quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25440: Historiografia da presença portuguesa em África (420): Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Desconhecia inteiramente a existência de Bissau como capital do distrito da Guiné em 1835. Rebusquei em autores da época, como Lopes de Lima, em historiadores como Veríssimo Serrão, nenhuma referência a Bissau capital, ainda por cima no ano seguinte ao fim da guerra civil. Mas os factos documentais comprovam a nomeação. Bastou-me ler a indispensável Memória de Honório Pereira Barreto que diz verdades com punhos, que fala de um governador que não governa, de uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de condições e a um quadro administrativo caótico, e tudo o mais que se recolhe neste artigo, acrescendo que Cacheu não se conformou com a criação da capital em Bissau e viveu-se no enigmático território guineense com dois distritos, o de Bissau e o de Cacheu durante cerca de 10 anos. Esta é a verdade dos factos, tenho que agradecer a Philip Havik a iluminação que trouxe para esta questão que era dada como inexistente.

Um abraço do
Mário



Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941

Mário Beja Santos

Até recentemente, dava como certo e seguro de que a Guiné portuguesa jamais tivera capital até ser desafetada de Cabo Verde, o que ocorreu em 1879. Ao longo dessa década resolvera-se a questão de Bolama, houvera o dramático desastre de Bolor, Lisboa tomou a decisão de dar autonomia a um território que não possuía fronteiras precisas, a Carta Constitucional não referia a Guiné, mas mencionava Cacheu e Bissau, porque havia o sobe e desce de Praças, Presídios e Feitorias. Num livro respeitante aos cadernos de campo do professor Orlando Ribeiro, um dos coordenadores, um investigador com créditos firmados, Philip J. Havik, assumiu que Bissau obtivera o estatuto de capital em 1835. Escrevi para o blogue um artigo “Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941?”, vasculhei em obras da época qualquer referência à capital, nada encontrei até que se me deparou um despacho do Visconde Sá da Bandeira datado de 29 de abril de 1858 referindo Bissau como a capital da Guiné portuguesa e residência do respetivo governador, erguendo a povoação à categoria de vila com a denominação de vila de Bissau.

Estava armada a confusão, e na altura desafiei um conjunto de investigadores a pronunciarem-se sobre a questão. Philip Havik respondeu, e do modo seguinte:
“As reformas feitas na sequência da revolução liberal em Portugal foram decididas de aplicar a reorganização administrativa por decreto de 16 de maio de 1832 à Guiné em 1834, criando uma Prefeitura de Cabo Verde e a Guiné. Por conseguinte, o distrito da Guiné transformou-se numa comarca, ainda dependente de Cabo Verde, com a sua sede em Bissau, governado por um Subprefeito. Isto foi feito através do decreto de 30 de agosto de 1835. Bissau serviu como capital da Guiné até que se tornou uma província independente com um governo autónomo em 1879, com capital em Bolama através da lei de 18 de março de 1879.”

E o investigador recomendava referências na obra de João Barreto, A História da Guiné (1418-1918), Lisboa, 1938, e no artigo de Arnaldo Brasão, A Vida Administrativa da Colónia da Guiné, publicado no Boletim Cultural da Guiné portuguesa, volume II, n.º 7, 1947. Não posso esconder a minha surpresa, eu tinha lido a importante obra de Lopes de Lima, de 1844, e não se mencionava qualquer capital em Bissau. Um artigo publicado por Teixeira da Mota e Fausto Duarte sobre as efemérides da Guiné portuguesa referia a criação da comarca da Guiné, dirigida por um Subprefeito, mas nada se mencionava sobre a capital, uma comarca é só reorganização administrativa, vinha na sequência do ambicioso projeto de Mouzinho da Silveira de alterar em profundidade a administração do território, gerando municípios, comarcas e entidades apropriadas da administração, desde a justiça à atividade aduaneira. Lendo a História de Portugal de Veríssimo Serrão, encontrei a referência à criação do lugar do governador da Guiné, com residência em Bissau.

Impunha-se, pois, apurar a densidade e a operacionalidade desta capital de que desconhecia qualquer referência. Procurei um verdadeiro tira-teimas, Honório Pereira Barreto e a sua Memória sobre o estado atual da Senegâmbia portuguesa, causas da sua decadência e meios de a fazer prosperar, Lisboa, 1843. Lendo este importantíssimo texto, constata-se que o território desta Senegâmbia tinha uma dimensão fluida, a presença portuguesa era submetida a uma permanente hostilidade e os recursos escassíssimos, como Barreto logo abre a sua introdução: “Se nesta província houvesse um Boletim de Governo aonde se estampasse os ofícios e relatórios das diversas autoridades, não me veria obrigado a escrever esta Memória, cuja matéria é tão superior a minhas forças; porque então apareceria em público o verdadeiro estado destas Possessões.” É um discurso sempre franco, duro e doloroso: “Vive-se em Senegâmbia portuguesa sem segurança alguma; a todos os momentos seus habitantes são vexados pelo gentio, fere-se e assassina-se impunemente, e em Lisboa lê-se no Diário do Governo que as Possessões Portuguesa, nesta parte, estão em ordem, e vão florescendo.”

E a sua narrativa não esconde a inexistência de poder político, da vida das instituições, enfim, o caos reina por toda a parte: “Desgraçadamente se pode dizer que nestas Possessões há um governador e comandante; mas que não há governo. O país está inteiramente desorganizado. Todos os empregados, desde o primeiro até ao último, ignoram quais são as suas atribuições, e, por consequência, quais são os seus deveres: só tratam de seus negócios, pois são negociantes. Não há lei administrativa (nem outra) que vigore, e por isso é suprida pela vontade dos governadores. A vontade deles faz a lei; o capricho executa; as paixões julgam; os rogos dos Gentios, dos amigos fazem minorar, e perdoar as penas.”

É facto que falando do concelho de Bissau, Barreto dirá que é composto da Praça de Bissau, capital do governo, do presídio de Geba, do ponto de Fá, da ilha de Bolama e do Ilhéu do Rei. E apresenta Bissau deste modo: “É uma Praça situada na ilha deste nome, e construída segundo o sistema de Vauban; mas não foi acabada. Não tem obras algumas exteriores, à exceção dos fossos já quase entulhados, e aonde se planta algodão, milho e índigo. O quarto da tropa está quase a cair, e por isso a maior parte dos soldados moram em palhosas; o indecente quartel dos oficiais aonde chove como na rua; o arruinado armazém do governo; e a pequena e destelhada capela com invocação de S. José, que é o orago da praça. O governador mora no quartel dos oficiais em uns quartos pequenos e ridículos.” Há, pois, uma capital do distrito da Guiné portuguesa, da Guiné não se conhece bem a configuração e a importância da capital é dada pelo governador que anda a comprar parcelas do território de diferentes régulos, e em todas as direções. É vila, por despacho do Visconde Sá da Bandeira, será cidade em 1914 e terá mesmo o seu primeiro plano de urbanização concebido pelo engenheiro Guedes Quinhones; o governador Vellez Caroço dar-lhe-á em 1923 o seu primeiro foral.

Philip Havik refere João Barreto e Arnaldo Brasão. Para mim, continua a ser um mistério a data de 1835. João Barreto refere que em 1851 o Governador-geral de Cabo Verde, Fortunato José Barreiros, tomara a iniciativa de unificar o governo da Guiné fixando a sua sede na vila de Bissau e escreve que a partir de 1852 deixou de existir o governo autónomo de Cacheu, passando a existir um distrito único com sede em Bissau. Alegou o governador ter tomado esta resolução para dar unidade à ação governativa. Era nomeado interinamente governador da costa da Guiné (já ouvimos falar de Possessões, de Senegâmbia e de Guiné portuguesa…) o Tenente-Coronel Alois Dziezaski com algumas competências do governador-geral. Bissau é capital do Distrito da Guiné portuguesa.

Arnaldo Brasão, no seu artigo, chama a atenção para a Guiné constituída como uma unidade administrativa, em 1834, com atribuições conferidas por legislação de 1835, referindo igualmente o papel do governador, a quem ficavam sujeitos todos os serviços públicos. “Os governos inferiores, presídios, estabelecimentos marítimos ou do interior, formavam governos subalternos que se regulavam pelo que estava determinado para o governo das praças do reino.”

As lutas entre absolutistas e liberais refletiram-se nas colónias, e adianta Arnaldo Brasão: “Cacheu, que fora o primeiro núcleo de colonização e de povoamento não poderia conformar-se com uma situação de subalternidade em relação a Bissau, que passar a ser a capital desde 1835, e por isso solicitou a sua separação que o governo cartista se apressou a satisfazer em março de 1842, passando desde então o território guineense a ser constituído por dois distritos, mas subordinados ainda ao governo de Cabo-Verde. Esta situação durou perto de 10 anos, porque em setembro de 1851 procede-se à unificação administrativa, sendo escolhido novamente Bissau para sede do governo.”

