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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24029: Notas de leitura (1549): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte X: a importância da acção psicossocial: pondo as mulheres a voltar a pescar... peixe e camarão


Guiné > s/l> s/d> Mulheres a pescar no rio... Cortesia do nosso camarada Carlos Rios [ex-fur mil, CCAÇ 1420 / BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66] (*)


Pormenor da capa do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército).

Na foto da capa, podemos ver o "capitão Cristo", sentado ao centro, com a mão direita no rosto, visivelmente bem disposto, em agradável convívio na casa do Zé Saldatnha [encarregado da Casa Ultramarina, em Bedanda, e onde se comia lindamente, graças aos dotes culinários da esposa, a balanta Inácia]. Por trás, em pé, os alferes Carvalho e Ribeiro e ainda o dono da casa, o Zé Saldanha (antigo militar que esteve em Bedanda). 

Recorde-se o que escrevemos na primeira destas notas de leitura (***):

(---) O livro, composto por cerca de 70 curtos capítulos, pode ser considerado como um "diário de bordo", embora não datado, do autor (ou do seu "alter ego"), que foi o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (...)

A intensa atividade operacional é intercalada com pequenas, saborosas (e algumas pícaras) histórias do quotidiano do quartel, da tabanca e seus "vizinhos" (que o autor nunca trata por "turras")...

(...) O estilo narrativo é poderoso. Seco, assertivo, direto, às veses quase telegráfico. A escrita é, visivelmente, de um militar, com experiência operacional, e forte espírito de liderança, que quer "chegar, ver e vencer", mas que vai encontrar uma companhia em farrapos (equipada ainda com a velha Mauser, sem fardas novas, mal alimentada, isolada, desmoralizada, mal vista pelo comando do setor, sediado em Catió).

É decididamente um militar que sabe que uma companhia vale pelo seu comandante operacional, e que quer fazer jus à sua divisa "Aut Vincere Aut Mori" (Vitória ou Morte). Pelo que nos é dado inferir da leitura do livro, é um militar de "mão cheia", para usar uma expressão cara ao cor inf ref Arada Pinheiro, seu amigo e camarada (um ano mais novo na Escola do Exército), e que não regateia apoio aos seus soldados, mesmo que com isso tenha que enfrentar a incompreensão e até a desconfiança da hierarqui militar (em Catió e em Bissau). (...) 

1. Continuação da leitura do livro de  Manuel Andrezo, pseudónimo literário de Aurélio Manuel Trindade, ten-gen ref, que foi cap inf no CTIG, o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (a 4ª Companhia de Caçadores passou, a partir de 1 de abril de 1967, a designar-se por CCAÇ 6, "Onças Negras"). Fez a sua comissão sempre em Bedanda, entre julho de 1965 e julho de 1967. 

Com mais três comissões, primeiro na Índia, depois em Moçambique, como capitão (1962/64) e  outra em Angola, já como major (1971/73), é um militar condecorado com Medalha de Prata de Valor Militar com palma, Cruz de Guerra, colectiva, de 1.ª classe, Cruz de Guerra de 2.ª classe, Ordem Militar de Avis, grau Cavaleiro, Medalha de Mérito Militar de 3.ª classe e Prémio Governador da Guiné. 

Participou no 25 de Abril, como major, tinha então 41 anos e estava colocado na EPI, Mafra. Em esposta ao "Inquérito a 13 generais de Abril", por Adelino Gomes, jornalista do "Público", respondeu, à pergunta "O que sonhava enquanto militar, enquanto cidadão e enquanto indivíduo, no 25 de Abril?", o seguinte: 

"Mais igualdade, melhores condições de vida, encontrar uma solução que não nos desonrasse nem o povo nem os militares, para o Ultramar."

Está à beira de fazer 90 anos (nasceu em Viseu, em 11 de maio de 1933). Vive em Lisboa, víuvo mas rodeado de bons filhos e netos. Em sua honra e para nosso prazer e conhecimento, publicamos  mais um pequeno apontamento das suas memórias, neste caso relativo ao seu dia-a-dia em Bedanda, à frente da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, entre meados de 1965 e meados de julho de 1967. 

O seu "alter ego", cap Cristo, mesmo sem orientações superiores, já na altura procurava pôr em prática a "ação psicossocial" que alguns de nós pensa(va)m ser obra de Spínola e do seu estado-maior... No essencial, e desde cedo, os militares portugueses (a começar pelos comandantes operacionais) se aperceberam que aquele tipo de "guerra subversiva" não se podia ganhar só pela força das armas, e que era preciso ir muito mais longe, ou seja, conquistar ou reconquistar (no caso de balantas, biafadas, mandingas, nalus...) a confiança das populações... O episódio chama-se "Um dia diferente" (pp. 337/339).


Pondo as mulheres a voltar a pescar... 
peixe e camarão

por Manuel Andrezo / Aurélio Manuel Trindade

A alimentação em Bedanda era deficiente, tanto para os militares como para a população civil. Para atenuar tais deficiências o capitão incentivou a cultura do arroz, a plantação da mandioca e da mancarra, essenciais para a alimentação da população nativa. 

Para acompanhar o arroz, o capitão entendeu que era preciso peixe à refeições, e que isso seria resolvido se as mulheres fossem pescar. Após uma conversa com a Tia e outras mulheres grandes, ficou decidido que as mulheres de Bedanda iriam pescar quando quisessem e que o capitão daria uma secção de escolta sempre que a solicitassem. 

Esta decisão caiu tão bem entre as mulheres que passaram a ir pescar todas as semanas pelo menos uma vez. Juntamente com o peixe vulgar também pescavam camarão. Por decisão das mulheres o camarão seria oferecido ao capitão como agradecimento por tudo o que ele estava a fazer em prol da população.

Uma vez, logo nos primeiros dias de pesca, compareceu no quartel a Tia com meia dúzia de mulheres e informaram o Lassen que queriam partir mantanhas ao capitão. E o Lassen informou o capitão. O capitão mandou entrar a Tia e as outras mulheres.

─ Nosso capitão, as mulheres da tabanca estão muito contentes com nosso capitão. Tudo que nosso capitão quiser das mulheres elas fazem.

─ Obrigado, Tia. O que eu quero é que mulheres da tabanca ajudem nosso capitão pescando e trabalhando na bolanha, para haver muito peixe e muito arroz para alimentarem marido e filhos. Vocês têm pescado muito.

─ Temos, nosso capitão. Quando vamos à pesca trazemos muito peixe para comer e mulheres muito contentes por nosso capitão dar protecção com soldados quando elas vão pescar. Elas decidiram que quando vão pescar também trazem camarão que é para nosso capitão. Não é muito mas foi o camarão pescado hoje de manhã.

─ Tia, muito obrigado pelo camarão. Nosso capitão está muito contente com Tia, com mulheres grandes e com todas as mulheres da tabanca por me oferecerem camarão. Nosso capitão gosta muito de camarão e isso vai matar-lhe saudades de Lisboa. Logo nosso capitão vai a tua casa falar contigo e agradecer o camarão que trouxeste.

─ Fico muito contente por nosso capitão ir na minha casa. Nosso capitão não tem que agradecer à Tia ou mulheres da tabanca. A Tia e mulheres da tabanca é que agradecem muito nosso capitão. Nosso capitão pode contar sempre com mulheres da tabanca.

─ Obrigado, Tia. Agradece por mim às mulheres da tabanca. Até logo.

─ Até logo, nosso capitão.

Assim se estabeleceu uma norma em Bedanda. Todas as vezes que as mulheres iam à pesca, traziam camarão para nosso capitão. Camarão muito pequenino, diferente do que se comia em Lisboa mas a que os oficiais da Companhia chamavam um figo. Como nestas coisas não havia propriedade privada, o capitão levava sempre o camarão para a messe, mandava-o cozer e todos petiscavam acompanhando o petisco com cerveja.

Tinha sido de facto um dia diferente. Surgira algo que justificava uma paragem na rotina de todos os dias e que permitia que os oficiais, com um copo de cerveja na mão e um prato de camarões, conversassem amenamente sobre as suas recordações. Um elo que os unia a todos, eles que quase todos os dias jogavam a sua vida em combate e a que tudo se agarravam para se sentirem vivos tanto física como psicologicamente.

Procedendo com a delicadeza tradicional da Guiné que exige que nada se ofereça na hora a uma oferta acabada de receber, porque isso seria ofensivo, o capitão mandou preparar uma encomenda para à noite a levar à Tia, e que seria a retribuição da delicadeza e nobreza de alma que a Tia e as mulheres da tabanca demonstraram. Nessa noite o capitão foi a casa da Tia para partir mantanhas e levou-lhe azeite, arroz, açúcar, conservas e pão. Eram as coisas que os homens e as mulheres da tabanca mais apreciavam. A Tia ficou muito contente por receber o capitão em sua casa com as lembranças que lhe levou.

─ Obrigado, nosso capitão. É uma honra para a Tia receber em sua casa nosso capitão, principalmente quando vem de propósito partir mantanhas. Nosso capitão pode sempre dispor casa da Tia como se fosse sua.

─ Obrigado, Tia. Se me deres licença gostaria de me sentar contigo na varanda um pouco, para conversar, descansar e apanhar o fresco da noite,

─ Fico contente nosso capitão querer ficar sentado comigo na varanda. Vamos, nosso capitão, vamos sentar.

Aí ficaram, capitão e Tia, a conversar como dois bons e grandes amigos, mais de duas horas. Em dado momento, porque a noite já ia avançada, o capitão despediu-se da Tia.

 ─ Agora vou-me embora, Tia. Vou até ao quartel e vou dormir. Obrigado por me receberes em tua casa e por me fazeres companhia. Até amanhã.

─ Até amanhã, nosso capitão. Venha sempre pois tenho muito gosto em o receber.

[Seleção / revisão e fixação de texto / título / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de janeiro de  2012 > Guiné 63/74 - P9362: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (11): Fragmentos Genuínos - 9

(**) 20 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23997: Notas de leitura (1544): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IX: o vagomestre e o petisco que não podia ser para todos: o caso da mão de vaca com grão...

(***) Vd. poste de 5 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23553: Notas de leitura (1478): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): as aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte I: "Os alferes não gostaram do novo capitão. Acharam-no com cara de poucos amigos."

(****) Último poste da série "Notas de leitura" > 30 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24023: Notas de leitura (1548): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23997: Notas de leitura (1544): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IX: o vagomestre e o petisco que não podia ser para todos: o caso da mão de vaca com grão...

Pormenor da capa do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército). 

1. C
ontinuação da leitura do 
Manuel Andrezo, pseudónimo de  Aurélio Manuel Trindade, ten-gen ref, que foi cap inf no CTIG, último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (a 4ª Companhia de Caçadores passou, a partir de 1 de abril de 1967, a designar-se por CCAÇ 6, "Onças Negras"). Fez a sua comissão sempre em Bedanda, entre julho de  1965 e julho de 1967.

Aurelio Manuel Trindade irá completar  90 anos em 2023 (nasceu em Viseu, em 11 de maio de 1933).   Fez quatro comissões no ultramar. Desejamos, desde já, que que o novo ano de  2023 seja vivido com saúde, alegria e esperança, rodeado dos filhos e netos que, sabemos, o adoram. Vive em Lisboa. E ainda gostaríamos que ele um dia aceitasse o nosso convite para se sentar à sombra do poilão da Tabanca Grande, juntando-se assim aos 868 amigos e camaradas da Guiné.  Ele e o seu nosso amigo Mário Arada Pinheiro (que já acietou o convite: problemas de saúde têm-no impedido de nos mandar as fotos da praxe).

