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sábado, 20 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14057: (Ex)citações (255): O Marcelino da Mata, que foi um militar valoroso, não precisa que se inventem, e lhe atribuam episódios desse género (Domingos Gonçalves)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 18 de Dezembro de 2014, com a resposta a um comentário de Manuel Luís Lomba:

Prezado Dr. Graça

Envio um pequeno esclarecimento pedido pelo camarada Luís Lomba, que poderá publicar, caso o entenda oportuno.

Um abraço.
Domingos Gonçalves


2. Comentário do nosso camarada Manuel Luís Lomba deixado no Poste 14033(*)

Camarada Domingos Gonçalves.

A viagem do paquete Uíge que vos desestivou no Pidjiquiti, retornou com o nosso batalhão (705) e destivou-nos no Cais da Rocha.

No livro "Crónica da Libertação", Luís Cabral diz que ele e o Chico Mendes, a autoridade máxima na zona Norte, haviam chegado na noite da véspera a Cumban-Hory para a cerimónia de despedida de cooperantes cubanos e do final da formação do Corpo de Comando - uma força de elite de intervenção, réplica aos Comandos de Bissau.

Aquela base estaria para o PAIGC como Brá estaria para o Comando-chefe.

Diz também que o nosso grupo de assalto fez a aproximação pelo lado da enfermaria e os dois teriam sido apanhados de surpresa, se a sentinela não tivesse chegado a avisar o capitão cubano Pina, o instrutor de artilharia e chefe dos cooperantes cubanos, que lançou o alarme, o que não impediu dele e Chico terem de atravessar a bolanha em fuga, tocados à morteirada.

Conta que deixámos quatro corpos, despedaçados pelas suas bazucadas T 21, perto da tenda onde os dois dormiam e sobre o depósito subterrâneo de material de guerra, que não descobrimos. E admite terem neutralizado as nossas transmissões, porque a aviação não apareceu.

Tu dizes que o primeiro sinal rádio dos operacionais aconteceu pelas 08h30 e com o DO do correio.

O nosso grande Marcelino da Mata disse, reprodução do blogue "Rangers & Coisas do MR", que o assalto foi feito por ele e o seu grupo "Roncos de Farim" e que os quatro mortos, dois europeus e dois africanos, pertenciam-lhe.

E disse que a CCaç 1546 havia sido apanhada à mão numa operação junto à fronteira, em Agosto, e que foi ele e o seu grupo de Comandos que a foi libertar do cativeiro no Senegal, trazendo-os de regresso... em cuecas.


Como para nós a guerra nunca acaba, podes esclarecer?

Um Abraço
Manuel Luís Lomba


3. Esclarecimento do camarada Domingo Gonçalves.

Prezado Manuel Luís Lomba:

Respondendo ao teu pedido de esclarecimento tenho a referir o seguinte:

Quando se realizou a operação em causa eu estava a comandar o destacamento de Guidage pelo que acompanhei muito de perto a operação Chibata.

Os Comandos de Farim - os Roncos -, como eram conhecidos, participaram na operação, comandados pelo Marcelino da Mata, que teve, uma intervenção importante no desenrolar dos acontecimentos.

Participei, aliás, em várias ações levadas a cabo pela CCAÇ 1546, reforçada pelo citado grupo. O Marcelino era um combatente arrojado. Teve influência decisiva em várias ações de combate. Ele e o grupo, claro. 

Contudo, sobre o episódio da libertação de prisioneiros, pertencentes à minha Companhia, apenas posso referir, que é mentira. Quer a minha Companhia, quer as outras duas, a 1547 e a 1548, que integravam o BCAÇ 1887, fizeram, ao longo da sua permanência na Guiné, prisioneiros, mas não sofreram prisioneiros.

Vi, também, na Net, a descrição do episódio que referes. 
Uma libertação, aliás, de prisioneiros, de forma bastante simplória. Como disse, é pura mentira.

O Marcelino, que foi um militar valoroso, não precisa que se inventem, e lhe atribuam episódios desse género.

Os mortos em causa foram:
- José Miranda, do BCaç 1887
- António Pires Correia, da CART 1691 (Roncos)
- Sali Jaló, do Pel Mil - 5.ª CMIL (Roncos) e
- Fódè Baio, do Pel Mil 116 -5.ª CMIL (Roncos).

Esta identificação é retirada do relatório de atividades do batalhão 1887.

Ao fixar-me no teu nome, penso que cheguei, e bem, à conclusão de que és, e resides, na zona de Barcelos. Tivemos, penso que durante cerca de três anos, um percurso de vida comum, nos anos de 1954, 1955, e 1956. Recordas-te?

Um abraço de Boas Festas
Domingos Gonçalves  (**)
____________

 Notas do editor:

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14033: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (7) - Reportagens da Época (1967): Guidaje - Assalto a Cumbamory - Operação Chibata

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 9 de Dezembro de 2014:

Prezado Dr. Luís Graça:
Tomo a liberdade de remeter mais um pequeno contributo, que poderá publicar, se o entender conveniente.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves




MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

7 - GUIDAJE 1967

Mês de Dezembro
Dia 10

Assalto a Cumbamory - Operação Chibata

Picou-se a estrada até ao Cufeu para facilitar a passagem da coluna de abastecimento.

À tarde, pelas vinte horas, chegou uma coluna com cerca de 140 homens. Afinal, não vieram por causa do reabastecimento, mas com a finalidade de efectuar uma operação. O reabastecimento foi só uma consequência...
Comeram no destacamento.

Pouco antes da meia-noite, reforçada por uma secção do destacamento e pelos caçadores nativos, a força que chegou de Binta, comandada pelo capitão da Companhia 1546, partiu rumo à casa de mato de Cumbamory, atravessando a fronteira e fazendo a aproximação por território do Senegal. Aliás, há entre nós algumas dúvidas quanto à situação real dessa base terrorista, que estará situada mesmo sobre a linha de fronteira, ou mesmo em território senegalês.

É a operação “Chibata” que está a iniciar-se. Uma operação que envolve riscos consideráveis para as nossas tropas. Qualquer ataque a uma base dos turras envolve sempre riscos. O ataque a Cumbamory, dado tratar-se de uma base bastante grande, através da qual passa grande parte do pessoal e do equipamento que o PAIGC infiltra no território, é arriscado e perigoso. Amanhã saberemos mais alguma coisa sobre tudo isto. Mas não me parece que os altos comandos tenham medido e calculado todos os riscos que esta operação envolve. A única coisa que pode ser favorável aos nossos homens é o efeito surpresa, se for possível atingir o objectivo e atacá-lo sem que os gajos se apercebam da aproximação dos nossos soldados.

A força que partiu para a operação, cerca de 170 homens, é constituída por dois grupos de combate da minha Companhia, pelos Roncos de Farim, por um grupo de combate pertencente à Companhia de Intervenção estacionada em Farim, por uma Secção do Destacamento, e pelos Caçadores Nativos de Guidage. Aparentemente 170 homens poderá parecer uma força considerável, mas de facto não é. Todos os homens estão fisicamente debilitados, vão chegar à base do inimigo muito cansados, e apenas vão poder contar com eles próprios. Ao alvorecer, quando atacarem a base, não podem contar com apoio aéreo, por ser muito cedo e porque os aviões, mesmo sobre a linha de fronteira, não costumam actuar.
Ou se conseguem desenrascar sozinhos, com os próprios e escassos meios, ou então estará tudo perdido.


Dia 11

Levantei-me muito cedo e fui para o Posto de Transmissões à espera dos resultados da operação, mas aos operadores de rádio não tinha chegado, ainda, nenhuma notícia.

Pelas sete horas e meia as forças de Bigene, que também actuavam na zona, na área de Jambacunda, mas que não chegaram a ter contacto com os gajos, ligaram para Guidage e disseram que, pelas seis horas da manhã, e durante cerca de meia hora, escutaram muitos rebentamentos. Em Guidage, dada a distância, não se tinha escutado nada. Fiquei por isso a saber que tinha havido contacto com o inimigo, e que esse contacto apenas poderia ter acontecido com a Companhia 1546.

Da força que partira de Guidage, e que tinha por missão actuar sobre o objectivo, não havia notícias. Sabíamos, no entanto, que a fogachada que os de Bigene tinham escutado, apenas poderia ter acontecido durante o ataque das nossas tropas a Cumbamory, ou em resposta a alguma emboscada que os tipos lhes tivessem preparado.

Pelas oito horas chegou a avioneta, que fez em Guidage o lançamento do correio e se dirigiu para o local das operações.

Pelas oito horas e meia, as forças que partiram de Guidage, e que tinham atacado Cumbamory, entraram em contacto com a avioneta.
Disseram que estavam já a regressar, mas que se deslocavam com muita dificuldade, ainda em território do Senegal, e que transportavam bastantes feridos e muito material apreendido aos turras durante o assalto a Cumbamory.

A avioneta deslocou-se a Guidage e mandou que enviássemos viaturas à fronteira para recolher, logo que possível, homens e material, o que rapidamente se fez.

Fui com as viaturas até onde me foi possível e, depois, atravessei a fronteira com um pequeno grupo de soldados, e orientado pela avioneta progredi em território senegalês, ao encontro da nossa força, para a auxiliar na retirada.

Quando se chegou a Guidage já se encontravam lá estacionados dois helicópteros prontos a transportar os feridos para o hospital militar.
Logo após a chegada ao destacamento de Guidage os feridos foram devidamente tratados por duas enfermeiras pertencentes à tripulação dos helicópteros e seguiram para Bissau. Nenhum dos feridos se encontra em estado muito grave.

Durante o voo para Bissau, só a presença daquelas duas raparigas bonitas, deve ter sido suficiente para restituir aos feridos a saúde e a integridade psíquica, tão afectadas pelos ferimentos provocados pelos tiros e pelas granadas que tiveram que enfrentar.

A operação teve certo êxito mas não correu bem.