Considero totalmente corretas as observações expendidas pelo investigador Philip J. Havik, em 1835 Bissau tornou-se a capital de distrito de um território com dimensões indefinidas e dentro de um quadro que um lídimo protagonista da época, Honório Pereira Barreto, mostrou que se tratava de uma capital de ficção. Um governador sem governo, uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de comodidades e cercada por populações hostis.

Dou como esclarecida a existência de uma capital de ficção, numa província de ficção, que passou a uma realidade depois do sobressalto de Bolama e com contornes definidos depois de a França nos ter subtraído o Casamansa, as fronteiras ficaram parcialmente definidas em 12 de maio de 1886, o governador da Guiné terá a sua capital em Bolama.


Monumento a Honório Pereira Barreto, em Bissau, em tempos coloniais
O que resta da Bolama dos tempos áureos
Um pormenor da fortaleza de S. José da Amura na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25401: Historiografia da presença portuguesa em África (419): Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25439: Os 50 anos do 25 de Abril (12): Hoje, na RTP1, às 21:29, o primeiro de nove episódios: "A Conspiração", série documental realizada por António-Pedro Vasconcelos (1939-2024)



RTP > Série Documental (9 episódios), da autoria de António-Pedro Vasconcelos 
(Leiria, 1939-Lisboa, 2024)


A última obra de António-Pedro Vasconcelos. Conhecemos os ícones, as músicas e os locais emblemáticos do 25 de Abril 1974. Mas como surgiu a Revolução que mudou o destino de Portugal?

"A Conspiração", série documental realizada por António-Pedro Vasconcelos, é o resultado de uma meticulosa investigação que conta com depoimentos exclusivos de protagonistas que conseguiram concretizar em menos de 24 horas, o que em 48 anos muitos outros não haviam conseguido.

Desde as reuniões secretas aos personagens-chave, é-nos revelado o extraordinário processo conspirativo que começou no verão de 1973 e que culminou na madrugada de 25 Abril de 1974, com o derrube do Estado Novo e a conquista da liberdade.

O resto, como dizem, é história.

Fonte: RTP > Programas TV (com a devida vénia..:)

 A Semente Revolucionária

Episódio 1 de 9

1961 marca o início do fim do império português. É nos confins da Guiné, Moçambique e Angola, nas frentes de combate e nas quentes noites no mato, que germina a semente revolucionária.

Os capitães, revoltados com as condições em que combatiam numa guerra que não podiam ganhar, apercebem-se que a única saída é uma solução política.

E no verão de 1973, os infames decretos-lei 353/73 e 409/73, revelam ser a gota de água que faz transbordar o copo. 

Uma onda de contestação progride dentro do exército, principalmente entre os capitães do quadro permanente e é em Bissau que surge a primeira reação colectiva. Os oficiais aí destacados, fazem chegar às chefias políticas e militares uma carta assinada por 53 oficiais, contestando os decretos. Era... "a pica no elefante".

Ficha técnica: 

Título Original A Conspiração | Intérpretes: Narração: Adelino Gomes ! Realização: António-Pedro Vasconcelos | Autoria: António-Pedro Vasconcelos | Ano: 2024

Próximas emissões deste episódio:

24 Abr 2024 21:20 RTP Internacional |  24 Abr 2024 21:29 RTP1 | 25 Abr 2024 02:23 | RTP Internacional América | 25 Abr 2024 15:09 | RTP Internacional Ásia

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Nota do editor LG:

Último poste da série > 23 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25426: Os 50 anos do 25 de Abril (11): Entrevista do nosso camarada, amadorense, cor art ref António- J. Pereira da Costa à TV Amadora: "É pá...A Guerra, pá...", vídeo c. 37')

Guiné 61/74 - P25438: Humor de caserna (59): O anedotário da Spinolândia (X): Alferes, cabra de mato!... Pum, pum!!! (David Guimarães, ex-fur mil at art, MA, CART 2716, Xitole,, 1970/72

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David Guimarães, Guiné-Bissau, 2001

1. O David Guimarães (ex-fur mil at inf, MA, CART 2716 / BART 2917, Xitole, 1970/72) é um dos nossos "dinossauros", um dos nossos VCC (velhinhos como o c...).

Ele é do tempo do "blogueforanada", que deu origem ao atual blogue... Ele, o Sousa de Castro, o A. Marques Lopes, o Humberto Reis... foram alguns dos primeiros camaradas que me ajudaram a "exorcizar os meus fantasmas" da Guiné...
Tem 113 referências no nosso blogue.. E hoje faz anos. 77. Entrou tarde para a tropa, quando chegou ao Xitolee tinha já 23, e, quando regressou a casa, 25.

Claro que, ao fim destes anos todos (vinte!), só muito raramente ele aparece agora no blogue... É mais "feicebuqueiro" do que "blogueiro", como tantos outros... Mas a gente não se esquece do seu papel, na "proto-história" da Tabanca Grande. Tenho especial carinho e amizade por ele.

E, neste dia, além de já lhe ter telefonado e mandado "by air", para Espinho, um "balaio" cheio de votos de parabéns e de muita saúde e coragem para o resto da caminhada... (que de minas e armadilhas sabe ele!), vou ressuscitar duas das suas histórias deliciosas, passadas ainda no tempo em que eles "periquitos",o pessoal da CART (chegaram em maio de 1970).. Tem um fino sentido de humor, o David, ou não fosse ele um ex-fur mil at inf, de minas e armadilhas, que viu morrer um sapador (Quaresma) e outro furriel ficar cego (Leones).

Estas duas histórias merecem figurar no "anedotário da Spinolânda"... Diz o Carlos Matos Gomes, no seu novo livro ("Geração D: da Ditadura à Democracia", Lisboa, Porto Editora, 2024), a Guiné sempre foi até ao fim, "uma coutada pessoal de Spínola" 
(páf. 188), ao ponto de querer transformar os comandos africanos numa guarda pretoriana... 

Justa ou injustamente, temos falado aqui na Spinolândia (*), e no seu anedotário (que alimentava o nosso humor de caserna)... Na realidade, o nosso general parecia comportar-se, no CTIG, como se fosse o dono daquilo tudo... E o pessoal também o via como tal... 



Humor de caserna > O anedotário da Spinolândia>  Alferes,  cabra de mato!... Pum, pum!!! 
 
por David Guimarães


(i) Alferes, cabra de mato!


Um dia, novinhos ainda, piras, com as fardinhas novinhas em folha, aí vamos nós. Sai o 1º Grupo de Combate. Patrulha em volta do aquartelamento para os lados de Seco Braima, o que era normal: acampamento IN....

Era bem de manhã. E a certa altura, zás, ouve-se o matraquear de espingardas automáticas:

− Que coisa!... Oh diabo, estão a enrolar…

Os morteiros fixos lá fazem fogo de barragem. Novamente os experientes homens de armas pesadas. E que eficientes! Como eles faziam aqueles morteiros dispar tão amiúde e certeiro... Cessar fogo, tudo silêncio à volta, fora os abutres que logo foram ver o que acontecia.

− Que aconteceu? E agora... Estará alguém ferido ? O que aconteceu ? O que vamos fazer ?

Nenhum deles disse nada... mas voltaram depressa. E nós nem percebíamos ainda porque que é que eles voltaram assim tão rapidamente... Bem, lá regressa, da patrulha, o 1º Grupo de Combate. Ofegantes, e agora dentro do aquartelamento esboçando sorrisos, todos pretos... Que coisa, sempre que havias tiros ficava-se todo preto!

−Que aconteceu ?!...

Lá vem a explicação: o grupo estava a instalar-se, para um tempinho em posição de emboscada. Uma cabra de mato passa em frente... Um soldado diz para o aferes,  muito baixinho:

− Alferes, cabra de mato!
−  Atira-lhe − , responde o Alferes… 

Há rico tiro, pum, pum!!!

E não é que o IN estava lá emboscado, do outro lado da cabra ? Seriam poucos, mas ao sentirem-se detectados deram uns tiros e fugiram, pois que entretanto também começaram a cair bem perto as granadas do morteiro do aquartelamento....

− Manga de cu pequenino

Olha que sorte, a santa cabra do mato! ... Foi ela, afinal, o nosso anjo da guarda. O Correia voltou com o seu grupo de combate inteiro e o soldado que detetou a cabra... herói. Mais tarde,  foi-lhe proposto e concedido o prémio Governador Geral. Todos achámos muito bem, veio à metrópole. Se não fora assim, nunca iria lá de férias, porque não tinha dinheiro para isso...

Ninguém soube se a cabra morreu ou não, mas os homens, depois de contados, estavam todos... E os abutres também voltaram ao aquartelamento e continuaram a comer o que restava da vaca morta nesse dia...