Um exemplar do seu livro, impresso na Alemanha (c. 2020), foi-me gentilmente facultado, no verão passado, a título de empréstimo, pelo cor inf ref Mário Arada Pinheiro, com dedicatória autografada do autor,  seu amigo e camarada, datada de 13/12/2020. 

Vamos fazer, com esta, um dezena de notas de leitura (*) deste livro que, infelizmente, está fora do mercado, por se tratar de edição de autor. Muitos "bedandenses" (e temos cerca de um vintena de camaradas, membros da Tabanca Grande, que estiveram em ou passaram por Bedanda, entre 1961 e 1974, mormente na 4ª CCAÇ e na CCAÇ 6),  têm mostrado interesse por esta obra, que temos estado a divulgar.   

E muitos outros dos nossos camaradas conheceram a região de Tombali onde se situa Bedanda, gente que guarda as melhores e as piores memórias do inferno de tarrafe, lianas, floresta, água, suor, lágrimas e sangue, que era toda essa região do Sul: Bedanda, Cumbijã, Nhacobá, Catió, Ganjola, Cachil, Como, Cufar, Cadique, Cantanhez (Caboxanque, Cafal, Cafine, Jemberem, Chugué, Cobumba...), Cacine, Cacoca, Sangonhá, Cameconde, Guileje, Balana, Mejo, Gadamael, etc.

Temos vindo, ao mesmo tempo,  a selecionar uma ou outra história ou episódio dos cerca de 70 capítulos, não numerados, que o livro apresenta, uns sobre a atividade operacional da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, outros sobre o quotidano da tropa e da população (incluindo a população do mato). (**)

A história que escolhemos para hoje, com a devida vénia (e homenagem ao autor no ano em que vai fazer  90 anos) é um delícia de humor de caserna. Confesso que me diverti a (re)lê-la. E, ao mesmo tempo, é  também reveladora das qualidades que deve ter um grande comandante operacional (como era o caso do capitão Cristo): disciplinado e disciplinador, mas pondo sempre à frente de todas as suas decisões o espírito de corpo, a coesão, o bem-estar e a segurança dos seus homens. 

É também reveladora das pequenas "sacanices" ou "velhacarias" que alguns camaradas, que tinham a faca e o queijo na mão, podiam fazer a outros camaradas... Enfim, os pequenos abusos do poder, os privilégios.... Afinal, "quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte"...

O sargento Lopes, a exercer as funções de vagomestre (por já não ter  "idade" para ir para o mato a comandar uma secção)  terá aprendido uma lição para a vida. 

Casos como este, ter-se-ão multiplicado na Guiné... Estava-me a lembrar de histórias passadas na minha CCAÇ 2590/CCAÇ 12... Talvez um dia ainda as conte: afinal, os dois sargentos do quadro, de quem eu, de resto,  era amigo,  já morreram infelizmente...E não levarão a mal, lá no Olimpo dos combatentes, uma ou outra história pícara que a gente, do lado de de cá, conte sobre eles e nós... Os dois viram a guerra a partir da secretária: um passeava a sua úlcera pelas tabancas, o outro fazia a conta a fraca contabilidade de uma companhia de praças africanas desarranchadas"... O 1ºs sargentos,. por norma, estavam de passagem, e preparavam-se para ir para a Escola Central de Sargentos, em Águeda... 


A GUERRA DO PETISCO 
(pp. 298/302)


A alimentação no quartel era um problema, nomeadamente quanto à aquisição de carne fresca. Por isso, de vez em quando, o capitão permitia que se matasse uma ou duas vacas da manada da Companhia. Dado o reduzido número de cabeças de gado, estas só poderiam ser abatidas por ordem do capitão. Há muito tempo que não se comia carne fresca, mas quando o desejo começava a ser muito forte o capitão autorizava o abate de uma vaca e durante um dia ou dois tirava-se a barriga da miséria. 

Ora foi o que um dia o capitão veio a fazer, chamando o sargento vaguemestre para que abatesse uma das vacas. A vaca foi morta, a carne distribuída, e o Fialho, que trabalhava na messe de oficiais, logo sugeriu ao capitão que se podia fazer um bom petisco para os oficiais com grão e mãos de vaca. Ele sabia que habitualmente as mãos de vaca eram deitadas fora por não ser viável cozinhá-las no rancho geral. Não chegavam para todos os soldados. 

O capitão não apreciava as mãos de vaca, em Lisboa nunca as comeria. No entanto, em Bedanda, onde tudo era diferente e a alimentação regra geral deficiente, mão de vaca era capaz de ser uma óptima variante ao rancho habitual. Com base nisso disse ao Fialho para ir falar com vaguemestre e que a seu mando lhe entregasse as mãos da vaca abatida. 

Foi o que o Fialho quis ouvir. Saiu da Companhia e foi à cantina falar com o sargento. Encontrou-o muito atarefado a conferir e a arrumar os géneros. 

─ O que queres daqui, Fialho? Estou a trabalhar, não tenho tempo para te aturar. Já te dei os géneros para a messe, o que é que queres mais? 

─ Na messe de oficiais lembrámo-nos de aproveitar as mãos de vaca e fazer mão de vaca com grão. Falei disso ao nosso capitão, ele concordou tendo-me dado ordens para as vir buscar antes de o senhor as deitar fora. Queria também um pouco de grão para fazermos o petisco.

 ─ O nosso capitão quer as mãos de vaca? Já as não tenho. Aquilo que vocês queriam fazer para os oficiais já nós fizemos para os sargentos e já as comemos. Como é que eu vou resolver isto agora? Tens a certeza que foi o nosso capitão que te mandou vir buscar as mãos de vaca? Isso não será uma iniciativa tua para fazerem um petisco para vocês? 

─ Não, meu sargento, não é iniciativa minha e o petisco é para os oficiais. E foi o nosso capitão que me mandou vir falar consigo. Eu só lembrei ao nosso capitão que era bom nós fazermos um petisco na messe de oficiais com a mão de vaca. Ele concordou comigo e mandou-me vir buscar as mãos de vaca. Eu não sabia que o meu sargento já as tinha comido. Eu vou dizer ao nosso capitão que o senhor e os outros nossos sargentos já comeram a mão de vaca. 

─ Está bem, podes ir dizer porque eu não me posso transformar em mão de vaca. 

O Fialho saiu da cantina e foi falar com o capitão. 

─ Meu capitão, falei com o nosso sargento vaguemestre. Não arranjei a mão de vaca porque o nosso sargento já a tinha arranjado para ele e para os outros sargentos. Nem sequer pude trazer a prova do sucedido porque eles estavam com pressa e já tinham comido o petisco. Só não tinham ainda lavado a louça porque eu bem vi a panela e os pratos sujos lá na cantina. 

─ Está bem, Fialho. Diz ao nosso sargento vaguemestre que venha falar comigo. 

O Fialho saiu do gabinete e dirigiu-se logo à cantina com o recado do capitão que tinha ficado aborrecido por o sargento já ter comido a mão de vaca. Queria falar com ele. Foi depois falar também com o Balsinhas dizendo-lhe que já tinha lixado o vaguemestre. 

 Fialho, como é que tu fizeste isso ao Vaguemestre? 

─ Eu sabia que os sargentos já tinham comido a mão de vaca, da vaca que matámos. Cozinharam-na com grão. Eu tinha dito antes ao capitão que se podia fazer um petisco com mão de vaca. A princípio o capitão não se mostrou muito interessado mas com o apoio dos nossos alferes consegui que o nosso capitão me mandasse ao nosso sargento vaguemestre buscar a mão de vaca. Como já a tinham comido não a pude levar e agora o nosso capitão quer falar com os sargentos que a comeram. 

─ Fialho! Tu és terrível. Arranjaste uma grande intriga. Coitado do nosso sargento vaguemestre. 

─ Coitado uma ova. Coitados é de nós porque ele sempre vai arranjando uns petiscos para os amigos. 

Cumprindo as ordens o vaguemestre lá seguiu para o gabinete do capitão. 

─ O meu capitão mandou-me chamar? 

─ Mandei sim. Você não perdoa nada. Mal acabámos de matar a vaca já você a estava a cozinhar e a comer com os seus amigos. Eu tinha mandado o Fialho buscar a mão de vaca porque queria fazer um petisco para mim e para os nossos alferes, mas você antecipou-se. Nem se lembrou de perguntar ao seu comandante de companhia se queria as mãos de vaca para a messe de oficiais. Julgo que era o mínimo que deveria ter feito. Se eu dissesse que não queria,  você poderia então fazer o petisco para os seus amigos. O que tem a dizer sobre isto? 

─ Nada, meu capitão. De facto eu fiz o petisco e comi-o com os meus amigos. Não me lembrei de perguntar ao meu capitão e aos nossos alferes se queriam a mão de vaca para a messe de oficiais. 

─ Agora, menino, que o mal está feito, não há mais nada a fazer. Você é comandante duma secção de atiradores. Porque tinha confiança em si e porque já tem a sua idade, inadequada a um comandante de secção na Guiné, eu mandei-o para o rancho e nomeei um cabo para comandar a sua secção. Mas como afinal vejo que você é muito desembaraçado, mais do que eu pensava, amanhã vai comigo para a operação já planeada e volta a comandar a sua secção. Esteja equipado amanhã, às duas horas da manhã. Pode sair. 

Pouco tempo depois entra no gabinete do capitão o alferes Carvalho.

 ─ Meu capitão, o Lopes foi falar comigo e disse-me que amanhã é ele que vai connosco na operação? Isto é verdade? 

 ─ É sim, Carvalho. É verdade porque aquele sacana fez um petisco com a mão de vaca e nem se lembrou de nós. Assim, nunca mais vai esquecer que quando houver um petisco o capitão e os nossos alferes também são gente. 

─ Meu capitão, tenha dó de mim. O Lopes nunca foi a uma operação porque você o retirou logo para vaguemestre, e o cabo que comanda a secção sabe dar conta do recado. A operação vai ser difícil e eu não queria levar um maçarico a comandar a secção. Se o quiser levar connosco dê-lhe outra missão. No pelotão não tem lugar. Problemas já nós temos, não precisamos de mais outro. Veja lá se pode rever a sua decisão. 

─ Está bem, mas não digas nada ao Lopes. Ele vai preparar-se para a operação, mas na altura da saída eu dispenso-o e volta para o rancho onde ele é bom. 

─ Assim está bem. Até logo e desculpe o meu desabafo. 

No noutro dia, antes da saída para a operação, o sargento Lopes apareceu de camuflado com espingarda, granadas e cantil. Parecia um guerreiro, mas com cara de grande aflição quando se apresentou ao capitão. 

─ O nosso sargento está pronto para comandar a sua secção? 

─ Estou pronto para cumprir as suas ordens, meu capitão. O nosso alferes disse que a operação era difícil e que eu ia ser mais um problema para ele. Preferia que eu não fosse. 

─ E você prefere ir ou não?

 ─ Eu preferia não ir mas o meu capitão é que sabe.

 ─ Bem, Lopes, vá lá tratar do rancho. Você não vai connosco porque eu preciso de alguém de confiança para tratar do rancho e da alimentação do quartel. Da próxima vez quando houver petisco lembre-se do seu capitão e dos nossos alferes. 

─ Esteja descansado, meu capitão. Não me voltarei a esquecer. Obrigado e boa sorte.

 ─ Obrigado Lopes e porte-se bem. 

