PS  − Eles estiveram no meu escritório ontem, dia 5 de fevereiro de 1987 (**).

(Revisáo / fixação de texto: LG)

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Notas dos editor:

(*) Vd. poste de 10 de4 março de  2007 > Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)

(**) A data é importante. A profunda revisão do nosso Código Civil (que a partir de 1978 passou a ajustar-ser à nova Constituição da República Portuesa, de 1976) trouxe grandes alterações nas áreas do direioto da família e dos menores (Vd.  Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro. Entrou em vigor  a partir de 1 de abril de 1978.)

Guiné 61/74 - P25124: Historiografia da presença portuguesa em África (407): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Foi uma viagem de demarcação de fronteiras onde não faltaram peripécias de todo o tipo, desde ataque de formigas, a beber água com sanguessugas, carregadores velhacos com ameaças, o Tenente da Armada Real não vacila perante todo aquele resplendor vegetal, o reconhecimento das riquezas, põe várias hipóteses para intensificar a presença portuguesa neste território que passou a ter fronteiras demarcadas, só vê vantagens no estabelecimento de alianças com os potentados locais, já chegaram a Buba, não esconde o seu assombro com a paisagem fascinante, e, como veremos seguidamente, dar-nos-á uma interpretação de como a que fora tão florescente economia das feitorias do rio Grande de Buba caíra no mais completo declínio, a que se seguiu o abandono, era insuportável mercadejar no meio de tão sanguinária guerra entre Biafadas e Fulas.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

A missão luso-francesa está de regresso a Buba, partirão mais tarde de Bolama para o Casamansa. Viajam por itinerários separados. O grupo português saiu de Damdum e acampa na margem direita da ribeira Tucumen, logo uma observação: “No arvoredo frondosíssimo das suas margens abundam os macacos-cães que toda a noite nos incomodaram com os seus guinchos, tão semelhantes ao latir dos cães.” E logo a seguir passamos para um episódio turbulento, um tanto cómico:
“Alta noite fomos acordados pelos gritos da nossa gente. Quando abrimos os olhos ficámos surpreendidos com o que se passava no acampamento! Os carregadores seminus, as raparigas Fulas, o Maia, mal alumiados pela chama vacilante das fogueiras, pareciam dançar uma dança desesperada, infernal, acompanha de gritos e movimentos desordenados! Não pude conter o riso, e assentado num leito de viagem interroguei os mais próximos. Ninguém me respondeu! Alguns indígenas, correndo para as fogueiras, fazendo esgares, dando saltos, gritando, largando a linha, para se esfregarem e sacudirem. Foi então que pude compreender e ver o que se passava. Perto do meu leito movia-se um grosso cordão formado por milhões de formigas. No seu caminho, sempre em ziguezague, encontraram deitado um desgraçado carregador, que atacaram com violência. Tudo se resolveu com cinza quente e depois todos voltámos ao sono.”

É um exímio contador de peripécias, vejam esta:
“Quando chegámos a Saála mandámos à ribeira encher um garrafão de água e como viesse muito fresca e eu estivesse sequioso, despejei uma porção num copo de ferro esmaltado e bebi sem olhar, contra o meu costume. Imediatamente senti uma grande picada na faringe, e como que um objeto ali agarrado, tomo um pouco de licor de Kermann e gargarejo! Nada! Repito a operação e a dor não desaparece, bebo alguns goles, a mesma coisa! O chefe de Saála que assistia, espantado, a esta cena muda, pergunta-me o que tinha. Não sei, respondi-lhe eu, bebi água da ribeira e suponho que tenha agarrado à garganta um grande bicho.
O homem sorria, fez sinal para eu sossegar e esperar, e desapareceu. Passado pouco tempo, volta trazendo na mão a metade de uma cabaça com uma água acinzentada, cheia de grumos escuros, malcheirosa e repugnante, e entregando-ma, convida-me a tomar aquela poção. O estômago tocou a rebate, e eu sem refletir recusei! O chefe escandaliza-se, e chamando o seu herdeiro apresenta-lhe a cabaça, que ele leva à boca, bebendo metade aproximadamente do seu conteúdo. Então, levei a cabaça à boca e bebi o resto daquela beberragem. Mas, ó caso maravilhoso, logo ao segundo gole senti desprender-se da garganta o que quer que era, ficando-me apenas uma impressão dolorosa que durou horas. O bicho, que se havia agarrado à faringe, era uma sanguessuga, e o remédio um soluto de sabão indígena!”