A guerra tinha disto também, e ainda bem... Como entendê-la ? Só um combatente... Este era o nosso tempo de recreio de guerra dentro da guerra.

(ii) O Caco Baldé no Xitole

Um helicóptero que pousa na pista do Xitole, gente da alta e o Homem Grande (General, Comandante-Chefe e Governador do CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné): António de Spinola, ele mesmo, mais conhecido por... Caco Baldé!

Spínola, Governador e Com-Chefe, era conhecido por  Caco, Caco Baldé, Homem Grande de Bissau...

Volta à companhia, verificação da posição das NT dentro do Aquartelamento... Rapidamente se forma um U, cada qual fardado o melhor que podia, era um ver se te avias.... Sua Excelência, de pernas afastadas, mãos atrás das costas, impecavelmente fardado e com seu monóculo começa assim um discurso:

− Tenho péssimas informações do Batalhão [ BART 2917, com sede em Bambadinca ], à exceção desta companhia [ CART 2716 ]... Continuem,  etc., e tal e tal...

E lá foi o homem embora: meteu-se no helicóptero e saiu pelos ares da Guiné, algures no Leste, rumo a Bissau, possivelmente.

− - Porra que elogio, mas para quê? Ele afinal até é bom!

− Porreiro !   −  dizia um...

− Que se foda !  −  dizia outro...

− Bem, sempre é melhor este elogio do que o contrário...

− Que se lixe, já foi...

− Mas seremos assim tão bons para levar este elogia? Tão novos... merda, que se dane!...

Percebemos pouco tempo depois o que ele nos queria a dizer... Tinha-se realizado a Op Abencerragem Candente (Ponta do Inglês, Xime, 25 e 26 de Novembro de 1970, que o Luís e o Humberto já têm aqui evocado várias vezes), com um porrada de mortos e feridos...

Aí percebemos melhor o discurso do General quando na ordem de serviço veio o seguinte (reproduzo de cor): Segue para a Metrópole o tenente coronel de artilharia M. F.,  por ser incompetente para comandar um Batalhão... Em seu lugar nomeio João Polidoro Monteiro, tenente coronel de infantaria, etc. etc. etc... 

Nestas coisas, o Caco Baldé não brincava em serviço, cortava a direito... Não percebo por que é poupou o major A.C. (dizem que foi por ser antigo professor da Academia Militar...).

− Ai,  olha, ele varreu com o Nord Atlas  −   assim chamávamos nós ao M. F. (um bom homem, mas que de guerra efectivamente só deveria saber o que vinha nos livros)... 

Apanhou uma porrada desse nível e, ainda por cima, estava de férias, enquanto o A. C., o principal responsável pelo fracasso dessa operação e o consequente desastre, ficava...
 
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 6 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25396: Humor de caserna (58): O anedotário da Spinolândia... O "Fugitivo", por Manel Mesquita ("Os Resistentes de Nhala, 1969/71", s/l, ed. autor, 2005, pp. 130/132)

Guiné 64/74 - P25437: 20º aniversário do nosso blogue (10): Inconfidências de um antigo combatente que é mais "blogueiro" do que "feicebuqueiro": Se eu não tivesse criado este blogue, hoje seria 'mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico' ? (Luís Graça)


1. Humor com humor se (a)paga... e é ainda o que nos vale, rir e saber rir. Mas nesta onda de comemorações dos 20 anos do nosso blogue (*), deixem-me, caros leitores, partilhar aqui um pequeno segredo... 

Já me têm dito ou insinuado que se eu não tivesse "a m... do blogue", hoje seria "mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico"... Acusam-me, às vezes, de ter prejudicado a minha vida pessoal, familiar e profissional por causa das... "blogarias", da "m... da guerra" e dos camaraadas da Guiné", etc. 

Ainda é cedo (espero eu...) para arrumar as botas, lavrar o testemento vital e, mais importante ainda, fazer as "partilhas" ... Por que eu sei que "fica cá tudo", um gajo leva, ou não pode levar,  nada de "material"para  o outro mundo "imaterial"... Não sei o que é que conta lá: quando eu era pequeno, diziam-me que eram as "boas acções" (ainda se escrevia com dois c).

Vem isto a propósito de um aniversário em que, se calhar, há pouco a celebrar (aos olhos dos críticos do blogue)...Não me compete a mim fazer esse juízo. Limitei-me apenas a usar a "força da inércia"... O comboio começou a andar, muito lentamente é certo, em 23/4/2004... 

Uns meses antes, ainda se estava na fase dos "ensaios": era versão beta do nosso blogue, que antes de se chamar "Luís Graça & Camaradas da Guiné", era o "blogue-fora-nada" e depois o "blogue-fora-nada-e-vão-três"... 

Em 1999, quatro anos antes, já tinha criado, muito antes que os meus colegas, a minha página pessoal e profissional... Ao fim de vinte e poucos anos, a instituição onde trabalhei "descontinuou" a página... (Recuperei-a,  há tempos, mas é um "aqruivo morto", não a posso atualizar)

Só por mera curiosidade dos "blogueiros" (que nos leem) (ou que ainda são mais "blogueiros" do que "feicebuqueiros", o que começa a ser raro), posso adiantar que o primeiro poste (ou postagem) que publiquei no "blogue-fora-nada" foi este, que a seguir reproduzo, com data de 8/10/2023...

Ao reler  "conto com mural ao fundo", quase 25 anos depois, não deixo de esboçar um sorriso amarelo, quiçá amargo... E penso na minha vida: e eu não tivesse tido e-email, nem página na web, nem blogues, nem computador(es) ?... Será que hoje seria "mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico" ?
 
A pergunta é idiota, porque não tem resposta... Não há "ses" na vida de um  homem. Só há uma vida, única, irrepetível... Sei que não vou ter outra "chance", se a desperdicei, tenho que assumir as consequências até ao fim e beber a taça amaraga da "cicuta"... 

Mas o leitor pode ler ou reler a história e, até, eventualmente, achar-lhe piada...Eu, confesso, que mr deixou deprimido a releitura do meu primeiro "conto com mural ao fundo" (em parte adaptado)...


Blogue-fora-nada > Estórias com mural ao fundo - I: Ter ou não ter (e-mail)

por Luís Graça


Tenho por (mau) hábito perguntar às pessoas que vou conhecendo "se têm e-mail"... Mas depois de ler a história a seguir, não vou ter mais lata para o fazer: 

(i) é indelicado; 
(ii) pode ser embaraçoso; 
e (iii) até pode dar azar... 

Um dia houve alguém que me respondeu, com agressividade mal contida: "Não tenho... mas será que já é obrigatório ?"...

Nós, os ex-clérigos (durante séculos o pessoal universitário, incluindo os estudantes, estavam sujeitos ao direito canónico e só com o triunfo do liberalismo é que o reitor de Coimbra passou a ser um leigo!), temos dificuldade em imaginar um mundo sem livros, sem cátedras e, agora, sem Internet, sem blogues e sem e-mail...

Não sei se é obrigatório ter e-mail (ou se vai sê-lo em breve), mas a verdade é que todos os dias nos ameaçam com a infoexclusão, uma espécie de upgrade das labaredas do inferno. Há muito boa gente que hoje em dia teme ser acusada de infoanalfabeta e pensa que, "pelo sim, pelo não, sempre é bom ter e-mail, não vá o diabo tecê-las"... E quem diz e-mail, diz outras buzzwords horríveis tais como url, password, username, nib...

Já assim pensavam, noutro contexto, os cristão novos de Trancoso que assinalavam, com uma cruz, as suas casas, não fossem os cristãos velhos desconfiar que eles eram judaizantes, logo ignorantes e inimigos da fé cristã (a única, a verdadeira, a dominante)... A cruz era a password e o e-mail daqueles tempos em que os portugas sucumbiram à tentação totalitária...

Por isso, "ter ou não ter e-mail: eis a questão" é uma história com moral... E com mural ao fundo. 

Ponderei seriamente se havia de a pôr a circular entre @s car@s ciberamig@s... Há sempre o risco de uma leitura demasiado literal, apologética, direi mesmo...primariamente neoliberal !!! Mas, pensando bem, o que conta são os factos, a narrativa (digna do melhor do Reader's Digest, diga-se de passagem). 

A moral, cada um que a tire. E quanto ao mural, cada um que o pinte... Moralistas e grafiteiros do meu país, divirtam-se! 

A minha (moral) é apenas a da filosofia baseada na evidência. E quanto ao mural, sempre preferi o branco-da-cal-da-parede. Com aviso: 

(i) pintado de fresco; 
(ii) por favor não encostar à parede; 
(iii) é expressamente proibido fuzilar (contra o muro).

