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quinta-feira, 11 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24307: Facebook...ando (27): Op Neve Gelada, na zona de Campã / Cantiré, 5 km a norte de Canquelifá, onde estavam as bases de fogos (morteiro 120 mm e foguetões 122) usados contra Canquelifá



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Sector L4 (Piche) > Canquelifá > Março de 1974 >  O José Marques junto a um dos morteiros 120 capturados no dia 21 de março de 1974, pelos Comandos Africanos na zona de Canquelifá, quando arrumávamos as respectivas granadas. Cortesia de José Marques (Castelo de Vide) (não sabemos ainda a que unidade/subunidade pertenceu, mas fica convidado para integrar o blogue, é apenas amigo do Facebook).

Foto (e legenda): © José Marques (2023). Todos os direitos reservados. 
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1.  Seleção de comentários, gerados no Facebook da Tabanca Grande (*), na sequência da publicação do poste P24305 (**):

(i) Tabanca Grande:

Depois do ataque e destruição da tabanca de Canquelifá, 18 de março de 1974, por fogo IN de morteiro 120 mm e foguetões 122 mm), foi desencadeada a Op Neve Geada, de 21 a 23 de março de 1974, tendo sido batida a zona de Campã / Cantiré, sector L4 (Piche), a cerca de 5 km, a noroeste Canquelifá, numa ação levada a cabo pelo BCmds da Guiné, a três agrupamentos. 

 Na zona estava referenciada uma base de fogos IN. No dia 21, pelas 14h45, a base de fogos foi assaltada, tendo sido apreendidos: 

  • 3 morteiros 120 mm; 
  • 367 granadas de morteiro 120 mm;
  • 1 LGFog RPG-2; (iv) 2 espingardas automáticas Kalashnikov; 
  • e material diverso.

No dia seguinte, pelas 10h00, foi assaltada nova base de fogos e capturadas três rampas de foguetões 122 mm, além de material diverso (munições, espoletas, munições., etc.). Baixas: 2 mortos e 24 feridos, do lado das NT; 27 mortos, incluindo 2 cubanos, do lado do IN. 

Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015). pp. 479/480.)

(ii) O cor 'comando' ref Raul Folques acrescentou o seguinte:

Na Op.Neve Gelada, zona de Canquelifá, o Batalhão de Comandos da Guiné capturou ao IN_:
  • 3 mort. 120mm completos;
  • 1 tubo de mort. 120mm , 2 tripés, 1 prato/base;
  • e 367 granadas de mort.120mm. 
A operação teve lugar no fim de Março de 1974.

(iii) O Cherno Baldé levantou a questão da localização das bases de fogos:

Tabanca Grande Luís Graça, não fosse essa operação dos Comandos Africanos,  efectuada na localidade de Campã para aliviar a pressão sobre Canquelifá, ainda hoje continuariam a pensar que as bases de fogo se localizavam sempre a partir dos territórios vizinhos e assim justificar a impotência do exército português de fazer parar estes ataques. 

Antes de Canquelifa já tinha havido ataques as cidades de Bafatá e Gabú com foguetões e morteiros 120, no Sul os bombardeamentos eram constantes e temos os casos de Cufar,  por exemplo, sendo que são localidades no interior do território.


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu >  Pormenor da carta de Canquelifá (1957) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Canquelifá, tendo a noroeste Copá, e a norte, Campá (5 km em linha reta) e Cantiré (7 km) e, mais acima, os marcos fronteiriços 60, 61 e 62 que o PAIGC devia atravessar vindo as duas bases logísticas no Senegal.

(iv) A Tabanca Grande esclareceu:

Cherno, o PAIGC tinha camiões russos, em março de 1974 (e já antes, desde pelo menos 1968)... Podia perfeitamente penetrar com os morteiros 120 no território da então colónia portuguesa da Guiné... A partir de março de 1973, devia sentir-se mais "à vontade" com a proteção do Strela...

O cor 'comando' Raul Folques, "Torre e Espada", que comandava o Batalhão de Comandos da Guiné na Op Neve Gelado (mas também o cor 'comando' Carlos Matos Gomes, que comandava um dos três Agrupamentos) é que nos pode confirmar hoje (já não é segredo de Estado) se entrou ou não na República da Guiné e se as bases de fogos dos morteiros 120 mm (e dos foguetões 122 mm) estavam ou não em território da Guiné-Bissau, como parece sugerir o Cherno Baldé...  

Em relação à localização das bases de fogo, verificamos pela carta de Canquelifá (1957) (Escala 1/50 mil), que Campã (e não Campiã), uma antiga tabanca, ficava a 5 km, a norte de Canquelifá... Deve ser sido aqui que o PAIGC posicionou os morteiros 120 mm, cujo alcance máximo era de 5700 metros... Cantiré ficava um pouco mais mais longe (cerca de 7 km em linha reta)... 

Portanto, o que o Chermo Baldé diz, é correto. O PAIGC arriscou entrar no território da então Guiné portuguesa, confiando nos seus mísseis Strela... Nem  sempre as viaturas russas Zil e Gas ficaram na fronteira, nem os tipos do PAIGC deviam saber onde ficavam os marcos... Mas a verdade é que desta vez, e talvez por excesso de autoconfiança, não contaram com os comandos africanos, comandados pelo major 'cmd' Raul Folques, que apanharam 3 morteiros pesados completos mais um tubo, e provocaram 27 baixas mortais ao IN, incluindo 2 'internacionalistas' cubanos (que deviam ser apontadores de morteiro)... (Op Neve Gelada, 21 e 22 de março de 1974.)

Quanto à flagelação da Bafatá, meu caro Chermo,  terá sido efetuada apenas com foguetões de 122 mm, como diz (e bem) o... por certo que os combatentes do PAIGC, por muito valentes que fossem, não entraram pela Zona Leste  / Região de Bafatá com os morteiros 120 mm às costas, ou rebocados pelos camiões Gas ao longa da "autoestrada" do leste (que ia praticamente de Buruntuma a Bambadinca, no final da guerra).. Recorde-se que cada morteiro 120, completo (tubo, bipé e prato)  pesa "só" 275 kg (fora as granadas)...

(v) Esclarecimento de António Tavares:

O primeiro ataque a Bafatá com foguetões de 122 mm foi feito da Zona de Acção da responsabilidade da CCaç 2699, sediada em Cancolim, em 1971. A rampa de lançamento foi deixada no local onde foi montada. Felizmente não houve feridos.
Gosto

(vi) Informação do António Rodrigues:

Em Copá, nos meses de Janeiro e Fevereiro de 74, caíram algumas centenas de granadas deste morteiro.

Contávamos todas as saídas e, poucos segundos depois estávamos a contar as explosões junto de nós e só ficávamos descansados quando explodia a última de cada série, felizmente sem consequências físicas para nenhum de nós.
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Notas do editor:

(*)  Último poste da série > 24 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24247: Facebook...ando (26): Homenagem ao Xico Allen (1950-2022): a filha Inês, em Fátima, no passado sábado, no convívio anual da CCAÇ 3566, "Os Metralhas" (Empada e Catió, 1972-74)

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Guiné 61/71 - P24305: Armamento do PAIGC (4): Morteiro pesado 120 mm M1943, de origem russa, usado nos ataques e flagelações a aquartelamentos das zonas fronteiriças, como Gandembel, Guileje, Gadamael, Guidaje, Copá ou Canquelifá


Guiné > PAIGC > 1973 > O temível morteiro 120 mm, usado na batalha dos 3 G (Guidaje, Guileje, Gadamael)... Só Guileje tinham abrigos  feitos pela Engenharia Militar, o BENG 447, à à prova de morteiro pesado...  As granadas tinham uma espoleta de atraso, perfurante, permitindo um melhor desempenho, após uma perfuração inicial das estruturas dos abrigos.

Foto (e legenda): © Nuno Rubim (2007). Todos os direitos reservados.
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaaradas da Guiné]




Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > Sector L4 >  Canquelifá >  Março de 1974 > A desolação da guerra... A tabanca, depois do violento ataque do PAIGC com morteiros 120 e foguetões 122, durante 4 horas, em 18 de março de 1974...

Foto (e legenda): © Jacinto Cristina (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaaradas da Guiné]


1. Continuando a série "Armamento do PAIGC" (*), apresenta-se hoje o morteiro pesado 120 mm, usado contra alguns aquartelamentos de fronteira, tais como Guidaje, Guileje e Gadamael, em maio e junho de 1973, Copá, em janeiro de 1974, ou Canquelifá, em março de 1974, mas já também em 1968 contra Gandembel, Cameconde, etc.

A estreia foi contra Gandembel em agosto de 1968. As bases de fogos eram sempre localizadas no território da Guiné-Conacri. Foi utilizada, contra as NT, como arma de artilharia. E não tinham, à exceção de Gandembel, Guileje e pouco mais, abrigos à prova do morteiro 120 mm. Os nossos "bunkers" eram "bu...rakos", escavados na terra, e com cobertura de terra, chapa de zinco e troncos de cibe...

 
 O nosso especialista em história da artilharia e armas pesadas do PAIGC, cor art ref Nuno Rubim (de quem não temos, infelizmente, notícias há muito) escreveu aqui em tempos (**):

(...)  As munições do morteiro de 120 mm tinham efectivamente uma espoleta de atraso, perfurante, para permitir o rebentamento da granada já depois de ser obtida alguma penetração.(...)

É dele também a foto do mroteiro 120 mm que publicamos acima.

2. Temos muito pouca informação técnica sobre esta arma usada pelo PAIGC, desde pelo menos desde agosto de 1968 (contra Gandembel, segundo testemunho do nosso camarada Idálio Reis, e confirmado pela  CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro II (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015). pág. 143).

Devido ao seu peso (275 kg,  sem contar com os cunhetes das granadas), esta arma coletiva, de tiro curvo, só podia ser rebocada e usada nas zonas fronteiriças. 