Quando o sargento se afastou, o capitão, sorrindo, disse ao alferes Carvalho: 

─ Ainda bem que você não o quis a comandar a secção. Se o levássemos ia ser um grande problema para nós. É bom rapaz, muito bom vaguemestre, mas velho de mais para comandar uma secção nos matos da Guiné. Se você não me tivesse dado a hipótese de o dispensar, não sei como me ia livrar desta enrascada em que me meti. Tínhamos que andar com ele às costas pois ele não iria aguentar o esforço que nos espera. 

─ Tudo acabou em bem, meu capitão. A próxima vez que matarmos uma vaca, as mãos serão para fazermos um petisco para os oficiais. E eu, ou muito me engano, ou o petisco vai aparecer na messe já preparado.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos, para publicação deste poste: LG ]

domingo, 25 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23643: (De)Caras (188): a morte em combate, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, do alferes mil Américo Luís Santos Henriques, natural de Ourém, contada pelo seu cmdt da 4ª CCAÇ, cap inf Aurélio Manuel Trindade (Bedanda, 1965/67)


Lista dos alferes mortos em combate, no CTIG, no período entre 1963 e 1967 (n=20)... Entre eles, o Américo Luís Santos Henriques, da 4.ª CCAÇ, Bedanda, Sector S3, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, em que participou também a CCAV 1484 (informação do Jorge Araújo).  Infelizmente não há nenhuma foto do Henriques.

Dos 81 alferes mortos no CTIG, entre 1963 e 1974, houve 1 por doença, 24 por  acidente e os restantes 56 em combate (*). No período em apreço (1963/67), dos 20 alferes mortos em combate, 4 pertenciam a companhias de guarnição normal: dois  da 4ª CCAÇ, um  da 3ª CCAÇ e outro da 1ª CCAÇ (que em 1967 irão dar origem à CCAÇ 6, CCAÇ 5 e CCAÇ 3, respetivamente).

Infografia: Jorge Araújo (2018) 






Guiné > Região de Tombali >  CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67) > 22 de fevereiro de 1967 > A caminho Catió... Regresso, em LDM,  da Op Sobreiro, em que perdeu a vida o alf mil Henriques, da 4ª CCAÇ (Bedanda, 1966/67). As fotos parece ter sido tiradas ainda no rio Ungauriuol, afluente do rio Cumbijã (este mais largo, entre 200 e 600 metros, pelas nossas contas grosseiras, de acordo com a carta de Bedanda, 1956, escala 1/50 mil).

Fotos do álbum de Benito Neves, ex-fur mil, da CCAV 1484.

Fotos (e legendas): © Benito Neves (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Esta morte está dramaticamemte narrada  no livro de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do antigo cap inf Aurélio Manuel Trindade, hoje ten gen ref),  "Panteras à Solta", ed. de autor, 2010, 399 pp, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército).

Os familiares, vizinhos, colegas de escola, conterrâneos, amigos e antigos camaradas do Américo Luís Santos Henriques, natural de Valada, Seiça, Ourém, bem como os nossos leitores, têm direito a conhecer esta versão, que consta de uma fonte de difícil acesso: o livro está fora do mercado livreiro, foi impresso na Alemanha, e nem sequer consta na Porbase - Base Nacional de Dados Bibliográficos. O que é uma pena: é um documento de interesse para a historiografia da guerra colonial. 

O nosso infortunado camarada só está identificado pelo apelido Henriques. Nas memórias do cap Cristo (o único nome fictício que aparece no livvro, e que é um "alter ego" do cmdt da 4.ª CCAÇ / CCAÇ 6, no período que vai de meados de 1965 a meados de 1967), o Henriques  veio substituir o Ribeiro, até então o melhor operacional dos alferes da companhia, juntamente com o Carvalho, todos eles, tal como os restantes graduados, de origem metropolitana e de rendição individual. (Descobrimos que o Ribeiro é o José Augusto Nogueira Ribeiro, nascido em Fafe, em 1940, e já falecido, em 2017: seguiu a carreira militar, chegando ao posto de cor inf quando se reformou; foi condecorado com a "Torre e Espada" por feitos nos TO da Guiné e Moçambique; no CTIG, acabou a sua comissão na 4ª CCAÇ em 15 de maio de 1966, sendo então rendido pelo Henriques).

Antes da descrição da operação em que o Henriques é morto, por um tiro isolado (seguido de forte tiroteio em emboscada do IN nas proximidades da nascente do rio Ungauriuol), vale a pena reproduzir também um pequeno excerto da sua chegada em Bedanda, em data que não podemos precisar (presumivelmente em meados de 1966, já que  foi render o alf mil Ribeiro), e em que é praxado...


Excertos de "Morto em combate" 
(pp. 349-353)


Antecedentes: 

(...) Um dia chegou o alferes Henriques, o substituto do alferes Ribeiro. Bom moço mas
ainda muito cru
. Logo no primeiro jantar foi o Carvalho a atirar:

─ Meu capitão, o posto da árvore hoje é guarnecido pelo Henriques. Eu já lhe disse que o meu capitão e nós todos não temos confiança nos negros e por isso havia um posto que durante a noite era guarnecido por um oficial ou sargento. Ele diz que eu estou a gozar com ele. O meu capitão sabe bem que todos têm de passar por aquele posto várias noites. Esta noite era eu. Como se apresentou o Henriques é ele que deve ir.

(...) Assim, nessa noite, o alferes Henriques passou todo o tempo num posto de vigia,
em cima duma árvore, com uma granada de mão sem cavilha apertada na sua mão. Teria de a lançar ao mínimo sinal de perigo, para acordar o capitão e os outros alferes.

Ele não sabia, mas a granada estava inerte pois tinha-lhe sido retirado o detonador e a
carga explosiva. Esta era uma das brincadeiras que faziam aos maçaricos que chegavam à companhia. O capitão, embora conivente, não se metia no assunto. 

Ao outro dia o Henriques estava contente porque se tinha mantido acordado toda a noite. Ele, que era um dorminhoco, não teve sono. Teve muito medo, segundo confessou, mas
aguentou. No dia seguinte contaram-lhe que tudo não tinha passado duma brincadeira.
Riu-se e achou piada. Actos destes faziam parte integrante da praxe no quartel. (pp. 184/185)

O confronto fatal

(...) O dia começou com o capitão reunido no seu gabinete com os seus subalternos.

─ Tenho informações que me dizem que depois da nossa acção no cruzamento do Cantanhez, a guerrilha construiu um acampamento na mata junto à nascente do Ungauriuol 
 [de acordo com a carta de Bedanda, e 1/50 mil] . Vamos sair esta noite para lá. Vamos apenas três pelotões mais o pelotão do Tala [alferes de 2.ª linha, cmdt do pelotão de milícias de Bedanda]. Sai à frente o Henriques, a seguir o Cristóvão e o Tala, e por último o Manuel. Penso sair do quartel à meia-noite para chegarmos ao raiar da aurora, não sei o local exacto do acampamento. Batemos a mata e seguiremos qualquer pista que encontrarmos até chegar ao acampamento. Não levamos um objectivo concreto, pretendo apenas explorar uma notícia e, mediante isso, impedir que os guerrilheiros fortifiquem o acampamento. Não pretendo deixar os tipos sossegados nesta área. Alguém tem alguma coisa a dizer?

─ Não, meu capitão. De qualquer modo gostaríamos de ir lá com um objectivo concreto em vez de bater a zona ─ disse um dos alferes.

─ Também eu gostava de ter um objectivo concreto, mas não temos. Não se preocupem porque a área está cheia de guerrilheiros e iremos encontrá-los de certeza. Saímos à meia-noite em ponto, ração de combate para um dia. Teremos um helicóptero em Cat
ió [sede do BCAÇ 1858], para evacuações. Até logo.

(...) O capitão estava preocupado. Estava desfalcado em oficiais e os que havia tinham pouca experiência ou eram fracos em termos operacionais. O capitão terá que ir mais atento a todos os pormenores. Queria falar com o Tala.

─ Tala, vamos fazer uma batida na mata entre o Ungauriuol 
[afluente do rio Cumbijã, e que passa por Bedanda], o Lama e a estrada para Guileje [a nordeste de Bedanda]. Vai à frente o nosso alferes Henriques. Tu vais entre o alferes Fernandes e o alferes Manuel. Quero que mandes falar comigo, hoje às dez horas da noite, dois guias que conheçam a zona. Não dizes nada aos guias. Quero falar com eles na presença do alferes Henriques. Levas ração de combate para um dia. Percebeste bem o que eu quero?

─ Percebi, nosso capitão.

─ Então podes ir embora. Quero o teu pelotão à meia-noite pronto para sair. Até logo.

A seguir o capitão falou com o alferes Henriques.

─ Tu vais na frente da coluna. Embora não tenhas experiência de mato, és o subalterno com mais operações feitas. O teu pelotão é bom. Vou dar instruções aos guias que pedi ao Tala e entrego-te depois esses guias. São dois bons guias. Confio em ti. Sabes bem a importância que eu dou ao pelotão que vai à frente. Da sua visão e da sua actuação depende o êxito da operação. Temos que ir muito atentos, os guerrilheiros estão lá de certeza. Eu irei sempre contigo entre a primeira secção e a segunda. Tu deverás ir no meio da primeira. Estarei perto de ti para qualquer apoio que precises. Elucida bem os homens sobre o que terão de fazer. Se encontrarmos pistas vamos explorá-las com cuidado. Olhos bem abertos para não sermos surpreendidos. Se vires que não estás em condições de ir à frente, dou essa missão a outro.

─ Não, meu capitão. Agradeço a sua confiança em mim.

─ Prepara o teu pelotão. A mata que vamos bater é muito densa e vamos ter dificuldades se formos surpreendidos. Até logo.

(...) O capitão mandou depois chamar o Lassen 
 [, seu guarda-costas] para preparar as coisas e avisar o Joãozinho   [, 2.º guarda-costas] . Deu as instruções normais aos sargentos. Sobrou-lhe ainda tempo para meditar em todas as hipóteses que poderiam acontecer e na forma de ultrapassar dificuldades inesperadas. Tinha pensado profundamente a operação e ficava convencido de ter dado todas as instruções. Só faltava esperar que a sorte não o abandonasse. Em tudo na vida é preciso ter sorte, e na guerra é fundamental. Há militares que têm boa sombra no mato e outros não.

À hora combinada a companhia saiu para o mato. O capitão decidiu ir através da bolanha direito a Feribrique, passar depois por Melinde e atravessar depois o rio Lama para começar a bater a mata. A marcha era lenta e difícil. As bolanhas ainda tinham água e eram atravessadas por pequenas ravinas e fios de água difíceis de transpor de noite. A certa altura a coluna partiu-se. O capitão mandou parar o Henriques e ordenou aos guias que fossem recuperar a coluna.

─ Como te sentes, Henriques?

─ Mal, meu capitão. Sinto-me triste. Nunca me senti assim numa operação. Não sei o que se passa comigo.

─ Não é nada. É a primeira vez que tens a responsabilidade de abrires a coluna e estás a sentir esse peso. Só prova que és um oficial responsável. No entanto, se vires que não te sentes bem, passa o Manuel para frente. Vê lá se estás bem de saúde.

─ De saúde estou bem, fisicamente não tenho nada. Sinto-me é muito triste. É como se uma desgraça estivesse para me acontecer.

─ Tens a certeza de que queres continuar à frente?

─ Tenho, meu capitão. Não podia perder a oportunidade da abrir a coluna da companhia.

─ Então segue lá. Continuamos porque a coluna já está unida. Devagar que o terreno é difícil.