As nossas forças aprisionaram 5 turras, terão causado ao inimigo bastantes mortos e feridos. No relatório da operação mencionaram-se 34 mortos confirmados, para além de um número indeterminado de feridos. De qualquer modo talvez estejamos perante um número demasiado elavado. As nossas forças capturaram, para além dos prisioneiros, o seguinte material:

2 morteiros de 82mm,
12 granadas para esses morteiros,
1 pistola metralhadora,
1 espingarda semi-automática,
1 aparelho de pontaria de morteiro 82mm,
1 estojo de cirurgia,
3 cantis,
Material diverso para montagem de tendas,
2 bolsas de enfermagem,
1 granada de mão,
2 auscultadores de telefone,
2 pastas com documentos,
Diverso material de instrução,
Livros cubanos,
Cadernos e revistas,
Medicamentos.

Mas, para que tudo isso fosse possível, as nossas forças sofreram quatro mortos, ( 2 europeus e 2 africanos ) cujos cadáveres não puderam ser recuperados, um desaparecido e bastantes feridos com alguma gravidade. Foi um preço muito elevado, demasiado grande, mesmo tendo em vista os resultados conseguidos. A vida de um soldado, ou o sofrimento e as mutilações, têm um preço que não pode ser comparado com o valor de umas armas capturadas, por mais sofisticadas que elas sejam. Mas há por aqui quem pense o contrário... Quem olhe quase com adoração para as armas capturadas e se esqueça que foram pagas com muito sangue e com muita dor... Isto chama-se trocar o que não presta, o que não vale nada, por aquilo que não tem preço...

Estupidez humana! A loucura de tudo isto é cada vez mais evidente e já nem se lhe vislumbram os limites.

As nossas forças deixaram ainda no local as armas e outro equipamento militar pertencente aos soldados mortos.

Esta operação não falhou porque a tropa é decidida, é dura e sabe combater. Muitos destes homens, brancos e negros, têm um grande desprezo pela vida e são bravos a valer.

Se assim não fosse este assalto a Cumbamory poderia ter sido um desastre. Planeou-se a operação pensando encontrar no objectivo um inimigo composto por 20 ou 30 homens armados (ou então quem faz os planos engana deliberadamente quem os deve concretizar) talvez com um morteiro e algumas armas ligeiras, e Cumbamory é uma verdadeira cidadela militar do PAIGC.

Os nossos 170 homens encontraram pela frente perto de 300 (?) elementos, dispondo de armas ligeiras, várias bazookas, morteiros de 60mm, lança rokets, morteiros 82mm, e outro armamento diverso.

Os prisioneiros disseram que em Cumbamory havia também 4 canhões que não chegaram a fazer fogo.

Em face da força que encontraram pela frente os nossos homens portaram-se bem e foram corajosos para progredir até ao local onde se encontravam os morteiros, dos quais o inimigo ainda se terá servido.

Segundo os prisioneiros, encontrava-se em Cumbamory, no momento do assalto, Luís Cabral, que terá fugido imediatamente numa viatura para o interior do território do Senegal. Segundo o mesmo relato, ontem terá havido uma festa no acampamento, encontrando-se no mesmo um grupo de Comandos do PAIGC, deslocado da área de S. Domingos. Durante a noite de hoje para amanhã viriam atacar Guidage.

Se o relato for verdadeiro esta operação teve pelo menos o mérito de evitar um ataque a este meu reino. De qualquer modo, o melhor é a gente continuar à espera deles. Segundo dizem os prisioneiros, em Cumbamory o pessoal passa fome. Apenas os soldados comem alguma carne e batatas, e ganham algum dinheiro. Para os carregadores há apenas arroz que se esgota muitas vezes. O acampamento dispõe de uma escola onde se ensina a língua portuguesa, de uma enfermaria razoável, verificando-se de quando em quando a visita de um médico, que deve ser cubano. Os cubanos do acampamento deslocam-se muitas vezes para fora do mesmo, a fim de se encontrarem com Amilcar Cabral, que não lhes paga na presença dos africanos. Em Farim, ao que me parece, não se presta grande atenção às informações recolhidas em Guidage, o mesmo acontecendo em Bissau. Desde há muito que mandamos dizer que em Cumbamory existe muito pessoal armado e muitas armas pesadas, mas não acreditaram em nós. O resultado poderia ser um desastre para as nossas forças. As forças que participaram na operação seguiram para Binta pelas dezasseis horas, mas só lá conseguiram chegar perto das vinte e uma. Iam todos muito cansados, quer física, quer psiquicamente. Depois de uma viagem de cinco horas até Binta todos os soldados devem ter lá chegado cansadíssimos, autênticos farrapos humanos.

Afigura-se-me que este foi o último trabalho sério que os homens da Companhia de Caçadores n.º 1546 foram incumbidos de realizar. Foi uma despedida terrível, que teve tanto de doloroso como de heróico. Foi, de longe, a missão mais arriscada e perigosa que nos foi confiada ao longo de todos estes largos meses de Guiné, que já temos. Mas foi uma missão que se levou até ao fim com bastante êxito.
E agora, já é mais que tempo para nos deixarem descansar em definitivo.

Já todos temos mais do que direito ao repouso dos guerreiros... Que ele nos seja finalmente concedido.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13560: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (6): Guidaje 1967

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Guiné 63/734 - P13744: Fotos à procura de... uma legenda (39A): Um poço à beira da estrada Nova Lamego-Bafatá, maio de 1970... Esta foto do Valdemar Queiroz faz-me recordar o caso de um furriel que na zona de Madina, em certa ocasião, vencido pela sede, oferecia sete contos (!) por um copo de água!... (Domingos Gonçalves, ex-alf mil, CCAÇ 1546, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)



Guiné > Zona leste > Estrada Nova Lamego- Bafatá > Maio de 1970 > CART 11 (1969/70) >  Um poço de água...à beira da estrada. "Iagu sabi", diz o  fur mil Valdemar Queiroz...


Foto: © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados [Edição de L.G.]


1. A foto é do Valdemar Queiroz [ou Valdemar Silva][, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)... 


Um dos comentários que recebemos, com data de 13 do corrente, é do Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, (Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) [, foto atual à esquerda]:


Prezado Luiz Graça

Votos de saúde. Sobre a água refiro:
A água é, e sempre foi, um bem precioso. Regra geral não lhe damos o valor que tem. Só quando a sede nos visita, e a não temos, é que sabemos, ou lhe damos, o valor, que tem.

Quem esteve na Guiné, nas companhias operacionais, e andou pelo mato, dificilmente
não lhe sentiu a falta.

Recordo o caso de um furriel que na zona de Madina certa ocasião, vencido pela sede, oferecia seis, ou sete mil escudos (sete contos!) por um copo de água. Mas, naquela circunstância, não havia água para ninguém.

Recordo-me, também, de em certa manhã, ver soldados a mitigar a sede chupando das folhas do capim as minúsculas gotas de orvalho formadas durante a ténue frescura da noite.

Penso que, mais ou menos, na Guiné alguma vez todos lhe sentimos a falta.

Se recordar é viver, a lembrança desses dias distantes, é saudável, e ajuda a compreender melhor a vida.


Um braço amigo


Domingos Gonçalves

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terça-feira, 2 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13560: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (6) - Reportagens da Época (1967): Guidaje

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 4 de Agosto de 2014:

Prezado Luís Graça
Envio mais alimento para o Blogue.
Trata-se de mais algumas dicas sobre o dia a dia de um destacamento militar, concretamente, Guidage.

Um grande abraço, extensivo a todos os navegantes do Blogue.
Domingos Gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

6 - GUIDAJE 1967

Setembro
Dia 1

Pedi a evacuação da mulher de um soldado nativo que se encontra bastante doente. Antes consultei o médico via rádio.

Como o problema não tinha solução aqui, a doente foi enviada para Bissau, onde ficou internada.

Pelo meio-dia chegou o helicóptero. Em vez de uma mulher, levou duas.

Doentes para tratar é, infelizmente, o que mais temos aqui. Só os casos muito graves é que se enviam para Bissau, quando, como desta vez, surge a possibilidade de transporte.

O homem que veio do Senegal para se curar de uma doença venérea já regressou a casa.
A medicação que o enfermeiro lhe aplicou, produziu bom resultado. Curou-se relativamente depressa.
Se tiver juízo pode continuar a ser uma pessoa perfeitamente normal e cheia de saúde.

De tarde fui activar diversas armadilhas que estavam desactivadas para permitir a passagem das nossas tropas.

Informações vindas do outro lado da fronteira confirmam que os turras levaram para Ierã 8 mortos, tendo procedido ao enterramento de 4 na referida localidade, e de outros 4 na tabanca de Corumbo.
Pela mesma altura apareceram na referida localidade bastantes feridos.


Dia 2

Às oito e meia saí para o Cufeu a picar a estrada, mas a coluna não conseguiu passar.
Algumas viaturas ficaram atoladas na bolanha. Naquele sítio apenas se pode passar de barco, ou, então, em viaturas anfíbias!
Se tudo assim continuar, no fim da época das chuvas o transporte ideal para as nossas tropas passarem por ali deve ser o submarino.
Vou pensar em requisitar um!

Um grupo de 120 turras, desarmados, uns vestindo à civil e outros fardados, foram do Dungal para Corumbo.
Caminhavam ordeiramente, em formação, mas muito à vontade. O informador acompanhou-os.
O comandante dos tipos, suspeitando dele, quis prendê-lo. No entanto, como se tratava de um cidadão senegalês deixou-o ir em paz.

Os tipos movimentam-se em território do Senegal com a mesma liberdade que têm os cidadãos desse país.