Em 1968, e segundo a mesma fonte (CECA, 2015, pág.145), o PAIGC, além de já estar dotado de meios de transmissões, e de já dispor do canhão s/r  8,2 cm "Tenasrice" (facilmente transportável e pondendo disparar, apoiado no ombro do atirador!), também tinha feito progressos no que diz respeito aos meios de transporte: dispunha, em 1969, de cerca de meia centena de viaturas Zil e Gaz, para além de alguns autotanques e algumas automacas. Essas viaturas,  todavia, só circulavam nos países limítrofes (Guiné-Conacri e Senegal), não ultrapassando, em regra, a  linha fronteiriça.

Segundo a mesma fonte, "o morteiro 120mm, com um alcance de 5700 metros" era uma arma que "no exército  soiviético, estava a substituir o morteiro 8,2cm", o que não é comfirmado pro outras fontes que consultámos...

Segundo a Wikipedia (em inglês), julgamos que se trata do morteiro M1943 ou 120-PM-43 (em russo: 120-Полевой Миномёт-43) ou o morteiro de 120 mm Modelo 1943 (em russo: 120-мм миномет обр. 1943 г.), Era também conhecido como Samovar.

Com cano de alma lisa, calibre 120 milímetros, foi introduzido pela primeira vez em 1943 como uma versão modificada do M1938. Na prática, veio substituir o M1938 como arma-padrão para baterias de morteiro em todos os batalhões de infantaria soviéticos no final dos anos 1980, embora os exércitos do Pacto de Varsóvia utilizassem um e poutro modelo.

Especificações técnicas:
  • Peso total: 275 kg (tubo, bipé e prato);
  • Granada (HE-120): 16 kg; (granada altamente explosiva);
  • Equipagem:  6 elementos;
  • Calibre: 120 mm;
  • Carregamento: granada introduzida pela boca do tubo que tinha, no fundo, um percutor fixo;
  • Elevação: +45° a +80°; 
  • Cadência de tiro: 9 tiros por minuto no máximo, 70 tiros por hora no máximo;
  • Velocidade inicial da granada: 272 m/s (Frag-HE & HE);
  • Alcance efetivo de tiro: máximo de 5.700 m, mínimo de 500 m.  

A Guiné-Conacri é um dos países que ainda dispõe, atualmente, desta arma tal como a Guiné-Bissau (neste caso, uns 8 morteiros, não sabendo nós se algum é "sobrevivente"  do tempo da guerrilha)...

Esta arma, de carregar  pela boca,  pode facilmente ser dividida em três partes (tubo, bipé e prato) para movimentação em distâncias curtas ou rebocada por um camiã0  Zil ou Gaz numa atrelado de duas rodas.

É um sucedâneo do 120-PM-38 ou M1938 , Os russos eram "bonzinhos" mas não eram "parvos": não sabemos se não terão mandado para Conacri (e/ou para o PAIGC)  alguns exemplares desta "sucata da II Guerra Mundial"... 

O morteiro soviético 120-PM-38 ou M1938, de 120 mm,  foi  usado em grande escala pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Embora fosse um projeto convencional, a combinação de 4 factores (peso,  mobilidade, poder de fogo e alcance) levou ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de novas versões, como o 120-PM-43.

Já em 1968 e 1969, o IN utilizava o morteiro 120mm contra aquartelamentos fronteiriços no sul: Guileje, Gadamael, Cameconde, Cacine...At6é 1970, as NT náo capturaram nenhum morteiro pesado do IN.

Na Op Neve Geada, de 21 a 23 de março de 1974, foi batida a zona de Campiã / Cantiré, sector L4, nas proximidades de Canquelifá, numa ação levada a cabo pelo BCmds da Guiné, a très agrupamentos. Na zona estava referenciada uma base de fogos IN.  

No dia 21, pelas 14h45, a base de fogos foi assaltada, tendo sido apreendidos: (i) 3 morteiros 120 mm; (ii) 367 granadas de morteiro 120 mm;  (iii) 1 LGFog RPG-2; (iv) 2 espingaradas automáticas Kalashnikov;  e (v) material diverso. 

No dia seguinte, pelas 10h00, foi assaltada nova base de fogos e capturadas  três rampas de foguetões 122 mm, além de material diverso (munições, espoletas, munições., etc.). 

Baixas: 2 mortos e 24 feridos, do lado das NT; 27 mortos, incluindo 2 cubanos, do lado do IN.  (Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015). pp. 479/480.)
______________


(...) No dia 31Mai73, iniciou as flagelações com morteiros 120 mm, tendo as primeiras granadas caído fora do perímetro do aquartelamento e sucessivamente o fogo foi sendo mais ajustado, deduzindo-se que o lN tinha montados Postos Avançados de Observação.

No dia 1Jun73 iniciou nova flagelação que durou várias horas tendo as granadas caído todas dentro do aquartelamento, com especial incidência sobre os depósitos de géneros e da cantina, zonas periféricas de defesa (valas) e espaldões da Artilharia que foram duramente atingidos. (...)

Comentário do C. Martins (3 de julho de 2022 às 03:16):

(...) A descrição feita pelo sr. ex-capitão "comando" Ferreira da Silva, hoje coronel e advogado, está muito correta com a excepção da granada que provocou 3 mortos e 12 feridos, não caíu na cobertura da zona de descanso, mas sim dentro do espaldão,tendo ficado o obús inoperacional Nunca mais tantos homens ficaram dentro do espaldão.

O quartel ficava a 4 km da fronteira. As bases de fogos do IN ficavam todas dentro da Guiné-Conakry, sendo as peças, morteiros, grads, etc.. manobradas por cubanos.  (...)

Era muito difícil fazer contra-bateria. Felizmente para nós o IN tinha maus artilheiros, com excepção de um dia de fevereiro/74 em que as "enfiaram" todas na orla da mata em frente aos obuses, com granadas perfurantes e incendiárias; se tivessem corrigido o tiro em 100 metros mais à frente, hoje  eu não estaria certamente a escrever estas linhas. (...)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 19 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24234: Armamento do PAIGC (3): peça de artilharia 130 mm M-46, cedida pelo Sekou Turé para os ataques, a partir do território da Guiné-Conacri, contra Guileje e Gadamael, em maio/junho de 1973

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24203: Blogoterapia (311): A sombra do jagudi (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

A SOMBRA DO JAGUDI

adão cruz

Acordei com um sol baço, esfreguei os olhos, espreguicei-me a todo o comprimento dos braços e bocejei a toda a largura da boca. Na rede mosquiteira, um grande insecto, enredado nas malhas, desesperava por se libertar, arrancando das asas um zumbido estridente de raiva e de agonia. Ainda ensonado, achei que era eu próprio a libertar-me da prisão onde me enfiaram.

Só tinha adormecido pela madrugada, com um peso no peito e um amargo na boca, deixado pela repetida leitura da carta da mãe da Sónia.

A Sónia vivia na África do Sul. Conheci-a em Lisboa, onde ela passava as férias com os pais, que eram amigos da família do meu colega Carvalho Santos. Era uma lindíssima miúda de vinte anos, cheia de sol e futuro. Com ela convivi durante os dias que precederam o meu embarque para a guerra da Guiné e o regresso da Sónia à África do Sul. O tempo suficiente para que dentro de nós se criasse uma linda relação e uma promessa de correspondência futura.

Entra a Guiné e a África do Sul, trocámos tantas cartas quantas o tempo e a distância o permitiram. Todas levavam e traziam as mais bonitas palavras que cada um de nós tinha dentro de si. Mas este fio de água cristalina que tão bem refrescava o calor da Guiné, subitamente secou. Durou metade da guerra. De um momento para o outro, as cartas deixaram de aparecer, como se no céu as estrelas se apagassem. A última que recebi foi da mãe da Sónia, dizendo que a filha morrera, vítima de um cancro da medula. Nunca de tal coisa a Sónia me falara. Nunca as suas cartas se escureceram. O estrondo que senti dentro do peito não foi menor do que o duma bazuca. Fugi para o meu quarto e encolhi-me até onde as carnes se dobraram. Dentro da carta vinha um pequenino alfinete de ouro, “a singela joia de que ela mais gostava” e que ainda guardo… mas não sei onde.

(Jagudi era o nome dos abutres, na Guiné)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23944: Blogoterapia (310): Não estou bem, e como anteriormente já dissera, voltei a ir para o "Corredor da Morte" (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24080: A nossa guerra em números (23): Relatório da 2ª Repartição/CCFAG, relativo ao período de 1jan73 a 15out74: "maior agressividade e potencial revelado pelo IN, e menor capacidade ofensiva das NT"








Fonte: Relatório da 2ª Repartição/CCFAG relativo ao período de 1jan73 a 15out74, citado por CECA  - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, 2015), pp. 493-499.


1. Com esta série "A nossa guerra em números" (*), não temos nenhuma pretensão, explícita ou implícita, de defender esta ou aquela tese sobre a guerra colonial / guerra do ultramar, em particular no TO da Guiné... O nosso propósito é meramente informativo e didático: cada um dos nossos leitores fará a sua leitura dos números apresentados, a crítica das suas fontes, as eventuais conclusões a tirar, etc...

A análise dos números e a sua interpretação devem ser feitas com cautelas e até reservas. É preciso  ter sempre em conta variáveis como o contexto (por exemplo, político-militar), a qualidade dos dados, a sua fonte, a idoneidade das fontes, quem os recolhe e trata, o fim a que se destinam, etc. Todos nós podemos mentir com números na mão: políticos, economistas, jornalistas, gente da publicidade e do marketing, etc., "usam e abusam" dos números... Para vender produtos e ideias, por exemplo. E depois é ter preciso fazer a distinção entre dados, informação e conhecimento. 