Assim se reiniciou a marcha. O rio Lama foi atravessado sem novidades. Com o raiar da aurora iriam dar início à batida. O capitão mandou seguir a corta-mato até encontrarem um caminho que desse indícios de uso recente.

Passado algum tempo o Henriques falou.

─ Cristo, aqui Henriques. Tenho aqui um caminho que parece ter sido utilizado, escuto.

─ Henriques, vou já para aí, depois falamos.

Rapidamente o capitão juntou-se ao Henriques e observou o caminho. Vinha do Cantanhez e seguia para noroeste, para a nascente do Ungarinol. O capitão nem hesitou.

─ Vamos seguir este caminho até à nascente do rio. Temos de ir com muito cuidado para não sermos emboscados. Podem começar a andar.

Dadas estas instruções , o capitão chamou os seus comandantes de pelotão.

─ Fernandes, Tala, Manuel, aqui Cristo. Encontrámos um caminho utilizado recentemente. Vem do Cantanhez e segue para noroeste. Vamos seguir por aí. Manuel, cuidado com a retaguarda. Se houver tiroteio o Tala e o Fernandes aguardam ordens. Cuidado e muita atenção. Já estamos no meio deles. Digam se entenderam, escuto.

Todos tinham entendido e o capitão reportou terminado. A progressão da companhia continuou muito lenta. Os soldados, olhos bem abertos, procuravam detectar no terreno e em cima das árvores algo de anormal, um sinal dos guerrilheiros. Silêncio total. Nem a bicharada se fazia ouvir. O capitão avançou um pouco e aproximou-se do Henriques. Sabia que, se houvesse emboscada, a sorte dependeria da reacção dos homens da frente.

Apesar de todo o cuidado na progressão, ouviu-se nitidamente um tiro isolado seguindo de um tiroteio enorme. A situação foi tão inesperada que todo o pelotão se deitou imediatamente no chão. O alferes Henriques estava caído uns três a quatro metros à frente do capitão. O capitão correu para ele para lhe dar instruções e verificou que o Henriques estava ferido com um tiro na barriga. De imediato tomou conta do pelotão, dando ordens directas aos soldados. O Lassen foi buscar o enfermeiro que rápido chegou ao local.

─ Eu já trouxe o alferes Henriques aqui para trás deste monte de baga baga  ─ disse o capitão. ─ Tome conta dele e veja o que pode fazer. Eu tomo conta do pelotão e vou sair daqui ou ainda cá ficamos todos. Arrancamos directos a eles. Passo rápido e fogo sobre eles.

Os soldados levantaram-se e meteram-se pela mata dentro com o capitão. Os guerrilheiros pararam o fogo e retiraram. Na perseguição foi localizado um acampamento improvisado.

─ Fernandes, Tala, Manuel, ─ aqui Cristo ─ sofremos uma emboscada. O Henriques parece que está gravemente ferido. Localizei um acampamento que vou ultrapassar. O Fernandes deixa alguns homens recolher o Henriques e os outros feridos, traz o Tala e vem ter comigo. O acampamento fica por vossa conta. Destruamno.

O pelotão do Henriques garante a segurança frontal. Manuel, segurança à retaguarda. Depois do acampamento destruído retiramos para a bolanha e fazemos as evacuações. Digam se entenderam, escuto.

─ Cristo, aqui Fernandes. Entendido. Agora vou seguir para aí com o Tala. O Henriques morreu, informou o enfermeiro. Há mais três feridos, escuto.

─ Cristo, aqui Manuel. Entendido. Segurança à retaguarda garantida. Escuto.

─ Aqui Cristo, terminado para todos.

─ Bedanda, aqui Cristo. Fui emboscado. Tenho quatro feridos um dos quais oficial. Solicito presença helicóptero para evacuações. É urgente. Estou na mata a oeste do rio Lama e vou agora para a bolanha onde assinalarei a minha presença. Diga se entendido, escuto.

─ Cristo, aqui Bedanda. Entendido. Terminado por agora.

Rapidamente o acampamento foi revistado e destruído. Acampamento recente, estava localizado numa zona de difícil acesso onde os guerrilheiros se sentiam seguros.

O capitão estava triste. Tinha morrido um oficial que era para ele como um filho. Gostava de ir com o capitão para todo o lado e tinha grande admiração pelo seu comandante de companhia. Depois de destruído o acampamento e assegurada na bolanha a segurança para se fazerem as evacuações, o capitão disse ao Fernandes:

─ Sou o responsável pela morte do Henriques. Quando a coluna se partiu eu estive a falar com ele e o rapaz parecia que adivinhava a morte. Estava muito triste. Devia tê-lo mandado para a retaguarda e passar o teu pelotão para a frente. Nunca me perdoarei.

─ O meu capitão não tem culpa. Cada um de nós morre quando tem de morrer. Tinha chegado a hora do Henriques. Se me passasse a mim para a frente e o Henriques para a retaguarda, a emboscada seria à retaguarda e o Henriques morria na mesma.

─ Talvez tenhas razão. Mas nunca mais esquecerei a cara de angústia quando foi ferido e a conversa que tive com ele.

─ Não pense mais nisso, meu capitão. Está aí o heli. Vamos fazer as evacuações.

─ Eu vou falar com o piloto. Trata de trazer o Henriques e os feridos.

O capitão, acompanhado do Lassen, do Joãozinho e do rádio telegrafista, dirigiu-se para o helicóptero onde falou com o piloto.

─ Um dos feridos já morreu. Foi o alferes Henriques. Peço-lhe para o levar para Bissau juntamente com os feridos.

─ Eu vou fazer isso,  embora o senhor capitão saiba que não nos é permitido levar mortos para Bissau.

─ O senhor pode dizer que ele morreu na viagem. Queremos evacuá-lo para Lisboa,  e se estiver em Bissau é mais fácil para nós.

─ Esteja descansado, senhor capitão, que eu levo tudo para Bissau.

Quando o corpo do Henriques e os feridos estavam dentro do helicóptero, o Lassen perguntou ao capitão se também podia ir.

─ Não, não podes. Tu podes é levar já duas lamparinas no focinho. No helicóptero só vão os feridos. Eu fico cá e tu também ficas.

─ Nosso capitão, olhe, eu também estou ferido.

Só nessa altura o capitão deu conta de que o seu guarda-costas estava a perder sangue. Para estar sempre ao lado do seu capitão durante a emboscada, o Lassen não disse a ninguém que também estava ferido e nem sequer tinha sido visto pelo enfermeiro. O capitão viu então a amizade e o respeito que aquele soldado tinha pelo seu capitão.

─ Desculpa, Lassen. Agora devias levar duas bofetadas por não me dizeres que estavas ferido. Vais embarcar depois de o enfermeiro te fazer um penso.

Penso concluído, o Lassen entrou no helicóptero. De dentro do helicóptero falou para o Joãozinho:

─ Joãozinho, eu vou para Bissau. Toma conta do nosso capitão.

O capitão ficou emocionado. Como era possível tanto amor, lealdade e ternura dum soldado para um capitão de Lisboa. Coisa que só a vida dura de combate na Guiné pode explicar.

Depois da evacuação dos feridos, o capitão deu ordem para regressar ao quartel onde chegaram por volta das cinco horas. Um avião sobrevoou o quartel e o capitão deu ordens ao 1.º sargento para ir à pista ver quem tinha chegado.

Quem chegava era o coronel comandante do sector. O capitão já estava de tronco nu e calças desapertadas, preparava-se para tomar banho.

O comandante do sector disse ao capitão.

─ Parabéns, Cristo. Foi uma operação em cheio. Você não deixa os guerrilheiros descansar nem um pouco.

─ Meu comandante, não aceito os parabéns. Tive quatro feridos e um morto. O morto é um oficial que era como um filho para mim. Por favor, tenha dó de mim e compreenda a minha tristeza.

─ É certo que teve um morto e quatro feridos, mas isso não pode ofuscar o êxito da operação. Dou-lhe os parabéns e quero falar aos seus soldados. Mande formar a companhia.

─ Talvez o senhor não saiba como está a companhia neste momento. As ordens que dei foram que quem quisesse comer ia comer, quem quisesse tomar banho ia tomar banho e quem preferisse ir dormir ia dormir. Isto significa que tenho homens a dormir, a tomar banho e a comer. A companhia não está em condições de formar.

─ Olhe, Cristo, eu já estou farto de ver homens nus e posso vê-los mais uma vez. Mande formar a companhia como estiver.

─ Ouviu, nosso primeiro? ─ perguntou o capitão. ─ Não está aqui nenhum oficial. O senhor vai formar a companhia e tem dois minutos para o fazer. Os homens podem formar nus. Formam como estão. Ninguém perde tempo a vestir umas cuecas ou umas calças. Dê ordem para formar a companhia e acompanhe o nosso comandante. Se me dá licença, meu comandante, eu vou tomar banho que era o que eu estava a pensar fazer. O nosso primeiro forma a companhia porque os nossos alferes, tal como eu, não estamos em condições de receber parabéns quando nos morreu um alferes. Isso é mais que suficiente para eu considerar a operação um fracasso.

Dito isto, o capitão que segurava as calças com as mãos, deixou-as cair e ficou em cuecas em frente do comandante e do 1.º sargento, que deitou as mãos à cara. O capitão, imperturbável, começou a descalçar-se, tirou as calças e as cuecas e foi tomar banho sem dizer nada ao comandante. Quando saiu do banho mandou chamar o 1.º sargento para saber o que se tinha passado. A companhia tinha formado, e a maior parte dos homens estavam de cuecas ou de calções. Mesmo assim, o nosso comandante tinha falado com eles e dito que não deviam estar tristes por terem feridos e por ter morrido um alferes, porque os guerrilheiros tinham tido mais baixas. A operação tinha sido um êxito.

O capitão foi para a messe, pediu uma cerveja e falou com os alferes.

─ Os sacanas hoje agiram com inteligência. Aquele tiro contra o primeiro branco da coluna foi o sinal para a emboscada. Sabiam que com esse tiro feriam ou matavam um oficial ou um sargento. O Henriques era o primeiro branco da coluna e eu o segundo. O Lassen levou um tiro numa perna que era dirigido a mim. Não fui ferido ou morto por muita sorte. Hoje renasci. O nosso coronel deve estar chateado comigo. Eu não podia fazer nada. É de muito mau gosto vir dar os parabéns a um capitão por uma operação com quatro feridos e um oficial morto. Há indivíduos que nunca serão capazes de compreender a mentalidade dos combatentes. Que se lixem.

─ Olhe, meu capitão, ─ disse o Manuel ─ eu não fui à formatura mas espreitei. Cumpriram-se integralmente as ordens. Formou rapidamente mas em cuecas. Alguns de tronco molhado, pois tinham acabado de sair do banho. O nosso comandante não viu os homens completamente nus mas fartou-se de ver corpos de homens quase nus. Talvez tenha aprendido a lição e na próxima já não nos chateie. Vamos beber mais uma cerveja para esquecer as tristezas. (...)

Emoção na hora da despedida, em julho de 1967:

Quando chegar a hora da despedida,  em meados de julho de 1967, o capitão Cristo, cmdt da 4.ª CCAC,  irá recordar com muita saudade, o Henriques (a par do Ribeiro, Cordeiro, Carvalho e Oliveira, os seus queridos alferes):

(...) O capitão estava emocionado porque não contava com este almoço de despedida. Quando falou no alferes Henriques, um dos mortos em combate, as lágrimas vieram-lhe aos olhos, pois a morte do Henriques estava muito viva no seu coração.(...) (pág. 373)

[Seleção, revisão e fixação de texto, negritos,  itálicos, parênteses retos e subtítulos: L.G.] (Com a devida vénia...)