Por azar o meu, recebi esta mensagem por e-mail, através de um amigo angolano (J.D.) que, coitado, também ele tem e-mail... Dei à história o meu toque pessoal. Vocês usem-na (e socializem-na)... para os devidos efeitos. Não posso evitar eventuais tentativas de branqueamento da história. A história é para se usar e branquear, dizem os historiadores oficiais. Mas esse não é o meu ofício. No fim, não se esqueçam do nosso trato: Ciber-humor com ciber-humor se paga...

Ter ou não ter e-mail: eis a questão!

Um homem respondeu a um anúncio da MicroDura com uma generosa oferta de emprego para desempregados de longa duração. O lugar era para empregado de limpeza. 

Um adjunto do Gestor dos Recursos Humanos (GRH) entrevistou-o, fez-lhe um teste (tão simples como varrer o chão, apanhar o lixo e enfiá-lo num saco) e disse-lhe:

- Parabéns, o lugar é seu. Dê-me o seu e-mail para eu lhe poder enviar a ficha. Depois de preenchida e devolvida, aguarde que a MicroDura lhe comunique a data e a hora em que se deverá apresentar ao serviço nos nossos headquarters.

O homem, embaraçado e nervoso, respondeu que não tinha sequer casa, e muito menos computador, e muito menos ainda Internet, endereço de correio electrónico e essas coisas todas. 

Aí o valente adjunto do GRH da MicroDura ficou branco como a cal da parede... Por essa é que ele não estava à espera!... Um cidadão norte-americano sem e-mail, o que era uma aberração sociológica, bloguissimamente falando !... O que iria pensar o Mr. Bill Gaitas ?!... Por fim, recompôs-se e disse:

- Lamento muito, mas se eu o senhor não tem e-mail, isso quer dizer que virtualmente não existe; e, não existindo, não pode ter o privilégio de pertencer ao admirável mundo novo dos colaboradores da MicroDura.

O homem saiu, envergonhado e, pior ainda, mais desesperado e desempregado que nunca. Tinha apenas 10 dólares no bolso. Em vez de ir ao McSandocha’s matar a fome, resolveu entrar num Bigmercado e comprar uma caixa de 10 quilos de tomate para revenda. 

Em menos de duas horas vendeu a mercadoria, porta à porta, num dos bairros mais próximos (habitado por negros e porto-riquenhos), tendo assim conseguido duplicar o seu capital. Repetiu a operação mais três vezes e obteve um lucro de 60 dólares.

No fim do dia, concluiu que podia sobreviver dessa maneira, pelo menos por uns tempos. Passou a trabalhar mais horas por dia. Rapidamente aumentou o seu pecúlio, e em breve comprou a sua primeira carrinha, em segunda mão. Uns meses depois trocou-a por um camião.

O resto da história é fácil de adivinhar: ao fim de um ano e meio já era dono de uma pequena frota e ao fim de cinco estava milionário, ao tornar-se o principal accionista de uma das maiores cadeias de distribuição alimentar nos Estados Unidos... 

Como podes imaginar, caro leitor, esta história de sucesso só podia ter acontecido na Terra Prometida e já se tornou um casestudy nos mais famosos cursos de MBA.

Pensando no futuro da sua nova família, o nosso homem resolveu fazer um não menos milionário seguro de vida. Chamou um corretor ao seu escritório e acertou um plano. Quando a reunião estava praticamente concluída, o corretor de seguros pediu-lhe o e-mail para lhe poder enviar rapidamente a proposta de contrato. 

O homem-que-se-fez-a-si-próprio respondeu, com a maior naturalidade deste mundo, que simplesmente não tinha nem nunca tivera nem nunca provavelmente viria a ter um endereço de e-mail. O corretor não queria acreditar e comentou, em tom de brincadeira:

- Você não tem e-mail e construiu todo este império!... Imagine até onde poderia ter chegado, se tivesse e-mail!... Quem sabe se não poderia estat agira sentado na cadeira presidencial,na Casa Branca!

O homem ponderou as palavras do corretor e respondeu-lhe, com a mais fina das ironias:

- Olhe, se eu tivesse e-mail, ainda hoje andaria, feito cão, a lamber o chão do escritório do Bill Gaitas!!!

Moral da história:

1. Ter ou não ter e-mail, eis a questão.

2. Se queres ser empregado de limpeza da MicroDura ou doutra grande empresa, procura antes de mais ter um e-mail.

3. Se não tens e-mail e gostas de trabalhar, ainda podes vir a ser milionário (ou até bilionário).

4. Se por acaso recebeste esta mensagem por e-mail,  é por que estás mais perto de ser empregado de limpeza do que ser milionário (para não falar de bilionário)...

________________

Guiné 61/74 - P25436: (De) Caras (206): Arsénio Puim, ex-alf graduado capelão, CCS/BART 2917 (Bambadinca, mai 70- mai 71), vai fazer 88 anos em 8/5/2024... Associemo-nos à homenagem (e a surpresa) que lhe quer fazer a Tertúlia Açoriana.



Infografia: Tertúlia Açoriana (2024)



1. Mensagem da Tertúlia Açorina, com data de 17/04/2024, 17:52:

Boa tarde,

À semelhança dos postais de aniversário compilados para Eduíno de Jesus, João de Melo, e Onésimo Teotónio Almeida e Artur Goulart (em actualização), a Tertúlia Açoriana convida todos a participar no postal de aniversário (surpresa) para o mariense Arsénio Chaves Puim, que fará anos no próximo dia 8 de Maio.

Façam chegar os vossos textos (2, 20 ou 200 linhas, todas contam!) até, no máximo, dia 4 de Maio.

Caso saibam de quem também queira participar, por favor passem a mensagem!

Podem enviar a vossa mensagem, texto curto, ou imagem, para:

  • tertulia.acoriana@gmail.com
  • angelaloura@gmail.com

Obrigada desde já,

Cumprimentos, Ângela Loura



2. Comentário do editor LG: 

Teremos todo o gosto, a Tabanca Grande,   em participar, mais uma vez, nesta iniciativa. Já em 2021, por ocasião dos seus 85 anos, lhe escrevemos uma mensagem publicada no seu "Baluarte de Santa Maria" (*).

O Arsénio Chaves Puim, ou simplesmente Arsénio Puim, continua a merecer a nossa estima, apreço, amizade e camaradagem, mais de meio século depois da sua expulsão do CTIG: tal como o nosso "cônsul de Bordéus", o  Aristides Sousa Mendes, ele foi "vítima da ira de César por mor de Deus e da sua consciência cristã" (*)...

Recorde-se aqui de quem se trata: (i) ex-alf graduado capelão, CCS/BART 2917 (Bambadinca, maio de 1970/maio de 1971), expulso do CTG: (ii) natural da ilha de Santa Maria. onde nasceu há 88 anis, vive em São Miguel; (iii) enfermeiro reformado do Serviço Regional de Saúde, e escritor: (iv) faz parte da nossa Tabanca Grande desde 2007; (v) tem cerca de 70 referências no nosso blogue. (**)

É uma inicitiava meritória, a que nos juntamos. Na sua página do Facebook, a Tertúlia Açoriana". apresenta-se do seguinte modo: "Inspirados na pessoa de Vitorino Nemésio, como o intelectual e divulgador da Cultura Açoriana que era, pretendemos também divulgar a Cultura Açoriana. Fica aqui o convite a todos para participarem nesta Tertúlia."


Tertúlia Açoriana > Logo da página do Facebook

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22181: Os nossos capelães (16): Arsénio Puim, vítima da ira de César por mor de Deus e da sua consciência de cristão e português (Luís Graça, "O Baluarte de Santa Maria", maio de 2021)

(**) Último poste da série > 13 e abril de  2024 > Guiné 61/74 - P25379: (De)Caras (205): Uma foto, rara, de 'Nino' Vieira, presidente da República, na inauguração do Parque Nacional do Cantanhez, em 25 de maio de 2008... Rara por vir publicada no antigo sítio da AD Bissau, do Pepito, e que fomos recuperar...

Guiné 61/74 - P25435: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (32): Rio de Janeiro, como rececionista num hotel, numa fase difícil da minha vida; como emigrante não prestava, até 1996, grande atenção à política em Portugal (João Crisóstomo, Nova Iorque)



João Crisóstomo: (i) é natural de Torres Vedras; (ii) membro da nossa Tabanca Grande desde 26 de julho de 2010, sentando-se à sombra do nosso poilão sob o n.º 432; (iii) tem 225 referências no nosso blogue; (iv) é o régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona; (v)  foi alf mil inf, CCAÇ CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67); (vi) vive em Queens, Nova Iorque, desde 1975, mas vem cá com frequência, ao seu querido Portugal; (vii) conhecido ativista social, foi-lhe atribuido recentemente o Prémio Tágides 2023 (na categoria de "Portugal no Mundo")



Guiné >Zona Leste >  Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Xime > CCAÇ 1439 (1965/67) > Agosto de 1965 > O primeiro contacto com as terras do Xime...Em primeiro plano, o alferes Crisóstomo  e o picador...

Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Mensagem do João Crisóstomo:

Data - segunda, 22/04/2024, 06:37
Assunto - 25 de Abril

Vejo já artigos, reportagens, descrições individuais fabulosas sobre este 25 de Abril. E quase estou na dúvida se devo mandar o que segue, que em comparação não tem muito por onde se lhe pegue, a não ser que o tédio também conte.

Ao fim e ao cabo estou a falar pouco desse dia, exceto dum ponto muito subjetivo e mesquinho, quase e apenas pessoal. Bom, talvez conte, para fazer vir o sono a alguns dos mais velhotes e como eu com dificuldades de dormir, antes de irem para a cama… 

Mas foi isto que me veio à ideia quando pensei no “meu’ 25 de Abril (*).

O 25 de Abril 1974 apanhou-me numa fase difícil da minha vida. Depois de ter regressado são e salvo da Guiné (**), decidi dar uma volta pela Europa para aperfeiçoar línguas, pois tinha posto na cabeça que o meu futuro em Portugal seria o turismo.

Dois anos na Inglaterra, um ano em França, sete meses na Alemanha e no meio deste encontrei a que viria a ser minha esposa.

Casados em Londres,  decidimos ir para o Brasil,  onde tencionávamos gerir um restaurante que teórica e oficialmente pertencia a um avô da minha esposa. Mas no Brasil isso não contava já nada.

Avisados para não nos metermos em sarilhos, pois se tentássemos sequer reaver o restaurante tudo nos podia acontecer, acabei por começar do zero, pois a tal lei de reciprocidade entre portuguese e brasileiros, nessa altura. na prática não passava de uma fantasia no Brasil.

A cunha de um português bem alicerçado no Brasil que tinha sido colega de escola da minha sogra, foi a minha salvação. 

E estava já trabalhando como rececionista num hotel, quando chegou a notícia : houve um golpe de Estado em Portugal.

A minha reação foi quase nula: "Oxalá não hajam mortos e apareça alguém com capacidade para governar", pensei eu.

Tudo o que me preocupava era encontrar maneira de dar à minha jovem família e a mim mesmo razão de esperança e confiança de um futuro melhor do que estava experimentando desde que tinha chegado ao Brasil.

Uma crise de meningite em crianças que subitamente pôs o Rio de Janeiro em estado de pânico,  levou-me a pôr a minha família no primeiro barco de regresso a Portugal, enquanto eu, que tinha sido promovido a subgerente, ficava, mas ainda procurando algo melhor.

Do Brasil vim aos Estados Unidos, convencido de que aqui podia tirar um grau superior em Hotelaria, que me ia abrir as portas no mundo do turismo, que era para mim a minha primeira escolha depois que voltei da Guiné.

Tudo saiu diferente do que esperava e acabei por ficar em Nova Iorque para onde trouxe depois a minha família, agora acrescida de um filho que tinha nascido em Portugal, seis meses depois do regresso do Brasil.

Como emigrante não prestava muita atencão à política em Portugal, sabendo apenas que, graças a Deus, tal golpe de Estado tinha sido quase pacífico, mas que havia muita confusão : que se tinha dado a correr a independência a todos os que a pediam; mas que a pressa em que tudo era feito não augurava bom futuro para ninguém, como se veio a verificar.

E lembro que em 1996 quando me pediram para me envolver na causa de Timor Leste, eu respondi imediatamente que não me queria envolver em guerras fraticidas e na confusão que essa concessão de independência total sem as preparações devidas tinha causado em toda a parte.

Mas a minha experiência na Guiné vinha-me frequentemente à memória e comecei a procurar saber notícias e mesmo literatura . Não encontrava nada.

Até que numa visita a Portuga encontrei numa feira do livro, na Gare do Oriente, o livro "em Terras de Soncó", do Mário Beja Santos. Esse livro , logo seguido pela minha entrada para a Tabanca Grande, e encontros com camaradas da Guiné e outros veio reforçar o interesse por assuntos portugueses que durante muito tempo eu tinha intencionalmente ignorado.

Minha opinião agora é de que o 25 de Abril possibilitou e desencadeou um despertar de consciências geral, que possibilitou a democracia que agora vivemos. Não é perfeita, mas parece-me que o é o melhor que já alguma vez tivemos. E isso faz dessa data uma das mais importantes da nossa história.

João Cisóstomo, Nova Iorque

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

__________

Notas do editor:

(*) ÚLtimo poste da série > 21 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25419: No dia 25 de Abril de 1974 eu estava em... (31): Lisboa, de licença de férias, e depois de uma noitada o meu cunhado acordou-me às 9h00: "Eh, pá, já não voltas mais para a guerra" (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

(**) Vd. poste de:

14 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23078: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - XIX (e última) Parte: Anexo B: Outros dados estatísticos: baixas, louvores e condecorações

Guiné 61/74 - P25434: Meu pai meu velho meu camarada (70): Henrique Gonçalves Vaz (1922-2001), último Chefe do Estado Maior do CTIG/CCFAG, foi também um cavaleiro com classe (Luís Gonçalves Vaz) - II (e última) Parte




Guiné > Bissau > Sala de operações do QG/CTIG > 11 de Julho de 1973 - Da esquerda para a direita; (i) Brigadeiro Banazol, comandante do CTIG; (ii) Coronel Galvão de Figueiredo, 2º comandante do CTIG; e (iii) o Chefe do Estado-Maior/CTIG, Coronel do CEM Henrique Gonçalves Vaz: este último responde, na sala de operações do QG, ., ás palavras do CMDT do CTIG, numa cerimónia de transmissão de funções do CEM/CTIG.



Guiné > Região do Cacheu > Pelundo >  1973 > Instrução das milícias >  Da esquerda para a direita; (i) Delegado do Governo no Chão Manjaco, Tenente-coronel de Art Sousa Teles; (ii) Comandante Geral das Milícias, Major Mário Arada Pinheiro (membro da nossa Tabanca Grande); (iii) CEM/CTIG, Coronel do CEM Henrique Gonçalves Vaz, em inspeção á instrução das milícias, representando o 2º CMTE do CTIG.



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > Setembro de 1973 > Coronel Henrique Vaz,  com o Brigadeiro Banazol (comandante do CTIG), perante um desfile de um pelotão de milícia, no âmbito do encerramento da instrução.



1- Segunda parte do texto do Luís Gonçalves Vaz



Cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (Barcelos, 1922- Braga, 2001)


Fotos (e legendas): © Luís Gonçalves Vaz  (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Henrique Gonçalves Vaz, último Chefe do Estado Maior do CTIG/CCFAG,
foi também um cavaleiro com classe - II (e última) parte (*)

por Luís Gonçalves Vaz



A carreira profissional do Coronel Henrique Gonçalves Vaz tem duas grandes etapas: (i) como cavaleiro, enquanto oficial subalterno de Cavalaria (vd. Parte I) (*); e (ii)  como Oficial do Quadro do Corpo do Estado-Maior.

Como oficial CEM, desempenhou funções nos Quarteis Generais da Região Militar do Norte, na Região Militar de Angola e no CTIG /CCFAG na Guiné Portuguesa.
 
Em 20 de Novembro de 1963, é destacado, em comissão de serviço, para servir no
Quartel General da Região Militar de Angola, onde exerce em 63/64 as funções de Oficial Adjunto da 4ª Repartição e,  em 1965, as de Chefe da 1ª Repartição, regressando à “Metrópole” neste ano.

 Os serviços prestados nesta comissão, pelo então Major Vaz, são reconhecidos
superiormente, nomeadamente pelo General Comandante da Região Militar de Angola e pelo próprio Ministro do Exército, reconhecimentos estes que se traduzem em Louvores e em Condecorações atribuídas. 

Entre 1966 e 1970, desempenha, na Região Militar do Norte (RMN)
na cidade do Porto, as funções, primeiro de subchefe e, nos últimos dois anos, a de Chefe do Estado-Maior da RMN.

Entre 1971 e 1972, comanda o Regimento de Cavalaria  nº 6 (RC 6), no Porto, onde uma vez mais se distingue como se pode comprovar no Louvor concedido pelo General Comandante da Região Militar do Norte, “... pela maneira altamente distinta e plena de dignidade como comandou o RC6 ....que revelaram um oficial distinto que valorizou a sua unidade e prestigiou a Região e as Instituições Militares...”.