Os dados que temos hoje para apresentar são de fonte portuguesa, oficiosa, a antiga 2ª Rep do QG/CCFAG (Quartel General / Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné). E reportam-se à situação político-militar do ano de 1973 e dos primeiros quatro meses de 1974. Trata-se de uma síntese da atividade do PAIGC neste período final da guerra:

(i) ações de iniciativa do IN;
(ii) ações de reação do IN às NT;
(iii) minas e outros engenhos explosivos implantados pelo IN e neutralizados pelas NT;
(iv) baixas causadas pelo PAIGC às NT e à população (mortos, feridos, capturados, retidos);
(v) baixas sofridas pelo PAIGC (mortos, feridos, capturados, apresentados).

Os comentários dos nossos nossos leitores serão bem vindos.


CECA (2015) - Anexo n° 4 _ Relatório da 2ª Repartição/CCFAG 

relativo ao período de 1jan73 a 150ut74 [Excertos, 1]


O ano de 1973, juntamente com os primeiros meses de 1974 até ao 25 de Abril, constituem um período de nítido agravamento da situação militar, económica e político-subversiva no território da Guiné

Este estado de coisas reflectia a agudização do problema colonial português,  especialmente no plano internacional. Os movimentos emancipalistas, em particular o PAIGC, recebiam apoios ou ajudas de toda a ordem, cada vez mais generalizados, com destaque para os que eram canalizados através da ONU e OUA. [2]

Deste modo tomava-se muito real o isolamento do Governo português, cuja política de intransigência prosseguida apontava para um previsível esgotamento dos recursos do país a mais ou menos curto prazo.

[...] No seguimento da decisão tomada na 20ª Sessão do Conselho de Ministros da OUA, para que fosse empreendido, durante o ano de 1973, um golpe político-militar decisivo, sobre a Guiné, operou-se durante o mês de Maio um muito significativo agravamento da situaç,ão no TO. 

Assim, e em ordem à sua redução, o lN desencadeou poderosas e prolongadas acções de fogo sobre as guarnições fronteiriças de Guidaje, Guileje e Gadamael Porto, as quais conjugou com acções de isolamento terrestre e aéreo (início de emprego de mísseis "SA-7", que limitaram o emprego da Força Aérea), que efectivamente conseguiu, durante alguns dias em Guidaje. 

Quanto a Guileje obrigou as NT ao seu abandono. Na primeira metade de junho, manteve-se o agravamento verificado durante o mês anterior notando-se na última quinzena tendência para o desanuviamento da situação em Guidaje e Gadamael Porto, situação que tudo indicava ser temporária e somente resultante da época das chuvas em curso. 

A partir de fins de ag073 começou a ser referenciada uma concentração anormal de meios na faixa além-fronteira do saliente N/NE do território, a qual, no final do ano, evidenciando as intenções do lN, passou a constituir uma real ameaça sobre as guarnições de Buruntuma, Canquelifá e Copá, em especial esta última, de menor efectivo (2 Gr Comb), isolada e excêntrica.

Neste contexto, as forças do PAIGC não só revelaram uma notável capacidade de manobra e confirmaram o extraordinário potencial de combate que lhes era atribuído, como alteraram profundamente o seu conceito de manobra no TO, passando da actuação dispersa em superficie para a concentração maciça de meios sobre objectivos definidos, normalmente distantes uns dos outros, com o propósito de hipotecar as reservas das NT no local oposto onde pretendia exercer o esforço.

Destas realidades, logo no início de 1974 com o avanço da nova época das chuvas, resultou novo agravamento da situação criada com o empolamento da guerrilha desde abril do ano anterior.

Assim, a partir de jan74, o PAIGC passava verdadeiramente à ofensiva, a qual se caracterizou pela definição de duas áreas de incidência de esforço, diametralmente opostas, uma no extremo NE do TO onde desenvolvia a Op "Abel Djasse" e a outra a Sul, no Cubucaré, para o que inclusivamente tinha constituído um novo órgão coordenador das operações de guerrilha nesta zona: o Comando Sul. 

As acções foram desencadeadas, numa e noutra das áreas referidas, com base em novas unidades das FARP, e com largo emprego de artilharia e armas pesadas, nomeadamente mort 120 mm e fog 122 mm.

Além destes meios os mísseis SA-7 "Strela" eram frequentemente utilizados, o que limitava grandemente o apoio da Força Aérea às guarnições terrestres e, a 31mar74, apareciam as primeiras viaturas blindadas em Bedanda (Cubucaré) o que confirmava o grande aumento de potencial, assim como a crescente capacidade táctica e, sobretudo, logística do PAIGC. 

Nas restantes áreas do TO aumentava igualmente de modo significativo a actividade de guerrilha dispersa em superfície, com relevo para o emprego de engenhos explosivos e acções de terrorismo urbano que alastravam até à própria capital - Bissau.

Como mero exemplo citam-se as 17 flagelações com armas pesadas a outros tantos aquartelamemtos ou  povoações, num único dia (20lan74 - Data da morte de A. Cabral), o rebentamento de engenhos explosivos num café de Bissau (26fev) que provocou 1 morto e a sabotagem no próprio QG/CTIG (22fev) onde parte do edifício principal foi destruída.

No Sul a ofensiva aí realizada permitia ao PAIGC o controlo efectivo de uma área de razoável superfície em que inseria o "corredor" de Guilejepercorrido frequentemente por viaturas das FARP, e que confinava com outra vasta área abandonada pelas NT desde 1969 - o Boé.

Em abr74, dado o esgotamento das reservas do Cmd-Chefe, previa-se que o relançamento da ofensiva no saliente NE, orientada para Sul, tomaria iminente o abandono de Canquelifá e o consequente isolamento de Buruntuma.

Admitia-se ser intenção do PAIGC unir a bolsa assim conquistada com a Região do Boé, por sua vez ligada à zona onde se localizava o "corredor" de Guileje, mais a Sul, concretizando deste modo uma ocupação territorial efectiva que carecia para reforçar a imagem do Estado da Guiné-Bissau parcialmente ocupado pelas Forças Armadas Portuguesas.

Nas áreas de incidência de esforço referido a situação era de tal modo grave para a maioria das guarnições das NT, cujos sistemas de defesa não dispunham de obras de fortificação que pudessem resistir com eficácia às novas armas pesadas do PAIGC, que o Cmd-Chefe alertara do facto o EMGFA, a 20abr74, por uma nota que concluía nos seguintes termos:

"O facto de ter sido confirmada parte das notícias atrás mencionadas pela utilização de viaturas blindadas no ataque a Bedanda, confere certa verosimilhança às restantes notícias que referem a existência de novas armas antiaéreas ou outras, pelo que aquela utilização e o conjunto das circunstâncias descritas na presente nota, nomeadamente a análise das fotografias juntas, são motivo de grande preocupação para este Cmd-Chefe, cumprindo-lhe assinalar as consequências que podem resultar da possível evolução do potencial de combate do PAIGC ou do seu eventual reforço com novos meios das FA da Guiné, quer quanto à capacidade de resistência das guarnições militares que porventura sejam atacadas, quer quanto às limitações de intervenção com meios à disposição do Comandante-Chefe, em especial meios aéreos".

Análise da actividade de guerrilha

A partir de 1964, após a criação das FARP, a curva da variação anual de actividade de guerrilha apresentava, todos os anos certa semelhança: crescia durante toda a época seca, apresentando um ponto alto em jan/fev, após o que decrescia para, em abr/mai, subir de novo até ao começo das chuvas, altura em que alcançava o máximo anual; a partir do começo das chuvas a actividade da guerrilha começava a decrescer regularmente, atingindo no final das chuvaso seu mínimo anual.

A actividade de guerrilha do PAIGC, em 1973, processou-se de acordo com os padrões normais dos anos anteriores, tendo apresentado no entanto a seguinte particularidade: o ponto alto verificado no final da época seca (em mai73) correspondeu a cerca do dobro das acções registadas em 1972, na mesma altura, e o decréscimo observado durante a época das chuvas foi mais acentuado e prolongou-se para além da época seca, até nov73.

No entanto a partir do final de dez73, a actividade de guerrilha aumentou muito acentuadamente, tendo sido em todos os meses do primeiro trimestre de 1974 mais elevada que nos meses homólogos do ano anterior.

Deste modo ao empolamento da actividade de guerrilha em 1973, sucedia outro tanto em 1974. O habitual ponto alto que se previa para abr/mai74, e tudo fazia admitir mais violento que o de 73, só foi sustido pela ocorrência do Movimento de 25Abr.

Pelos quadros anteriores   [vd. acima ] verificava-se que,  quantitativamente, no ano de 1973, se registou um total de 1.514 acções de guerrilha, correspondente a um aumento de cerca de 11% em relação às 1.359 acções verificadas no ano anterior. 

Daquele total, 1.033 acções foram de iniciativa do PAIGC (760 em 1972) e 481 acções de reacção (599 em 1972). Assim, o ano de 1973 foi caracterizado não só por um aumento global de acções, mas especialmente por uma subida pronunciada do número de acções de iniciativa do PAIGC (mais 35%), a par de um decréscimo da actividade de reacção.

Esta tendência - aumento da actividade de iniciativa - acentuou-se mais nos primeiros 4 meses de 1974 (+ 50%), período em que se registaram 415 acções de iniciativa, total significativamente superior às 276 acções realizadas pelo PAIGC em igual período de 1973.

Tais números eram o resultado da cada vez maior agressividade e potencial revelado pelas FARP, assim como a diminuição da actividade de reacção era sintoma claro de uma menor capacidade ofensiva das NT.

Acresce que a actividade de iniciativa do PAIGC, no conjunto do TO, tendo aumentado cerca de 35% em relação a 1972, provocava às NF mais do dobro dos mortos (185/84) registados naquele ano. 

Neste particular o agravamento de 50% verificado nos primeiros meses de 1974, originava um total de mortos sofridos pelas NF até ao final de abr74 (81 M) quase idêntico ao nº registado durante todo o ano de 1973 (84 M). 