Avança-se para Buba, o oficial rende-se ao esplendor da natureza:
“É formosíssimo o sertão de Buba! Quem vê a Guiné de fora, e conhece os seus mangais e os lodos das suas extensas planícies morbíficas e pestilenciais, não pode imaginar sequer as belezas que o seu interior encerra. Cursos de água cristalina correm em todas as direções e sentidos; grandes manadas de gado vacum pastam sossegadamente a era viçosa e fresca dos seus vastos prados; matizados pelas cores variegadas de mimosas boninas; campos cultivados pela mão de mulher africana que, com o filho às costas envergada sobre o peso de cestos cheios de maçaroca de milho, lá vai a caminho da povoação; florestas impenetráveis onde abundam o ébano, o mogno, o pau-sangue e tantas outras madeiras apreciadas na Europa.
E dizem ser pobre Guiné!
Pois será pobre um país onde a vegetação é tão vigorosa e rica; aonde há milhares de cabeças de gado bovino e lanígero; aonde vive o elefante em numerosos rebanhos, aonde há mel, cera e oiro nativo, aonde a árvore da borracha é vulgaríssima, e como que a completar todo este esplendor rios enorme e navegáveis por onde se podem conduzir todas as riquezas às suas capitais? Não, não pode ser! A Guiné é rica, muito rica, mas… desconhecida, e tanto basta!”


É agora na marcha para Kolibuiá que temos mais um episódio que podia ter terminado em tragédia, os carregadores tinham aceitado a contratação, mas pelo caminho começaram a fazer longas paragens e a reclamar mais dinheiro, a equipa de Costa Oliveira chegou a temer serem roubados ou assassinados, tudo terminou em bem porque apareceu inopinadamente um enviado de Mudi-Yaiá. Costa Oliveira explica a falsidade da reclamação dos carregadores que tinham ameaçado não continuar a marcha se não se pagasse mais por dia, tanto a homens como a mulheres, e tece um comentário amargo: “Ouvindo, admirados, esta proposta, no fundo um ultimato, compreendemos imediatamente a velhacaria dos negros e a razão por que haviam descansado tantas vezes. Quiseram distanciar-se, e distanciar-nos dos carregadores permanentes e soldados, que caminhavam apressados, sem se lembrarem que nós, ficando sozinhos com aqueles patifes, podíamos ser roubados e até assassinados se resistíssemos!”

É nesta situação críticas em que estavam resolvidos a vender cara a vida que apareceu o tal enviado de Mudi-Yaiá, que sabendo da presença da comissão portuguesa tão perto de Guidali, vinha de propósito cumprimentar-nos em nome do seu soberano. Resolvida esta situação de tão desagradável mal-estar, Costa Oliveira apresenta-nos Kolibuiá: “É uma povoação pequena, situada na margem esquerda da ribeira Tenheleol. Foi uma estação comercial importante, mas está hoje completamente abandonada pelos negociantes europeus, como atestas as ruínas das suas feitorias". É neste quadro de prestes a entrarem em Buba que Costa Oliveira nos deixa um texto primoroso sobre o abandono das fazendas agrícolas e feitorias do rio Grande dos portugueses. Primeiro a chegada:
“Cobertos de pó e lodo, com o fato esfarrapado pelos acerados espinhos das florestas e extenuados de fadiga entrámos em Buba, aonde éramos esperados pelos membros da comissão francesa, comandante da praça e destacamento.” Como é habitual do seu espírito de observação, apresenta-nos esta povoação histórica da presença portuguesa:
“Buba, cabeça de concelho de Bolola, magnificamente situada na margem direita do rio Grande, defendida pelo lado de terra por forte paliçada e onze peças de artilharia e duas metralhadoras – mas sujeita a qualquer insulto pelo lado do rio – com clima relativamente saudável, foi uma estação comercial florescente quando a mancarra era cultivada naquela região.”

E dá-nos um quadro primoroso, sucinto, da guerra do Forreá.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25106: Historiografia da presença portuguesa em África (406): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3) (Mário Beja Santos)