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terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24065: A nossa guerra em números (22): De um total de 1570 minas e outros engenhos explosivos implantados pelo PAIGC (de 1972 a 20 de abril de 1974), mais de três quartos foram neutralizadas pelas NT, com destaque para as minas A/P

Fonte: Relatório da 2ª Repartição/CCFAG relativo ao período de 1Jan73 a 150ut74, citado por CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, 2015), pág. 497.


1.   A propósitos das minas e outros engenhos explosivos usados na guerra do ultramar / guerra colonial (*), escrevemos:

(...) "As minas (A/C e A/P) e armadilhas (fornilhos, etc.) foram um dos "ossos mais duros de roer" na guerra que tivemos de enfrentar no TO da Guiné... Não sabemos quantas foram montadas, identificadas e levantadas... De um lado e do outro... Impossível haver estatísticas. Mas foram dezenas e dezenas, senão centenas, de milhares, ao longo dos anos, as minas que montámos, de um lado e do outro, para provocar baixas no campo do inimigo e desmoralizá-lo... Uma "arma suja", nesta e noutras guerras...

Pior ainda, não sabemos quantas foram accionadas pelas nossas viaturas, ou pelos nossos pés... Nem o número de mortos, feridos e incapacitados, provocados por estes engenhos mortíferos... Falamos de minas terrestres, mas também as havia aquáticas" (...)

Pedro Marquês de Sousa (em comentário de ontem, no Facebook da Tabanca Grande Luís Graça), escreveu:

(...) Durante o ano de 1973 foram detectadas 750 minas implantadas pelo PAIGC. Em Moçambique esta ameaça (minas) era ainda maior do que na Guiné, pois no mesmo ano (1973) temos o registo de mais de 2000 colocadas pela FRELIMO das quais 665 foram detonadas pelas nossas tropas (uma média de 55 minas detonadas por mês)" (...). (Ver livro do autor, ten cor na reserva, "Os números da Guerra de África", Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp.174 , 184 e 185.

2. Veja-se o nosso poste P23450 (**):

Pedro Marquês de Sousa, no seu livro "Os números da Guerra de África"(Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 381 pp.), dá-nos algumas "dicas" sobre o consumo de minas A/C e A/P por parte das NT em Moçambique:

(i) para o ano de 1972, aqui vai um resumo das quantidades das principais munições e granadas fornecidas, em milhares de unidades (por arredondamento por excesso ou defeito) (adaptado por nós, op cit, pág. 301):

Munições 7,62 mm > 2152,3
Granadas de mão defensivas > 4,2
Granadas de mão ofensivas > 41,8
Granadas de morteiro 60 mm > 6,3
Granada de morteiro 81 mm > 5,7
Minas A/P (antipessoais) > 43,2

(ii) estranhamente, os consumos de minas nos anos de 1970 e 1971, em milhares, são muito díspares:

Minas A/C: 0,5 (1970) | (-) (1971)
Minas A/P:1,3 (1970) | 50,7 (1971)


Obviamente, as NT usavam muito mais das minas A/P do que as minas A/C...

Quanto aos prémios, na década de 1970, os valores já eram outros. Diz o Luís Dias [ex-alf mil Inf, CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74), o nosso especialista em armamento]:

(...) Segundo corria no meu tempo, o que rendia eram as minas A/P a 1000 pesos, a mina A/C a 3000 pesos e as rampas de foguetões ou os foguetões 120 mm a 5000 pesos.(...) (**).


3. Ainda relativamente ao TO da Guiné, temos alguns dados referentes aos últimos anos da guerra, e às minas implantadas (pelo IN) e neutralizadas (pela NT) (vd. quadro acima).

Nos anos de 1972, 1973 e 1974 (até 30 de abril), o PAIGC implantou  1570 minas e engenhos explosivos, com destaque para as minhas A/P (sete em cada dez):

  • minas A/P: 1132 (72,1% do total); neutralizadas: 80,2% (quatro em cada cinco);
  • minas A/C: 381 (24,3% do total); neutralizadas: 74,8 % (um em cada quatro);
  • outros engenhos explosivos: 57 (3,6% do total); neutralizadas: 35,1% (um em cada três).
Total (minas e outros engenhos explosivos )minas aquáticas, armadilhas e outros): 1570 (100,0%); neutralizados: 77,6% do total (quase quatro em cada cinco).

De um total de 1570 minas e outros engenhos explosivos foram neutralizadas, pelas NT, 1218  (77,6%), o que é um "score" notável.

Houve, por certo, muito mais minas e armadilhas que ficaram por detetar,  e que provavelmente fizeram ainda vítimas (nomeadamente entre civis e animais) muito depois da guerra ter acabado.  

De qualquer modo, estes números  (***)tem de ser lidos no contexto do agravamento da situação político-militar no CTIG. Segundo o relatório da 2ª Rep/CCFAG, acima citado:

(...)  "O ano de 1973, juntamente com os primeiros meses de 1974 até ao 25 de Abril, constituem um período de nítido agravamento da situação militar, económica e político-subversiva no território da Guiné.

Este estado de coisas reflectia a agudização do problema colonial português, especialmente no plano internacional. Os movimentos emancipalistas, em particular o PAIGC, recebiam apoios ou ajudas de toda a ordem, cada vez mais generalizados, com destaque para os que eram canalizados através da ONU e OUA.

(...) As forças do PAIGC não só revelaram uma notável capacidade de manobra e confirmaram o extraordinário potencial de combate que lhes era atribuído, como alteraram profundamente o seu conceito de manobra no TO, passando da actuação dispersa em superfície para a concentração maciça de meios sobre objectivos definidos, normalmente distantes uns dos outros, com o propósito de hipotecar as reservas das NT no local oposto onde pretendia exercer o esforço. (...) (Negritos nossos).
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24063: Roncos que davam prémios (em dinheiro)... mas podiam custar a vida: a deteção e levantamento de minas...

(**) Vd. poste de 22 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23450: A nossa guerra em números (18): o consumo de munições e granadas pelo exército

(***) Último poste da série > 8 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23505: A nossa guerra em números (21): o esforço financeiro global, de 23 mil e 900 milhões de euros (em valores de 2008), dividiu-se por Angola e Moçambique (25%) e pela Metrópole (75%)

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23830: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (54): A nossa geração que foi "a salto" para a França, nas aldeias da raia d' Espanha


Antº Rosinha, II Encontro Nacional
da Tabanca Grande,Pombal, 2007.
Foto: LG
 1. Mensagem de António Rosinha, o "nosso mais velho", "colon" em Angola (desde os anos 50, e onde fez a tropa e a guerra, em 1961/62), "retornado" em 1975, emigrante no Brasil, cooperante na Guiné-Bissau (como topógrafo da TECNIL, em 1987/93), um dos últimos dos nossos "africanistas",  membro da Tabanca Grande desde 29/11/2006 (ou seja, "um senhor senador"):

Data - 28 nov 2022 17:32  

Assunto - A nossa geração que foi "a salto" para a França, nas aldeias da raia d'Espanha


Desde os anos 50 até 1961 já havia "passadores" para a França, em todas as fronteiras da Beira Alta, Trás-os-Montes e Alto Douro.

Em alguns concelhos mais que noutros, logo a seguir à I Grande Guerra, já se ia para a França pelo processo do "a salto"..

Só que, a partir de 1961  acelerou essa actividade, e talvez, mesmo sem estatísticas, se possa dizer sem exagero que 50% de jovens entre os 18 e os 20 anos foi para a França, nas inúmeras aldeias, hoje desertificadas em maioria, dessas regiões do interior Beirão e Transmontano.

Será que a Guerra do Ultramar não podia mesmo dispensar aquela quantidade de soldados?

Era já um hábito muito enraizado, semi-clandestino, bem junto às fronteiras espanholas, a ida para a França..

Já era a alternativa ao Brasil e outras Américas a ida "a salto"  para a França ou nos porões da CNN (Compamhia Nacional de Navegação)  e CCN (Companhia Colonial de Navegaçãpo) para Angola e Moçambique e mesmo para África do Sul e Congo Belga..