Este facto tomava evidente que as acções de guerrilha, além de mais numerosas, tinham uma característica, que os números não podiam traduzir com fidelidade a qual era a cada vez maior violência das mesmas, sendo certo que os valores estatísticos dos quadros apresentados não faziam distinção entre pequenas e grandes acções ou operações de guerrilha.

Em resumo, pode concluir-se o seguinte:

  • Avaliada pelo quantitativo de acções,  a actividade de guerrilha da iniciativa do PAIGC em 1973, aumentou cerca de 35% em relação ao ano anterior. Por sua vez em 1974, no final de Abril, aquele quantitativo era 50% superior ao total registado nos primeiros 4 meses de 1973.
  • A acção do PAIGC vinha sendo caracterizada por um aumento significativo das acções de fogo, em detrimento das acções de terrorismo (raptos e roubos), orientando-se este, cada vez mais, para acções de terrorismo selectivo e sabotagens. Era notória a evolução no sentido do abandono progressivo da actividade de guerrilha dispersa em superfície, em proveito das acções maciças contra objectivos definidos, obrigando a grandes balanceamentos demeios, por vezes, envolvendo elementos de todo o TO.
  • Estas características eram indicadores seguros do aumento de agressividade das FARP e da sua maior capacidade ofensiva, potencial e eficiência.
  • Em reforço da conclusão precedente menciona-se o aparecimento de novas armas durante o período considerado (míssil "Strela" e viaturas blindadas) e um maior emprego de outras (mort 120 mm, fog 122 mm, canh 85 mm, canh 130 mm e minas especiais).
  • Finalmente, a situação militar revelou nítido agravamento a partir de dez73, em especial nas Zonas Sul e Leste.

Dispositivo geral do PAIGC e objectivos

Ao longo de toda a fronteira e nos países limítrofes, o PAIGC dispunha de Bases com estruturas e Comandos próprios, perfeitamente integrados na sua organização militar e que, em conjunto com os "corredores" de infiltração e áreas fulcrais no interior do TO, constituíam a malha do seu dispositivo.

Algumas das Bases ao longo da fronteira tinham simultaneamente carácter operacional e logístico, constituindo pontos de apoio à entrada de grupos armados e de colunas de reabastecimento. Assim:

  • Na Zona Oeste, dispunha fundamentalmente das Bases de M'Pack, Campada, Sikoum, Cumbamory e Hermacono, sedeadas na faixa fronteiriça da Rep Senegal, a partir das quais actuava contra as guarnições de S.Domingos, Ingoré, Guidaje, Farim e Cuntima e infiltrando-se pelos "corredores" da Sambuiá e Lamel irradiava para o interior do TO, respectivamente em direcção às áreas fulcrais de:

- Tiligi, Naga-Biambe e Caboiana-Churo, donde ameaçava directamente o "Chão" Manjaco e as povoações  e Aquartelamentos  ao longo do eixo Có - Bula - Binar - Biambe - Bissorã;

- Bricama, Morés e Sara, donde ameaçava as povoações e aquartelamentso ao longo do eixo Mansoa - Mansabá - Farim, a península de Nhacra e, indirectamente a ilha de Bissau;

  • Na Zona Leste, para pressionamento do "Chão" Fula, dispunha:

- Na Rep Senegal, das Bases de Fakina, Sambolecunda, Sare Lali, Suco/Payongon e Lenguel/Serenafe, ameaçando os regulados da fronteira N, em direcção a Bafatá/Nova Lamego. [... ]

___________

Notas da CECA (2015):

[1] Extractos  do relatório, pp I, 11 a 18.

[2] A Guiné-Bissau tinha sido admitida como membro daquela Organização, após a proclamação unilateral da independência.

[Revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste: LG ]

__________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 14 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24065: A nossa guerra em números (22): De um total de 1570 minas e outros engenhos explosivos implantados pelo PAIGC (de 1972 a 20 de abril de 1974), mais de três quartos foram neutralizadas pelas NT, com destaque para as minas A/P

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23987: Notas de leitura (1543): "Na Tenda do Mestre Isaías", edição de autor de Emídio Vieira Soares, 2004 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Devo inúmeras atenções ao Dr. João Horta, bibliotecário na Liga dos Combatentes, informa-me regularmente da chegada de publicações como esta alusiva às notas esparsas de um antigo combatente, foi alferes do 4.º pelotão da CART n.º 1689, a sua edição de autor insere um bom número de imagens dos diferentes locais por onde andou, poderá dizer-se que como companhia de intervenção teve uma invulgar itinerância por toda a Guiné. Usa da maior discrição quanto à atividade operacional desenvolvida por esta unidade militar, saltita entre as suas memórias angrenses e alguns episódios vividos na guerra da Guiné e não se furta a emitir opiniões críticas à vida política portuguesa. Acho que nos deixa um conjunto de pistas que outros camaradas da CART n.º 1689, nossos confrades no blogue, bem podiam desenvolver, pessoalmente fico curioso com que eles andaram a fazer por Missirá, como é referido no documento alusivo ao ex-1.º Cabo José Maria Silva Ribeiro, onde fui buscar uma súmula da atividade operacional da unidade militar.

Um abraço do
Mário



Um terceirense, alferes da CART n.º 1689, que andou por meia Guiné, entre 1967 e 1969

Mário Beja Santos

Na Tenda do Mestre Isaías, é uma edição de autor de Emídio Vieira Soares, que comandou o 4.º pelotão da CART n.º 1689, 2004. São recordações de um terceirense, notas avulsas da sua vivência na Ilha Terceira, fala-se da Terra-Chã, dos locais e costumes da terra, gente que chegava e partia para o Canadá e para o Brasil, inevitavelmente uma referência aos touros e à tourada à corda, as zangas entre o sr. Bispo de Angra e as populações por causa da administração do dinheiro dos Impérios, recorda o sr. Padre Saramago que nasceu no Corvo e estudou no seminário de Angra, e nestes seus apontamentos onde coligiu memórias informa-nos que em 1967 foi para a Guiné. Na medida em que toda a sua narrativa é saltitante entre o passado remoto, os tempos da guerra e as suas observações críticas sobre a vida política portuguesa, procurei saber um pouco mais sobre esta CART n.º 1689, de que há felizmente referências no nosso blogue. Vejamos em primeiro lugar o que se escreve na apresentação do ex-1.º Cabo José Maria Silva Ribeiro no “Dos Veteranos da Guerra do Ultramar”:

“Partem no navio Uíge, em 26 de Abril de 1967, chegam a Bissau em 1 de Maio de 1967. Logo após a chegada, embarcam de imediato na lancha BOR, em direção a Bambadinca, tendo como destino final a localidade de Fá Mandinga.
A Companhia ficou em regime de intervenção, às ordens do Comando do Agrupamento de Bafatá, responsável pela zona leste da província.
Durante a permanência na referida região, realizou várias operações na zona do Xime, (Ponta do Inglês e Ponta Varela), zona de Enxalé e Missirá a norte do rio Geba, bem como na vasta região do Oio, a norte do destacamento de Banjara.
Em Julho de 1967, a Companhia embarcou em Bambadinca, a bordo de três lanchas LDM, com destino a Catió, sector sul da província, para onde fora transferida, tendo ficado em regime de intervenção.
Nesse sector foi desenvolvida intensa atividade operacional, bem como nos subsectores de Cufar, Bedanda, Empada, implantação do destacamento de Gubia, na península do Cubisseco, e Gandembel, (Operação Bola de Fogo) também para implantação de um aquartelamento, no chamado corredor de Guileje, junto à fronteira com a Guiné-Conacri. Em Junho de 1968, a Companhia rumou para o subsector de Cabedu, para onde foi transferida, tendo aí desenvolvido intensa atividade operacional.
O aquartelamento foi atacado em 13 de Julho de 1968, tendo falecido o Alferes da Academia Militar, Henrique Ferreira de Almeida, que era então o Comandante da Companhia.

Em 30 de Julho desse ano, a Companhia foi transferida para Canquelifá, sector de Nova Lamego (Gabu), zona nordeste da província, na confluência das fronteiras do Senegal e Guiné-Conacri.
Um grupo de combate ficou sediado no destacamento de Dunane, sito a meio do percurso entre Pitche e Canquelifá.
A parte restante da companhia ficou instalada no aquartelamento de Canquelifá, tendo aqui desenvolvido ações de natureza operacional e psicossocial.
Finda a sua comissão de serviço, a Companhia de Artilharia 1689 regressou à Metrópole, tendo embarcado em Bissau no navio Uíge, em 03 de Março de 1969 e desembarcado no cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, no dia 09 do referido mês.
A CART n.º 1689 percorreu muitas localidades: Bambadinca, Fá Mandinga, Xime, Enxalé, Missirá, Bafatá, Banjara, Catió, Ganjola, Cufar, Bedanda, Cachil, Bolama, Gubia, Empada, Fulacunda, Buba, Aldeia Formosa (Quebo), Chamarra, Gandembel, Cabedu, Nova Lamego (Gabu), Pitche, Dunane, Canquelifá e finalmente Bissau.”