Dia 3

Pela manhã fui ao Cufeu com o nosso Unimog. Fomos levar vinho, pão e marmelada ao pessoal que ficou durante a noite a guardar as viaturas.
Na coluna vinha a Companhia de Cavalaria nº 1747, que deverá permanecer em Guidage com a finalidade de efectuar uma operação. Todavia, o pessoal está muito cansado e aqui não têm condições para descansar.
A noite que passaram a guardar as viaturas atoladas na bolanha deixou-os demasiado cansados.
O trabalho que vinham realizar vai ter de ficar adiado no mínimo por alguns dias.
O comandante dessa companhia é um bom homem, inteligente e sensível, mas é também um revoltado.
Ele tem já bastante idade e foi de novo mobilizado. Tem mulher. Tem filhos. Tinha uma vida profissional organizada, construída com sacrifício e dedicação. E a tudo a mobilização veio, inesperadamente, colocar um ponto final.
Este é mais um dos horrores desta guerra sem fim e sem o mínimo de sentido.
Este capitão é mais um dos sacrificados neste altar da guerra.
Mais um, de entre tantos.
Dez anos depois de ter cumprido o serviço militar foi de novo convocado para cumprir uma comissão, aqui, na Guiné.
Desiludido com a vida, confessa com tristeza:
- Para mim tudo acabou.


Dia 5

Esperávamos que chegasse, de helicóptero, o Comandante de Batalhão, acompanhado pelo médico. Devido, talvez, ao mau tempo, não apareceram cá. Entretanto a Companhia 1747 vai descansando. É o que interessa.

O capitão Y, falou bastante comigo. Ele odeia tudo isto. Não se resigna a esta triste sorte. Estragaram-lhe a vida.
Tinha família constituída, bons clientes, tudo o que um homem de trinta e poucos anos pode desejar.
E quase tudo foi pela água abaixo. É uma tristeza...

À noite comeu-se uma magnífica frangalhada e fez-se festa rija. É a nossa homenagem aos homens desta Companhia de cavaleiros que nos vieram visitar.

Aplica-se perfeitamente a nós, oficiais, este pequeno texto retirado de um livro de J. Lateguy:

“A existência do oficial divide-se muito irregularmente entre alguns momentos de esforço e de fadiga, de perigos, e longos períodos de inacção e tranquilidade. Nesses momentos de esforço, o oficial pode ser levado a realizar, apesar do medo, da fome, do cansaço, actos extraordinários, que farão dele, mas apenas por um instante, um ser superior, mais desinteressado, mais resistente que os outros homens.
Nos períodos de repouso, move-se com a lentidão do urso entorpecido pelo Inverno, através de um pequeno mundo fechado.
O esforço é banido, ou pelo menos extremamente limitado por leis, ritos, hábitos.
Nele os gracejos são tradicionais, e a própria maldade codificada.”

A existência do oficial, aqui na Guiné, apesar da especificidade da guerra que fazemos, e da pequena dimensão das guarnições, é tudo isso e ainda muito mais.
Os momentos de heroísmo e de grandeza são quase nulos, e os de estupidez preenchem a quase totalidade da vida.
E tudo quanto nos rodeia contribui de forma mais ou menos acentuada para que não se possa fugir desse fatalismo.
Parece que o oficial existe para se mover num mundo feito de mediocridade. Todos nós sentimos de forma muito nítida a tentação de viver na trivialidade. É este o nosso mundo. O mundo que nós vamos dia a dia construindo e no qual vivemos, sem qualquer possibilidade de lhe fugirmos.
Somos prisioneiros da mediocridade que dia a dia vamos criando para nós próprios, tantas vezes com esforço e sacrifício enormes.

Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13469: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (5): Guidaje 1967

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13469: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (5) - Reportagens da Época (1967): Guidaje

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 4 de Agosto de 2014:

Prezado Luís Graça:
Em primeiro lugar, votos de boas férias, e de bom repouso, no sossego da Lourinhã.
Depois, procedo ao envio de mais umas dicas, - relato do que aconteceu em Guidage, à distância de, precisamente, 47 anos -, que se o entender conveniente, poderá publicitar.

Um abraço amigo para todos os navegantes do blogue,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967) 
- REPORTAGENS DA ÉPOCA


5 - GUIDAJE 1967

Mês de Agosto
Dia 5

O tempo continua muito chuvoso. O destacamento não passa de um autêntico lamaçal.
Os abrigos transformaram-se em verdadeiras covas escuras, húmidas e insalubres.
As valas que fazem a ligação entre esses abrigos são verdadeiros pântanos. A água aparece em todos os lados e coloca em perigo todas as construções que por aqui se foram fazendo... Os tipos que substituíram a Engenharia Militar para fazer isto, ou que orientaram quem aqui trabalhou, estão todos chumbados... Não passam de uns incompetentes... Autênticos nabos.


Dia 6

Às seis horas e meia da manhã levantei-me. Às sete, como aliás quase todos os dias, peguei na caçadeira e fui às rolas.
Pelas oito, o Patron (nosso interprete) foi procurar-me nas imediações do arame farpado, para me dizer que durante a noite Guidage esteve cercada por mais de duzentos turras.

Fiquei incrédulo. Custou-me a acreditar. Como é que isso podia ser! O pessoal do destacamento nunca os tinha incomodado! Depois, como podia ser possível que um grupo tão numeroso, carregado de armas e munições, tivesse cercado Guidage, instalado as armas e, de seguida, sem disparar um tiro, tivesse ido embora? Não. Aquilo não podia ser verdade. Mas, como o Patron insistiu, ainda cheio de muitas dúvidas, entrei no aquartelamento, troquei a caçadeira pela G3, e acompanhado por dois soldados fui confirmar o que se tinha passado.

Efectivamente, verifiquei-o com os meus próprios olhos, a informação era verdadeira. Durante a noite, três grupos de turras, provenientes da área do Dungal, de Cumbamory e de Samboyá, tinham cercado Guidage. Pelos vestígios que deixaram calculei que, efectivamente, deveria tratar-se de um grupo constituído por cerca de 150 a 200 homens. A aproximação que fizeram tinha sido perfeita. Pelos vestígios que deixaram no terreno, capim e culturas calcadas, verifiquei que nos tinham feito um cerco perfeito, em meia lua, com o intuito de dirigir o fogo directamente sobre o aquartelamento, no sentido da linha de fronteira.

Regressei ao aquartelamento, e com mais pessoal e armamento, fui seguir-lhes o rasto. Confirmei que retiraram pela estrada que leva a Samoje e Facã, por onde, parte deles, tinham feito a aproximação a Guidage. O grupo que veio do Dungal retirou também para o mesmo lado.
O território do Senegal foi o destino que escolheram após terem desistido de nos atacar.
A cerca de dois quilómetros, já do outro lado da bolanha, na estrada que segue para Bigene, encontrei uma granada de morteiro 82mm, abandonada pelos gajos durante a retirada.

Todos os vestígios que recolhi indicavam que eles retiraram calmamente, sem qualquer precipitação. Em rigor, não efectuaram um ataque em força porque não quiseram. Poderiam, se tivessem atacado, ter destruído outra vez Guidage, ter queimado tudo e, quem sabe, ter mandado alguns de nós para o outro lado da vida. Mas não o fizeram. Não nos atacaram. Retiraram ordeiramente, sem quaisquer problemas, quando quiseram e como quiseram. E tudo isto aconteceu ali mesmo, a cerca de 400 metros do arame farpado, precisamente no local onde os holofotes da iluminação externa já não iluminam nada. Estiveram ali, nas nossas barbas, sem que as sentinelas se apercebessem do que se estava a passar. Tudo tinha sido feito discretamente, com todo o rigor táctico, dentro do cumprimento quase perfeito dos ensinamentos que a gente estudou nos manuais da guerrilha. Estes turras estudaram mesmo numa boa escola!

Apenas há uma coisa que não consigo entender:
- Qual a razão que os terá levado a retirar, sem terem disparado um único tiro sobre o meu reino?

É um mistério que me vai acompanhar para sempre. Efectivamente, só uma razão muito forte pode estar na origem desta desistência de última hora, e desta retirada ordeira sem uma razão aparente. Mas, felizes de nós pela decisão acertada que eles tomaram. Que nos cerquem quando muito bem entenderem, desde que, depois, calmamente, se retirem.

Antes de regressar ao aquartelamento, na área da referida estrada, mas do outro lado da bolanha, coloquei, por precaução, três potentes armadilhas (minas). Tanto podiam ser úteis, como não servir para nada. Que eles voltariam, não me restavam dúvidas. O local por onde iriam fazer a aproximação é que eu não poderia adivinhar. Como, regra geral, a partir do entardecer ficamos quase sempre confinados aos limites estreitos do arame farpado, eles podem aproximar-se sem qualquer receio, escolhendo o local que lhes parecer mais seguro. A noite é praticamente deles. Quando nos atacam dentro dos aquartelamentos fazem-no quase sempre de madrugada, para lhes restar tempo para se retirarem ainda a coberto da noite.

Ao fim da manhã, vindo do Senegal, chegou um informador a dizer que os tipos, durante a retirada, tinham passado por Secunaya e Corumbo, e que não concretizaram o ataque pelo facto de não ter chegado um outro grupo que também deveria participar na festa que desejavam fazer em Guidage.
É uma razão.
Mas eles já dispunham de tanta gente à nossa volta! Tinham da parte deles o efeito surpresa e a escuridão da noite, um grupo numeroso de combatentes e sei lá quantas armas. E não quiseram aproveitar nada disso...

Durante o dia nada mais aconteceu de anormal. A população trabalhou serenamente a terra, e a tropa permaneceu mergulhada na doce estupidez de cada dia.
À noite recomendei a todos, soldados e população, que se mantivessem junto dos abrigos e que ficassem atentos. O perigo não tinha passado. Tínhamos de ser prudentes e cautelosos.

Pelas dez horas da noite, sensivelmente, explodiu uma das armadilhas que deixei do outro lado da bolanha, precisamente a que tinha mais potência. A explosão teve lugar a cerca de dois quilómetros, mas pareceu-nos que aconteceu mesmo ao lado do arame farpado. Efectivamente, para além da carga normal, eu coloquei ao lado da armadilha bastantes granadas velhas e garrafas de cerveja cheias de munições de G3, já fora de uso. Daí que o rebentamento, de todos aqueles explosivos, tenha causado um barulho terrível Mesmo brutal...
As casas dos nativos estremeceram e as paredes largaram caliça. Foi um barulho enorme. Medonho...
Depois, disparei para o local algumas granadas de morteiro 81mm, os soldados e a população mantiveram-se nos abrigos, armas em punho, tudo pronto a abrir fogo ao mais pequeno sinal, à espera que o pior acontecesse.