As nossas velhas aldeias do interior, onde podia haver muita "carne para canhão", para a Guerra do Ultramar, 3, 4, e mais, filhos varões por família, na inspecção anual,  que podiam ser 20 ou 30 por aldeia, por ano,.uma grande parte ia para a França, por meio de "passadores", muitíssimo pouco clandestinos, pois eram figuras bem públicas nas regiões fronteiriças.

Como a partir de 61 tudo era apto para a guerra, ao fim de 13 anos, exceptuando amparos de família, e não sobrepondo dois ou mais irmãos, qualquer aldeia do interior poderia ter fornecido média de 20 por ano vezes 13 anos eram 260.

Só em fardamento, G3 e viagens, reduzindo para metade (praças havia muitas), era uma boa poupança..
Havia escassez era de capitães, não de praças.

Se de 260, 130 fossem para a França, farda, viagens sem custos para o Estado, e envio de remessas mensais, continhas à Salazar...será que os "passadores" não mereciam uma condecoração ou um prémio? Aliás, eles pagavam-se bem sem correr riscos cá em Portugal, e na fronteira francesa os riscos eram apenas para os emigrantes.

São muitos milhares das fronteiras beirãs e transmontanas que hoje, já reformados da França, a maioria com reformas completas, eles e as esposas também, são eles que dinamizam um pouco as velhas aldeias, pelo verão, pelos finados, Natal e Páscoa, aquelas aldeias desertificadas.

E ainda fazem um esforço enorme para entusiasmar os filhos e netos, alguns já franceses, a virem a terrinha dos pais, adquirindo apartamentos e casas junto às praias, que é mais convidativo para os jovens.

Vêm mais assiduamente os emigrantes reformados da França às suas aldeias,do que aqueles que foram à guerra e fizeram a vida em Lisboa ou Porto, como que são emigrantes também.

Foi com muito esforço que estes "franceses" fizeram a sua vida na França, não só pela língua, a maioria sem estudos, máximo a velha 4ª classe, e sujeitos, como qualquer emigrante, a trabalhos que o cidadão natural rejeita.

Salário, evidentemente o mínimo, a não ser quando adquiria alguma especialização.

Era à base de privações que conseguiram grande parte das economias para construir casa nova na aldeia, aldrabados muitas vezes por empreiteiros sem escrúpulos, fazer alguns depósitos bancários, aldrabados muitas vezes também por banqueiros e gerentes sem escrúpulos. e vivendo em condições degradadas em França para evitar pagar renda de casa.

Provavelmente todos os concelhos ao longo das fronteiras beirãs e transmontanas têm o seu monumento, pequeno ou mais vistoso com a lista por aldeias, dos seus filhos que morreram na Guerra do Ultramar.

Dalgumas aldeias talvez não tenha morrido ninguém em África, pois foi mais provável um ou outro terem morrido nas estradas de Espanha, pelas vacances, lançados em grandes carros, para matar saudades.

Estes jovens refratários, ou desertores ou que simplesmente já estavam para lá antes das inspecções, e não regressaram, fariam mesmo falta naquela guerra? Será que se notou a falta de soldados rasos?

Sim,  rasos, atendendo que a maioria dos jovens de que falo, "a salto", andaram apenas na escola primária, os que os pais dispensavam da vida do campo, nem todos souberam o que era a reguada do professor.

Lembro que, embora o pessoal saísse à socapa para a França, não iam avisar no Edital à porta da igreja ao Domingo, evidentemente, a sua partida, mas aquela clandestinidade era muito mal disfarçada, daí, até desde o regedor, o presidente da freguesia e algum da União Nacional desde o "passador",  indivíduo grandemente bem relacionado, até a algum bufo da PIDE, era tudo mais ou menos conivente.

Com mais todos esses mancebos em África, o resultado final da guerra era o mesmo que foi.

Embora este êxodo tenha ajudado à desertificação,  esta era tão inevitável que, mesmo com o fim da guerra, continuou, em quase todas as velhas aldeias daquelas regiões. São raríssimas as excepções em que a desertificação não acontece.

Mas,  se muitos os sexagenários e septuagenários reformados, não regressam definitivamente ás suas aldeias, deve-se a algumas explicações que eles dão:

  • Uma, são os filhos e netos já radicados definitivamente na França;
  • Outra explicação deles, é que em Portugal é tudo muito complicado.

Eu compreendo-os na perfeição nestas duas explicações.

E é uma pena que existam estas duas razões para eles não regressarem, principalmente a segunda. que é "estupidamente" verdadeira e real para esta gente, eu próprio senti ao fim de 5 anos no Brasil e um ou outro na Guiné.

Para tratar qualquer coisa (Registos, procurações, Câmaras, passaportes, saúde, etc.) em curto espaço das férias, só à base de "cunha", a velha corrupçãozinha. (Parece que actualmente alguma coisa terá melhorado, a anti-cunha.)

Quando se põe a questão da imigração/emigração actual no mundo, principalmente a clandestina como foi o caso desta que falo para a França, a única clandestina, costuma-se fazer comparações, e até semelhanças. Mas as semelhanças são muito ténues.

Era bom que o português não precisasse mais de emigrar, embora muitas vezes já seja por "tradição".

Antº Rosinha

_________

Nota do editor:

Último poste da série > 12 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23703: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (53): A Sebastiana Valadas (1º episódio da série da SIC, "Despojos de Guerra") e os "cantineiros do mato" em Angola

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23505: A nossa guerra em números (21): o esforço financeiro global, de 23 mil e 900 milhões de euros (em valores de 2008), dividiu-se por Angola e Moçambique (25%) e pela Metrópole (75%)

 


Vidas, ilustração digital (Luís Graça, 1999)


1. Algum dia saberemos ao certo quanto é custou a Portugal e aos portugueses (mas também aos angolanos, guineenses, moçambicanos, cabo-verdianos, são tomenses, macaenses e timorenses) a guerra do ultramar / guerra de África / guerra do Ultramar (1961/74) ? (*)

Acho que nunca o saberemos, para mais  se, aos custos diretos, acrescermos os custos indiretos e sobretudo os custos ocultos (anos de vida perdidos com as mortes de combatentes e de civis,  encargos com o tratamento e reabilitação dos feridos, stress pós-traumático de guerra, encargos financeiros dos empréstimo contraídos, quebra no investimento produtivo, danos para a imagem internacional do país, etc.)

Mas fiquemos só pelos custos diretos, os “encargos orçamentais”, com a guerra, a parte mais propriamente financeira, a que diz respeito, afinal,  ao "vil metal"... ou pelo menos por aquilo que se pode apurar da contabilidade nacional… 

Para esse efeito, vamos revisitar um artigo que já tem mais de uma dezena de anos, da autoria do tenente-general na situação de reforma Victor Manuel Mota de Mesquita (1932-2016), publicado na Revista Militar,  nº 2511, abril de 2011, pp.  O autor foi Director do Departamento de Finanças do Exército,  tendo passado também como militar pelos TO de Angola e Moçambique.

 Este artigo resultou de uma palestra proferida em 20 de fevereiro de 2009, no auditório do ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa, integrada no Ciclo de Conferências da Cooperativa Militar. Está disponível no sítio da Revista Militar, em formato digital, sem numeração de página.

E o autor começa por dizer-nos aquilo que  no fundo é um segredo de Polichinelo, mas vai contra o mito, alimentado no Estado Novo, sobre as "contas limpinhas", a sacrossanta regra do equilíbrio orçamental, segundo a qual só se podia gastar o que se tinha: 

“ (…) Também não foi fácil a vida das Forças Armadas sob o ponto de vista financeiro, onde a coluna do débito foi sempre superior à do crédito e só artifícios de toda a ordem permitiram conduzir uma pesada cruz por caminhos cheios de dificuldades.”

Por outro lado, “no início da guerra em Angola, em 1961, as finanças militares encontravam-se estruturadas para a paz e, portanto, dispunham apenas dos meios indispensáveis à sua gestão normal.” (...)


2. Há ideias falsas sobre quem pagou a guerra… Ainda hoje há quem pense que Angola era tão rica que a sua riqueza chegava para pagar a guerra durante muitos e muitos anos. Claro que Angola também contribuiu para o esforço de gerra, tal como Moçambique, a Guiné e os demais territórios então sob admimistração portuguesa (e hoje países independentes, com exceção de Macau, que voltou à soberania da Cahina, tendo desde 1999 o estatuto de Região Administrativa Especial da República Popular da China). 