Emídio Soares refere o choque que sentiu quando o levaram a visitar a cadeia do Quartel-General em Santa Luzia, teria 30 metros de comprimento e 15 de largura: “Havia um corredor desde a porta de entrada, até ao fundo, as paredes do corredor eram grades de ferro de um lado e outro. E de um lado e outro estavam os presos em pé, sem espaço para se sentarem no chão. O cabo que me convidara para ver a cadeia deu-me determinados pormenores do destino daquela gente. Abandonei o edifício. O cabo seguiu-me e estava estupefacto com a minha reação, depois começou a chorar, interveio um Furriel, eu expliquei-lhe o que se estava a passar. De imediato o Furriel pegou no braço do cabo, numa atitude de conforto moral. Senti a minha cobardia em não falar disso a ninguém, teria pisado terrenos proibidos. Soube que o General Spínola, uns meses depois de chegar à Guiné pusera termo à cadeia do Quartel-General.” Veio à frente da sua Companhia, e depois embarcou no Pidjiquiti em direção a Bambadinca num barco com o nome de “Vencedor”, sentiu muito a inquietação quando o barco entrou no Geba estreito e passou a navegar em meandros até Bambadinca, a bordo seguiam a mulher do comandante e a mulher do médico.
Faz uma referência genérica a uma operação no Oio, foram cercados pelos guerrilheiros e sujeitos a tiroteio. No princípio, não houve reação das nossas forças até que um Furriel a peito descoberto começou a disparar, o que deu ânimo a todos. Fala-nos depois de Catió e da Operação Tridente, não regateia a admiração ao Capitão João Bacar Djaló, à sua bravura, ao seu heroísmo. Segue-se uma outra referência a uma operação que se efetuou a Cabolol, tinha o nome de código de Vassourada Final, na região do Como. O batalhão estava em Catió, em Cabolol havia uma população controlada pela guerrilha. Entraram em Cabolol sem um tiro, a população fugira para o tarrafe. Quando regressaram ao quartel, o comandante estava à porta de armas, ninguém percebia porque é que ele gritava “Eles levaram uma sova! Eles levaram uma sova! E se quiserem mais, é só dizer”. Fala das baixas em Gandembel, como o Soldado Nadir e o Furriel Belmiro.

Imprevistamente voltamos à Boa-Hora, uma localidade que faz parte da freguesia de Nossa Senhora de Belém, mais conhecida por Terra-Chã, a 8 quilómetros de Angra, novas recordações. Tece considerações sobre a colonização e a descolonização, volta à Terra-Chã, estamos agora na Lisboa em 1963, o Emídio Soares veio fazer exame de admissão ao Instituto Superior Técnico e passamos para Dunane, onde esteve destacado o seu pelotão, dá-nos a localização e fala-nos na lepra:

“Num dia de coluna Canquelifá, Dunane, Pitche, Nova Lamego, as tropas pararam em Dunane. Dirigiram-se à enfermaria, eu estava à porta do meu abrigo, notei um certo nervosismo na multidão e o Furriel Enfermeiro estava zangado. Aproximei-me da multidão e verifiquei que havia muitos leprosos. Eram militares. Homens sem mãos, com uma guita agarrada à zona do cotovelo, seguravam, com o que restava do braço e do antebraço, uma arma encostada ao peito. Aguardavam que lhes dessem os comprimidos, a que cada um tinha direito. Eram as milícias de Canquelifá. Percebi a função da guita amarrada ao cotovelo. Reparei bem na guita e vi que ela estava também agarrada ao gatilho da arma. Era assim que eles disparavam.”

Há referências ao Tenente Bajana em Canquelifá, teria ligações ao PAIGC, o tenente foi fuzilado depois da independência. Deixa-nos uma extensa referência ao Alferes Monteiro morto em Gandembel, o oficial já tinha concluído a sua missão, mas veio na coluna de Aldeia Formosa a Gandembel, para abastecimento. No regresso, rebentou uma mina anticarro, saíram dois pelotões de Gandembel e deparou-se-lhes o horror, o corpo desfeito do Alferes Monteiro entre muitos soldados africanos mortos.

Voltamos à ilha Terceira, Emídio Soares tem as suas observações à economia das décadas de 1940 e 1950. E vemo-lo já em 1979 a dirigir obras na ilha de S. Jorge. É dentro desta miscelânea de recordações que lembra a canoa que transportava as gentes da CART n.º 1689 de Ponta Varela para o Enxalé: “Não havia barcos de borracha como os fuzileiros tinham, ou lanchas ligeiras. Os 120 homens da 1689 foram transportados de uma margem para a outra em canoa. Era arrepiante, o soldado entrava na canoa, sentava-se no lugar que lhe indicavam e não se podia mexer mais. A altura da canoa fora de água não tinha 10 centímetros. A sensação era de quem entrasse naquela água deixava de ser visto.” Faz também uma observação crítica às colunas de abastecimento de Madina do Boé e à natureza do transporte no rio Cheche, uma jangada tosca. E ficamos por aqui. Bom seria que os nossos confrades da CART n.º 1689 adiantassem mais pormenores sobre a história desta companhia que teve uma inusitada vida itinerante em zonas de indiscutível risco, em que não faltou Gandembel.

Entrega da Flâmula de Honra à CART n.º 1689, em Catió, imagem pertencente ao ex-1.º Cabo Atirador, José Maria Silva Ribeiro, constante do blogue Dos Veteranos da Guerra do Ultramar, com a devida vénia
Museu do Guiledje - Uma antiaérea do PAIGC
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23979: Notas de leitura (1542): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (12) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23001: Memórias cruzadas da região de Gabu: as origens do desassossego em Copá e as sequelas da metralha entre o Natal de 73 e 7Jan74 (Jorge Araújo)




Capas de alguns dos títulos consultados


Imagem de satélite da região leste onde ocorreram os factos narrados neste texto.




O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo. Acaba de encerrar, temporariamemte a Tabanca dos Emiratos, até junho próximo. Tem cerca de 311 referências no nosso blogue.
 


MEMÓRIAS CRUZADAS DA REGIÃO DE GABÚ:

AS ORIGENS DO DESASSOSSEGO EM COPÁ E AS SEQUELAS DA METRALHA ENTRE O NATAL’73 E 07JAN74



1. – INTRODUÇÃO

A estrutura deste projecto de investigação bibliográfica, a incluir na série “Memórias Cruzadas”, foi organizada a partir de vários depoimentos existentes no vasto espólio do Blogue da Tabanca Grande, alguns editados há mais de uma década, mas todos eles relacionados com a temática apresentada no título do trabalho, tendo como contexto geográfico a Região de Gabú.

Ainda que em poste anterior tenha feito referência aos acontecimentos de Janeiro de 1974, em Canquelifá, e da morte, no dia 7, do nosso camarada (e amigo) Luís Filipe Pinto Soares (fur mil operações especiais) da CCAÇ 3545 – P16127, de 23Mai2016 – a sua releitura, enquanto efeméride com quarenta e oito anos, e outros factos sublinhados em novas consultas bibliográficas e da sua respectiva análise historiográfica, nasceu o interesse pelo seu aprofundamento, uma vez que estávamos na posse de elementos novos, por nós classificados de evidências irrefutáveis.

Com estas “evidências”, procura-se dissipar eventuais equívocos ou imprecisões identificadas na literatura, produzida e influenciada por cada um dos lados do conflito, cujas capas, títulos e autores se reproduzem abaixo por ordem de apresentação, sobre alguns dos factos aí narrados (que os há!).

Por outro lado, com este desígnio pretende-se, também, ajudar a reconstruir o puzzle das “memórias” do conflito armado naquela Região do Leste da Guiné, em particular no triângulo: «Bajocunda / Copá / Canquelifá», com maior detalhe para os dois últimos locais, onde a “problemática” e a estratégia operacional, entre vizinhos, era semelhante.

O principal período de tempo desta análise é de quinze dias, com início no Natal de 1973, onde ficou ferido, por ter accionado uma mina em Bajocunda, o Cap Cav Ângelo César Pires Moreira da Cruz, Cmdt da 1.ª CCAV/BCAV 8323, até ao dia 7 de Janeiro de 1974, dia da “Acção Minotauro”, realizada em Canquelifá, durante a qual foram capturados, já cadáveres, dois elementos da guerrilha, sendo um cubano e um cabo-verdiano.

De acordo com o acima exposto, nos pontos seguintes daremos conta do que entendemos ser o mais relevante retirado das fontes consultadas, adicionando-lhes outras informações complementares, com recurso à sua triangulação, de modo a melhorar a percepção de todos esses factos, mesmo sabendo-se que todos eles estão a uma distância temporal de quase meio século.


2. – CONTEXTO GEOGRÁFICO, HISTÓRICO E CRONOLÓGICO
IDENTIFICADO NA BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


Conforme se dá conta na introdução, este segundo ponto segue a linha de investigação projectada, fazendo interagir, sempre que possível, o tempo dos factos (ocorrências) com o contexto espacial (local) e a identificação dos respectivos actores, individuais ou colectivos.





Deste modo, a contextualização da narrativa tem o seu início no mês de Dezembro de 1973, a poucos dias da comemoração da data natalícia, e como espaço geográfico o triângulo «Bajocunda / Copá / Canquelifá» onde estavam instaladas, nas duas primeiras localidades, forças do BCAV 8323, do TCor Cav Jorge Eduardo Rodrigues y Tenório Correia Martins (29Set73-10Set74) e, na terceira, a CCAÇ 3545, do Cap Mil Inf Fernando Peixinho de Cristo, unidade de quadrícula do BCAÇ 3883, do TCor Inf Manuel António Dantas (19Mar72-19Jun74).

Na distribuição das Unidades Operacionais do BCAV 8323, sediado em Pirada, a quem competia a responsabilidade do Sector L6, do qual faziam parte os subsectores de Bajocunda, Paúnca e Pirada, coube à 1.ª CCAV, do Cap Cav Ângelo César Pires Moreira da Cruz, o primeiro daqueles subsectores. 

Deste modo, o contexto histórico tem início nos “casos” observados e registados na literatura, com destaque, em primeiro lugar, para a narrativa divulgada no livro «O Princípio do Fim» ( Porto: Campo das Letras),  de Benigno Rodrigo, cujo nome está ligado a forte controvérsia relativamente à origem dos conteúdos por si publicados que, segundo se defende em comentários editados neste Blogue (p.e. os do P3871, de 11Fev2009), são da autoria do soldado condutor auto-rodas, António Rodrigues, pertencente à 1.ª CCAV do BCAV 8323/73.

Outras abordagens sobre a mesma problemática podem ser consultadas no P3995, de 07Mar2009, da autoria de Graça de Abreu, e no P4406, de 24Mai2009, de António Rodrigues.