E um silêncio profundo dominou a tabanca e o aquartelamento durante algumas longas horas, feitas de stress e angustiosa expectativa. Aquela foi para todos uma longa noite, em que o tempo dava a sensação de estar parado. Mas nada de anormal aconteceu. Mesmo nada. Foi mais uma noite igual a tantas outras. Mantivemo-nos é certo, mais atentos, à espera, mas não fomos minimamente incomodados. Apenas o medo nos incomodou... O medo que obriga as pessoas a estar despertas, sempre à espera, o medo que nos rouba o sono e que faz todos os homens corajosos e heróis.
Heróis que só desejam vivamente que não aconteça nada daquilo que se é obrigado a esperar indefinidamente ao longo destas intermináveis noites.
Heróis que apenas desejam que permaneça sempre longe a oportunidade de praticar actos irracionais, capazes de fazer deles esses homens invulgares que as páginas da história vão registando.
É que, ninguém deseja ser herói, nem mesmo aqueles que de facto o foram. O herói é um produto do acaso, ou talvez da irracionalidade da vida.

Já de madrugada, antes de adormecer, eu apenas me interrogava:
- Será que foi um bicho a detonar a armadilha? Será que foram os tipos que vinham de novo com a boa intenção de fazer uma festa nas imediações de Guidage?

E o meu pensamento, ou a minha imaginação, ficaram-se por esta dúvida, na expectativa, aguardando que algo de pior pudesse ainda acontecer.
E, apesar de tudo, ainda dormi um sono, não muito longo, mas suficientemente repousante.


Dia 7

Pela manhã, levando comigo mais de metade dos homens de que dispunha, bem armados e municiados, fui verificar a causa do rebentamento da armadilha. Efectivamente tinha sido accionada pelos turras que, outra vez, e por certo a sério, se dirigiam para Guidage, no intuito de efectuar um ataque.

A explosão da armadilha deixou no chão um buraco enorme. Ao lado, por entre o capim calcado, havia muito sangue, pedaços de vestuário e vestígios da presença de muitos feridos, ou mortos. Perto do local da explosão, encontrámos um ferido abandonado. Tratava-se de um rapaz novo, que não teria mais de 15 anos. Encontrava-se totalmente nu. Era, por certo, um dos muitos carregadores utilizados no transporte das armas e das munições. Pensando que estava mesmo morto, deixaram-no abandonado entre o capim, absolutamente despido, sem qualquer elemento que o pudesse identificar.

No meio de todo aquele ambiente pesado, ouviu-se a voz de um soldado que, mesmo a meu lado, satisfeito, dizia:
- “Os filhos da puta vinham cá para nos foder, mas eles é que foram pró caralho.”

E, mais baixinho, outros soldados foram murmurando:
- Sim... desta vez eles é que foram pró caralho. Esses caragos, bem que nos podiam deixar em paz. Mas, desta vez quem lerpou foram eles.

Levámos para o aquartelamento o rapaz que os tipos abandonaram e tratámo-lo o melhor possível. Depois, pediu-se uma evacuação para o Hospital Militar, que não chegou a concretizar-se porque, entretanto, ele morreu.
Aparentemente ele tinha apenas algumas escoriações. Devia, no entanto, ter algum traumatismo interno a cujas consequências não resistiu. Deve ter sido projectado pelo sopro causado pela explosão da armadilha e, ao embater no chão, os órgãos internos devem ter ficado muito afectados.
A população quando nos viu chegar com o prisioneiro ficou satisfeitíssima.
Fizeram festa. Bateram palmas. Afinal, ele era dos que vinham atacar e destruir as suas casas, matar pessoas e destruir bens.

Enterraram-no.
Verifiquei com tristeza que a população efectuou o funeral sem qualquer cerimónia, com desprezo e ódio, como que se de um simples animal se tratasse. Intimamente senti-me chocado com toda aquela frieza.
O que ali estava era o cadáver de um homem ainda muito jovem, obrigado, por certo, a colaborar com a guerrilha. Um jovem a quem a guerra acabava de destruir...

De tarde voltei à estrada de Samoje e coloquei novas armadilhas. Na estrada de Binta fiz a mesma coisa. Eu sei que mais dia menos dia os tipos vão tentar de novo... Temos que estar sempre atentos...

O objectivo deles, é dar cabo de nós.
O nosso objetivo, é dar cabo deles.
Somos todos loucos.
Era preferível acabar de vez com isto, com esta guerra que não vai levar a lado nenhum.

Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13444: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (4): A morte do Furriel Moreira

terça-feira, 29 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13444: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (4) - Reportagens da Época (1966): A morte do "Furriel Moreira, alcunha do milícia Nansá Camará

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 25 de Julho de 2014:

Prezado Luís Graça:
Antes de mais, saúde, e votos de BOAS FÉRIAS.
Depois, para alimentar o Blogue durante as férias, e dar, até, oportunidade aos psicólogos, e etnólogos, ou especialistas em cultura africana, para divagarem sobre o assunto, tomo a liberdade de enviar um texto bastante longo que, se o entender conveniente, poderá inserir no Blogue.

Um abraço
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1966) 
- REPORTAGENS DA ÉPOCA

4 - A MORTE O FURRIEL MOREIRA

Novembro de 1966 
Dia 1 

Pouco passava das oito horas quando, com os meus homens, parti em direção a Binta.
É o adeus ao céu de Guidage... Aquilo a que chamamos estrada, mas que de facto não passa de um caminho estreito, simples picada feita de lama e buracos, está num estado miserável.
Mesmo assim, a viagem decorreu com normalidade.
Às onze horas já estávamos no local do destino.

Ao partir, senti pena da população de Guidage. Quando as viaturas estavam para arrancar para Binta juntou-se quase toda a gente junto à porta d’armas e, muitos deles, ficaram a chorar. E as lágrimas são uma coisa muito delicada e bonita, digna de admiração. Na hora da despedida, a população brindou-nos com aquilo que nós, os humanos, temos de mais precioso, ou seja, as lágrimas.

Em Bissau, no Hospital Militar, faleceu, doente, o Nansú Camarã. Foi evacuado de Guidage por duas vezes. Sofria de mal-estar geral e de um abatimento psicológico muito grande.
Vou contar a história da doença do rapaz, do combatente leal, esforçado, solidário e corajoso.
É a história do pássaro maldito.

***

A morte do furriel Moreira

O Nansú Camará, ou o furriel Moreira, como nós lhe chamávamos, era um negro de pele relativamente clara, alto e magro, pertencente à milícia local, que aprendi a admirar desde os primeiros dias da minha estada em Binta.

Chamávamos-lhe o furriel Moreira, alcunha de que gostava, e que terá recebido da boca de alguém que, por certo, lhe admirava a lealdade, a dedicação e o grande espírito de sacrifício. E ele gostava da alcunha. Sentia mesmo orgulho quando lhe chamavam furriel...

Regra geral os furriéis eram sempre brancos. Atribuir-lhe a categoria que só os brancos possuíam dava-lhe um estatuto diferente, fazia dele alguém muito especial e respeitável. Para ele, chamar-lhe furriel, nada tinha de ofensivo. Entendia a alcunha quase como uma distinção. Gostava mesmo de que o chamássemos assim, e ficava vaidoso e contente com um nome tão distinto.

Possuidor de uma admirável resistência física estava sempre pronto a auxiliar qualquer de nós, nas horas mais difíceis. Muitas vezes, quando regressávamos das operações, das patrulhas, ou das emboscadas, ele aproximava-se dos mais cansados e ajudava-os a transportar a arma, as munições, ou as granadas. Era, em tudo, um homem bom e generoso. Uma daquelas pessoas que nasceram para ser desinteressadamente solidárias e amigas.

Um dia, logo ao amanhecer, veio procurar-me muito aflito, expressando medo e angústia. Nos seus olhos meigos adivinhava-se um sofrimento enorme, ou visionava-se mesmo o limiar da morte. Trazia uma expressão dolorosa, onde se adivinhava qualquer coisa de transcendente, ao mesmo tempo terrível e grande. Naquele momento vi nele um homem que estava a chegar, vindo não da sua casa simples e pobre, mas de um mundo diferente e desconhecido. O Nansú que tinha ali em minha era já outro homem. Tudo nele se me afigurava estar alterado.
Ele estava diferente nos gestos, nas palavras, no aspecto e nas atitudes. Era um homem triste, tímido e distante, longe da realidade do nosso dia a dia, irremediavelmente perdido para a vida.

Por entre lágrimas e tremores conseguiu dizer-me:
- Alfero... Durante a noite, quando estava de sentinela, eu vi Irã.

Estas palavras saíam-lhe bem do fundo da alma, murmuradas com serenidade cadavérica e sinceridade profunda.

E eu perguntei-lhe:
- E quem é Irã? - Eu nunca ouvi falar dessa pessoa. - Como te apareceu? Que foi que te disse?

Ele, receoso e triste, murmurou:
- Irã, é o mal. É um espírito negro e terrível. Só pode trazer-nos a morte. Agora sei que vou morrer. A vida para mim já terminou. Quem vir Irã não pode mais ficar aqui... Tem mesmo de morrer. Nas suas asas negras ele traz a mensagem do inferno. O meu futuro já não existe. Para mim tudo vai terminar muito depressa.

E tiveste medo, perguntei-lhe?
- Tive, respondeu-me. Mas não abandonei o posto nem a arma. Não fugi...