Por exemplo, o nosso querido amigo e camarada António Rosinha, o último dos africanistas, comentou, no poste P23462(*):

(…) “Uma guerra tão longa e desgastante ? Não era tão desgastante (economicamente) assim, Luís Graça.

No grande território de Angola seria saturante e entediante para os 24 meses de arame farpado dos praças e milicianos, mas não o desgaste (económico), porque este era compensado com as riquezas naturais que dali saíam: petróleo, diamantes e agriculturas diversas e pecuária e pescas.

“Notícia de última hora: foi encontrada um pedra na região do rio Lukapa uma pedra considerado o maior diamante bruto no mundo nestes últimos 300 anos. (Jornais, atenção que os angolanos têm a mania das grandezas.)

“Só essa região que era na Luanda, distrito do tamanho geográfico de 3 ou 4 Guinés, laborava-se sem proteção militar direta durante os treze anos de guerra.

“Estamos a falar da zona da Diamang. A Guiné era a Guiné, e Março de 61 Norte de Angola, foi o que foi e os dois últimos anos do norte de Moçambique foi o que foi.

“No meio disso tudo, falta contar ‘muito deixa andar’ em muitos Cus de Judas que iam desde a ilha de Luanda até às coutadas da Gorongoza.” (27 de julho de 2022 às 13:35).

3. Seria ocioso falarmos aqui, em detalhe, sobre os complexos mecanismos da gestão financeira da guerra. Mas há coisas que convirá sabermos, como esta,  mais que evidente: aquela guerra apanhou-nos de calças na mão, não foi planeada, programada, preparada (sob todos os pontos de vista).

(...) “Até ao ano de 1960 as forças militares em serviço no Ultramar, mais propriamente, as forças privativas de cada Província eram sustentadas pelos orçamentos das respectivas Províncias e as forças extraordinárias, ou de reforço, pelos orçamentos gerais da Metrópole, Orçamento Geral do Estado (OGE) como então se designava" (...)

A partir de 1960, a gestão financeira das forças privativas passou a ser da responsabilidade da Metrópole, através do Departamento da Defesa Nacional. Todavia, a gestão financeira das forças extraordinárias (que vão reforçar a tropa dos territórios ultramarinos), continua a ser   gerida pelo departamento de cada um dos três ramos, os quais são verdadeiros feudos, pensando e agindo como verdadeiras grandes corporações em copetição umas com as outras por recursos escassos…

Na prática, o Departamento da Defesa Nacional era “um ministro sem ministério”, dispondo, como “staff”, de um Secretariado Geral, criado para “coordenar” os três Ramos das Forças Armadas (Exército, Força Aérea e Marinha).

Esta descentralização financeira funcionou praticamemte durante toda a guerra, acabando por originar crescente endividamento das Forças Armadas, incapacidade para responder com prontidão às necessidades sobretudo logísticas, engenharias financeiras de toda a ordem, recurso a empréstimos bancários (Caixa Geral de Depósitos e outras fontes), criação de novos impostos, como o Imposto de Transações (na Metrópole), e, não menos grave, ao crescente protagonismo do Ministério das Finanças… Ou, por outras palavras, também na guerra o "economicismo" terá condicionado o desempenho operacional, e a mordernizaçao das Forças Armadas (e nomeadamente da FAP) não se pôde fazer "just in time"...

(...) “Só quem passou pelos problemas pode dar valor à luta travada com o Ministério das Finanças, que tudo subordinava à obediência a um sistema financeiro fiel à regra do equilíbrio orçamental, como se o País estivesse em tempo de paz.” (...) 

Como consequência, chegámos a ter uma situação financeira "de tal modo grave que as Unidades seguiam para o Ultramar com as suas dotações orgânicas reduzidas a 25%, e as que se encontravam em operações tinham, em muitos casos, dotações inferiores a 50%.” (...).

Só para dar mais um exemplo:

(...) "No ano de 1966, nas receitas do Orçamento Metropolitano, 36,03 % eram absorvidos pela guerra, enquanto em Angola representavam 11,07 % e em Moçambique 12,07 %.

(...) "Cabe aqui referir que neste ano de 1966 o Chefe do Governo [ António de Oliveira Salazar] desconhecia o custo das operações de guerra, nem tão pouco conhecia as dificuldades financeiras existentes.

"Até então os responsáveis pelo Departamento da Defesa não lhe davam conhecimento da situação, atitude para a qual não se encontrou explicação que não fosse esconder a realidade que se vivia". (...)

Mas fiquemos, por agora,  com  o resumo das contabilidade da guerra, segundo o autor acima citado (Mesquita, 2011):

  • Nos treze anos de guerra, Angola contribuiu com 12 milhões e 300 mil contos, o que corresponde, em valores actuais (2008, tendo o artigo sido escrito em 2009), a cerca de 3 mil e 300 milhões e 300 mil euros;
  •  e Moçambique com 10 milhões e 200 mil contos,  correspondendo, em valores actuais, a cerca de 2 mil 700 milhões e 600 mil euros;

(...) Podemos, pois, dizer que a valores actuais
[ 2008], o esforço financeiro das duas Províncias foi cerca de 6 mil milhões de euros (...), a que se juntarmos o que a Metrópole despendeu no montante de cerca de 17 mil e 900 milhões de euros (...), totaliza cerca de 23 mil e 900 milhões de euros (...) de encargos financeiros com a guerra no Ultramar. (***)

A estes valores haverá que acrescentar as despesas efectuadas em 1974 e 1975 com a saída das Forças Armadas dos três teatros de guerra, despesas estas que não me foi possível obter. (...)

Grosso modo, a contribuição ultramarina para o esforço financeiro de guerra foi de 25%, cabendo à Metrópole a fatia maior do bolo: 75%.

(Negritos: LG)

(Continua)
_________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 1 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23481: A nossa guerra em números (20): Meios e operações da FAP - Parte II: Armamento das aeronaves: o papel da OGMA e outras empresas portuguesas


(...) A estimativas das despesas para o caso da Guerra Colonial é de cerca de 21,8 mil milhões de euros, ou seja, 10,8% do PIB atual (2018). Este valor representa um custo médio anual de aproximadamente 1,6 mil milhões de euros. (...)

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23481: A nossa guerra em números (20): Meios e operações da FAP - Parte II: Armamento das aeronaves: o papel da OGMA e outras empresas portuguesas


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > c. 1972/74 > A avioneta Dornier  DO-27 que o ex-ten pilav António Martins de Matos (BA 12, Bissalanca, 1972/74) (nome de guerra, "Batata") também pilotou muitas vezes, sobretudo no primeiro ano da comissão. 
A Alemanha forneceu à FAP  147 avionetas Dornier DO-27, ao abrigo do acordo da Base Aérea de Beja. Algumas eram novas, outras usadas, todas as revisões foram feitas na OGMA. 

Foto (e legenda): © António Martins de Matos (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Devido ao boicote internacional (e às pressões políticas dos nossos aliados da NATO, a par das proibições dos EUA no que dizia respeito ao uso de certas aeronaves como, por exemplo, o F-86, cedidos no âmbito do Programa de Assistência Militar), não foi fácil garantir o armamento e as munições necessárias aos helicópteros e aviões da FAP durante a guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial. 

A nossa indústria de guerra  teve de encontrar "soluções criativas" (sic), tendo chegado a usar "munições de artilharia do exército, para fabricar bombas para os aviões" (Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 229).

Segundo esta fonte, uma das bombas mais usadas terá sido a bomba de fragmentação FR M/62, de 20 kg., adaptada da granada da peça de artilharia 11,4 cm, britânica.

"Na fábrica de Barcarena, foram retiradas as cargas explosivas dessas granadas de artilharia para serem adaptadas na empresa Precix e serem novamente  carregadas em Barcarena" (ibidem, pág. 229). 

O mesmo terá acontecido, mas com outras empresas ligadas à indústria da defesa,  com as bombas FG M761, de 50 kg, FR M/64, de 200 kg, e ainda as bombas incendiárias IN M/65, de 100 litros. A Precix, uma empresa metalúrgica,  especializou-se também no fabrico de espoletas.