2.1 – “O PRINCÍPIO DO FIM”, de Benigno Fernando

▬ Algumas notas

Convém acrescentar que para a presente análise o que nos interessa são as informações (substância) produzidas, e estas foram extraídas do P1410, editado em 8Jan2007, fez quinze anos recentemente.




► Neste âmbito é importante reter que os primeiros factos ocorreram “próximo do Natal de 1973": 

(...) Num desses dias o PAIGC atacou a povoação de Amedalai (ver mapa acima), que ficava a 5 km de Bajocunda e a 17 de Copá. A povoação era formada por população civil e pela milícia armada e o ataque aconteceu ao fim da tarde. (…) 

De Bajocunda foram em socorro da povoação três pelotões [GrComb] que provocaram algumas baixas ao PAIGC, sendo forçado a retirar” (p.29). 

Sobre esta última referência, o fur mil serv mat da 1.ª CCAV, Amílcar Ventura, que se encontrava em Bajocunda, afirma, em comentário, ser falso o relato, pois não seria possível saírem três pelotões, ao fim do dia, em socorro de Amedalai, quando, na mesma altura, Bajocunda também estava a ser atacada. “O que fizeram foi lá ir logo de manhã” e verificar os estragos (P1410).

Em 25 de Dezembro, dia de Natal de 1973, pelas 11:00 horas em Copá, o Alferes Mil Manuel Brás, solicita ao sold cond António Rodrigues que o leve até Bajocunda, pois havia recebido uma mensagem que dava conta que o Cmdt da 1.ª CCAV, Cap Cav Ângelo César Pires Moreira da Cruz ficara ferido, desconhecendo as causas do sucedido (Vd. foto 1).

Chegado a Bajocunda, soube-se que nesse dia 25 de Dezembro (3.ª feira), o capitão Ângelo Moreira da Cruz saiu de Bajocunda, com os efectivos necessários para desminar Amedalai (ver mapa). Quando deu por concluído o levantamento das minas localizadas, e no momento em que se preparavam para abandonar o local, um dos militares presentes afirmou: “meu capitão tenho a impressão de que ao pé do senhor está mais uma mina”, E de facto era verdade. O capitão virou o pé ao lado e sem saber accionou a mina que lhe amputou uma das pernas. Terminava nesse momento a sua comissão, que durou apenas três meses no CTIG. Algum tempo depois, viria a ser substituído pelo Cap Mil Cav Fernando Júlio Campos Loureiro.

Os últimos dias de 1973 e os três primeiros de 1974, em Copá, passaram-se relativamente calmos.



Foto 1 – Quartel de Bajocunda, 25Dez1973. Evacuação do Cap Cav Ângelo César da Cruz, Cmdt da 1.ª CCAV/BCAV 8323 (1973/1974), na sequência de ter accionado uma mina antipessoal, ficando sem uma perna (foto do álbum do fur mil Amílcar Ventura – P5002, de 24Set2009, com a devida vénia).






► Colando com o texto anterior, recuperamos agora o depoimento editado no poste acima, da autoria de António Rodrigues, onde começa por afirmar que “chegados ao dia 3 de Janeiro de 1974 (5.ª feira), o dia foi mais ou menos calmo, embora durante a tarde, enquanto jogávamos futebol na pista de aviação em Copá, se ouvissem fortes rebentamentos na direcção de Canquelifá que, soubemos depois, estrava a ser violentamente flagelada com armas pesadas. (…) 

Porém, eram 23:30 horas em ponto desse mesmo dia aconteceu “o nosso baptismo de fogo”. Refere que o Manuel Vicente Antunes, que àquela hora fazia reforço no seu abrigo, gritou, ao mesmo tempo que se ouviu um rebentamento. (…)

Continua: “as primeiras granadas passavam por cima de Copá e iam rebentar aí a uns dois kms de distância, entre Copá e Bajocunda. Elas vinham bastante alternadas, atiravam três morteiradas, deixavam passar dez minutos e voltavam a atirar outras três, e assim sucessivamente”. 

(…) Entretanto as bombas continuavam a cair. É curioso que a dada altura duas em cada três granadas caíam ali próximas, mas não rebentavam. (…) A dada altura, ainda deste primeiro ataque, as granadas começaram a cair com maior intensidade sobre o abrigo ou posto onde eu me encontrava. 

A nossa falta de experiência disse-nos naquele momento que devíamos abandonar o posto e irmos para outro menos apoquentado, porque na verdade o abrigo 7 era, naquela noite, o que estava a ser mais atingido e por isso não hesitámos em nos mudar todos para o abrigo 1, que ficava ali mesmo ao lado. (…)

Com efeito, “o PAIGC continuava a disparar de dez em dez minutos sobre Copá, pelo que só se resolveram a parar eram duas horas da madrugada do dia seguinte (4Jan), precisamente no momento em que o luar desapareceu. Foi aí que o primeiro ataque a Copá, desde que lá chegámos (em 25Nov73), terminou… Os guerrilheiros dispararam nessa noite, sobre Copá, cinquenta granadas, mais de metade das quais caíram fora do aquartelamento”. (…)

Acrescenta que “felizmente naquela noite não houve problemas de maior, nem sequer o mais leve ferimento. (…) Mas o ataque desse dia foi apenas um pequeno aviso (como se veio a provar). 

Passaram-se os dias 4, 5 e 6Jan74, com relativa calma. No dia 7 marcou-se novamente a coluna que dias antes tinha sido interrompida. Mas nesse dia veio mesmo a realizar-se só que, chegada a meio do percurso (Massacunda Maunde) foi atacada por uma forte emboscada feita nesse local pelo PAIGC”.

Conta o António Rodrigues que “eram cerca das 09:30 horas da manhã, estava ele e os homens que nesse dia estavam de serviço à água junto ao poço onde tirávamos a água em Copá, e, a dado momento, ouvimos um forte rebentamento na direcção de Massacunda, logo seguido de um enorme tiroteio. Lembramo-nos logo que seria a nossa coluna que estava a ser emboscada. Ficámos um pouco suspensos e logo um furriel nos chamou e disse que largássemos a água porque tínhamos que ir em socorro dos nossos camaradas. Nós assim o fizemos. Eu (como condutor) peguei no carro imediatamente e regressámos para dentro do arame farpado. Formou-se o pelotão que arrancou imediatamente para o local, ficando em Copá apenas cinco ou seis homens, um por cada abrigo, pois ainda tínhamos connosco mais alguns soldados africanos”. (…)

Entretanto, do local da emboscada (à coluna que regressava a Copá?) chegava via rádio a notícia mais concreta do que tinha acontecido. Havia a registar alguns feridos e dois mortos, sendo estes últimos, o soldado Rui Silveira Patrício, natural de Santa Margarida-Conceição, Concelho da Covilhã e o 1.º Cabo António Aguiar Ribeiro, natural de Orca, Concelho do Fundão, ambos solteiros, e fazendo parte do 3.º GrComb da 1.ªCCAV/BCAV 8323.

Para além das duas perdas humanas, verificou-se também a destruição de duas viaturas Berliet e, ainda, do dinheiro que seguia nessa coluna para pagamento do anterior mês de Dezembro’73 destinado a todos os militares europeus e africanos que se encontravam em Copá (Vd. foto 2).

Foi ainda destruído todo o correio destinado a Copá, onde se incluía os postais de Boas Festas e lembranças enviadas pelos familiares e que, em função da ocorrência, as não puderam receber.



Foto 2 – Estrada Bajocunda/Copá, 07Jan1974. Viatura (Berliet) da 1.ª CCAV/BCAV 8323, destruída na emboscada de 7 de Janeiro de 1974 (foto do álbum do fur mil Amílcar Ventura – P5002, de 24Set2009, com a devida vénia).







Porém, as más notícias desse dia ainda não tinham terminado. Pelas cinco da tarde e com apenas os elementos que haviam ficado no aquartelamento, em cada posto, este voltaria a ser atacado pela artilharia do PAIGC até às 22:20 horas, ou seja, durante mais de cinco horas. 

Sobre este episódio, o António Rodrigues relata que os poucos homens que ali se encontravam “meteram-se nas valas de G3 na mão à espera do que desse e viesse, pois mais uma vez não tínhamos armas com capacidade de lhes darmos resposta, e com dois homens em cada posto lá fomos aguentando o fogo de morteiro 120 e 82, que carregavam sobre nós persistentemente”.

Só cerca das 20:00 horas é que entrou o restante pelotão em Copá, debaixo de fogo, quando a maioria da população, aos gritos, se punha em fuga das suas tabancas, que ardiam, em direcção à República do Senegal, cuja fronteira ficava dali a três quilómetros.

“Juntamente com a população fugiram (ou desertaram) praticamente todos os militares africanos que ali se encontravam em reforço da guarnição, ficando apenas em Copá, naquela noite, um Alferes e um Furriel europeus, que comandavam esse Pelotão de Africanos, juntamente connosco o 4.º GrComb da 1.ª CCAV/BCAV 8323, num total de 29 homens”.

Como a artilharia do PAIGC não parava o seu ataque, e as nossas munições eram muito poucas, talvez umas 18 a 20 granadas de morteiro 81, algumas de morteiro 60, e pouco mais de uma dúzia de granadas de mão, vimo-nos forçados a pedir auxílio aéreo a Bissau, que nos mandou um avião Dakota que começou a sobrevoar Copá eram 22:20 horas, altura em que a artilharia do PAIGC parou o fogo. Esta paragem fez supor que, por via do bombardeamento aéreo, o inimigo tinha retirado para o Senegal, que ficava ali muito próximo. Mas o que aconteceu foi exactamente o contrário.

Durante o ataque aéreo, as forças do inimigo no terreno deslocaram-se para junto do aquartelamento, como estratégia, pois ficavam mais seguros e em condições de puderem continuar a perseguir os seus intentos que era a “conquista” de Copá.