No seu rosto adivinhava-se qualquer coisa de mistério, uma amargura profunda, a tristeza de quem teve, naquela trágica noite, a visita de um anjo mau que lhe veio trazer a mensagem da morte, ou qualquer coisa bastante pior, indesejável para qualquer de nós, pobres mortais. ... E aquele rapaz já não seria mais o soldado corajoso, leal e destemido que sempre soubera ser. Aquela visão terrível, alucinante, traçara-lhe bruscamente o destino. Era a visão da morte.

Eu continuei:
- E como era Irã?
- Era, disse-me, uma espécie de pássaro negro, muito grande, que se manteve perto de mim, durante muito tempo, como que a dançar, em movimentos loucos e sucessivos, mas sempre fora da rede de arame farpado.
- E que te disse, perguntei-lhe?

E o Furriel Moreira, numa voz quase imperceptível, murmurou:
- Não me disse nada. Mas eu entendi tudo o que tinha para me dizer.
- E porque não disparaste, perguntei-lhe, uma rajada de G3, para o afugentar? Um bicho desses mata-se de imediato, sem qualquer receio.

Mas ele, com toda a seriedade, e com uma voz branda, nascida bem do fundo da sua alma amargurada, respondeu-me:
- Alfero! Tiro de espingarda não mata Irã. O deus do mal tem muita força e poder. Ninguém pode matar Irã.

Enquanto falávamos, todo ele tremia e transpirava. O suor escorria-lhe, em gotas enormes, pelas faces escuras, enquanto que do seu olhar meigo escapava um desespero triste profundo. E eu fui conversando com ele, durante bastante tempo, tentando retirar-lhe da mente aquela imagem tenebrosa que nem o deixava respirar. Mas foi tudo em vão. Aquela ideia sinistra dominava-lhe por completo a mente, apossara-se dele com tanta força, que iria ser muito difícil restituir-lhe o equilíbrio mental e a vontade de continuar a viver, e a ser pessoa. Estava dominado por uma alucinação terrível, que se apossou daquela mente rústica de uma forma indizível.

Depois, acompanhei-o ao refeitório da companhia e pedi que lhe dessem o pequeno-almoço, pensando que fosse a fome e a má nutrição a causar-lhe aquelas alucinações. Mas ele quase não comeu. Depois, retirou-se para casa. Uma casa simples, coberta de capim, como quase todas as casas que na Guiné se constróem. Retirou-se macambúzio, triste.

 Durante a tarde mandei chamar o régulo da tabanca, - o Mamadu -, um homem já de bastante idade, muçulmano fervoroso e crente. Contei-lhe a história da visão que o Nansú tivera durante a noite, e perguntei-lhe:
- Quem é Irã? Que tipo de crença o povo tem e guarda nessa suposta divindade, ou anjo do mal?

E o régulo, discretamente, como que assustado com a história que lhe contara, lá me foi dizendo:
- Irã, é uma superstição. É uma crença antiga, pertencente às antigas religiões do nosso povo, na qual alguns de nós ainda acreditamos. É uma espécie de demónio, que só pode fazer mal às pessoas. Mas um bom muçulmano não pode acreditar em Irã, nem ter medo dele. Allah protege-nos contra os poderes do mal. Quem acreditar no nosso Deus está livre para sempre dos malefícios dessa crença. Mas, é verdade... Muitos de nós ainda acreditamos que Irã existe e domina este mundo obscuro, habitando algures, no coração da selva. É uma crença que permanecerá ainda por muito tempo na tradição do povo, sem que seja possível erradicá-la de todo. E, intimamente, todos nós temos ainda medo. Mesmo muito medo.

Depois, pausadamente, e como que dominado, também, por um estranho receio, continuou:
- ... No entanto, eu sei, que essa crença antiga já não devia subsistir. Ela é incompatível com a crença em Allah, o Deus em que acreditamos. Mas ainda são muitos os que acreditam e têm medo... Mesmo quando em público dizem que não acreditam, eles continuam presos a essa superstição.

E os dias foram-se passando. E o furriel Moreira começou a ficar mais doente... Deixou de se alimentar... Deixou de comparecer ao serviço... Definhava a olhos vistos, num desmoronar muito rápido e implacável da saúde física e mental de que antes parecia gozar quase em plenitude. A vivacidade que o caracterizava deu lugar a um homem amorfo e triste, em cujo olhar que se perdia a fixar, tenuemente, algo distante, só aflorava, imensa, uma amargura profunda e misteriosa.

Uma certa manhã, acompanhado pelo enfermeiro da companhia, fui mais uma vez visitá-lo e dei-lhe para tomar, um xarope e algumas vitaminas. Mas o rapaz não melhorava... Ia passando os seus dias, a pensar que já não seriam muitos, metido em casa, a merecer a compaixão de todos os que o visitavam.

 Dada a limitação de que dispúnhamos para o tratar, pediu-se uma evacuação, de helicóptero, e o Nansú foi internado em Bissau, no hospital militar. Talvez, pensei, longe do local da aparição fatídica, e beneficiando de razoável assistência médica, fosse ainda possível que a saúde voltasse de novo. Eu estava, aliás, bastante convencido de que se tratava apenas de um pequeno problema de natureza psíquica, que a intervenção de um psiquiatra resolveria com facilidade.

E os dias foram-se passando. Ao fim de quinze dias de internamento deram-lhe alta hospitalar e ele regressou a Binta. Mas não vinha curado. A visão de Irã não o abandonava... E, pouco a pouco, continuou a definhar... E foi-se lentamente apagando...

Já quase no fim pediu-se um novo internamento e ele regressou ao hospital militar, onde viria a morrer, ao fim de poucos dias, assassinado pela visão sinistra de um pássaro negro, cujo habitat permanece bem fundo, no inconsciente colectivo deste povo.

E numa qualquer tarde, quente e tristonha, vieram dizer-me:
- Morreu o furriel Moreira...

E eu pensei:
- Foi Irã, o pássaro maldito, quem o matou!...

Domingos Gonçalves
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Notas do editor

A propósito dos Irãs, do poste de 11 de Abril de 2012, de Cherno Baldé > Guiné 63/74 - P9732: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (35): O Irã animista e o Djinné muçulmano transcrevemos os seguintes parágrafos:

O Irã pode viver em qualquer sítio porque dotado de poderes e invisível ao olho humano, mas o seu habitat privilegiado são os poilões gigantes de base piramidal e altura imponente das florestas tropicais. Quanto a questão sobre como se desloca e de que se alimenta, os povos animistas, envoltos ainda num espesso nevoeiro de tabus, medos e secretismos não fornecem muitos detalhes a esse respeito, no entanto, sabe-se que a sua característica principal continua a ser o manto sagrado (manifestação do sagrado). O Irã, a imagem e semelhança dos seus seguidores é, acima de tudo, comedido e discreto, sendo também, por acréscimo, nacionalista acérrimo e incansável defensor dos usos e costumes tradicionais.

Quanto as cores que usa, no seu dia-a-dia, o Irã tem uma certa preferência pelas cores garridas, em especial a cor vermelha e a rosa, símbolos da vida, da fertilidade e da regeneração natural.

O Irã possui um carácter forte e afoito, tal qual o grau de álcool da sua bebida de eleição, a aguardente. Todavia, não é contra as bebidas mais finas, pois adora o vinho do Porto e não desdenha o uísque ou o conhaque Escocês. Não dispensa, ainda, a água simples e pura, bebedouro das almas penadas. O Irã é, também, um ser profundamente social, com famílias grandes e ruidosas sendo muito exigente quando se trata de zelar pela segurança dos seus bens e a integridade dos membros da sua família, em especial dos filhos.

Último poste da série de 27 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13336: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (3): Viagem a Madina do Boé

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13336: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (3) - Reportagens da Época (1966): Viagem a Madina do Boé

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 19 de Junho de 2014:

Prezado Graça:
Saúde para ti, e para todos os navegantes do Blogue.
Caso não exista inconveniência, poderás inserir no blog a descrição de uma ida a Madina do Boé, à distância de 48 anos.

Um abraço amigo.
Domingos Gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1966) 
- REPORTAGENS DA ÉPOCA

3 - VIAGEM A MADINA

Dia 20

Começaram os preparativos para o transporte de abastecimentos a Madina do Boé.
Os géneros começaram a ser transportados para o destacamento do Ché-Che, onde ficam armazenados.
Não devem faltar muitos dias para que a companhia de caçadores n.º 1546 atravesse de novo o rio para escoltar as viaturas que transportarão os géneros e as munições para o abastecimento, durante a época das chuvas, da companhia n.º 1416, aprisionada dentro de um rectângulo de arame farpado, numa terra a que ainda se dá o nome de Madina do Boé. Um nome que apenas faz lembrar, a quem o escuta, o sofrimento de um grupo de homens valorosos que, estoicamente, ali vão permanecendo.
Eles, sim, merecem ser chamados de heróis.
Pelas onze horas e meia o pelotão do Alferes Y, partiu para o Ché-Che, escoltando as primeiras viaturas carregadas de géneros.
Não almoçaram porque à hora em que saíram ainda não havia almoço.
Não jantaram porque, quando chegaram, era tarde e já não havia jantar...
Não receberam ração de combate, porque a companhia precisa de economizar algumas dezenas de rações... Passaram fome!
Triste comando este, e desumano, que nós temos!
É terrível esta insensibilidade!... Esta falta de humanismo e de sentido de responsabilidade.
É chocante este abuso do poder, esta sede economicista, que se alimenta, exclusivamente, do sofrimento dos outros.


Dia 21

Pela manhã parti para o Ché-Che, com o meu grupo de combate, a escoltar as viaturas que transportam os géneros que estão a ser armazenados nessa localidade.
Passei lá o dia e pernoitei na casa de um nativo.
Foi uma noite de tempestade.
A época das chuvas chegou mesmo a sério.
No destacamento não há condições de armazenamento para os géneros que transportamos.
Fica tudo ao ar livre, ao sol e à chuva. Grande parte do abastecimento não vai chegar ao destino.
A culpa é toda de quem programou o transporte para esta época... Mas aqui, por incrível que pareça, não se pedem responsabilidade a ninguém.
É a tropa... Quem se lixa, depois, são aqueles que acabam por sofrer a fome e a necessidade... Quem faz as asneiras acaba sempre por não sofrer nada... Há pessoas afortunadas que nasceram já com o privilégio de poder fazer todo o tipo de asneiras, sem que ninguém, depois, as incomode...
A tropa é o mundo dessa gente... É uma corporação de medíocres...
E quanto mais alto é o grau na hierarquia, maior é, também, a mediocridade.