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1956) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bedanda e dos rios Cumbijã, Ungauriuol (afluente do Cumbijã) e Lama (afluente do Ungauriuol)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)


2. Sinopse da Op Sobreiro, 21fev1967

Realizada para localizar e destruir as instalações inimigas referenciadas na região compreendida entre o rio Lama e o rio Ungauriuol, sector S3 (Bedanda), efectuando uma batida que foi executada por forças da CCav 1484,  4ª CCaç e Pel Can s/r 1154. 

Foram localizados 2 núcleos de casas que constituíam o objectivo, que foi destruído. O lN sofreu 3 mortos, além de outras baixas prováveis. As NT sofreram 2 mortos (o alf mil Américo Luís Santos  Henriques, natural de Ourém,  e o sold Sambel Baldé, natural de Bafatá, ambos da 4ª CCAÇ),   2 feridos graves e 2 ligeiros.

Fonte: Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II: Guiné: Livro 2. 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015, pág. 34. (Com a devida vénia...).

PS - No livro supracotado, há um erro sistemático em relação ao nome do rio, que não é Ungarinol, mas sim Ungauriuol (carta de Bedanda, escala 1/50 mil). Erro que vamos corrigir nos postes anteriores em que há referências a este rio, afluente do Cumbijã.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18860: Os 81 alferes que tombaram no CTIG (1963-1974): lista aumentada e corrigida (Jorge Araújo)

sábado, 17 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23623: (Ex)citações (416): Bedanda, erros e abusos, adesão dos balantas, biafadas e nalus ao PAIGC, batizado muçulmano. etnocentrismo... (Luís Graça / Cherno Baldé / António Rosinha)


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > 6 de Dezembro de 2009, domingo > 10h25 > Festa de baptizado muçulmano: Preparação da comida (I) 


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > 6 de Dezembro de 2009 > 
10h25 > Festa de baptizado muçulmano: Preparação da comida (II)... Há também o sacrifício de um carneiro nesta cerimónia destinada a escolher nome  da criança.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > 6 de Dezembro de 2009 > 10h26 >  Festa de baptizado muçulmano: Rapando a cabeça da criança, com uma gilete...


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > 6 de Dezembro de 2009 > 10h34 >  Festa de baptizado muçulmano: Mãe e filho. (Fonte: Poste P7686) (*)

Fotos (e legendas) : © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem  complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


1. Selecção de comentários aos poste P23615 (*)

(i) Tabanca Grande Luís Graça:

Nunca houve uma autocrítica das autoridades portuguesas (nem mesmo no tempo do Spínola, que reconheceu "erros e abusos" do passado...) em relação à aparentemente "tão fácil" adesão das populações do sul da Guiné à luta pela independência, sob a bandeira do PAIGC (balantas, biafadas, nalus...).

Mamadu Djaló, futa-fula, mulçulmano, um homem crente, sábio, tolerante, com valores, não gostou do que viu em Bedanda... E Bedanda não lhe deixou saudades. O mesmo Mamadu que deu o seu melhor (tinha cicatrizes no corpo), nomeadamente nos Comandos e na CCAÇ 21, pelo Portugal em que ele acreditava... O mesmo Mamadu que morreu, sozinho, no Hospital das Forças Armadas sem que Portugal alguma vez lhe tivesse reconhecido o seu sacrifício.

14 de setembro de 2022 às 14:01

(ii) Cherno Baldé:

Foi um grande prazer ler este excerto do livro do Amadu Bailo Jaló, uma memória prodigiosa, própria dos aprendizes do Alcorão (livro sagrado dos muçulmanos) e um formidável trabalho de tradução construtiva do amigo Briote.

Com estes testemunhos, começa a ficar claro, para quem ainda não sabia, porque é que a população do Sul, designadamente Balanta,  foi obrigada a escolher o outro lado da guerra, onde ninguém podia ficar neutro e/ou indiferente.

Todavia o Amadu Jaló deu alguns sinais de etnocentrismo ao julgar a comunidade Balanta segundo a tradição Fula e muçulmana do baptismo de uma criança, quando pensa que, necessariamente, devia haver bolinhos de farinha de arroz e nozes de cola num baptismo de Balantas, quando, na verdade, não tem nada a ver uma e outra coisa.

Também, suponho que o nome do prisioneiro de Cacine seria Mutna e não Mutna.

De resto, foi uma leitura bastante aprazível, esperando mais notícias deste fabuloso livro da vida bem movimentada de um valoroso Comando, Guineense e Português.

PS - A localidade designada por Sancoia no presente texto deve ser a mesma que nos mapas e grafias actuais é "Sanconha", perto da fronteira com a República da Guinée-Conakry. Não quero dizer que o Amadú esteja errado, pois que em África e na Guiné em particular há muitos casos em que as grafias se afastam do designação real por desconhecimento, erros de pronúncia ou de tradução.

15 de setembro de 2022 às 00:55


(iii) António Rosinha:

Nunca houve autocrítica das autoridades portuguesas, dizes tu, Luís Graça.

Talvez de facto Spínola como Presidente da República no 25 de Abril soubesse de alguns erros e abusos, mas não devia ser nem Spínola nem quem lhe sucedeu que devia mencionar os abusos, quem devia mencionar e seleccionar os abusos foi quem os sofreu.

Lembrou-me este pormenor uma intervenção de declaração na Internet de uma senhora nigeriana, súbdita de Isabel II, que a propósito de tantas loas a sua majestade, simplesmente diz que foi no reinado dela que se deu a terrível guerra civil na Nigéria...(e assim por diante).

Ora, estava ela a referir-se aquela que nós chamamos a Guerra do Biafra, que foi tremenda, talvez só em Angola com os 28 anos de guerra se assemelhe, estava essa senhora a atribuir responsabilidades à Inglaterra nessa guerra, e já haviam passado sete ou oito anos após a independência, como sabemos, quem tenha acompanhado.

Luís Graça, o povo africano, não os políticos, o povo africano é que vai julgar a Europa. Vai julgar e responsabilizar. E já o está fazendo, lentamente, mas já o está fazendo.

Parece-me a mim, talvez eu esteja a ver erradamente. Mas aquela súbdita de sua majestade penso que não está sozinha nas suas ideias.15 de setembro de 2022 às 15:34 (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 28 de janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7686: Notas fotocaligráficas de uma viagem de férias à Guiné-Bissau (João Graça, jovem médico e músico) (2): 6/12/2009, domingo, 1ª consulta, um baptizo muçulmano, um casório católico, uma visita a uma fábrica de caju... 7/12/2009, 2ª feira: 1º dia de consultas. 42 doentes à porta do C.S. Materno-Infantil de Iemberém

(**) Vd. poste de 14 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23615: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte I: Testemunho de Amadu Djaló (1940-2015), relativo ao período de dezembro de 1962 a junho de 1963

(***) Último poste da série > 15 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23620: (Ex)citações (415): Hoje decidi fazer mais uma pequena viagem ao passado, em Cobumba (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR)

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23620: (Ex)citações (415): Hoje decidi fazer mais uma pequena viagem ao passado, em Cobumba (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR)

Cobumba - António Eduardo Ferreira - Saída do abrigo

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 13 de Setembro de 2022:

Amigo Carlos Vinhal
Faço votos para que te encontres bem junto dos que te são queridos.
Um abraço


Hoje decidi fazer mais uma pequena viagem ao passado

Ultimamente apareceram uns trabalhos publicados no blogue falando do sítio onde durante algum tempo esteve a minha companhia. Refiro-me a Cobumba, junto ao rio Cumbijã - o que me tem levado a pensar naquilo com que por lá fomos confrontados, e que fez com que eu entenda melhor as dificuldades que a nossa companhia lá teve de enfrentar.

Pessoal novo, por lá, só estavam crianças, algumas que diziam ser oriundas de Bedanda. Os mais velhos eram poucos, estavam por lá todo dia e de lá não saíam. Chegava a acontecer, em alguns dias, aparecerem por ali vários homens mais novos, não sabíamos de onde vinham, que passavam o tempo que lá estavam, a beber numa espécie de taberna que tinha sido feita depois de nós lá termos chegado, cujo dono servia de tradutor quando era necessário falar com alguma população que não conhecia a nossa língua. Quando chegava o fim da tarde iam todos embora, na maioria bêbados. Às vezes acontecia cenas de pancadaria entre eles em que nós agíamos como se nada estivesse a acontecer… era problema deles.

Outra coisa que me deixava algo pensativo era um filho do chefe da tabanca ir todos os dias à escola a Pericuto, que ficava próximo de Cobumba, mas onde nós não íamos. Essa escola só podia ter a ver com o PAIGC. Esse menino que era chamado por Zé, um dia disse-me que aquilo que mais os assustava, antes da nossa tropa ter ido ocupar aquela zona, era o passarinho grande - o avião quando por lá andava a bombardear. Disse-me também que quando andavam na bolanha deitavam-se, só ficavam com um olho fora de água até que o avião fosse embora.

Naquele sítio estava a maioria da formação da nossa companhia, e mais dois pelotões, assim como o pessoal encarregado do morteiro, creio que era calibre 120, e alguns elementos que tinham a seu cargo o canhão sem recuo. Já antes de nós lá termos chegado, existia um abrigo, debaixo de um mangueiro, onde parte da população, durante alguns dias, passava a maior parte o tempo - o que era para nós motivo de preocupação…

A nossa companhia ocupava dois dos três sítios que ficavam a uma distância de cerca de trezentos metros, em linha reta, uns dos outros. Havia mais um grupo de tropa que compunha o triângulo, onde existia população, não sei a que companhia pertenciam, chegaram depois de nós. Apesar de ficar a pouca distância de nós, apenas lá fui dentro uma vez, em que estava de serviço, com a viatura para retirar lixo. Se o tempo de serviço de reforço durante a noite acontecia-nos todos os dias, já o serviço de condução não era assim. Próximo do fim da nossa permanência ali, chegou a ser com um intervalo de cerca de dez dias.

Localização de Cobumba no itinerário Bedanda/Estrada de Catió


Quando fomos para lá, levámos quatro viaturas, uma acionou uma mina logo no dia que chegamos, com o passar do tempo, foram todas destruídas por minas, sendo possível recuperar só uma delas que depois acabou também por avariar no dia que viemos embora. Por consequência foi necessário cada um transportar as suas coisas às costas para a LDG até ao rio Cumbijã. Ironia do destino, eu estava tão fragilizado que não as conseguia levar, apenas levei a G3, tive de pagar a um elemento da população que tinha sido carregador do PAIGC para as levar - chamava-se Miranda, dizia ter chegado a ir com granadas à cabeça, junto com os guerrilheiros, até ao Xitole.

Outra das coisas que por lá aconteceram, que algumas vezes me ocorre à memória, tem a ver com uma menina elegante e muito bem vestida que certo dia lá apareceu, não ficamos a saber de onde tinha vindo, acompanhada por vários meninos, com uma galinha para vender, coisa que nunca tinha acontecido, nem voltou a acontecer. Galinha essa que alguns condutores lhe compramos. Isto aconteceu da parte da manhã, durante a tarde, nesse mesmo dia, fomos flagelados à distância, três vezes. Quando começou o ataque, estava o nosso camarada, o condutor Cruz, dentro da vala a começar a fritar a galinha. Toca a recolher para o abrigo, como era normal. Quando supúnhamos que a flagelação tinha terminado, voltamos a sair, pouco depois voltaram a atacar e nós recolhemos uma vez mais. Quando imaginávamos que a festa tinha acabado, aconteceu o terceiro ataque. Foi então que o Cruz, depois de sair do abrigo disse:
- Agora, voltem a atacar ou não, enquanto não fritar a galinha não volto mais para o abrigo.