António Rodrigues conta que “mal o avião se foi embora, eram cerca das 23:00 horas, começámos a ouvir fortes ruídos de motores a trabalhar, dando-nos a ideia de serem viaturas que se dirigiam a Copá e a sê-lo àquela hora, eram com certeza do inimigo”. (…) “Mas eu, ao ouvir todo aquele estranho ruído, tinha um pressentimento de que as coisas ainda não tinham terminado nesse dia, e decidi ficar a pé e fazer companhia ao sentinela, até ver o que ia acontecer”.

E aconteceu… algumas viaturas encaminhavam-se a toda a força na direcção de Copá, quando, por volta das 23:50 horas, o ruído se deixou de ouvir, mas por pouco tempo. Bastaram mais vinte minutos para se dar início a “mais um momento terrível naquela noite. Era exactamente meia-noite e dez minutos quando se ouviu o já típico rebentamento que dava início aos ataques do inimigo”.

Segundo a narrativa, “o inimigo estava a dez metros à nossa frente e trazia uma táctica que estava muito bem montada. Tinha junto ao arame farpado três secções, separadas alguns metros, o que lhe permitiu fazer fogo de armas ligeiras ininterruptamente durante uma hora e cinco minutos, porque o fazia por secções e quando uma estivesse sem munições a outra estava preparada para disparar (ou a entrar em acção), e assim sucessivamente.

"Para além destas secções de infantaria, tinham um auto-blindado (tipo ZIG russo) junto a uma das secções a apoiá-la com os disparos do seu canhão e, na rectaguarda destas secções tinham toda a artilharia com que nos tinham atacado anteriormente (de tarde), encontrando-se esta a cerca de um km, também apoiada por outro auto-blindado do mesmo tipo”.

A nossa resposta não tardou, com a utilização da “metralha” disponível, como sejam: dilagramas, granadas de bazuca, de morteiro 81 e 60, além das metralhadoras Breda, HK-21 e G3, disparos dirigidos nas direcções onde se encontravam instaladas as “bocas de fogo In”.

António Rodrigues (foto atual à esquerda) dá o exemplo da “secção que estava do lado norte, apoiada pelo blindado que estava já a abrir uma entrada para penetrar no nosso aquartelamento, onde progrediu cerca de dez metros para dentro do arame farpado". 

É, nesta situação que “o meu camarada Manuel Antunes, acompanhado do 1.º Cabo João Ribeiro, se enchem de coragem, pegam em meia-dúzia de granadas de morteiro 60, saltam para fora da vala debaixo de fogo e atiram-nas todas sobre o blindado, que tentava entrar, e que o terá feito recuar, não sei se por acção dessas granadas, que não teriam grande efeito sobre tal viatura, mas o certo é que quem a comandava resolveu iniciar a retirada naquele momento”.

Era uma hora e quinze minutos, do dia 8 de Janeiro de 1974, quando o tiroteio acabou, ainda com muita coisa a arder, mas com a certeza de que todos os “bravos de Copá” (vd. foto 3)  e a sua população local tinham sobrevivido durante aquelas horas “amargas e terríveis vividas nesse dia e noite de 7 de Janeiro de 1974”, não permitindo que o PAIGC conseguisse cumprir com os objectivos a que se tinha proposto.



Foto 3 – Copá, Jan1974. Alguns dos 29 “Bravos de Copá”, do 4.º GrComb da 1.ª CCAV/BCAV 8323, que defenderam estoicamente a instalação militar onde se encontravam aquartelados, durante o forte ataque levado a cabo pelo PAIGC, no dia e noite de 7Jan1974 (foto do álbum do sold cond António Rodrigues – P14214, de 03Fev2015, com a devida vénia).

● Finalmente; o reconhecimento e os resultados da refrega.

O autor do texto, cujo conteúdo acompanhámos com muita atenção e a quem devemos um obrigado e um elogio por este seu valioso contributo historiográfico, que serviu de questão de partida para a elaboração do presente trabalho, conclui a última parte da narrativa (o depois) acrescentando:

“No dia seguinte de manhã, fomos passar reconhecimento fora do arame farpado e verificámos melhor o que na realidade tínhamos provocado ao inimigo. Vimos a entrada que realmente o blindado abriu no arame farpado e numa das secções, junto ao poço de água da pista de aviação, teriam tombado pelo menos dois homens, visto que aí haviam duas postas de sangue separadas por um metro de distância e tinham colados alguns dos muitos invólucros das muitas munições que já tinham disparado”.

“A meio da distância entre os dois e cerca de um metro atrás, rebentou uma granada do nosso morteiro 81, o que com certeza terá ferido os homens daquela secção e eles tombaram sobre os invólucros que tinham à sua volta. Encontrámos ainda um carregador e caixas de munições de Kalashnikov, maços de tabaco e bonés. 

"Havia sinais de que o blindado que apoiava a artilharia lá mais atrás, tinha vindo socorrer os feridos já referidos anteriormente. Mas, como nós insistimos a fazer fogo com as nossas armas, mesmo sabendo que eles estavam em retirada, esse blindado não conseguiu chegar pertos dos feridos, pelo que estes foram levados de rastos até ao carro. Vendo-se atrapalhados, não conseguiram meter os feridos logo no carro, pelo que este começou a retirar de marcha atrás sobre o mesmo rodado, enquanto o carreiro que os corpos de rastos marcavam, continuava a par do rodado, até que conseguiram carregá-los”.

António Rodrigues termina com um sentimento de orgulho, salientando que “durante todo esse fogo, nenhum dos nossos homens ficou ferido”.


2.2 – D(O) OUTRO LADO DO COMBATE – CONTROVÉRSIAS:

▬ “DE CAMPO A CAMPO: CONVERSAS COM O CMDT DO PAIGC
BOBO KEITA (1939-2009)”


Neste ponto, e para efeitos de comparação de narrativas, no que pode ser entendido por “convergente versus divergente”, ou erróneo em relação à descrição dos principais factos em análise, não podíamos deixar de consultar as fontes produzidas por elementos de cada um dos lados do conflito.

Na perspectiva “do outro lado do combate” (designação dada a outra série), recorremos à obra de Norberto Tavares de Carvalho, “De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita” (Edição de autor. Porto, 2011), citando algumas das passagens editadas no P16317, de 19Jul2016, conforme se indica abaixo.



◙ Depoimento de Bobo Keita (1939-2009) sobre a morte de Mamadu Cassamá, em Copá, em 7Jan1974

► Partindo dos relatos de António Rodrigues citados no ponto anterior, em particular as dúvidas suscitadas quanto aos motivos (ou factos) que levaram os responsáveis do PAIGC a darem por concluído o ataque ao aquartelamento de Copá, abandonando as suas posições no terreno no início da segunda hora do dia 8 de Janeiro de 1974 (3.ª feira), o depoimento do Cmdt Bobo Keita não é muito esclarecedor nos seus detalhes. Mas confirma que, pelo menos, tiveram uma baixa, a do Cmdt Mamadu Cassamá, o elemento que tentou entrar no interior do quartel.  Diz ele:

(...) “Mamadu Cassamá morreu no ataque a Copá. Tomei parte nesse ataque, juntamente com o camarada Paulo Correia. O Mamadu era dos que ainda acreditavam na “força” dos amuletos… Avançou muito e foi até aos arames que circundavam o quartel. Pegou nos arames e fez força para os arrancar. Foi localizado e um tiro certeiro [de que arma?] silenciou-o de vez. O Mamadu Cassamá era o comandante daquela zona”. (...)


Nas conversas com Norberto Tavares de Carvalho, autor do livro, Bobo Keita volta a referir-se ao episódio do ataque a Copá nos seguintes termos:

 (...) “Para o assalto a Copá, que fica a uns trinta quilómetros da cidade senegalesa de Wassadou [ver mapa acima], peguei em dois dos meus tanques, constitui um comando e fomos à emboscada [a da coluna Copá/Bajocunda/Copá ou estava-se a referir ao ataque a Copá? Não está claro]. 

"A operação em Copá contou com Quemo Mané, comandante de infantaria. Copá também não foi fácil para os tugas. Alinhámos um número razoável de combatentes, menor que Guileje e Guidaje, e o objectivo era o de isolar os colonialistas. A tomada do quartel não nos interessava, queríamos somente convencê-los de que não tinham mais nenhuma escapatória e que deviam partir da nossa terra”. (...) 


2.3 – D(O) OUTRO LADO DO COMBATE – CONTROVÉRSIAS:

▬ “LA HISTORIA CUBANA EN ÁFRICA: 1963-1991: PILARES  DEL SOCIOALISMO EN CUBA”, de Ramón Pérez Cabrera


▬ Alguns excertos

► Em conformidade com os objectivos deste trabalho, a consulta do livro do escritor cubano Ramón Pérez Cabrera não podia deixar de ser efectuada, uma vez que nele constam diversas referências sobre o contexto onde ocorreram alguns dos episódios já identificados nos pontos anteriores.

Por outro lado, os fragmentos que abaixo se reproduzem em bilíngue – espanhol e português – com a tradução da nossa responsabilidade – são considerados, a par dos restantes, como fontes documentais importantes na aproximação aos factos reais.

As actividades da guerrilha na zona leste a partir de Dezembro de 1973

Caracterização do ambiente operacional



● Tradução

(…) “Os comandantes do PAIGC, a partir de finais de Novembro e ao longo de Dezembro de 1973, aproveitando a alteração das condições climatéricas [final da época das chuvas], deslocaram tropas, munições e mantimentos para as zonas próximas das instalações militares fortificadas, onde os soldados portugueses permaneceram aquartelados, mas mantendo estes as acções de patrulhamento nas áreas externas dos mesmos para evitar serem surpreendidos pelos guerrilheiros. Na segunda etapa da operação «Abel Djassi» [nome de guerra de Amílcar Cabral (1924-1973)], realizada nas três frentes de combate no primeiro semestre de 1973 [os três G’s], participaram catorze internacionalistas cubanos” (op.cit., p.179).