Guiné > Região do Boé > Rio Corubal >  Cheche > A jangada que fazia a travessia do rio. Belíssima foto do Manuel Caldeira Coelho (ex-fur mil, CCAÇ 1589/BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68).

Foto: © Manuel Coelho (2011). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


Dia 22

Pelas onze horas chegou, sob o comando do capitão, o restante pessoal da companhia.
O Tenente Coronel X, comandante do meu Batalhão, veio, também, na coluna.
Parte do pessoal atravessou, ainda cedo, para a margem Sul do Corubal e ocupou a zona ribeirinha. Entretanto, durante toda a tarde, a jangada foi transportando para a margem Sul as viaturas e os géneros.
Toda a companhia passou a noite na margem Sul.
Durante a noite choveu muito.
Como não havia local onde nos abrigássemos apanhou-se com a chuva toda. Foi o suficiente para ninguém dormir nada.
Perto da margem do rio rebentou uma armadilha anti-pessoal sob a roda de uma viatura. Fez apenas estragos ligeiros e não feriu ninguém.
A mina anti-pessoal rebentou, perto do tronco de uma árvore, onde, normalmente, todos temos tendência para nos encostar.
Foi uma sorte a viatura ter passado primeiro...


Dia 23

Continuou a travessia de géneros para a margem Sul, onde nos encontramos.
É uma operação lenta e muito perigosa.
A jangada está arruinada e não oferece nenhumas condições de segurança.
Hoje, caiu outra viatura ao rio e por lá ficou mergulhada, a tomar banho.
Desta vez também não tivemos, ainda, desastres pessoais. Temos andado com muita sorte.
Se um dia o raio deste calhambeque perde a estabilidade quando transportar soldados, será uma catástrofe..
De noite, as formigas e os mosquitos não deixaram dormir ninguém
O local onde se pernoitou, devido às chuvas, transformou-se num enorme lamaçal.


Dia 24

Ainda cedo iniciou-se o transporte dos géneros para Madina do Boé.
Fiquei todo o dia, com o meu grupo de combate, emboscado na zona da tabanca do Vilongo, uma povoação abandonada, cujo espaço o capim depressa se encarregou de conquistar.
Pelas duas horas da tarde, já perto do cruzamento Béli/Madina, explodiu uma mina anti-carro sob a roda de uma viatura.
Uma das secções do meu pelotão, que seguia do Vilongo [Bilonco] para o Ché-Che, a prestar segurança às viaturas, foi toda projectada para o chão.
Todos os soldados dessa secção ficaram feridos. Todos menos o Eusébio que, por simples acaso, não seguia naquele meio de transporte.
Reparei que o rapaz trazia um terço pendurado ao pescoço.
Nenhum dos feridos corre perigo, mas foram todos transportados para Bissau de helicóptero
Ao cair da noite fomos para Madina do Boé, onde se pernoitou.
O nosso comandante de batalhão acompanhou-nos sempre durante esta aventura.
É dos poucos, (ou talvez o único) comandantes de batalhão que se metem nestas andanças.
Regra geral os comandantes de batalhão preferem andar longe dos locais onde os tiros se façam ouvir, escolhem andar de avião, a algumas centenas de metros de altura, mesmo para comandar as forças de que são responsáveis.
De avião, e a uma altura considerável, longe do alcance das metralhadoras antiaéreas, é muito mais seguro viajar, ou proceder ao comando, através das comunicações rádio.
Mas, o comandante do batalhão de caçadores n.º 1887 é um homem diferente.

Em Madina, um alferes da guarnição local, ao vê-lo em tronco nu, a pele queimada, confundido entre os soldados, veio perguntar-me:
- Eh pas!.. Quem raio é aquele sargento?
- Caluda... - Respondi-lhe! Olha que se trata do comandante do meu batalhão.

O alferes ficou admirado. E tinha razão para isso.
Efectivamente, as altas patentes não se dão ao trabalho de experimentar no terreno um pouco do sofrimento que, no dia, a dia, aflige os seus homens.
Esta guerra está a ser feita pelas baixas patentes, principalmente por milicianos, sejam eles furriéis e alferes, ou em menor número, capitães. Os altos comandos preferem a tranquilidade dos gabinetes, mesmo que pouco confortáveis, a burocracia e a vida fácil dos quartéis..
Quando é necessário exercer o comando das operações nunca se deslocam com os seus homens. Através do rádio, e do avião, eles indicam os objectivos.

Convictos, eles ordenam:
-Siga pela direita. Avance mais para a frente. Atravesse a bolanha...
- Faça fogo para ali. Utilize o morteiro.

E a tropa macaca, como as elites nos chamam, lá vamos cumprindo tantas parvoíces que às vezes nos mandam fazer. Autênticas loucuras donde, às vezes, só o acaso nos deixa sair com vida...
Depois, quando chegar o fim das comissões, eles, cheios de orgulho, ficam com o peito cheio de medalhas e condecorações. São uns heróis. Desfilam garbosamente em grandes paradas, perante os ministros embriagados de júbilo.
E ouvem-se discursos! Decidem-se louvores! E escreve-se a história com uns heróis feitos de barro!
E os soldados, esses, se tiverem a sorte de não regressar numa urna funerária, dificilmente conseguirão regressar livres das enfermidades tropicais, das mutilações, dos traumas e da miséria.
É este o panorama de um exército lançado numa guerra em que já ninguém acredita. Numa guerra que apenas terá ligeiro interesse para meia dúzia de iluminados que andam por aí quase só a exibir os galões. No fim, eles levam pelo menos algum dinheiro. Quem sabe. Vão mesmo levar algumas condecorações.
Recebi carta de Lisboa, de uma rapariga que deseja ser minha madrinha de guerra...


Dia 25

De manhã, partindo de Madina, a companhia foi ao monte (uma pequena elevação) junto ao cruzamento de Béli/Madina, fazer uma pequena operação. Depois, um dos pelotões foi ao Ché-Che buscar mais géneros.
De tarde voltou toda a gente para Madina.
O comandante de Nova Lamego veio a Madina.
Como não podia deixar de ser, veio de avião.
No regresso ofereceu boleia ao meu comandante de batalhão, mas ele não aceitou. Prefere regressar, acompanhando-nos, conhecendo o nosso dia a dia, e as dificuldades que em cada encruzilhada estão à nossa espera.
A proceder assim não vai receber condecorações. É que as medalhas, regra geral, destinam-se a condecorar outro tipo de heróis. Os que tiverem mais horas de voo, em Dornier 27, ou em helicóptero, os meios de transporte mais utilizados pelos altos comandos.
- Caro comandante... Se assim continuas não fazes carreira. Ninguém se vai lembrar de ti. Mesmo que não sejas muito ambicioso, terás sempre na mente, como qualquer bom militar, atingir, no mínimo, o posto de general. É um desejo mais do que justo... Mesmo razoável...
- Mas, se não fores como os outros, insensível e desumano, oportunista e alheio ao sofrimento dos teus homens, nunca atingirás o topo da carreira que abraçastes.
Quem me dera não ser profeta...


Dia 26

Às sete horas da manhã iniciou-se a viagem de regresso a Nova Lamego.
Caminhou-se quase sempre sob uma chuva intensa.
Recuperou-se a viatura que accionou a mina anti-carro.
Ao anoitecer as viaturas já estavam todas na margem Norte do rio Corubal. Desta vez a jangada portou-se bem. Não nos pregou nenhuma das partidas do costume. Já merecíamos ter alguma sorte na travessia deste rio.
Cansados e famintos, atingimos Nova Lamego quase à meia noite.
Foi quase uma semana de fome, sede, fadiga e trabalho sem fim. Acima de tudo foi uma semana de tensão nervosa contínua, onde a miragem do perigo foi constante, tocando, às vezes, os limites da resistência psíquica de cada um de nós.
Mas, estoicamente, todos vão aguentando...
Todos vão passando além dos limites da capacidade de aguentar...
Regra geral, a nossa capacidade de resistir é sempre maior do que aquilo que nós próprios pensamos.
Somos sempre capazes de chegar um pouco mais longe...
Impressionou-me, nesta viagem, a personalidade do capitão da companhia de Madina do Boé. É um homem especial.
É mesmo um homem invulgar. Dele pode dizer-se que é um guerreiro nato.

Domingos Gonçalves
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Guiné > Mapa da província (1961) (Escala: 1/500 mil) > Detalhe: região do Boé > A única "estrada"  que ligava Nova Lamego (carta de Nova Lamego) ao sul (até Cacine), passando por Canjadude (carta de Cabuca), atravessando o Rio Corubal em Cheche (margerm direita)  (carta de Jabiá) e segundo depois para Madina do Boé (carta de Madina do Boé)...

Entre o Cheche e Madina do Boé havia o cruzamento para Beli (carta de Beli). Entre o Cheche e Madina do Boé a única povoação (abandonada) que havia em 1966 era Bilongo.

Um dos mitos da propaganda do PAIGC foi o da declaração da independência em 24 de setembro de 1973 em Madina do Boé, o que nunca aconteceu... Madina do Boé foi retirada pelas NT, por ordem de Spínola, em 6 de fevereiro de 1969 (Op Mabecos Bravios). No regresso desta operação houve o trágico desastre no Cheche, com 47 mortos por afogamento.

Guiné > Região do Boé > Carta de Jabiá (1961) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Che-Che, por onde passava a "estrada" para Madina do Boé com cruzmento à direita para Beli.  Estas 3 posições (Beli, Madina do Boé e Cheche foram abandonadas pelas NT, por ordem de Spínola). O aquartelamento mais a sul de Nova Lamego passou a ser Canjadude, guarnecida pelos "Gatos Pretos" (CCAÇ 5). Eram precisos 4 cartas militares para se ir de Nova Lamego a Madina do Boé (cinco, no caso de Beli).