Mas ao fim do terceiro ataque, naquele dia, as coisas acalmaram.

Foram estes alguns dos momentos que lá passámos, não falando nos mais dramáticos que aconteceram, que foram muitos, mas esses é melhor procurar esquecer.

António Eduardo Ferreira

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23587: (Ex)citações (414): Um "presente envenenado": a minha transferência da CCAÇ 1621 para a CCAÇ 6, em 1/7/1967, em substituição do alferes miliciano acusado de roubar o arroz às "mulheres do mato" (Hugo Moura Ferreira)

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23615: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte I: Testemunho de Amadu Djaló (1940-2015), relativo ao período de dezembro de 1962 a junho de 1963

 

Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada. 

Em rigor, o livro (escrito na primeira pessoa, portanto autobiográfico) deveria ter como segundo autor, o nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf  mil,  CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966),  que fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk"... Referindo-se a esse trabalho, o nosso crítico literário, Mário Beja Santos, escreveu aqui (*): 

(...) "Este livro é um sortilégio, sente-se permanentemente o pulsar de uma cumplicidade de alguém que não renega a identidade ou ilude os diferentes níveis da memória e de um outro que escuta, reelabora, clarifica, adensa a trama. O produto final é brilhante, deixa perceber a intimidade do Eu e a disponibilidade do Outro. Fica-se com orgulho pela obra feita pelo Virgínio Briote, o Outro que garante um relato estuante transformado na árvore da vida.
“Guineense, Comando Português” é uma soberba colectânea de memórias, assegura a visão prismática de um fula que se orgulha das suas origens e que se releva apaziguado, propondo a todos os seus leitores guineenses que façam um esforço de reconciliação.

"(...) A dupla Amadú Djaló – Virgínio Briote é um monumento de camaradagem inesquecível, um testemunho que os historiadores não poderão evitar." 



1. Quando o livro foi publicado, Amadu Djaló então com 69 anos, era, como escreveu o seu editor, camarada e "cúmplice", Virgínio Briote, um dos raros sobreviventes que podia falar de todos os anos que durou o conflito, de 1962 até ao fim.


"Incorporado em 1962, percorreu todo o território onde se combatia na então província portuguesa. Futa-Fula, natural de Bafatá, oriundo de famílias da antiga Guiné Francesa, Amadu escolheu um dos lados, combateu no Exército Português, ao lado de milhares de guineenses. (...) Em 1964, ingressou nos Comandos do CTIG e fez parte de um dos primeiros grupos então formados em Brá, perto de Bissau". (...)

É justamente dos primeiros tempos da sua vida militar que queremos falar hoje. Em homenagem à sua memória, e com a devida vénia aos seus herdeiros, à Associação de Coamndos (que oportunamente, ainda em vida do autor, editou livro, entretanto há muito esgotado), e com um especial agradecimento ao Virgínio Briote que nos facultou o "manuscrito" (em formato pdf),  vamos reproduzir aqui alguns excertos, sem as resepctivas fotos,   excertos esses que correspondem ao tempo em que o Amaduy Djaló, sendo soldado condutor auto, esteve na 4ª CCAÇ, em Bedanda, de dezembro de 1962 a junho de 1963 
(pp. 27-35). (Fez a recruta em Bolama, e a instrução de especialidade no CICA/BAC 1, em Bissau; depois de Bedanda, conseguiu a transferência para a 1ª CCAÇ, instalada em Farim a partir de 1 julho de 1963.)

Este é um valioso (e raro) testemunho, escrito na primeira pessoa do singular, sobre os  primeiros tempos da 4ª CCAÇ, em Bedanda, e o início da guerra no sul do território... Repare-se que no final de 1962 ainda se ia do Enxudé,  na região de Quínara até Bedanda, passando por Tite, Buba e Aldeia Formosa, e daqui até Catió e Cacine, em viatura, de viatura, praticamente sem escolta... 

A guerra (oficialmente iniciada em Tite, em 23 de janeiro de 1963) veio alterar complemente o mapa do sul da Guiné, com destaque para os sectores de Bedanda, Catió e Cacine. A administração portuguesa vai perder rapidamente o controlo de uma série de povoações. E o PAIGC começa a pôr os seus primeiros "pioneses" no seu mapa das "áreas libertadas"...


Sem saudades de Bedanda (dez 61/ jun 63)

por Amadu Bailo Djaló


Na 4ª CCaç, em Bedanda

No dia seguinte, 28 de Dezembro de 1962, embarcámos no porto de Bissau, com destino ao Enchudé, para depois seguirmos para Bedanda, para a 4.ª Companhia de Caçadores Indígenas.

Ninguém gostou da colocação. Foi uma viagem silenciosa, sem entusiasmo. No Enxudé, aguardava-nos um jipão com uma pequena guarnição de soldados europeus, chefiados por um 1º cabo.

–   Pessoal, são vocês os condutores que vão para Bedanda? Toca a subir.

Feita a arrumação, prosseguimos para Tite, outra localidade de passagem. Entrámos no quartel e aguardámos pelo almoço, anunciado pelo tocar da corneta. Ninguém tocou na comida, era carne de porco. Em substituição, deram-nos rações de combate. Depois de comermos, seguimos para Bedanda, com passagem pelo porto de Cobumba.

Quando chegámos a Cobumba, no rio Cumbijã, avistámos na outra margem, colegas gesticulando e gritando, em grande alvoroço, muito satisfeitos com a nossa chegada. Éramos nós que os íamos substituir.

As canoas chegaram e despedimo-nos do cabo e do soldado condutor. Responderam que só se iam embora, quando tivéssemos atravessado o rio. Na outra margem fomos recebidos pelos companheiros que vínhamos render, com grande entusiasmo, abraços, galhofeira e conversa animada. E do outro lado do rio vimos os companheiros que nos escoltaram, a acenarem, num adeus de despedida.

Na viagem até ao porto de Cobumba tínhamos sido escoltados por soldados brancos, e nesta, que nos levou a Bedanda, fomos escoltados por soldados negros.

Assim que chegámos ao quartel de Bedanda, fomos à arrecadação para levantar armas, munições, camas, lençóis e cobertores. Íamos começar nova vida e exercer a nossa especialidade de condutores.

No dia seguinte, procedeu-se à distribuição das viaturas. Um condutor foi destacado para o Chugué, outro para Caboxanque e ficámos oito condutores em Bedanda. Sete tiveram carros, jipes e Unimogs, e o outro mais moderno, que era eu, ficou com uma Ford Canada, uma viatura muito velha, que largava um fumo muito negro, com mudanças à esquerda e quente como o inferno. Aguentei-a até à chegada do alferes Mendes.

O alferes tinha sido meu instrutor na recruta, em Bolama, e dedicava-me amizade. Quando, de manhã, íamos para a instrução, trazia sempre dois pregos, um para ele e outro para mim.

Ficou muito surpreendido quando me viu entre os colegas ali presentes.

– Amadu, tu aqui, em Bedanda?

Contou que, no regresso das férias em Portugal, tinha passado na 4.ª repartição do QG e, quando procurou saber do meu paradeiro, informaram-no que eu tinha sido colocado no Gabu.

Não lhe dei a conhecer o que tinha acontecido sobre a minha colocação em Bedanda, disse-lhe só que tinha sido eu quem tinha pedido para ser colocado aqui. Uma mentira minha, para evitar complicações.

Mas, regressando às viaturas. O alferes Mendes perguntou:

– Já tens carro?

 – Tenho, sim, meu alferes. É aquele, ali em frente   
  apontei.

 – Aquele ? Vai chamar o nosso sargento-mecânico.

Na presença deste, disse-lhe o alferes:

 
   Arranje outra viatura para o Amadu. É um soldado da minha confiança e nas colunas passa a sair comigo.

E em vez da velha Ford Canada passei a conduzir um Unimog 411.

A minha primeira saída ocorreu nos primeiros dias de Janeiro de 1963, não me lembro agora exactamente da data. Pelas 20h00, uma força constituída por um pelotão de militares africanos, com furriéis europeus, comandado pelo alferes Mendes e outro de milícias, partiu de Bedanda em direcção a Cabedú, em cinco viaturas, quatro Unimogues e um jipe, conduzido por mim.

Chegados ao cruzamento de Cafal, pelas 23h00, os pelotões seguiram a pé, embrenhando-se na mata e nós, os condutores, trouxemos as viaturas para Cabedú, um percurso que não demorou meia- hora.

Quando chegámos arrumámos as viaturas, dispostos a dormir, o que foi impossível com tantos mosquitos. Tivemos que acender uma fogueira, e estivemos acordados até quase às 05h00 da manhã, altura em que fomos ao encontro da patrulha.

Saímos da estrada no local onde os tínhamos deixado e seguimos a picada que tinham tomado. Antes de atingirmos Cafal Nalu, Bacar Sambu, o condutor mais antigo em Bedanda, e que, por isso, caminhava à frente, viu na estrada um objecto estranho. Evitou tocá-lo e a seguir parou. A minha viatura seguia atrás da dele e o Bacar fez-me sinal para parar. O tal objecto ficou debaixo do pára-choques do meu jipe.

– Apanha aquela coisa    disse-me o Bacar.

Ao abaixar-me para ver o que era, senti o meu coração bater mais depressa. Levantei-me rapidamente e perguntei-lhe o que era aquilo?

 
  Não sei  respondeu Bacar. – Tens medo?

Claro que tinha. Bacar saiu do Unimog, aproximou-se e, quando ia apanhar o objecto, pedi-lhe para me deixar primeiro tirar o jipe.

Podia ser uma granada ou qualquer armadilha. Bacar começou a recuar. Tomámos a decisão de não mexer em nada e prosseguir a caminhada para recolher os militares que se encontravam em patrulha, passando por Cafal Nalu e Cafal Balanta.


Quando chegámos à ponte avistámos os militares que vinham de Cafine. Entraram para as viaturas e, com o jipe à frente, iniciámos a viagem de regresso para Bedanda, com o alferes Mendes ao meu lado. Depois de passarmos por Cafal Balanta e Cafal Nalu, relatei ao alferes que tínhamos visto na estrada um objecto que nos pareceu suspeito. Que parecia uma garrafa de plástico, pequena, de cor preta, com uma tampa verde, que estava aberta, com uma fita vermelha pendente.

Quando chegámos ao local, o alferes parou a uma certa distância e foi, a pé, examinar o objecto. Vi-o tirar a pistola e depois de três ou quatro tiros, ouviu-se uma explosão.

 
  É a granada espanhola que perdi na caminhada  disse um furriel.


Mutma, prisioneiro em Cacine

Cacine era uma povoação agradável, a população era quase toda de etnia nalu e, na altura, tinha um pelotão independente [1], comandado por um alferes chamado Brandão, reforçado com duas secções, uma da nossa 4ª  Companhia de Caçadores. Por isso íamos a Cacine quase todas as semanas.

Na primeira vez que lá fui, chegámos a Cacine cobertos de pó. Perguntámos onde podíamos tomar banho e indicaram-nos uma fonte junto ao arame farpado.

A ajudar a acarretar água para o quartel estava um rapaz da nossa idade, com o corpo coberto de feridas, com marcas de chicotadas, um ar cansado. Julguei que fosse algum militar que tivesse sido castigado. O que terá feito para sofrer castigo tão forte, perguntei para mim. E, curioso, perguntei-lhe o que tinha acontecido.