No ano seguinte, 1973, é nomeado para servir, novamente, no “Ultramar”, desta vez no Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG), como Chefe do Estado-Maior, sob o comando do General Spínola e posteriormente do General Bettencourt Rodrigues, numa altura de grandes ofensivas do PAIGC, 

A partir do 25 de Abril de 1974, e por instruções superiores (do Brigadeiro Fabião ), é o principal responsável em realizar os “Planos de Entrega dos Aquartelamentos na Guiné”, com a colaboração do sr. Major Mourão. 

Os últimos “Planos de entrega de aquartelamentos” foram entregues ao Brigadeiro Fabião no dia 10 de Outubro de 1974, um dia antes da reunião com os comandantes do PAIGC. 

A entrega do Complexo Militar de Santa Luzia foi efetuada no dia 13 de Outubro, pelas 15 horas, enquanto o Forte da Amura, o último “reduto militar português” a ser entregue, foi entregue apenas no dia 14 de Outubro, o dia previsto para a “retirada final”, e reservado para o embarque do que restava das tropas portuguesas na Guiné. Só regressará a Lisboa no dia 14 de outubro de 1974, cerca de seis meses após a Revolução de 25 de Abril. 

Em 31 de Agosto de 1976, é colocado no 1º Tribunal Militar Territorial do Porto, assumindo, no ano seguinte, a função de Juiz Presidente. Em março de 1978, passa à situação de Reserva, mas continua a exercer o referido cargo naquele tribunal. É reconduzido nas mesmas funções, desde 9 de setembro de 1979, por novo biénio.

Em 1 de Janeiro de 1982, deixa de prestar serviço efetivo no Quartel General da Região Militar do Norte.

Braga, 18 de abril de 2024
Luís Beleza Gonçalves Vaz (foto à esquerda)
(filho do biografado)

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P25433: Parabéns a Você (2263): David Guimarães, ex-Fur Mil At Art MA da CART 2716 / BART 2917 (Xitole, 1970/72)

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Nota do editor

Último post da série de 15 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25387: Parabéns a Você (2262): António Pimentel, ex-Alf Mil Rec Inf da CCS / BCAÇ 2851 (Mansabá e Galomaro, 1968/70)

terça-feira, 23 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25432: 20.º aniversário do nosso blogue (9): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (VI): Na sua já famosa carta aberta a Salazar e Caetano, de 2010, o 'sínico' António Graça de Abreu recomendava-lhes vivamente a leitura do nosso blogue, lá no além...


Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu junto ao obus 14... Antes estivera em Teixeira Pinto. Terminará a sua comissão em Cufar, no sul, nas vésperas do 25 de Abril de 1974.

A 8 de Abril de 1974, em Cufar, escreve no seu "Dário  da Guiné": 

"De Lisboa a minha mulher continua a dizer-me coisas de espantar. Ao fim deste tempo todo, por exemplo: 'Não contas senão o superficial, a tua vivência aí chega a mim só pela rama'. Como é possível?!... Em vinte e um meses e meio fui três vezes a Portugal,  da Guiné escrevi-lhe trezentas e quarenta e sete (347, tenho tudo numerado!) cartas e aerogramas, desdobrei-me na narrativa, na descrição minuciosa do meu quotidiano e desta guerra, desde os muitos pormenores aparentemente insignificantes aos contextos maiores em que vivo. 'Não contas senão o superficial'. Como é possível ?!..." (in Diário da Guiné..., 2007, p. 211).


1. Esta carta aberta já aqui foi publicada há mais de 13 anos... Foi escrita pelo António Graça Abreu, antes de empreender uma grande viagem à China,  com pedido de publicação, em 21 de Maio de 2009... Lamentavelmente, por um monumental lapso nosso, só seria publicada 18 meses depois, em 16 de novembro de 2010... Merece agora voltar à montra principal do nosso blogue, no dia do nosso 20.º aniversário...

Como o dissemos na altura, é uma peça antológica, é um  documento de belo recorte literário e de mordaz ironia, senão mesmo de delicioso sarcasmo, sob a forma de carta aberta aos dois políticos que formataram este país e este povo, durante mais de meio século, legitimando uma guerra, de longa duração, a milhares de quilómetros de casa, e para  a qual ambos foram totalmente incapazes de encontrar uma inteligente e honrosa saída política... 

Não é um documento panfletário, é uma reflexão, didática, serena, bem humorada,  sobre as oportunidades perdidas por e para todos nós (incluindo os povos africanos, que poderiam ter chegado à independência por meios pacíficos, proveitosos e honrosos, para os dois lados, reforçando os nosssos nossos laços históricos comuns).

Mas é também uma carta de confiança no futuro, de confiança em Portugal, e nos portugueses, de confiança e de orgulho  na geração, a nossa,  que soube fazer a guerra e a paz, independemente dos efeitos perversos, contra-intuivos, n
ão-esperados, que teve a descolonização, um processo em grande exógeno, sobre o qual Portugal de 1974/75 não podia ter grande controlo: 

"Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes".
 

BI militar do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu: 

(i) ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74; (ii) membro da nossa Tabanca Grande desde 2007; (iii) tem mais de 340 referências no blogue; (iv) é sinólogo, tradutor e escritor, autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp).

Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2011). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
Carta aberta aos Profs. António de Oliveira Salazar 
e Marcello Caetano

por António Graça de Abreu


(i) Introdução

António Graça de Abreu, ex-alferes miliciano na Guiné-Portuguesa, humilde cidadão que teve a ventura de nascer no ano de 1947, durante a longa jornada autocrática de V. Exª., Sr. Presidente do Conselho Dr. António de Oliveira Salazar, e depois de viver extremadamente os últimos anos da ditadura mole e pouco iluminada de V. Exª., Sr. Prof. Marcello Alves Caetano, também Presidente do Conselho, confessa, do fundo das circunvoluções do seu desgastado coração, que anda há um ror de anos com vontade de vos escrever.

A primeira dificuldade, para além da minha inabilidade e ausência de qualidades para me dirigir a tão excelsas e ilustres figuras da nossa História Contemporânea, tem a ver com o embaraço de enviar esta carta para o espaço adequado. Qual o lugar onde hoje se encontram, Excelentíssimos Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano? No fofo azul do Céu, nas agruras amarelas de uma passagem prolongada pelo Purgatório, nos calores vermelhos do Inferno?

Como não sei qual foi o destino que para vós Deus escolheu (dependente por certo de tudo quanto executaram ou mandaram fazer na vossa breve/longa vida terrena), envio esta carta para o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, na certeza de que terá um molho bem cheio de leitores, gente de excelente qualidade, e que V. Exªs., onde quer que estejam, a irão ler.

Este blogue do Luís Graça na Internet  – coisa que não existia no tempo de vossas vidas– é um imenso sucesso de comunicação. São testemunhos de ex-combatentes da guerra na antiga Guiné Portuguesa, trocas de opiniões, entendimentos, desentendimentos, desabafos, uma espécie de terapia colectiva, muitos anos após o regresso dessas paragens quentes e amargas que nos marcaram a todos.

A segunda dificuldade, ao escrever esta carta, prende-se com o modo de vos tratar. “Excelências, Senhores Presidentes do Conselho, Prof. Dr. Salazar, Prof. Dr. Marcello Caetano”? Todas estas denominações vos pertencem, associadas à importância e dignidade dos cargos que, em ditadura, ocuparam ao longo de tantos anos.

Ora, há uns três meses atrás, o António Lobo Antunes, ex-oficial miliciano médico em Angola, 1971/1973, na crónica que assina na revista Visão, escreveu um texto algo zangado com Deus que, no início de 2009, lhe levou dois dos seus melhores amigos. E António Lobo Antunes resolveu tratar Deus por tu. Ele é um pouco, ou muito despassarado, mas enfim…

Eu também tenho as minhas guinadas e manias, mas pairo baixo, a razoável distância do autor de Os Cus de Judas. E os Profs. Salazar e Marcello também não são deuses.

Não me levem a mal por, em bicos de pés no alto do meu banquinho de escritor pequeno e medíocre, (mas com quinze livros publicados), desejar tratar-vos igualmente por tu, com todo o respeito. Mas acho que não sou capaz.


(ii) A História

O nosso Portugal é uma das nações mais antigas da Europa. Fechados neste rectângulo, de costas voltadas para Espanha, tínhamos o oceano diante de nós. E, a partir do século XV, antes de quase todos os outros povos, embarcámos na ousadia e na loucura de navegar o mar. 

Áfricas, Américas, Índia, China, Japão, Austrália, nada do que eram então os grandes mares e as imensas terras desconhecidas parece ter escapado às quilhas das naus, ao calcorrear português, ao entendimento, nem sempre esclarecido, das gentes da pequena pátria lusitana. Demos “novos mundos ao mundo”, é verdade. E fixámo-nos em muitos desses lugares. Fomos ficando. Em meados do século XX ainda estávamos em Macau e Timor, na Índia, em Moçambique e Angola, nas ilhas de S. Tomé e Cabo Verde, na Guiné.