Infografia: Blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné (2014).
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE SETEMBRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P8759: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (2): A Viagem, O Desembarque e o Passeio pelo Geba

sábado, 15 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11706: Os nossos médicos (48): O BCAÇ 1887 (1966/68) tinham três médicos, mas a minha CCAÇ 1546 não chegou a ter nenhum em permanência... Um deles era o dr.João Gomes Pedro, mais tarde ilustre pediatra no Hospital de Santa Maria e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (Domingos Gonçalves)


 1. Mensagem de Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68),


Data: 14 de Junho de 2013 às 16:15

Assunto: Médicos

Prezado Luís Graça:

Saúde para ti, e familiares.

Sobre os médicos militares envio-te a seguinte informação, que poderás utilizar, caso o entendas conveniente:

(i) O meu batalhão, o BCAÇ 1887,  tinha três médicos.

(ii) A minha companhia, a  CCAÇ 1546 não chegou a ter, em permanência, qualquer médico, embora um dos três, no papel, lhe estivesse ligado.

(iii) Logo no início da comissão, durante os cerca de quinze dias que permaneci em Buruntuma, convivi com o médico da companhia lá estacionada. Chamava-se Dr. Reis. O nome completo nunca o soube. Era natural da zona de Setúbal, e penso que,  antes da incorporação no exército, era cirurgião. Era um profissional competente, e uma pessoa de muito bom feitio. Tinha, já, uma certa idade.

(iv) Em Nova Lamego convivi com o médico do batalhão lá estacionado, Dr. Sampaio e Melo. Penso que na altura era clínico geral. Mais tarde foi oftalmologista no Hospital de Santo António, no Porto.

(v) Em Fá tive contactos muito esporádicos com o médico colocado no BCAÇ 1888 (?). Não lhe recordo o nome, nem a especialidade. Era um jovem profissional competente e frontal.

(vi) Os três médicos pertencentes ao batalhão a que pertenci eram os seguintes: (a) Dr. João C. Gomes Pedro. Penso que na altura era, ainda, clínico geral. Foi, quando passou à vida civil, - e continua a ser -, um insígne professor de pediatra [no Hospital de Santa Maria e na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa]. Como pessoa, apenas posso referir que era um homem excepcional. (b) Os outros dois médicos chamavam-se: Carlos Alberto, um, e Adão, outro.

(vii) As condições em que trabalhavam eram precárias, quer no que respeita a instalações, quer no que respeita a medicamentos, ou outro material médico. Regra geral, mesmo não sendo santos, às vezes conseguiam fazer milagres. Num relatório sobre diversas matérias, o comandante do batalhão a que pertenci, queixava-se." No Serviço de Saúde há grandes atrasos na recepção dos medicamentos, e o não fornecimento de vários produtos requisitados, o que perturba o fornecimento da assistência, que é ainda prejudicada pelas deficientes instalações dos postos de saúde."

(viii) Os médicos militares davam, também, a assistência possível, ás populações civis.

(ix) Pessoalmente, fui um felizardo, nunca necessitei,
naqueles tempos, de recorrer à prestação de
cuidados médicos.

(x) Já que estou a falar de médicos, faço também referência a um médico civil, que trabalhava em Bafatá, onde residia com a esposa, e restante família. Era natural de Goa, e o nome, que era indiano, e portanto mais difícil de pronunciar, escapou-se-me da memória. Era funcionário do Estado.

Com um abraço amigo, e votos de amplo desenvolvimento para o Blogue,

Domingos gonçalves.
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sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10836: Conto de Natal (7): Um Natal ainda mais triste (Domingos Gonçalves)

1. Mensagem de Natal do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), com data de 13 de Dezembro de 2012:

Em primeiro lugar, ao aproximar-se mais uma quadra festiva, para todos nós muito importante, venho por este meio desejar, ao camarada Luís Graça, um Feliz Natal, e um ano de 2013 repleto, só, de coisas boas, que aprecie, em especial muita saúde. E, claro, que a crise de que tanto se fala e escreve, o não atormente.
Este meu sincero desejo é extensivo a todos os camaradas que, à sombra da árvore enorme, que se ergue no centro da Tabanca Grande, vão contando as suas velhas histórias.

Aproveito para disponibilizar um apontamento respeitante ao Natal de 1967, que, se interessar, pode ser publicado.

Quanto ao vaticínio sobre a morte do Blog, não acredito na voz dos profetas. Nos tempos que correm, as profecias não fazem sentido. Tudo quanto é humano, terá um fim. Mas também é certo que os humanos criam muitas coisas que, mesmo quando vivem para além da barreira dos cem anos, deixam ficar do lado de cá. O Blog, pode muito bem ser uma dessas coisas.

Domingos Gonçalves


Natal

Às quatro horas e meia da manhã acordei ao som de rebentamentos de granadas.
Levantei-me imediatamente, pensando que se tratava de um ataque a Guidage. Felizmente era fora do nosso sector.

Às sete horas levantei-me novamente. O pessoal da companhia acabava de sair para picar a estrada de Sansancototo e do Caur, para facilitar a passagem de um grupo de tropas que vinha de Farim.
Às 9 horas, dois grupos de combate saíram para Udasse, onde foram montar uma emboscada.
Na realidade não foram para o sítio que constava da ordem de operações, mas para outro bastante mais próximo, após acordo prévio com o capitão.

Antes do almoço atravessei o Cacheu, num bote de borracha, com alguns homens, e fui armadilhar os terrenos da margem Sul do rio. De tarde fui montar armadilhas em todos os locais que o inimigo pudesse utilizar para se aproximar de Binta. Deixei tudo minado. Durante a ceia de Natal não podíamos correr o risco de sermos atacados pelos gajos.

A ceia de Natal correu sem qualquer espécie de entusiasmo. Materialmente falando até não faltou nada de importante, mas neste ambiente, o Natal tinha sempre de ser frio e triste. Era o último que passávamos na Guiné.
No fim da ceia, o capitão meteu-se nos copos e tomou uma valente bebedeira.

Dia 25 
Levantei-me cedo. Durante a noite consegui ter um sono repousante, sem pesadelos ou sobressaltos. Mesmo não sonhando com presépios, e música de anjos, tive uma noite tranquila. Mas, sem que me tivesse apercebido, durante a noite passou-se algo de anormal.

Pela manhã verifiquei, com surpresa, que o capitão estava cheio escoriações, e caminhava com dificuldade, com o auxílio de uma bengala. Alguns furriéis apresentavam, também, ferimentos, aparentemente ligeiros, e tinham aparência misteriosa. Comecei a pensar: Será que o meu sono foi tão profundo, que nem me deixou ouvir um ataque dos turras, concretizado durante a noite de Natal?

Fiquei na dúvida. Eu que tenho um sono leve, que acordo sempre ao menor ruído, como é que não escutei nada? Será que, durante a noite, as granadas choveram sobre Binta, sem que de nada me tenha apercebido? Na vida tudo pode acontecer, mas essa possibilidade não se me afigurava plausível.

Mas, não. Afinal, os turras não tinham atacado Binta, durante a noite. A história daqueles ferimentos, daquelas escoriações, e de todo aquele mistério, tinha outros contornos.

Já de madrugada, depois de ter andado na companhia do deus Baco, que de santo não tem nada, e é mesmo alheio à ideia de Natal, durante algumas horas, o capitão lembrou-se de que lhe assistia o dever sagrado de passar uma ronda para verificar se as sentinelas estavam vigilantes, e nos seus lugares. Como as sentinelas estavam na periferia da tabanca, a distância a percorrer era considerável, pelo que a ronda só podia ter lugar, se fosse feita de Jeep. Vai daí, a cair de bêbado, o nosso homem subiu para a viatura, desencaminhou um grupo de furriéis para lhe fazer companhia e deu início ao trabalho, a que se propusera.

Mais uma vez ficou provado que o vinho traz as pessoas para o seu verdadeiro lugar. Ele que, por norma, não se preocupava com este tipo de tarefas, sob o efeito do vinho acordou para o cumprimento do dever, a que nenhum chefe deve fugir. Mas, o vinho que lhe lembrou as obrigações, foi o mesmo que lhe tirou o tino, e a visão. O homem, altas horas da noite, enfiou o Jeep num grande buraco, com todos os passageiros que transportava. E só a muita sorte impediu que a noite de Natal se transformasse em mais um grande pesadelo, para todos nós.

A irresponsabilidade não teve limites. Um anjo do Natal – o anjo da guarda -, pairava nos céus de Binta, durante aquelas horas que não foram de grande azar.

Ainda bem que tudo assim aconteceu, e o desastre apenas provocou ligeiros danos pessoais.
Certo é, porém, que se o inimigo nos tivesse atacado durante a noite, as coisas poderiam ser bastante piores.

Felizmente que a irresponsabilidade nem sempre traz com ela consequências trágicas. É que, se tivesse havido um ataque, 50% dos homens da companhia, devido à bebedeira, não estavam em condições de utilizar as armas.

E tudo isto tornou o Natal ainda mais triste.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10832: Conto de Natal (6): Natal na Guiné, As Capelinhas e os Quincons (António Estácio)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8759: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (2) - Reportagens da Época (1966): A Viagem, O Desembarque e o Passeio pelo Geba



1. Segundo poste da série "Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época", de autoria do nosso camarada Domingos Gonçalves*, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), enviadas em mensagem do dia 22 de Agosto de 2011.






MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época - II

A VIAGEM

Agora que a terra deixou de ser visível os rapazes viajam deslumbrados pela beleza do mar a desfazer-se em ondas de cristal.
Estamos no alto mar.