2. No que diz respeito ao armamento, usado pela FAP, é de destacar o canhão  MG-151, de 20 mm,  que equipava os AL III (helicanhão ou "Lobo Mau").  

Foram também utilizadas metralhadoras Browning, de calibre 7,7 mm e 12,7 mm, bombas gerais e de fragmentação de 500 libras e de 750 libras, e de 15, 50 ou 200 kg; foguetes FFAR 2,75, SNEB 37 mm, etc.. Tratava-se de adaptações da indústria nacional. 

As munições de 20 cm para o helicanhão eram as únicas que se adquiriam, diretamente aos fabricantes estrangeiros, usando os circuitos normais do mercado.

A OGMA (Oficinas Gerais de Material Aeronáutico), com instalações em Alverca, fez milagres nesta época. 

Foi a OGMA que fez "as grandes adaptações nacionais para a guerra em África" (Ibidem, pág. 231):  podiam-se citar, a título meramente exemplificativo:

  • os aviões Harpoon (P2V5 Neptune), aviões de luta antissubmarina, transformados logo em 1961 em  bombardeiros adaptados às condições dos trópicos; 
  • os T-6 G Texan (um avião monomotor, originalmemte de treino e instrução), provenientes de várias origens (EUA, França, RFA, África do Sul); 
  • os sete aviões B-26 Invader, comprados clandestinamente e usados em Angola e na Guiné;
  • os 147 aviões ligeiros Auster fabricados sob autorização da empresa inglesa, e dos quais 60 foram  atribuídos à FAP e enviados para o ultramar.

A Alemanha também forneceu 147 avionetas Dornier DO-27, "ao abrigo do acordo da Base Aérea de Beja". Algumas eram novas, outras usadas, todas as revisões foram feitas na OGMA. 

Estas avionetas tiveram um papel fundamental durante a guerra de África, devido à sua flexibilidade e capacidade para operar em pistas de mato,  improvisadas.  Tiveram papel fundamental em missões como o transporte de correio, frescos epassageiros, a  evacução de feridos, a observação e ligação, etc.).

Os aviões de transporte mais usados foram o C-47 Dakota e o Nordatlas, também de diferentes origens e fornecedores. 

Já os helicópteros (AL II, AL III e SA-330 Puma) eram todos de origem francesa. Entre 1963 e 1975, a FAP adquiriu 142 Alouettes III e,  entre 1969 e 1971,  13 Pumas. (Ibidem, pág. 232).

Nem a Fábrica da Pólvora da Barcarena, nem a Fábrica Braço de Prata nem a empresa metalúrgica Precix existem hoje... Resta a OGMA, ciada em 1918, e agora integrada no grupo brasileiro Embraer.

Ainda quanto a armamento, refira-se ainda o de mais três, a par do heli AL III,  das aeronaves que conhecemos bem no TO da Guiné:

  • T-6 Harvard2 + 2 metradlhadoras Btrowning 7,7 mm | foguetes 37 mm e 68 mm | lança-granada m/64 | bombas de 15 kg,, 50 kg e inendiárias de 80 kg / 100 l e 300 kg / 350 l;
  •  Fiat G-91: metradlhadoras Btrowning 12,7 mm | foguetes 75'' | bombas de 50 kg, FR 200 kg, 250 lbs, 500 lbs e 750 lbs;
  • Dornier DO 27: foguetes 37 mm | foguetes fumígenos 70 mm / 27 | Fitting L19 (Ibidem, pp. 232/233)

3. Resumem-se aqui, por anos, algumas das principais aquisições de aeronaves pela FAP, entre 1960 e 1974 (entre parênteses, a quantidade) 

  • 1960 - Nordatlas (8);
  • 1961 - T-6 G Texan (56) (+ 130,  mais tarde) | Dakota (8) (+15, mais tarde) | Nordatlas (6)| Auster (ligeiro) (99) | Dornier DO 27 (133) ( + 14,  mais tarde) | Douglas D-6 (transporte) (10) (...);
  • 1962 - Nordatlas (3);
  • 1963 - Helicópteros AL III (142)  entre 1963 e 1975) | Cessna T-37 (instrução) (30);
  • 1965 - T-6 (74) | B-26 Invader (7) | Nordatlas (14) (entre 1965 e 1970);
  • 1966 - Fiat G-91 (caça) (40) | Douglas B-26 (bombardeiro) (7);
  • 1969/71 - Helicóptero SA-330 Puma (13);
  • 1970 - T-6 (69);
  • 1971 - Boeing 707 - 3F5C (transporte, TAM) (2). 

Fonte: Ibidem, pág. 233.

Esperemos que os camaradas da FAP possam acrescentar algo mais sobre esta matéria (ou corrigir o que está escrito, se for caso disso).

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23462: A nossa guerra em números (19): Meios e operações da FAP - Parte I: número e tipo de aeronaves: helicópteros, aviões de combate, de transporte e outros

terça-feira, 26 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23462: A nossa guerra em números (19): Meios e operações da FAP - Parte I: número e tipo de aeronaves: helicópteros, aviões de combate, de transporte e outros



Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

1. Parece haver menos informação sobre a Força Aérea  (bem como sobre a Marinha) do que sobre o Exército, relativamente à sua atividade operacional e os meios utilizados na guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial. 

Lá teremos de voltar a utilizar a informação recolhida e tratada pelo Pedro Marquês de Sousa, Tenente Coronel, do Exército, na reserva, doutorado em história pela FCSH / Universidade NOVA de Lisboa (2014), autor do livro "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 381 pp.). É uma fonte valiosa, desculpando-se os inevitáveis pequenos erros, lapsos e gralhas que acontecem em trabalhos desta natureza.

Tem este autor cerca de 30 páginas sobre os meios e operações da Força Aérea (pp. 225-258). Interessa-nos apenas a parte relativa à Guiné, como é óbvio. Com a devida vénia, vamos repescar então alguns números sobre esta matéria.

Nos quadro I e II, acima inseridos, e por nós construídos, faz-se um resumo da quantidade e tipo de  aeronaves que operaram na Guiné, comparando-as com o total dos três teatros de operações: 

(i) helicópteros e aviões de ataque (Quadro I):

(ii) aviões de transporte e outros (incluindo de observação e liação como a Dornier DO-27)(Quadro II).


2. No TO da Guiné (bem como nos restantes territórios em guerra), pode-se dizer que sempre houve "escassez de meios aéreos", a começar por helicópteros e aviões de combate. Numa guerra de contraguerrilha (ou "antissubversiva"), o helicóptero era, como todos sabemos, um meio fundamental, em missões não só de transporte (tropas especiais, em especial Paraquedistas e Comandos) e evacuação de feridos como de ataque  (com o helicanhão) e reconhecimento. 

Diz o autor (pág. 243): "Inicialmente, em 1963, a Força Aérea tinha na base de Bissalanca (Bissau)  apenas oito F-86, oito T-6, oito Auster, três DC-3, um Broussard e um P2-V5. Posteriormente recebeu de Angola os pequenos helicópteros  Alouette II (apenas para evacuações)  em 1965, aumentou o seu potencial com a chegada dos Alouette III e, em 1966, com os aviões Fiat, que substituiram os F-86".

Isto quer dizer que houve uma "redução da eficácia da Força Aérea em 1964  e 1965", com retirada dos F-86, por pressão política dos EUA (por serem aeronaves a utilizar exclusivamente no âmbito da NATO), e enquanto não chegaram, em 1966, os Fiat G-91 adquiridos à Alemanha.

De que qualquer modo, a Guiné tinha um quinto dos heli  AL III, nunca teve helis SA-330 Puma (chegados tardiamente a Angola e Moçambique, em 1970), com maior capacidade e autonomia que os AL III. Em contrapartida, só havia Fiat G-91 (n=28) na Guiné (n=12) e em Moçambique (n=16). 

Também estava, a Guiné,  mal servida de aviões de transporte, com destaque para o Noratlas (13%) e o  C-47 Dakota (18%). Proporcionamente estaria melhor em matéria de avionetas Dornier D0-27 que de um total de 100 se distribuíam do seguinte modo, pelos 3 teatros de operações: Angola (41), Guiné (24) e Moçambique (35). 