– Bateram-me   respondeu.

 – Quem te bateu?

– Pessoal da tropa.

 – E porquê?

 
– Sou prisioneiro.

Em Janeiro de 1963, quando estava em Bedanda, secções de tropas europeias e africanas encontravam-se destacadas em algumas tabancas, para a segurança das populações. Havia no Chugué, Boche Cul, Caboxanque, Gadamael Porto e Cacine.

Num dia que me não lembro ao certo[2], uma viatura com um furriel ou 2º sargento e alguns soldados vieram passar o dia ao quartel de Bedanda. À tardinha regressaram a Boche Cul e nessa mesma noite foram atacados a tiro. Um soldado, que estava de sentinela, matou o guerrilheiro que o estava a atacar com uma catana e acabou também por ser morto com uma rajada de tiros disparada por outro guerrilheiro. Quando o comandante da secção ouviu os tiros foi em defesa do soldado, e foi também ele abatido pelo PAIGC. Eram onze ao todo com o furriel. Tiveram dois mortos[3] e a maioria foi ferida.

Nós, em Bedanda, ouvimos os tiros. Organizou-se uma coluna comandada por um alferes e chegámos lá noite escura. Só quando, ao longe, viram as luzes das viaturas, os feridos e sobreviventes saíram do celeiro e aproximaram-se de nós. Passámos lá a noite e no dia seguinte arrancámos para Bedanda, com os dois corpos, os feridos já tinham sido transportados durante a noite para Bedanda. Os corpos ficaram no Unimog a aguardarem que viesse algum heli recolhê-los. Não apareceu, tivemos que os enterrar fora do aquartelamento, junto ao arame farpado de Bedanda.

Houve logo ordem para recolher todas as secções e, três dias depois, já não havia nenhuma destacada nas tabancas. Fui, nessa altura, numa coluna, a conduzir o Unimog que me estava distribuído, levar a secção que estava em Gadamael Porto para Cacine. E fiquei lá com a viatura a arrastar troncos de árvores para fazer os abrigos. O meu serviço passou a ser ir buscar troncos de árvores para a construção de abrigos, que em Cacine, naquele tempo, nem um tinha.

Em Bedanda a situação andava muito tensa, ocorriam, por vezes, denúncias, acusações e espancamentos. Quando soube que em Cacine precisavam de um Unimog, fui ter com o Aaferes Mendes e pedi-lhe para me deixar ir para lá.

Parti no dia seguinte. Cheguei a Cacine para cumprir um período de serviço, que sabia ir ser por pouco tempo. Depois de arranjar alojamento, fui-me lavar à fonte. Quando me dirigia para lá passei junto à prisão e vi o tal moço com o corpo coberto de feridas.

O Mutma, assim se chamava o moço, passou a ir comigo no carro trazer os troncos das árvores. Um dia, o alferes disse que queria um porco, se eu podia arranjar um junto de alguma tabanca.

Em Cacine a população era muçulmana, ninguém criava porcos. Disse ao alferes que eu podia falar com o Mutma, que era balanta, talvez ele soubesse onde se podia arranjar. Fomos em dois carros à tabanca do Mutma e escolhemos um bom porco, que em Bissau podia custar à volta de dois mil escudos e trouxemo-lo por quinhentos. Depois, o Mutma passou a ser minha companhia assídua. Um dia disse-me:

 –   Amadu, lembras-te da vez em que me encontraste na fonte, quando me perguntaste o que é que eu tinha no corpo?

 
   Sim, lembro-me.

– Quando ouvi o ruído das viaturas a regressarem a Bedanda, fiquei satisfeito por te ver ir embora. Tinha medo de ti. Agora voltaste, tiraste-me da prisão, vou contigo a todo o lado, jogo futebol convosco e só volto à prisão quando vou dormir. Antes comia os restos, agora como no refeitório.

– Mutma, as pessoas enganam-se, às vezes.

Mutma acabou por ser libertado e regressou à tabanca dele. Mais tarde, como aquelas tabancas deixaram de ter a protecção da tropa, foram recolhidas pelo PAIGC e vim a saber, já depois do 25 de Abril, que Mutma tinha morrido na guerra.


Condutor, nunca mais

Uma secção pertencente à guarnição de Buba[4], que estava destacada em Gadamael, foi mandada recolher a Cacine, para reforçar o pelotão independente[5], e pediu ao alferes duas viaturas, um jipe e um Unimog, para se deslocarem a Buba, a fim de receberem os salários e trazerem alguns materiais em falta.

Na véspera à noite, por volta das 22h00, fomos encarregados de recolher em Cacoca ou em Sanconha uma secção nossa que se encontrava em patrulha na zona, junto à linha da fronteira.

Chegados a Cacoca, à hora e local combinado, como a patrulha não apareceu até à 01h00 da madrugada, dirigimo-nos para Sanconha, onde ficámos até às 04h00.

Voltámos para trás, a Cacoca, e também não a encontrámos. Como não sabíamos o que se estava a passar com a secção, regressámos ao aquartelamento de Cacine e fui-me deitar.

O furriel atestou a viatura e, mal tinha acabado de adormecer, acordaram-me. Eram mais ou menos 6h30, peguei na viatura e rumámos a Buba. Quando chegámos a Sanconha, fomos alertados pelo guarda alfandegário que os militares da secção que devíamos ter recolhido na noite anterior, tinham regressado por volta das 05h00 e estavam a dormir numa casa ali perto.

O furriel disse-me para os ir acordar e, juntamente com um soldado, levá-los rapidamente a Cacine e que devia regressar logo para retomarmos o nosso caminho para Buba. Assim fiz, peguei na patrulha, levei-a a Cacine e regressei a Sanconha.

Quando chegámos a Gadamael, parámos para entrar o régulo de Froia, Baro Baldé, uma das esposas, três filhas e quatro homens com cinco balaios grandes, cada um com 40 a 50 quilos de noz de cola. Foi nessa altura que eu descobri por que é que eu trazia um atrelado na minha viatura.

Retomámos a marcha. Estávamos na descida para a ponte, no rio Balanazinho, com o sol da manhã a bater-me na cara e adormeci. O carro entrou numa valeta bem funda, inclinou-se e acordei dentro da vala, com um pé no travão e o Unimog inclinado. Parecia-me que estava a sonhar, ninguém se mexia até que ouvi uma voz de mulher a gritar, na língua fula, “Ai, minha mãe, o carro virou”.

Conseguimos pôr a viatura na posição normal e, com a ajuda de todos, tirámos o carro da vala, sem nenhum ferido nem danos e prosseguimos a nossa marcha para Quebo[6], onde se apeou o régulo, a família, os acompanhantes e a carga.

Logo depois da chegada a Buba fui ter com o furriel e disse-lhe que não queria conduzir mais na minha vida, mas como ele não me quis ouvir fui procurar o comandante[7].

– 
Meu comandante, eu nunca mais quero conduzir! – e pousei as chaves da viatura na mesa dele.

– De onde vieste, qual é a tua unidade?

Mandou chamar o furriel e perguntou-lhe o que tinha sucedido. Que tinha havido um pequeno acidente, sem consequências, respondeu.

– Não entregas aqui a chave, entrega-la na tua unidade, em Bedanda, e vou arranjar um condutor para levar a viatura para Cacine    disse o comandante, voltado para mim.

E avisou o furriel que não voltasse a vir a Buba com apenas duas viaturas, que agora era muito perigoso. Que, quando regressássemos iríamos integrados numa coluna.

No dia seguinte, depois do café, partimos numa coluna de seis viaturas, escoltados até Cacine. A minha viatura foi conduzida pelo Madalena, um soldado muito conhecido em toda aquela zona, comigo ao lado dele.

Quando chegámos a Cacine, quando o alferes Brandão me viu sentado ao lado do condutor quis saber o que se tinha passado. Depois, falou comigo, aconselhou-me e voltei a pegar no volante.


Patrulhas em Bedanda

Estive destacado em Cacine cerca de três meses, de Janeiro a Março de 1963, altura em que me mandaram voltar a Bedanda.

Dias depois de regressar fui integrado num grupo de combate da 4ª Companhia de Caçadores, comandado pelo 1º cabo Martins.

O nosso objectivo era patrulhar as tabancas até Incala. Depois de atravessarmos o rio, entrámos em Contubum, uma pequena tabanca balanta, com algumas casas. À porta de uma, estava um homem grande, descalço, barba branca, com um grande pano vermelho que lhe cruzava o tronco, e um barrete vermelho a cobrir-lhe a cabeça, também toda branca. O 1º cabo Queba Sanha disse ao 1º cabo Martins:

– Eu conheço aquele homem, vi-o em Caboxanque. Não sei o que é que ele está aqui a fazer.

Queba e o cabo Martins foram ter com ele e entraram na casa. Martins fazia perguntas, Queba era o intérprete. O que está aqui a fazer, desde quando está aqui na tabanca, se tem visto pessoal do PAIGC, se conhece alguém da guerrilha, se eles vêm cá à tabanca.

Eu encontrava-me à porta, a ouvir a conversa e, a certa altura, o que ouvi foi o barulho de uma estalada. Na varanda da casa, estava um velho, sentado, a mulher, velha também, a cozer uma cabaça e uma menina, filha deles, de 14 ou 15 anos, também sentada, a torcer pontas de um pano novo, daqueles panos com que se vestem.

Com o barulho da estalada, calaram-se todos. Aproximei-me e, quando cheguei junto da menina, vi lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo.

– 
O que é que se passou?    perguntei.

Que tinha sido um rapaz que lhe tinha dado uma bofetada. Porquê, quis eu saber.

Ela tinha as pernas unidas, um soldado quis abri-las, ela fazia força para ele não conseguir e ele deu-lhe um estalo.

Saí e perguntei quem tinha sido o soldado que tinha acabado de sair da casa. Um apontou para outro. Na frente de todos, perguntei-lhe se ele ficava contente se fizessem o mesmo a uma irmã dele. Não respondeu, olhou para o chão.

Entrei na casa e contei o que tinha acontecido ao cabo, que saiu logo, zangado, e disse ao soldado que se voltasse a fazer uma coisa dessas, voltaria sozinho a Bedanda.

Mas as coisas não ficaram por aqui. Quando chegámos à outra tabanca, Rossum Óle, o Queba avisou as pessoas que cada casa lhe tinha que dar cinco galinhas, que as levava quando regressasse. O cabo Martins não contrariou, nem disse nada.

Prosseguimos para Incalá, chegámos entre o meio-dia e a uma hora. Algumas pessoas da tabanca estavam a comer. Quase todos os soldados entraram nas casas, tiraram as malas para fora e abriram-nas, algumas com tiros das Mausers. Tiraram panos novos, dinheiro, ouro, o que puderam. No fim de pilharem as casas deitaram-lhes fogo. No regresso, recolheram as galinhas da outra tabanca. Os únicos que saíram dali sem nada foi o cabo Martins e eu.

Casos destes passaram a ser frequentes e, a partir de certa altura, deixei de me sentir bem em Bedanda.


Noutra saída com o alferes Gonçalves, chegámos de surpresa a uma tabanca de que não lembro o nome. Ninguém ouviu as viaturas. Quando estávamos a chegar junto das casas, ouvimos ruídos de gente a fugir, muita gente, talvez mais de cinquenta pessoas e ainda os vimos a correr para a mata.

O alferes chamava pelo Ansumane, “ó Ansumane, não corram, pá, somos nós, porque estão a fugir?” E gritou alto para nós, “não façam fogo, não façam fogo”. Ninguém disparou.