Depois de descobrirmos mais de meio mundo, face à pequenez do Portugal europeu, alimentámos naus e naus carregadas de mitos e sonhos. O bom do padre António Vieira (1608-1697) acreditava ainda num impossível Quinto Império lusitano espalhado pelo mundo e falava de nós como os que “têm a terra portuguesa para nascer e toda a terra para morrer”.

No século XIX construímos a ideia irrealista de um mapa “cor-de-rosa” a unir, sob domínio português, as terras de Angola e Moçambique. Na I Guerra Mundial (1914-1918) enviámos forças expedicionárias para França, para a Flandres, entre outras razões, para mostrar que tínhamos força (não tínhamos!..) e que outras potências europeias seriam mal sucedidas se algo fizessem para se assenhorearem das nossas colónias. 

Tivemos quinze mil mortos, (corrijam-me se estou enganado!),  bons filhos da terra portuguesa, nessa guerra estúpida e inútil. Como quase todas.

Em 1953, escrevia o general Norton de Matos, em choque aberto com V. Exª., Dr. Salazar, e que mais tarde haveria de se candidatar a Presidente da República pela chamada Oposição: 

“Que a vossa principal tarefa seja o engrandecimento da Pátria, dignificando-a (…). Não deixais que ninguém toque no território nacional. Conservar intactos os territórios de Aquém e Além-Mar é o vosso principal dever.” (in Norton de Matos, A Nação Una, Lisboa, Ed. Paulino Ferreira e Filhos, 1953).

Tudo isto V. Exª. conhecia, Dr. Salazar e, na linha do pensamento tradicional português e até do de alguns dos vossos opositores, Portugal afirmava-se “uno e indivisível”, estender-se-ia do Minho a Timor, eram “muitas raças, uma só nação”. Uma utopia, um sonho lindo e perigoso, inevitavelmente condenado pelos ventos e avanços da História.

A partir dos anos sessenta do século XX, quase todas as colónias das nações europeias em África transformaram-se em países independentes. Sabemos hoje que muitas dessas independências foram prematuras e constatamos como muitos dos pobres povos dessas terras, libertos do nada meigo jugo colonial, têm sido tratados pelos seus governantes africanos e chefes associados ao tribalismo, à incompetência, à corrupção, ao esmagamento dos mais elementares direitos humanos.

No que a Portugal diz respeito, naquele fatídico ano de 1961, perdíamos a Índia e logo de seguida iniciava-se a luta armada em Angola, com o massacre pela UPA (União dos Povos de Angola) de milhares de portugueses inocentes. 

O ódio racial era real e antigo, ao contrário do que a propaganda do regime de V. Exª., Dr. Salazar, queria esconder. A tese das “muitas raças, uma só nação” continuava a ser enganosa e iria provocar imensos sofrimentos ao povo português e aos povos de Angola, Guiné e Moçambique.

(iii) A Guerra

“Orgulhosamente sós”,  embarcámos aos milhares, de armas na mão para lutar contra o “terrorismo” em Angola. Em 1963, com o eclodir dos conflitos armados na Guiné e em Moçambique, novos espaços de guerra se abriram para os portugueses. Os chamados Movimentos de Libertação organizavam-se, contavam com poderosos auxílios externos (União Soviética, China, etc.) e Portugal fez um esforço tremendo para combater, com algum êxito, esses guerrilheiros que acreditavam lutar por um futuro melhor para a Pátria deles e queriam pôr fim a quatro séculos de mau colonialismo. O sangue, a dor, a morte passaram a fazer parte do quotidiano de Angola, Guiné e Moçambique.

Sempre na senda de um “passado glorioso”, da exaltação da nossa História, e também por razões económicas  
– Angola era, é, talvez o país mais rico de África – V. Exª, Dr. Salazar, insistia na “defesa da Pátria”, e V. Exa., Dr. Marcello Caetano, excelente professor na Faculdade de Direito de Lisboa, não discordava uma linha da política ultramarina seguida por Salazar.

Em 1968, eu não era nada de especial, tinha vinte gloriosos anos, vivera já durante um ano em Hamburgo, na Alemanha e, na Faculdade de Letras de Lisboa, fazia parte da Direcção da Pró-Associação de Estudantes e do Grupo de Poesia e Canção da Faculdade. Muitas vezes eram da nossa responsabilidade as primeiras partes dos espectáculos semi-clandestinos do Zeca Afonso, do Adriano, do Fanhais, do Zé Jorge Letria. Eu dizia poemas do Pessoa, da Sophia, do António Gedeão. Deste último, ainda sei de cor a Lágrima de Preta. Ignoro se V. Exas, Salazar e Marcello, são muito dados a estas coisas da poesia, mas aí vai:

Encontrei uma preta que estava a chorar
Pedi-lhe uma lágrima para analisar,
Recolhi a lágrima com todo o cuidado
Num tubo de ensaio bem esterilizado.
Mandei vir as bases, os ácidos, os sais,
As drogas usadas em casos que tais.
Nem sinais de negro, nem vestígios de ódio,
Água, quase tudo, e cloreto de sódio.

Podem pois adivinhar de que lado político eu me situava. A PIDE já me tinha debaixo de olho e o meu processo na PIDE (podem consultar, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, procº. 9175 C7 NT 7555) é muito interessante e equivale às medalhas que, por bem, não ganhei na Guiné Portuguesa.

Os tempos tinham mudado, em finais dos anos sessenta do século passado cada vez mais pessoas e muita juventude, sobretudo a que frequentava as universidades, começava a contestar a vossa autoridade e a justiça das guerras em África.

E o vosso erro foi não terem entendido, para bem de Portugal e dos povos africanos, que a era gloriosa da Pátria portuguesa espalhada pelos quatros cantos do mundo pertencia a uma História de que nos podemos e devemos orgulhar, mas era apenas isso, o passado.

V. Exª., António de Oliveira Salazar e depois, a partir de 1969, V. Exª., Marcello Caetano, descartavam as hipóteses de negociações com os movimentos de libertação. E os conflitos não tinham solução. Não conseguíamos vencer os guerrilheiros em luta, nem éramos vencidos por eles.

O povo português, os povos africanos sofriam barbaridades. Em nome de quê, porquê, para quê? Vocês estavam a adiar o inadiável, o inevitável.

Em 1968, V. Exº., Dr. Salazar nomeia o então brigadeiro António de Spínola para governador e comandante-em-chefe das tropas na Guiné. Spínola, que fora tenente-coronel em Angola, apercebe-se da impossibilidade de se ganhar militarmente a guerra. A questão era política, sempre foi política e ao lançar a estratégia política de Uma Guiné Melhor António de Spínola pretende transformar o “inimigo em nosso amigo”. Consegue alguns resultados e o PAIGC treme. Spínola começa progressivamente a alicerçar a ideia de uma muito maior autonomia para os territórios ultramarinos, uma espécie de federação lusófona, e inicia estranhas negociações com o “inimigo” que, em 1970, se viriam a saldar pelo cruel e cobarde assassínio de três majores portugueses por guerrilheiros do PAIGC.

V. Exª., Dr. Salazar, tinha caído da cadeira de lona no forte de Santo António do Estoril, batido com a cabeça no chão e incapacitado, ainda sem acreditar, terminava o seu longo consulado ditatorial ao leme dos destinos tortos de Portugal.

V. Exª., Dr. Marcello Caetano, era um homem mais aberto e moderno. Mas não acabou com a ditadura, nem com a polícia política, nem com a asfixia da sociedade portuguesa. No que às guerras de África dizia respeito, foi muito mais “continuidade” do que “evolução”. Portugal permanecia num doloroso beco sem saída.

Até que em 1973, de início por razões reivindicativas e corporativistas que tinham a ver com promoções na carreira, um grupo de capitães, oficiais do quadro permanente, todos marcados pela inutilidade, irracionalidade e impossível solução das guerras de África, decide avançar para um golpe militar e depor o regime que governara Portugal a partir de 1926.

V. Exª., Dr. Salazar, desde 1970, dormia o definitivo sono dos injustos na sua campa térrea de Santa Comba Dão. E V. Exª., Dr. Marcello, foi exilado para o Brasil. As guerras de África iam acabar porque o problema tinha solução, era, sempre foi político.

O que veio a seguir já não é da vossa responsabilidade, sois apenas culpados por ter protelado, adiado até ao impossível, uma necessária solução política para os conflitos em África.