Também pensavámos  que a Guiné  tinha mais caças-bomardeiros T-6: apenas 9, num total de 80 (com 26 em Angola, e 46 em Moçambique).

Mas os camaradas da FAP terão por certo algo mais para nos dizer e escalarecer, em comentários que serão bem vindos.

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23450: A nossa guerra em números (18): o consumo de munições e granadas pelo exército

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23450: A nossa guerra em números (18): o consumo de munições e granadas pelo exército

A granada defensiva M26A1
m/63 (
Luís Dias, 2010) (**)
 

1. Quantos milhares de toneladas de munições,  granadas, minas, bombas e outros engenhos mortíferos consumiu a guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial (1961/74) ? (*)

Ninguém saberá responder a essa pergunta, nem do nosso lado nem muito menos do lado do IN de outrora...  

Quando muito,  há dados  parciais das NT, para alguns anos e teatros de operações (nomeadamente, Moçambique, 1970, 1971 e 1972), no que respeita ao número e tipo de munições e granadas consumidas por (e/ou fornecidas a) o exército.

Lá teremos que recorrer, mais uma vez, a um estudioso como o ten cor na reserva, Pedro Marquês de Sousa, doutorado em história pela FCSH / Universidade NOVA de Lisboa (2014), autor do livro "Os números da Guerra de África"(Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 381 pp.).  Escreve o Pedro Marquês de Sousa (op. cit., pág. 300): 

" O fornecimento de munições às tropas era um dos grandes desafios para a logística militar, pelo elevado peso e volume deste tipo de cargas, cujo transporte exigia ainda medidas especiais de segurança." 

Sabe-se, por outro lado, que "os depósitos de armazenamento em cada uma das frentes tinham de manter os níveis adequados em face do consumo elevado (sic) pelas unidades de combate".  Só em Moçambique, por exemplo, existiam oito complexos logísticos (Lourenço Marques, Beira, Tete.Vila Cabral, Mocuba, Nampula, Porto Amélia e Mueda), cada um deles devendo ter um "stock" crítico de material de guerra (munições, granadas e minas) (Op cit., pág. 302).

Ignora-se, por exemplo, quantos complexos logísticos deste tipo (ou depósitos de munições) existiam no TO da Guiné e onde estavam localizados... Pelo menos, deveria haver um ou mais em Bissau...

2. Ficamos com uma ideia aproximada dos consumos médios de munições e granadas, também por via dos  fornecimentos. 

Veja-se, por exemplo, para o caso de Moçambique, e para o ano de 1972, um resumo das quantidades das principais munições e granadas fornecidas, em milhares de unidades (por arredondamento por excesso ou defeito) (Adaptado por nós, op cit, pág.301):
  • Munições 7,62 mm > 2152,3
  • Granadas de mão defensivas > 4,2 
  • Granadas de mão ofensivas > 41,8
  • Granadas de morteiro 60 mm > 6,3
  • Granada de morteiro 81 mm > 5,7
  • Minas A/P (antipessoais) > 43,2 
No entanto, o consumo em operações era muito superior a estas quantidades (Vd. Quadro 1)_




Com base nestes números (Moçambique, em 1970 e 1971), o autor faz (indevidamente, quanto a nós, já que a média estatística pode ser altamente enganadora) uma estimativa do consumo médio anual de munições e granadas de uma "companhia operacional do Exército" (tipo "companhia de caçadores") (Op cit., pág. 302):

  • Munições 7,62 mm > 34000
  • Granadas de mão > 260
  • Granadas de morteiro > 200
  • Granadas foguete bazuca 8,9 > 30
Embora o autor ressalve que estes "valores médios" (sic)  "variavam naturalmente conforme a zona e a (...)  condição"  da unidade ou subunidade operacional  (companhia de intervenção, companhia de quadrícula, etc.), achamos que são valores que tanto podem pecar  por excesso como por defeito...  Não nos parece, todavia,  que se possam extrapolar, facilmente  para um teatro de operações na Guiné, com as suas especificidades... 


3. O consumo de munições podia variar conforme o tipo de acção  do IN e a sua duração, o treino, a disciplina de fogo das NT,  o armamento, a missão, etc.

Por exemplo, numa emboscada de vinte minutos, no mato, numa picada ou numa estrada, uma companhia ou destacamento (em geral, três grupos de combate), 60/70 (e nunca 90) G3 podiam despejar no máximo 4 carregadores de 20 cartuchos cada uma, o que daria uma média de 4800/5600 cartuchos...  

Depois havia, por cada grupo de combate (estou a pensar numa companhia de intervenção como a minha, a "africana" CCAÇ 12),  mais as seguintes armas com os respetivos apontadores e municiadores (estes também equipados, em geral, com a G3, enquanto o apontador levava uma pistola Walther 9mm):

  • 3 apontadores de dilagrama (um por secção de 9 ou 10 elementos);
  • 1 apontador + 1 municiadores de metr lig HK 21 (de fita);
  • 1 apontador + 1  municiador de LGFog 8,9;
  • 1 apontador + 1 municiador de LGFog 3,7;
  • 1 apontador + 1 municiador de morteiro 60...

Em resumo, três Grupos de Combate (mesmo completos) nunca queriam dizer 80 ou 90 espingardas automáticas G3, uma arma poderosa e fiável, melhor que a AK47, na opinião do antigo sargento 'comando', com 4 comissões, na Guiné e em Angola, o nosso querido amigo e camarada, Mário Dias (***), e que tinha com uma cadência  (teórica) de 600/650 tiros por minuto (****).

Por sua vesz, e desde que não encravasse, a HK 21 (melhor só a MG42, mas muito mais pesada, c. 12 kg.) podia despejar  centenas de munições 7,62 mm na resposta a uma emboscada... Mas em geral a malta tinha que saber  gerir as munições, para poder chegar ao quartel com segurança...

Já na resposta aos ataques ao quartel, destacamento ou tabanca em autodefesa, de uma hora, cada G3 podia facilmente consumir 8 ou mais carregadores, de 20 munições cada... Milícias e civis em autodefesa tinham muito menos disciplina de fogo do que os miliatres... 

Por outro lado, nas flagelações à distância (com morteiro 82 e 120, canhão s/r,  foguetões 122 mm), era disparatado fazer tiro com a G3 (cujo alcance prático era de 300 metros)... Mas a verdade é que não havia cão nem gato (sem ofensa para nenhum camarada...)  que não aproveitasse para fazer o gosto ao dedo, entrincheirado nos abrigos ou valas...

No mato, nos golpes de mão ou ataques das NT a objetivos IN (acampamentos, bases, etc.), a história era outra, e a disciplina de fogo era fundamental.

E depois havia a instrução e o treino na carreira de tiro... Não me lembro de alguma vez ter sido feito tiro na carreira de tiro de Bambadinca, depois de nós termos vindo do Centro de Instrução Militar de Contuboel em 18 de julho de 1969... Nem me lembro, no meu tempo,  de haver restrições ao consumo de munições 7,62 mm... Tal como não me lembro quantas munições 7.62 mm levava (e quanto pesava) o respetivo cunhete de madeira... Pode ser que algum dos nossos quarteleiros se lembre... (e tenha fotos que nos possa facultar).

Pedro Marquês de Sousa cita, nas páginas 302/303 do seu livro, a Op Nó Górdio, que decorreu no Norte de Moçambique,  de 1 de julho e 6 de agosto de 1970, que terá envolvido mais de 8 mil militares, e uma complexa logística. Aponta para os seguintes consumos nessa operação:
  • Géneros alimentícios >  590 toneladas;
  • Rações de combate > 260 toneladas / 130 mil rações;
  • Gasolina > 340 mil litros;
  • Gasóleo > 460 mil litros;
  • Munições > 158 toneladas.

4. Sabe-se que uma companhia (160 homens, em média) precisava de cerca de 880 toneladas de abastecimentos ao fim de uma comissão de 22 meses (40 em média por mês), incluindo 15,4 toneladas de munições (0,7 t por mês), o que em termos relativos representava apenas 1,75% do total (*****).