O alferes sentou-se numa cadeira de bambu, feita por eles, com as mãos na cabeça, quase a chorar. O Ansumane ganhou coragem, regressou com os companheiros à tabanca. Então, o alferes perguntou-lhe:

– Por que é que estavam a fugir? Nós não vos fazemos mal!

Que tinham tido medo, quando nos viram chegar sem eles terem ouvido o barulho dos carros.

– 
E que estão aqui a fazer tantos homens? Morreu alguém?    perguntou o alferes.

– 
Não, nós só estávamos todos reunidos para dar o nome a um bebé, recém-nascido.

Nós sabíamos que era mentira. Não havia farinha e se fosse verdade o que ele estava a dizer, deveria haver muitas bolinhas de farinha de arroz com açúcar e noz de cola e no local não vimos nada disso.

Era uma grande reunião do PAIGC.


Férias em Bafatá

Em bril  [de 1963]
, quando me estava a deslocar para Bafatá para gozar férias, junto da minha família, encontrei em Bambadinca alguns soldados do pelotão independente[8] de Cacine, com quem tinha estado há cerca de um mês. Foram eles próprios que me reconheceram e me chamaram.

 – O que é que vocês estão a fazer aqui?    perguntei, admirado.

Que tinham sido colocados em Bambadinca, responderam, muito contentes.

Uma semana depois, em Bafatá, ouvi contar que algumas viaturas civis de transporte de fruta tinham sido aprisionadas no sul e que um dos ajudantes de motorista[9] tinha sido aprisionado e levado para o PAIGC.
A partir desta altura as viaturas civis deixaram de circular sozinhas.

Depois, quando as férias começaram a aproximar-se do fim,  o meu pensamento estava no regresso a Bedanda.
A terra era bonita, a gente era boa, da minha etnia. Mas estavam a viver-se os primeiros tempos da guerra, andava muita coisa no ar, denunciavam-se pessoas por tudo e por nada.

Despedi-me dos meus pais com as lágrimas a escorrerem-lhes pelas faces e entrei para a camioneta de transportes, que me ia levar para Bissau.

No meu último dia de férias apresentei-me no QG e lembrei-me de procurar o capitão Simões, na 4.ª repartição, para lhe pedir que me tirasse de Bedanda.

Quando entrei no gabinete do capitão apercebi-me que já não era capitão, tinha sido promovido. Fixou-me demoradamente, talvez tentando lembrar-se de onde me conhecia.

– Então, tu ainda estás cá?

– 
Meu major, nós já fomos todos colocados.

– E, agora, o que queres?

– 
Vim cumprimentar o meu major e solicitar mais um favor, que me transferisse de Bedanda.

O major Simões, que tinha um capitão junto dele, virou-se para ele e disse:

– 
Estás a ver o que vais ter de enfrentar nesta repartição? Este soldado apareceu aqui, há três ou quatro meses, a pedir que o tirasse do CICA. E agora, aqui está ele outra vez, a pedir outra transferência. E eu a pensar que ele me vinha agora agradecer.

E, fixando-me:

–  Olha, isto não é assim. Tens que requerer a transferência, indicando para onde pretendes ir.

– 
Meu major, eu já requeri duas vezes. E por duas vezes foi indeferido o meu pedido!

– 
E porquê? Talvez, por falta de substituto ou por ninguém querer ir para lá, não?!

– 
Mas a mim, meu major, ninguém perguntou se eu queria ir para Bedanda! E mandaram-me para lá!

– 
E para onde queres ser transferido?

– 
Para a 1ª CCaç[10], se fosse possível, meu major.

– 
Bem, vou ver, não prometo nada. Vou saber junto do comandante da 1ª CCaç quais as possibilidades. Passa por cá amanhã, pode ser que já haja novidades.

Saí dali, para casa, cheio de esperança. No dia seguinte, ainda não eram 10h00, lá estava eu no QG, à porta da 4.ª Rep.

– 
Meu major, dá licença?

– 
Estás transferido para a 1.ª CCaç    E continuou:

– 
Olha, não sejas ingrato. Se amanhã a 1ª CCaç for transferida para a zona da fronteira com o Senegal, Ingoré, Bigene ou Farim[11], tu vais, ouviste?

Pareceu-me um sonho, uma notícia tão rápida.

– 
Meu major, eu ainda tenho de ir a Bedanda, entregar os materiais que estão à minha responsabilidade. Desculpe o incómodo, meu major, mas eu gostava de levar uma carta para o nosso capitão de Bedanda, indicando os motivos da minha transferência.

– Não vale a pena. Já foste transferido e a informação já foi para Bedanda.

– 
Desculpe a insistência, meu major. Peço encarecidamente que escreva ao nosso capitão de Bedanda, informando sobre a minha transferência.

Pegou num papel, começou a escrever e no fim entregou-mo, com a recomendação de entregar a carta pessoalmente ao capitão de Bedanda[12].

Fui-me apresentando todos os dias no QG, procurando saber da data do barco para Bedanda. Durou cerca de duas semanas esta espera e fiquei a saber que também se encontravam em Bissau dezasseis militares a aguardarem transporte.

Chegado o momento do embarque, com a guia de marcha na mão, compareci, bem cedo, no cais de Bissau. Abraços e lenços de despedida a acenar e o barco afastou-se, lentamente, para sul, rumo a Catió.

Sem saudades de Bedanda

Antes de chegarmos a Catió,  desembarcámos em Bolama. Talvez devido à euforia que sentia, lembrei-me de mostrar aos meus companheiros de viagem a carta do major Simões para o capitão de Bedanda.

– 
Quem te deu essa carta? – perguntou  um colega.

– Foi o nosso major que me conseguiu a transferência para Bissau, para a 1.ª CCaç.

– 
Por que é que não nos disseste nada? Devias falar-nos, para também pedirmos!

– 
Não falei, porque éramos muitos. Se pedisse para todos,  estragava a minha sorte!

Na manhã do dia seguinte desembarcámos em Catió. Agora tínhamos que procurar que no quartel nos arranjassem transporte para Bedanda.

– 
Não disponho de viaturas nem desloco os meus soldados sem ordem expressa de Bissau  informou-nos o capitão.

Não contávamos com esta resposta, mas não podíamos fazer outra coisa se não procurar um local para ficar. Dirigimo-nos para o bairro Príame, onde cada um encontrou hospedagem em casas de amigos ou conhecidos.

Eu fui para casa do João Bacar Jaló[13], que comandava, na altura, os caçadores nativos. Quando lhe falei das nossas dificuldades em arranjar transporte para Bedanda, o João Bacar prontificou-se a escoltar-nos, mas que, primeiro, eu tinha que ir pedir transporte ao administrador.

Na manhã seguinte dirigimo-nos à administração do concelho, onde fomos recebidos pelo administrador.

– Se vocês tiverem escolta, dou-vos a camioneta. Mas, sem escolta, o transporte não se faz!

Escolta já tínhamos, o João Bacar dava-nos. O administrador chamou o seu condutor, o Aliu, e disse-lhe que aprontasse a viatura.

Seguimos para o bairro Príame, onde o João Bacar nos aguardava com os seus homens. João Bacar distribuiu os seus homens, uns à frente e outros atrás, ficando nós, os escoltados sem armas, no meio. Tudo arrumado, seguimos em direcção ao porto de Cobumba, onde chegámos sem qualquer novidade.

Quando chegámos a Cobumba telefonei para o quartel, a dar conhecimento da nossa chegada e pedi que nos mandassem uma viatura. Minutos depois, uma nuvem de pó levantava-se na estrada e anunciava a chegada do nosso transporte.

Entretanto João Bacar avisou-nos que só retiraria quando tivéssemos atravessado o rio para a outra margem. Assim fizemos. Terminada a travessia e montados na viatura, João Bacar e os seus homens acenaram-nos e retiraram-se.

Quando chegámos a Bedanda fomos apresentar-nos. Chegada a minha vez, o 1º sargento disse que tinham recebido uma mensagem com a informação da minha transferência para a 1ª CCaç.

– É verdade, meu sargento, vim entregar o material que estava à minha responsabilidade.

– 
Mas vais fazer serviço até à chegada de barco.

Passados alguns dias chegou um barco carregado com géneros. Tinha sofrido um ataque de que resultou um ferido grave que acabou por morrer e ser enterrado em Bedanda.

Preparei as malas para o regresso que, no meu pensamento, estava para breve. Recebi das mãos do 1.º sargento os pagamentos que me eram devidos e disse-me que partiria no dia a seguir. Não foi assim.

A protecção dos aviões ao barco, por um motivo imprevisto, não se pôde fazer e a viagem teve que ser adiada para dois dias depois. Aproveitando essa disponibilidade, o 1º sargento informou-me que eu iria voltar a entrar de serviço nesse mesmo dia. E eu, disse-lhe que não achava bem.

– Se não te apresentares ao serviço, levas uma porrada!

– Está bem, meu sargento! Posso levar a porrada, mas não faço o serviço!

Mandou-me acompanhá-lo ao gabinete do alferes Gonçalves.

– Este gajo, meu alferes, está hoje de serviço e recusa-se a fazer.

– Não queres fazer o serviço porquê?    perguntou-me o alferes.

– 
Meu alferes, o nosso 1º sargento, pelos serviços prestados até ontem, pagou-me. Mas, pelo serviço de hoje, não me vai pagar, porque embarco amanhã!

O alferes virou-se para o 1º sargento:

– Se lhe pagar, ele, de certo, faz o serviço!

Saímos juntos, cada um para seu lado, eu com ar de vencedor e ele, um tanto comprometido.

Embarquei no dia seguinte, na companhia de três militares, ainda não eram 10h00 da manhã e cheguei a Bissau às 15h00 do outro dia.  (...)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. Corrigimos a grafia de alguns topónimos, de acordo com a cartografia portuguesa, e sem desprimor para o trabalho paciente e incansável do Virgíno Briote: Cobumba (e não Cubumba), Enxudé (e não Inchudé), Sanconhá (e não Sancoia)... Por outro lado o nome do prisioneiro balanta deve ser Mutna (e não Mutma), de acordo com o entendimento do Cherno Baldé, nosso assessor para as questões etno-linguísticas. ] 

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Notas do autor (Amadu Bailo Djaló) e do editor literário ou "copydesk"  (Virgínio Briote):

[1] Pelotão de Caçadores 859

[2] Nota do editor: 27 janeiro de 1963, domingo.

[3] Nota do editor: esta secção talvez tenha pertencido à companhia destacada em Cabedú. À data, em Cabedú estava, desde dez62, o Pel Caç 871, encontrando-se o Pel Caç 870 em Bedanda.

[4] CCaç 152

[5] Pel Caç 859

[6] Conhecida na altura por Aldeia Formosa, na qual estava destacado um pelotão da CCaç 152.

[7] Muito provavelmente o Capitão de Infantaria Alberto Blasco Gonçalves

[8] Pel Caç 870.

[9] Chamava-se Caba e a mãe, pouco dias depois, dirigiu-se a Sansalé, Guiné-Conacri e conseguiu convencer os chefes da guerrilha a devolverem-lhe o filho.

[10] Em maio e junho de 1963 ainda instalada em Bissau.

[11] Nota do editor: para onde foi transferida em 01 de julho de 1963.

[12] Nota do editor: nesta ocasião, já devia ser o Capitão de Infantaria Nelson João dos Santos.

[13] Anos mais tarde, comandante da 1.ª CCmds da Guiné.

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Nota do editor LG;

(*) Vd. poste de 8 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6694: Notas de leitura (126): "Guineense Comando Português", de Amadú Bailo Djaló (Mário Beja Santos)