A descolonização, como sabem, foi um inenarrável desastre, as tragédias da guerra civil em Angola, os conflitos em Moçambique, os massacres em Timor, o fuzilamento de centenas de militares e civis africanos na Guiné, homens que tinham combatido ao nosso lado ou apoiado as tropas portuguesas, enfim todo um rosário de mágoas, dor e morte que não terminou com a independência desses territórios. Como foi possível, pós independência, que quase todos os mais destacados e heróicos comandantes da guerrilha do PAIGC também tenham sido mortos em lutas intestinas entre eles? Como é possível que hoje, ano de 2009, quase metade das mulheres da Guiné-Bissau estejam ainda sujeitas à excisão do clitóris, uma prática bárbara, atentatória dos mais elementares direitos da mulher, direitos humanos? Como é possível que hoje, 2009, em Bissau não exista uma única livraria?

Mas não foi para me debruçar sobre estes temas que vos escrevi. Vamos falar de nós.

(iv) Combatentes

A minha mulher é chinesa [foto à esquerda], criada na Xangai comunista, República Popular da China, onde nasceu em 1961. Há dois anos atrás, quando resolvi ir buscar o meu diário de guerra na Guiné, mais uns aerogramas da época [foto abaizo], e comecei a passá-los ao computador prevendo uma possível publicação em livro, a minha mulher zangou-se comigo. Via-me sofrer ao reescrever os textos, constatava como aquele diário ainda bulia comigo, houve dias em que, na escrita, algumas lágrimas me rolavam pela face, e ela não gostava. Fala bem português, está em Portugal há 24 anos e disse-me mais ou menos o seguinte:

“Então que prazer estúpido tens em mexer nesses papéis, tu afinal pertenceste a um exército colonial que andou a matar os pobres dos pretos. Não é melhor tentar esquecer tudo isso e dedicar o teu labor a trabalhos mais saudáveis”?!..




Cópia de aerograma, original, escrito em linhas concêntricas, reproduzido no livro "Diário da Guiné".


Em Julho de 2008 tentei e consegui convencê-la a ir comigo a Fátima, ao segundo encontro dos camaradas da CCaç 4740, com quem estive em Cufar, sul da Guiné, durante dez meses. Fomos à missa (o que raramente acontece!) com muitos dos homens da companhia 4740 e ao almoço com eles e famílias. E a minha mulher entendeu por fim o que une estes antigos militares da Guiné. Compreendeu, em palavras simples, como somos amigos, entendeu a alegria que temos em nos reencontrar, em recordar, em nos sentirmos irmãos.

[ À esquerda, capa do livro do nosso camarada António Graça de Abreu, Diário da Guiné: Lama, Dangue e Água Pura.  Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.... 


É isto, senhores Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano, que vos quero dizer, dar-vos a conhecer a evolução das nossas vidas. 

A guerra marcou-nos a todos, mas somos hoje companheiros fraternos, camaradas de armas recordando um duro passado comum, em terras que não eram as nossas, mas que continuam a exercer sobre nós todos os fascínios. Fomos obrigados a fazer uma guerra, é verdade, mas a grande maioria de nós também sabia fazer a paz, quase todos tiveram a humanidade e a dignidade de sair de cabeça levantada dessa guerra.

Centenas de milhares de homens passaram pelas guerras de África. Quase nove mil combatentes, no melhor dos seus vinte anos, lá perderam a vida. “Malhas que o império tece”, ou melhor, malhas cerzidas por uma política cega, de que vocês os dois foram os principais fautores.

Os meus heróis são os soldados portugueses que tombaram para sempre numa guerra injusta tendo por horizonte as bolanhas, o tarrafo e o verde e vermelho da bandeira portuguesa, os meus heróis são esses guerrilheiros anónimos do PAIGC que caíram no seu campo de luta.

(v) A Guiné

O velho Confúcio, nascido na China antiga no ano de 551 a.C., disse mais ou menos o seguinte: “Se conheces, actua como homem que conhece, se não conheces, reconhece que não conheces. Isso é conhecer”.

Como, apesar dos meus 62 anos, conheço ainda tão pouco, devo confessar-vos, Drs. Salazar e Marcello, que neste blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné tenho aprendido muito sobre o que aconteceu nos onze anos de guerra na Guiné e sobre esta essência tão obtusa de sermos portugueses.

Os testemunhos dos homens que viveram o conflito é sempre e naturalmente plural. Os nossos dois anos de Guiné tiveram cenários e tempos diferentes, as terras fulas de Bafatá e Nova Lamego (Gabú), o chão manjaco, com o Cacheu e Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa e o Morés, no sul, as terras do Tombali e do Cantanhez. Diversos espaços de luta, de excelente, extraordinária camaradagem e também de sofrimento. Ora, a Guiné dos anos 1964, 1967, 1970, 1972 ou 1974 não corresponde exactamente a um mesmo enquadramento logístico e estratégico. A guerra prolongou-se por onze anos. Depois, hoje escrevemos de memória, trinta e tal, quarenta e tal anos transcorridos. E a memória esquece, distorce, obscurece, exalta o entendimento.

Mesmo assim, muitos dos testemunhos dos ex-combatentes neste blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné assumem-se como marcos fundamentais das nossas vidas, imprescindíveis para entender quem fomos e somos.

Recomendo-vos vivamente a leitura do blogue, Profs. Salazar e Marcello.

Transparece, no entanto, em alguns dos textos publicados no blogue, reflexo também de falsas ideias feitas em estratos da sociedade portuguesa, uma constante ideológica de assumir culpas, de lançar culpas para o parceiro do lado, de subestimar as forças militares portuguesas e, lógico, de sobrevalorizar o poder dos guerrilheiros do PAIGC. Política, má política.

Fomos obrigados a combater contra povos pobres que acreditavam lutar por um futuro mais risonho para as suas pátrias. Não fomos militarmente derrotados. Porque, quase sempre fomos bravos, “forte gente” com “fracos reis”, como diria o nosso Camões.

Mas, V. Exª., Dr. Marcello Caetano, com algum fundamento, estava assustado com o que acontecia na Guiné, a partir de Abril de 1973, com os mísseis Strela e com a debandada de Guileje. Em Lisboa, com censura nos jornais, sem liberdade de imprensa, corriam extravagantes boatos. Dizia-se de boca bem aberta, mas à boca calada, que os aquartelamentos portugueses no sul da terra guineense caíam uns após outros. Contava-se que um quartel, a 30 quilómetros de Bissau, havia sido tomado pelo PAIGC, com centenas de mortos. Em Junho de 1973, à noite, às escondidas, em muros da cidade de Coimbra, alguém escrevia : “se tem o seu filho na Guiné, considere-o morto.”

Em V. Exª., Dr. Marcello Caetano, a preocupação crescia. Em Junho de 1973, mandava chamar o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Costa Gomes, recentemente regressado da Guiné e perguntava-lhe:

 
– A Guiné é defensável e deve ser defendida?
(…) A resposta do General Costa Gomes foi categórica:

 
– No estado actual, a Guiné é defensável e deve ser defendida.”

(in Marcello Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1974, pag.180.)


A menos de um ano do 25 de Abril, Costa Gomes considerava a Guiné “defensável”, o que era verdade em termos militares. Sim, mas à custa de tantos sacrifícios!… Quanto ao “deve ser defendida” era a perpetuação da tese política da defesa cega das terras africanas do império.

A Guiné-Bissau tornou-se um país independente a 23 de Setembro de 1974 e logo depois Costa Gomes chegou a Presidente da República portuguesa. As malhas rotas que o império tece.

(vi) Conclusão

António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano, Excelências

Espero que tenham lido com atenção esta minha despretensiosa carta. É apenas um desabafo do coração, mas espero que, graças ao fantástico e extra-terreno blogue do Luís Graça & Camaradas d Guiné, tenha chegado ao vosso mundo.

Nós hoje, somos ainda uns duzentos mil ex-combatentes da Guiné. Sexagenários e septuagenários, jamais esquecemos esses cada vez mais distantes dois anos das nossas vidas. Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes.

Com vinte e poucos anos, quase todos nós demos o melhor de nós próprios (às vezes a própria vida) numa guerra que não desejámos. Mas temos orgulho na nossa bandeira e nesse estranhíssimo sortilégio de se nascer português.

Homens, ex-militares da Guiné, somos hoje duzentos mil irmãos.

Saúda-vos, com pouca amizade, o António Graça de Abreu

(Revisão / fxação de texto, negritos,  numeração dos subtítuos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG)
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Nota do editor  L.G.:

(*) Último poste da série > 23 de abril de  2024 > Guiné 61/74 - P25428: 20.º aniversário do nosso blogue (8): Bem hajam!, a minha palavra de gratidão para os nossos editores e colaboradores (João Crisóstomo, Nova Iorque)

Vd. também poste de 21 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25418: 20º aniversário do nosso blogue (6): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (V): Canjadude, pânico no abrigo Norte: Ei!!!!!… malta… um Crooocoodiiiloooo!!!... (José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", 1969/71)