 Enfim, ainda falando de consumos de munições, granadas, minas, etc., não temos números relativamente à artilharia no CTIG (no final da guerra, havia mais de uma centena de obuses 10,5e 14  e peças de artilharia 11,4, espelhados pelo território), nem relativamente à FAP e à Marinha...  

Pode ser que alguma camarada destas armas satisfaça a nossa curiosidade (que é meramente intelectual, ao fim destes anos todos)...

Falaremos, entretanto,  de alguns consumos parcelares  da FAP (bombas, cartuchos, foguetes, napalm...) num próximo poste desta série.

__________



(...) É muito vulgar e frequente tecerem-se comentários depreciativos à espingarda G3, quando comparada à AK47. Em minha opinião, nada mais errado. Analisemos, à luz das características de cada uma e da sua utilização prática, os prós e contras verificados durante a guerra em que estivemos empenhados em África:

Comprimento: G3 - 1020mm |  AK47 - 870mm;

Peso com o carregador municiado: G3 - 5,010Kg |  AK 47 – 4,8Kg;

Capacidade dos carregadores: G3 – 20 cartuchos | AK47 – 30 cartuchos;

Alcance máximo: G3 – 4.000m |  AK47 – 1.000m;

Alcance eficaz (distância em que pode pôr um homem fora de combate se for atingido):
G3 – 1.700m |  AK47 – 600m;

Alcance prático: G3 – 400m |  AK 47 – 400m

(...) Se, por um lado, temos mais tiros para dar sem mudar o carregador, por outro lado esse mesmo facto leva-nos facilmente, por uma questão psicológica, a desperdiçar munições. E todos sabemos como o desperdício de munições era vulgar da nossa parte apesar de os carregadores da G3 serem de 20 cartuchos.

O usual era, infelizmente, “despejar à balda” sem saber para onde nem contra que alvo. Sem pretender criticar a maneira de actuar de cada um perante situações concretas, eu, durante todas as acções de combate em que participei ao longo de 4 comissões, o máximo que gastei foi um carregador e meio (cerca de 30 cartuchos). Por tal facto, em minha opinião, a dotação e capacidade dos carregadores da G3 é mais que suficiente, além de que os próprios carregadores são mais maneirinhos e fáceis de transportar que os compridos e curvos carregadores da AK47. (...)

(****) Vd. poste de 23 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5690: Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras (Luís Dias)

(*****) Vd. poste de 11 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22707: A nossa guerra em números (4): Cada militar necessitava em média, por mês, de 240 kg de abastecimentos (no essencial, víveres e artigos de cantina, mais de 70%)... O consumo "per capita" mensal de outros artigos era o seguinte: 50 kg de combustíveis; 4,4 kg de munições; 3,1 kg de medicamentos; 1,6 kg de correio... E, miséria das misérias, tínhamos direito a... 520 gramas de víveres frescos por dia!

sábado, 2 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23403: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (7): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte VI: o ataque a Gadamael Porto: de 31 de maio a 11 de junho, o IN disparou cerca de 1500 granadas de canhão s/r e morteiro 120



Guiné > Região de Tombali > Gadamael > De 31 de maio a 11 de junho de 1973, em cerca de 6 dezenas de flagelações, caíram em Gadamael Porto 1468 granadas de canhão s/r e de morteiro 120. Fonte: CECA (2015), p. 333



Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 >  O alf mil Carlos Milheirão (*), depois,  no obus 14, e por detrás, assinalados por seta e  legenda, o depósito de géneros e a enfermaria


Foto nº 2  > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
Em primeiro plano, o autor das fotos, o alf mil Carlos Milheirão, que esteve em Gadamael entre fevereiro e julho de 1974.


Foto nº 3  > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
Legendas, em primeiro plano, o Carlos Milheirão... À volta, da direita para a esquerda (i) portadas da messe; (ii) depósito de géneros e enfermaria; (iii) canhão sem recuo; e (iv) geradores elétricos (?).


Foto nº  4 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
O Carlos Milheirão no espalddão do obus 14. Legendas: da esquerda para a direita: (i) aqui provavelmente estava uma das metralhadoras; (ii) obus 14; (iii) algures por aqui havia um canhão sem recuo; e (iv) depósito de géneros e enfermaria.
 

Foto nº  5 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 >
 Crianças... Legendas: (i) direção da bolanha /cais; (ii) depósito de géneros e enfermaria; e (iii) enfermaria / abrigo.


Foto nº  6 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
Aspeto geral do aquartelamento... Legendas, da esquerda para a  direita: (i) abrigo; (ii) bandeira; (iii) padaria (?); (iv) cozinha e messe de sargentos; (v) messe e bar de oficiais; (vi) estas telhas certamente "voaram" com um disparo de obus para a mata do Cantanhez (Jemberém); e (v) espaldão de obus 14 


Foto nº  6A> Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > Foto anterior, mais detalhada.


Foto nº  7> Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
Legendas: (i) abrigo; (ii) geradores elétricos (?); e (iii) bandeira (quando se içava ou arriava, os cães vinham para ali e uivavam ao toque do clarim)


Foto nº  8 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1974 > CCAÇ 4152/73  (Gadamael e Cufar, 1974 > 
Da esquerda para a direita: (i) bolanha; (ii)  algures por aqui havia um canhão sem recuo; (iii) obus 14; (iv) depósito de géneros e enfermaria; (v) bolanha/cais; e (vi) tabanca.

Fotos (elegenda): © Carlos Milheirão (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação da esta nova série "Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra?" (**).

Trata-se de excertos da CECA (2015) sobre estes acontecimentos de maio/junho de 1973. Recordamos Guidaje, Guileje e Gadamael, os famosos 3 G, "a batalha (ou as batalhas) dos 3 G", na véspera da efeméride dos seus 50 anos (que será em 2023).  

Felizmente que ainda temos muitos camaradas vivos, que podem falar "de cátedra" sobre os 3 G, Guidaje, Guileje e Gadamael... Outros, entretanto, já não estão cá, que "da lei da morte já se foram libertando"... Do lado do PAIGC, por seu turno, é cada vez mais difícil poder-se contar com testemunhos, orais ou escritos, sobre os acontecimentos de então.



CAPÍTULO III > ANO DE 1973 > 2. Nossas Tropas


2. 1. Ataque lN no Sul a Guileje e a Gadamael Porto

2.1.2. Ataque lN a Gadamael Porto


Após a retirada da guarnição de Guileje (22Mai73), a guarnição de Gadamael 
Porto tinha a seguinte constituição:

CCaç 4743/72, 
2 GComb/CCaç3520, 
Pel Canh s/r 3080 (5 armas) 
e Pel Mil 235. 

Vindas de Guileje: 

CCav 8350/72, 
15° Pel Art (14 cm) a 3 bocas de fogo, Pel Rec Fox 3115, apenas com 1 VBTP White 
e 1Sec (+)/Pel Mil 236 (o restante pessoal estava ausente ou havia sido baixa em combate).

O Cmdt do CAOP 1, Cor Para Rafael Ferreira Durão, esteve no aquartelamento de 22 a 31Mai73.

O Capitão Inf 'Cmd' Manuel Ferreira da Silva assumiu o Comando do COP 5 em 31 de Maio de 1973.

"[ ... ] No dia 29, no Comando-Chefe das FAG, foi-me comunicado que no dia seguinte seguiria para Gadamael Porto, para comandar o Comando Operacional n" 5, substituindo o Major Coutinho e Lima, entretanto preso em Bissau. No dia 30, segui de helicóptero para Cacine, e em 31 de barco "sintex", para Gadamael Porto onde cheguei cerca das 11h00n depois de 2 horas de viagem [... ]

Após a partida do coronel Rafael Durão, nesse mesmo dia, reuni com os dois Comandantes de Companhia, Cap Mil Inf Manuel Maia Rodrigues (CCaç 4743/72) e Cap Mil Art Abel Quelhas Quintas (CCav 8350/72), para me inteirar da situação. Após o almoço, quando iniciávamos uma visita ao aquartelamento, começaram as flagelações contínuas, com artilharia, morteiros, canhão sem recuo e mísseis. No início os impactos verificavam-se fora das instalações, mas gradualmente foram-se aproximando, e no final do dia já caiam dentro do aquartelamento.