Enquanto a luz do sol vai prateando o azul profundo, cardumes de peixes, assomam, de quando em quando, à superfície das águas, espreitando, curiosos, o barco que passa.
Quando entardeceu todos admiraram o Sol a esconder-se num horizonte avermelhado, belo e impreciso, espalhando na distância cores cintilantes e garridas.
Na minha aldeia o Sol esconde-se para além das montanhas ondulantes de arvoredos e penedias.
No mar desaparece num horizonte menos distante, num céu mais puro e mais encantador.
Mas é muito mais belo!

Pôr-do-sol no mar
Foto: © Dina Vinhal (2011). Direitos reservados


Esta primeira noite passada sobre o mar foi maravilhosa.
Miriades de estrelas povoaram a amplidão e brilharam alegres na distância.
O mar, esse, tomou a cor da noite e apenas deixava que a gente se apercebesse do deslizar sereno do barco sobre as águas e do marulhar sereno das ondas.
É um mundo de mistérios aquele que a escuridão espalha para além do barco...


8 de Maio

A manhã rompeu radiante de cor.
O mar mais parece um espelho grandioso, cheio de brilho, do que um mundo feito de abismos negros.

É domingo.

Às oito horas o capelão celebrou missa.
Enquanto tocado pelas ondas o barco segue baloiçando, aquele Cristo que tantas vezes andou no mar da Galileia, onde até acalmou as tempestades, veio ao nosso encontro no meio deste Atlântico cheio de tanta história.

Entre os soldados reina boa disposição

Viajar de barco, e com algum conforto, não deixa de ser agradável.
Se não fosse a tirania do capitão da 1546, que ontem até impediu um homem de jantar, isto seria quase um cruzeiro turístico...
Nunca vi ninguém que exercesse o poder com tanta crueldade e que fosse obedecido com tão pouco prazer.
Este capitão é uma pessoa muito chata!
Temo imenso pelo fracasso a que vamos sujeitos debaixo do seu comando.
Um homem como ele nunca deveria ser chefe de coisa nenhuma...


Dia 9

O dia alvoreceu cheio de brilho, prateado por uma luz admirável, que nem consente que a fixe com os meus frágeis olhos.

De tarde, o céu encheu-se de nuvens e o mar entristeceu-se tanto que até perdeu todo aquele argênteo fulgor que pela manhã ostentava.

O médico da Companhia fez uma palestra aos soldados sobre doenças tropicais e a melhor forma de as evitar.
Como em tudo, o melhor remédio é sempre a prevenção.
Como diz o velho ditado, é melhor prevenir do que remediar.
Sabe-se, no entanto, que a prevenção é uma coisa muito bonita para se falar dela, mas
que, na realidade, poucas vezes funciona.
Mas, os entendidos na medicina falam nela com tanta convicção que a gente até lhes faz o jeito de acreditar. O médico é mesmo um tipo formidável que merece mesmo que o pessoal acredite nele.


Dia 10

Quando me levantei já ia bem alto o Sol.
No mar, pelo menos ao nascer, os dias são sempre magníficos.

Numa alocução às tropas, o capitão disse que os soldados têm que estar convencidos de que são tropa e não andam a fazer turismo pelo oceano.
Os altos comandos do barco, não se sabe por qual razão, chamaram-no malcriado. Ele, a nós, disse que apenas lhe chamaram irreverente.
Não sabemos ao certo o que se passou, ou qual foi a razão da troca de mimos. Mas lá que o tipo é chato, isso é verdade.

Tem havido cinema.
Os filmes são de bastante má qualidade.
No barco, e para a tropa, também não seria de esperar que exibissem as últimas novidades da indústria cinematográfica.
Seria exigir de mais!


Dia 11

As noites já são bastantes quentes. O calor é já uma realidade bem presente. O ar que se respira é abafado.
Apenas se está bem no interior do barco em ambiente de ar condicionado.
As milhas que nos separam da Guiné são cada vez menos. Porém, o espectáculo do mar é cada vez mais belo.
Agora são os cardumes de peixes voadores e os golfinhos que lhe emprestam um novo encanto.

De tarde, o major fez uma alocução às tropas e desejou-lhes a melhor das sortes no desempenho das missões que o Batalhão de Caçadores n.º 1887 tiver que desempenhar nos próximos dois anos.


Dia 12

Pelas dez horas e trinta minutos avistou-se terra.
Pouco depois das onze horas o barco parou à espera do piloto local, para entrar na barra do Geba.
Pouco antes das três da tarde o Uíge ancorou em frente a Bissau.

Avisaram-nos de que o desembarque terá lugar amanhã, a partir das nove horas.
O nosso destino, dizem, será Nova Lamego.

Da parte da tarde os oficiais reuniram-se na sala de música do barco para assistir a uma palestra sobre a situação militar na Guiné.
A alocução foi proferida por um tenente-coronel e, da descrição que fez, deduzo que, pelo menos em algumas zonas, a situação, embora controlada, será bastante difícil.

Respira-se aqui um ar de guerra.

No rio Geba os barcos da Marinha aparecem um pouco por todo o lado, o mesmo acontecendo com as pequenas lanchas dos fuzileiros navais.

A velha “Mauser” aparece dentro dos pequenos barcos de passageiros e de carga. As armas estão um pouco por todo o lado.
O sossego que se respira na metrópole aqui já não existe.
É a guerra.
Temos de nos habituar a este ambiente estranho.

Guiné > Bissau > Outubro de 1973 >  Cais de Pidjiguiti
Foto: © António Graça de Abreu (2011). Direitos reservados


O Desembarque e o Passeio Pelo Geba

13 de Maio

Da parte da manhã a Companhia deixou o Uíge.
Homens e bagagens, tudo passou para a Bhor, uma barcaça de pequeno porte que nos levou pelo Geba fora, rumo a Bambadinca.

*

Respira-se mal.
O sol queima.
Nas águas amareladas do Geba nem um sinal de maresia.
Da chaminé do barco levanta-se uma leve nuvem de fumo e, ao longe, por entre uma plúmbea neblina, a selva parece arder.

Os guindastes do Uíge fazem o transbordo da bagagem pertencente aos homens da Companhia de Caçadores n.º 1546 para uma barcaça de fundo chato, tão larga quanto comprida, da cor das águas sujas do rio.

Sob um sol ardente, os rapazes abandonam o conforto do Uíge e vão descendo para a barcaça, que já se encontra repleta de bagagens.

É quase meio dia.

A Bhor começou a navegar pelo Geba acima, em direcção a uma localidade que, dizem, se chama Bambadinca.

Bambadinca > Vista aérea
Foto: © Humberto Reis (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine. Todos os direitos reservados.


A floresta, no meio da qual nos deslocamos, já que o rio não é mais do que uma imensa estrada que a natureza rasgou, num esforço milenar, para facilitar a nossa passagem, é muito verde. Pode mesmo dizer-se que é bonita, feita de uma beleza que cheira a monotonia.

O sol tropical cai, inclemente, sobre as cabeças e os corpos de cada um de nós, martirizante e implacável, queimando sempre cada vez mais.

Nas margens, quase ao mesmo nível das águas, casando-se com o rio, está a floresta virgem, misteriosa, um mundo de ninguém, estranha riqueza à espera de ser explorada.

De quando em quando, alternando com a selva, surgem bolanhas enormes, nuas, morrendo ao longe coroadas pela rama verdejante das palmeiras.

A sede atormenta-nos.

Os nossos corpos, agredidos pela inclemência do clima, desfazem-se em suor.
Para aumentar o martírio de todos a barcaça não traz água.
Para matar a sede lançam-se ao rio garrafas vazias, seguras por cordéis, que, depois se puxam para bordo, cheias de água.
E que deliciosa é esta água amarelada e quente!

Às duas horas da tarde deram-nos o almoço.
Encostados uns aos outros, sem o mínimo de condições, comemos ovos cozidos, laranjas, pão seco e sardinhas de conserva.
Tudo, é claro, acompanhado com a água suja do rio.

A meio da tarde a barcaça ultrapassou a confluência do rio Geba com o Corubal.
A partir desse ponto, devido ao rio ser mais estreito e menos profundo, a navegação torna-se bastante mais difícil.

À passagem pelo Xime, as tropas destacadas na localidade celebram a nossa passagem com algumas salvas de tiros de G.3.
Alguns soldados andam no rio, a bordo de uma canoa, talvez pescando.
Os que estão em terra têm a pele bastante bronzeada.

Anoiteceu antes que a viagem fluvial terminasse.

Agora, a barcaça navega mais vagarosa, e de luzes apagadas.
Estamos, por certo, a atravessar alguma zona perigosa.
Quem adivinha se o inimigo nos está a preparar alguma partida.

Nas margens do rio, qual sombra de fantasma gigantesco, apenas temos o fantasma da selva infinita.
Aquilo que durante o dia se reveste de beleza considerável, enche-se, de noite, de frieza e mistério.
Com a escuridão tudo se torna enigmático e terrível.

Ao longe já se vislumbram luzes.
É a vila de Bambadinca, termo da nossa viagem fluvial.
Já vai alta a noite.

Vestígios do porto de Bambadinca. Suportavam o tabuleiro do cais, por aqui passaram toneladas de comida, munições e aparato bélico, material de construção civil, etc. Para que conste para a História, aqui houve cais, exactamente neste ponto acostava o aprovisionamento dessa imensa guerra.
Foto e legenda: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.

A barcaça encostou-se à margem do rio, no pequeno cais construído em madeira.
Dentro e fora reina a escuridão.
Os soldados procuram, auxiliados por uma luz muito branda, as respectivas bagagens, e fazem, a poucos metros da margem do rio, um monte de malas e sacos.

Depois, exaustos, deitam-se no chão, expostos aos mosquitos e à humidade que a atmosfera, junto ao rio, não pode deixar de imanar, na tentativa de garantir algum descanso ao corpo fatigado, até que cheguem as viaturas que nos transportem para Nova Lamego, a terra onde iremos, segundo nos disseram, permanecer, não se sabe durante quanto tempo.
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 6 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8742: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (1): A caminho de embarque e Embarque