O aquartelamento de Gadamael Porto, onde se encontravam as instalações militares tinha uma área de cerca de um hectare, com uma avenida central em terra batida que do cais, onde na maré cheia acostavam os pequenos barcos, passava junto à enfermaria, comando, depósito de géneros, arrecadação de material de guerra, posto de rádio, etc. e seguia para a pista de aviação. Os alojamentos estavam dispersos, e alguns junto ao arame farpado, que protegia a parte por onde o ln podia atacar. Do lado oposto existia a tabanca
da população com cerca de 500 habitantes. [... ]

Gadamael Porto face à sua localização, normalmente não era atacado, pelo que os abrigos existentes eram reduzidos, e as valas à volta do aquartelamentonnão ofereciam qualquer protecção às granadas do lN. 

Além disso, para além dos militares a população de Guileje, procurou ocupar os poucos lugares com alguma protecção, o que mais complicou a situação. O aquartelamento de Gadamael Porto, era um local com pequenas instalações dispersas, com fraca consistência construídos apenas com adobes feitos no local que, como se constatou durante as flagelações, se desmoronavam quando as granadas de morteiro e artilharia aí rebentavam. O PAIGC utilizou durante os ataques granadas explosivas, incendiárias e perfurantes.

Ao amanhecer do dia 1 de Junho, o 2°dia da minha permanência, iniciou--se aquele que seria o dia mais crítico de toda a batalha de Gadamael Porto,mcom as flagelações quase permanentes particularmente de artilharia e morteiros 120 mm. Num espaço de tempo de 3 minutos chegaram a cair 18 granadas 
dentro do Quartel. 

O Relatório final da CCaç 4743/72 fala em 700 granadas no final do dia, mas penso que o número foi superior, a 1000. O que mais impressionava nem eram as explosões, mas sim o silvo arrepiante das granadas quando passavam por cima de nós.

Para responder ao fogo do PAIGC tínhamos a nossa artilharia e o morteiro 81 mm, que iam fazendo fogo com a rapidez possível. Poucos dias antes os obuses de 10.5 cm tinham sido substituídos pelos de 14 cm, mas os espaldões de protecção não estavam ainda adaptados. 

Cerca das 10h00 explodiu uma granada do lN na cobertura de zinco do Pelotão, causando 3 mortos e 11 feridos, o que o tomou inoperacional. Ainda se pôs um obus a funcionar com o apoio de voluntários e o pessoal que restou do Pelotão de Artilharia, mas ao fim de vários disparos ficou inoperacional. 

Claro que até esta altura os soldados nas valas e torreões de vigilância não faziam fogo, pois não se via qualquer inimigo. Os disparos que mandei efectuar, foi quando à tarde me apercebi que alguém estava a regular o tiro e então fez-se fogo de metralhadora para a encosta do outro lado do rio, onde era possível ver o aquartelamento.

A única arma pesada ainda disponível era o morteiro 81 mm, que embora não tivesse alcance para atingir as posições inimigas, continuava a marcar a nossa presença e que podia atingir as tropas do PAIGC, que encontravam nas imediações, como se provou mais tarde . [... ]

No dia 1 de Junho de 1973 houve 8 mortos e 28 feridos, que foram evacuados para Cacine que distava mais de 20 km, e os barcos levavam 2 horas no trajecto. Apesar da situação difícil nunca faltaram militares, para levar os feridos e os mortos para a enfermaria.

Ao princípio da tarde explodiu uma granada no posto de rádio, que ficou bastante danificado. Nesse abrigo encontravam-se os dois comandantes de Companhia, que ficaram feridos, e outros oficiais. Os dois capitães foram evacuados para Cacine, debaixo das granadas que continuavam a cair, e ficamos sem ligação rádio para qualquer aquartelamento. 

Lembro a noção da responsabilidade do operador cripto, que me veio perguntar se devia destruir os códigos secretos, ao que respondi que não. Passado algum tempo consegui
descobrir um rádio portátil TR-28, que estava intacto e a funcionar, o que me permitiu ser ouvido pela Unidade sedeada em Cufar, a quem pedi para comunicarem para Bissau a situação. Foi esta minha comunicação verbal que informou Bissau que Gadamael Porto embora com uma situação muito difícil estava ocupado, pois a Companhia de Cacine cerca das 12h00 informara Bissau que Gadamael Porto fora destruído e o pessoal tinha fugido para o mato, possivelmente devido aos rebentamentos contínuos que se ouviram em Cacine,
e conversas com os primeiros feridos, que aí chegaram cerca dessa hora vindos de Gadamael Porto. Se não fosse a comunicação rádio a informar a nossa ocupação de Gadamael Porto, poderia criar-se uma situação mais complicada e de difícil solução.

Após a evacuação dos capitães fiquei sem qualquer elemento de ligação às Companhias, em virtude de ter chegado na véspera e não conhecer os subalternos, que estavam dispersos pelo aquartelamento. Entretanto com as flagelações constantes, muitos dos soldados particularmente da Companhia de Guileje em virtude de as valas não oferecerem protecção, deslocaram-se ao longo delas até à tabanca da população, e ao tarrafo (zona alagadiça), que
não estavam a ser bombardeados. 

Não me apercebi dessas movimentações, hipotecado, como estava, com os problemas dos feridos, transmissões e reacção ao fogo ln para resolver. Durante a noite alguns nregressaram ao aquartelamento mas na manhã do dia 2 outros militares tiveram conhecimento de um navio patrulha da Marinha o NRP ORION sob o comando do Comandante Pedro Lauret e 2 LDM (Lanchas de Desembarque Médio) que estavam no rio
Cacine a cerca de 1 km. 

Com o apoio de botes de fuzileiros dirigiram-se para aí tendo sido recolhidos pela Marinha cerca de 200 militares e centenas de elementos da população. Foram levados para Cacine, tendo regressado passados dias a Gadamael Porto. É verdade que se os soldados se mantivessem nas valas, o número de baixas teria sido superior. Também é verdade que o navio patrulha, não enviou nenhum emissário ao aquartelamento a perguntar do que
precisávamos, quando tudo faltava, e só tive conhecimento da sua presença no dia seguinte.

Ao fim da tarde quando estávamos numa das evacuações de feridos no Cais, o médico ficou também ferido e foi evacuado. Era o alferes médico Antunes Ferreira, que foi incansável no tratamento e na preparação dos feridos e não queria ser evacuado. Lembro que todos os 8 mortos e 28 feridos em Gadamael Porto, nesse dia, foram evacuados para Cacine de "sintex".

Pouco tempo depois, quando vindo do Cais me deslocava junto do mort 81 mm, o Furriel Carvalho, saiu do abrigo veio na minha direcção e comunicou-me que não tinha munições para o morteiro, e que estavam poucos soldados na zona critica, e queria saber o que fazer. Eu nem sabia onde estavam as munições de morteiro, mas depois de o acalmar, apareceu o 1º cabo escriturário Raposo que se propôs ir na Berliet buscar granadas, ao paiol a cerca de 100 metros debaixo das flagelações, o que fez e foi incansável nessas tarefas e noutras, ajudado por outros militares que entretanto apareceram. [... ]

Mas tudo se resolveu. As granadas de morteiro apareceram montou-se uma metralhadora apareceram mais militares e passámos a noite a lançar uma granada de morteiro de tempos a tempos, a disparar umas rajadas de metralhadoras para assinalar a nossa presença, napesar de as flagelações com artilharia e morteiros do lN continuarem durante a noite. Nestes militares estavam oficiais, sargentos e praças, no efectivo de muitas dezenas.

A ideia de abandonar o Quartel nunca se me colocou, pois sabia que só por barco podia sair da zona. A minha preocupação durante o dia era evacuar os feridos, e garantir um mínimo de defesa. Mesmo que essa possibilidade existisse a minha formação ética o impediria. Aliás durante o dia estive sempre ocupado, a resolver os problemas que continuamente surgiam. Tudo seria diferente se eu conhecesse há mais tempo aqueles militares, que na maioria eram açorianos e que eram bons soldados, e a cadeia de comando pudesse funcionar.

No dia 2 de Junho, de manhã, aterrou um helicóptero com o General Spínola, o melhor Oficial General combatente da guerra de África. Logo que saiu do heli ouviram-se as saídas das granadas dos morteiros 120 mm, que demoravam 18 segundos a chegar ao Quartel, e que foi o tempo suficiente para se puxar o General, para dentro do helicóptero, apesar da sua resistência, e este levantar com o Cor Durão ainda pendurado. Quando estava a uns 20
m de altura as granadas caíram no local onde este aterrou. Antes de barco ou heli, tinham chegado o Cor Rafael Durão e os capitães de Cavalaria Manuel Monge e António Caetano. O capitão Monge foi comandar a Companhia de Cacine (Nota: Assumiu o comando da CCaç 3520 em 04 12h00 Jun73) e mais tarde o COP 5, e o capitão Caetano a Companhia 8350/72 (por um período limitado).

Nos dias 2 e 3 de Junho apesar da intensidade das flagelações, não houve mortos pois os militares procuraram melhores abrigos. No dia 3 chegou uma Companhia de Pára-quedistas comandada pelo Capitão Terras Marques, que eu conhecia, e que se instalou na zona da tabanca e nos assegurou uma estabilidade defensiva. 

No dia 4 de Junho um GComb da CCav 8350/72, efectuou um patrulhamento ao fim da pista antiga, a poucas centenas de metros. O lN atacou-o, tendo as nossas forças sofrido 4 mortos e 4 feridos e a captura de 3 esp G-3 e 1 EIR AVP-1. Os Pára-quedistas, chegados na véspera, acorreram ao local e recuperaram os feridos e os mortos. 

No dia 3 de Junho à tarde tinha-se apresentado o Major Pára-quedista Mascarenhas Pessoa que por ser mais antigo passou a comandar o COP 5. Os ataques mantinham-se intensos
levando o novo Comandante do COP 5 no dia 4 a solicitar a retirada ordenada
de Gadamael Porto. O que nunca se concretizou. [... ]

Perante a gravidade da situação em Junho desembarcaram mais duas Companhias de Pára-quedistas. Entretanto o Comando do Batalhão de Pára- quedistas deslocou-se para Gadamael Port0.  O Comandante era o Ten-Cor Pára-quedista Araújo e Sá e o 2° Comandante o Major Pára-quedista Moura Calheiros a quem muito devemos bem como aos Capitães Cordeiro, Terras Marques e Tenente Borges. 

Em fins de Junho fui com a CCaç 4743/72 para Tite. Regressei mais tarde ao COP 5 como Adjunto deste, comandado pelo Major Cav Manuel Monge, depois da saída dos Páraquedistas. Terminei a comissão na Guiné em Novembro de 1973. [... ]

Entretanto a CCav 8350/72 vinda de Guileje, e a CCaç 4743/72 de Gadamael Porto, foram rendidas por uma Companhia de Cavalaria e por uma Companhia de Artilharia.   [Nota : A CCaç 4743/72 foi rendida por troca pela CArt 6252/72 marchando por escalões em 4 e 19 de Jul73 para Tite e Bissássema. Em 26Jun73 a CCav 8452/72 foi colocada em Gadamael Porto a fim de colmatar a saída da CCav 8350/72. De 18Jun73 a 13Jul73 a 3ª C / BCaç 4612/72 foi atribuída em reforço temporário do COP 5 e colocada em Gadamael Porto. ] 

De 31 de Maio,  data da minha chegada até fins de Junho de 1973, as Nossas Tropas e Milícias aí aquarteladas tiveram 15 mortos e 39 feridos. [... ]  [Nota Depoimento escrito pelo Coronel de Infantaria 'Comando' Manuel Ferreira da Silva. ] 


Flagelações ln a Gadamael Porto de 22Mai a 30Jun26

 [Nota
 : Relatório das flagelações a Gadamael Porto no período de 22Mai73 a 30Jun73, da CCaç 4743/72.  ] 

Transcreve-se o "Desenrolar da Acção":

"O lN manifestou-se em contactos com as NT nos dias 25, 26 e 27Mai73 nas regiões de Ganturé, Lamoi e Bricana Velha, procurando impedir a penetração das NT na zona de Gadamael Fronteira.

No dia 31Mai73, iniciou as flagelações com morteiros 120 mm, tendo as primeiras granadas caído fora do perímetro do aquartelamento e sucessivamente o fogo foi sendo mais ajustado, deduzindo-se que o lN tinha montados Postos Avançados de Observação.

No dia  1Jun73 iniciou nova flagelação que durou várias horas tendo as granadas caído todas dentro do aquartelamento, com especial incidência sobre os depósitos de géneros e da cantina, zonas periféricas de defesa (valas) e espaldões da Artilharia que foram duramente atingidos.

A Zona do Cais de acostagem, foi igualmente batida, sobretudo quando da evacuação dos mortos e feridos. 

Nas flagelações que se seguiram nos dias imediatos o ln utilizou, morteiros 120 mm, canhão 130 mm, morteiros 82 mm e canhão src, com granadas explosivas, perfurantes e incendiárias, estas sobretudo de noite, cuja acção servia como ponto de referência.

A população, ainda no dia 31Mai73, pela tarde e noite, sobretudo a de Guileje procurou refúgio no aquartelamento, invadindo as instalações e ocupando valas e abrigos. 

No dia 1Jun73, ainda noite, foi seguida pela população da Gadamael Porto, que de manhã, quando o fogo IN se concentrou mais sobre a área do Quartel, propriamente dito, debandou para as zonas da tabanca e margem direita do rio, levando consigo, artigos de cantina, géneros e materiais, tudo o que apanhou à mão.

 Seguindo pelo tarrafo a população refugiou-se na região de Talaia, onde se lhe juntaram dezenas de militares que haviam saído das valas do Quartel, que estavam a ser fortemente batidas, bem como do Cais, entre eles, doentes e feridos ligeiros, que foram evacuados para
Cacine e, ainda os militares psicologicamente mais afectados que juntamente com a população foram recolhidos para Cacine. Os restantes militares, passada que foi a maior intensidade das flagelações, desse dia, foram regressando ao aquartelamento.

Nas flagelações que tiveram lugar durante o período o lN continuou a concentrar o fogo mais sobre as instalações com granadas incendiárias; assim, na noite de 2 para 3Jun73, uma granada atingiu a arrecadação do material de aquartelamento e material sanitário, e na noite seguinte a arrecadação do material de guerra e arquivo da secretaria, originando incêndios que destruíram toda a existência, não só destas dependências como das anexas que constituíam mesmo edifício. 

Após o aparecimento do clarão do incêndio o lN continuava enviando granadas, ora esporádicas ora com intensidade, obrigando o pessoal a manter-se nas valas e abrigos, impedindo qualquer acção, pelo que foi vão qualquer tentativa para debelar os incêndios. [...]

As perdas em pessoal e material avultam pela intensidade e ajustamento dos fogos. As arrecadações dos materiais, guerra e aquartelamento, sanitário e transmissões com as dependências anexas ou contiguas, atingidas por granadas incendiárias cujo fogo se propagou com uma rapidez alarmante, foram destruídas bem como toda a existência, salvo a excepção do material de transmissões que se conseguiu retirar a tempo na sua quase totalidade. Os materiais destruídos, sujeitos a altas temperaturas e ao deflagrar de munições, o armamento e outros ficaram calcinados reduzidos a um montão de sucata.
 
Igualmente os depósitos de géneros e artigos de cantina, sala do soldado, oficina auto e duas casernas de Pelotão, atingidas por várias granadas explosivas sofreram não só a destruição como foram alvo na noite de 1 para 2Jun73 da inversão da população que se apoderou de artigos, géneros e material.

Um elevado número de armas extraviado tem por base a troca de armas entre o pessoal que superlotava o aquartelamento, acontecendo que no acto de evacuação dos feridos, o fogo incidiu sobre o cais, muitos militares deixaram cair as armas ao rio tendo mesmo acontecido que num bote ao virar-se, tem-se conhecimento que pelo menos cinco armas ali se tenham perdido".

(Continua)

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo  das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 325-333.

[ Seleção / revisão / negritos / fixação de texto pata efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 30 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23398: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (6): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte V: o ataque a Guileje