► As acções combativas na Frente Leste iniciam-se em Janeiro de 1974

▬ O ataque ao aquartelamento de Copá e suas consequências



● Tradução

“As acções combativas da operação «Abel Djassi» começaram na Frente Leste, em 3 de Janeiro de 1974 (5.ª feira), com o ataque ao aquartelamento de Copá. A movimentação dos destacamentos guerrilheiros começou nas primeiras horas da manhã e naquela tarde já haviam ocupado as posições de fogo de artilharia e os lugares nas emboscadas de contenção. Às 22:00 horas começou o tiro de ajuste e uma hora depois os disparos com os morteiros de 120 mm, mas, devido à ineficiência dos obuses, já que cerca de quarenta por cento não explodiram, no dia 5Jan (sábado) de madrugada, as FARP suspenderam o assédio da artilharia ao quartel” (op.cit., p.179).




● Tradução

“Após a morte de Mamadu Cassamá, o Comandante Paulo Correia, chefe da Frente Leste, decidiu não realizar novos assaltos de infantaria à instalação [Copá] e manter o cerco e atormentar com artilharia o quartel, que se prolongou durante todo o mês de janeiro” (op.cit., p.179).

2.4 – A FOTO QUE PODE AJUDAR A REVOGAR ALGUNS EQUÍVOCOS…

► É intenção da foto que se encontra 
abaixo  (Fotos 4 e 4A) é servir de prova sobre alguns equívocos identificados nas narrativas analisadas, em particular nos “casos” em que é descrito, com aprofundado detalhe, o modo como ocorreram as mortes de elementos da guerrilha, a sua captura e posterior inumação.

Importa sublinhar que, neste “caso”, os dois corpos da foto, desnudos, mereceram o maior respeito e consideração humana, por parte do colectivo da CCAÇ 3545, tendo os mesmos sido lavados antes de serem inumados na região (de acordo com fonte oral).




Fotos 4 e 4A – Quartel de Canquelifá, 7Jan1974. Dois corpos, já cadáveres, de elementos da guerrilha capturados durante a “Acção Minotauro”, levada a cabo por um bigrupo da CCAÇ 21. 

Por ausência de identificação, supõe-se que o primeiro elemento seja o Tenente Ramón Maestre Infante (cubano) e, o outro, Jaime Mota (cabo-verdiano). Foto do álbum do camarada Pereira, fur mil da CCAÇ 3545, com a devida vénia. A foto, tipo passe, colocada no canto superior direito (Foto 4), é de Jaime Mota, retirada do P14150, de 23Mai2016, aqui apensada para efeitos de comparação.


2.5 – “NO OCASO DA GUERRA DO ULTRAMAR”, uma derrota
pressentida”, de Fernando de Sousa Henriques (1949-2011)


▬ Algumas notas de leitura, por Beja Santos

► Por imperativo de investigação, onde se colocava a necessidade de alargar as fontes documentais, por razões espaciais (ou de vizinhança) existentes entre Copá e Canquelifá, separadas apenas por doze kms (ver mapa acima), e onde muitas das acções eram levadas à prática em parceria, pois os interesses eram comuns, recorremos às memórias do malogrado camarada Fernando de Sousa Henriques (1949-2011), ex-alf mil operações especiais da CCAÇ 3545, aproveitando algumas notas de leitura do seu livro, editado em 2007, e escritas pelo camarada Beja Santos no P12074, de 23Set2013.



► Contexto em Canquelifá (vd. foto 5):

(…) “A partir de Novembro’73, não houve descanso em Canquelifá, repetiram-se as flagelações, os misseis deram entrada nas flagelações frequentes, era nítido que os guerrilheiros queriam comprometer os reabastecimentos e acantonar as tropas aos seus quartéis. As emboscadas às obras da estrada Piche-Nova Lamego também se acentuaram. Em Dezembro’73 houve um relativo descanso mas os assaltos às tabancas deram frutos, as populações, ainda lentamente, começaram a fugir para os grandes centros.

No início de Janeiro’74, os ataques com foguetões a Canquelifá marcaram presença. O autor explica a natureza das destruições que as imagens, pela sua eloquência, desfazem todas as dúvidas. Mas não só Canquelifá, Piche e Buruntuma também foram contempladas. Nessa altura os efectivos do Batalhão levam quase vinte e quatro meses de Guiné. Foi necessário pedir apoio à CCAÇ 21, uma companhia só de guineenses, comandada pelo tenente Jamanca.

Em 7 de Janeiro’74 a CCAÇ 21 surpreende uma força inimiga e traz dois corpos [foto 4], um cubano e um cabo-verdiano. As flagelações recrudesceram. Ia começar o martírio de Copá, um destacamento que irá ser abandono por impossibilidade de defesa” [em 14 de Fevereiro de 1974].



Foto 5 – Canquelifá, Jan1974. Explosão de uma bomba durante um ataque do PAIGC ao aquartelamento de Canquelifá (foto do álbum do camarada Pereira, fur mil da CCAÇ 3545, com a devida vénia).

2.6 – “GUINEENSE, COMANDO, PORTUGÊS”, de Amadú Bailo Djaló

Alguns excertos

► Em complemento do ponto anterior, e tendo por base o livro de memórias de Amadú Djaló, ex-alferes comando graduado (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), citamos alguns “desassossegos” por ele vividos, em conjunto com os restantes elementos da CCAÇ 21, entre Copá e Canquelifá no período em análise.

(…) No final de 1973 e início de 1974 “Canquelifá estava muito diferente. As tabancas que havia à volta, junto às fronteiras com o Senegal e com a Guiné-Conacri estavam todas arrasadas, a população tinha desaparecido. A zona estava nas mãos do PAIGC e Canquelifá agora era um local muito perigoso, sempre à espera de ataques, do lado do Senegal ou da Guiné-Conacri. As estradas estavam semeadas de minas, se Canquelifá precisasse de apoio à noite, não podia ser socorrida por estrada, de noite não se podia picar estradas. Foi nesta situação que encontrámos Canquelifá.

Estavam ali duas companhias, uma de europeus (CCAÇ 3545) e a nossa (CCAÇ 21), oito pelotões ao todo. Fizemos um programa de saídas, todos os dias de manhã saía um bigrupo nosso até a uma distância de cinco a sete kms e regressava por volta das duas da madrugada. Julgávamos que, a partir dessa hora, era mais difícil haver ataques do PAIGC. Num dia saía um bigrupo de africanos, no dia seguinte um de europeus. Desta forma, cada bigrupo descansava três dias.

Em algumas dessas saídas, deixávamos o quartel, de manhã muito cedo, na direcção de Nhunanca. Depois de andarmos um bom bocado, entrávamos numa lala (clareira), quase sem árvores, com o capim muito alto, que as populações geralmente queimavam na primavera.

Depois de atravessarmos para o outro lado da lala, permanecíamos aí algum tempo, até cerca das 15:00 horas, quando decidíamos abandonar o local. Caminhávamos mais dois ou três kms e emboscávamo-nos. Ocupávamos dois caminhos, o que ia para Nhunanca e o que levava a Chauara. Ficávamos durante cerca de uma hora e regressávamos, contornando o quartel e entrando pela entrada contrária à saída para Copá.

Numa dessas saídas, em 7 de Janeiro de 1974 (2.ª feira), na “Acção Minotauro”, um dos nossos bigrupos, comandado pelos alferes Ali Sada Candé e Braima Baldé, quando estava emboscado, a cerca de dois kms do aquartelamento, avistou, por volta das 16:00 horas, um grupo do PAIGC a atravessar a lala. Estavam a deslocar-se na direcção do quartel [de Canquelifá].

O nosso bigrupo foi no encalço deles, a observarem o que iam fazer. Cerca de um quilómetro andado o pessoal do PAIGC parou, debaixo de uma grande árvore. Um deles estava a preparar-se para subir a árvore, quando o nosso bigrupo os atacou, de surpresa. O pessoal do PAIGC fugiu como pôde, deixando no local três guerrilheiros mortos, as armas e um rádio Racal que, viemos a descobrir mais tarde, tinha sido perdido por nós em Morés, em 23 de Dezembro de 1971.

[Nesse dia] era a vez do meu grupo ficar no aquartelamento, mas quando começámos a ouvir o tiroteio saímos imediatamente. Quando os encontrámos o caso já estava arrumado. Ajudámo-los a trazer os corpos dos guerrilheiros que depositámos junto à parada.

Nesse mesmo dia 7 de Janeiro, por volta das 17:30 horas, o PAIGC desencadeou um ataque a Canquelifá. Ou de represália, ou porque também tinha ouvido os tiros. Um dos primeiros mísseis acertou na central eléctrica e uma grande bola de fumo negro começou a subir. De vez em quando paravam os bombardeamentos, depois recomeçavam. Durou quase a noite toda este ataque.

A tabanca ardeu e ficou completamente destruída. Morreram durante o ataque quatro pessoas, um furriel europeu [Luís Filipe Pinto Soares, da CCAÇ 3545 - P16127], um soldado negro (Donsa Boaró, da CCAÇ 21), o soldado Mica Djaló Baldé (do 6ºPelArt/GAC7) e um rapaz de cerca de 13 ou 14 anos que trabalhava para o furriel europeu que tinha morrido” (op.cit., pp.268-270).





Sobre a “Acção Minotauro”, citada anteriormente, é de relevar o facto de termos localizado, no decurso da presente investigação, uma referência a ela no Arquivo da Defesa Nacional, onde existem “8 positivos fotográficos da acção Minotauro, em Canquelifá”, conforme sublinhado abaixo.



Ou, consultando o link;

https://www.portugal.gov.pt/upload/ficheiros/i007076.pdf



2.7 – RAMÓN MAESTRE INFANTE - tenente cubano falecido na Guiné

Breve biografia militar



► Como foi referido nos pontos 2.5 e 2.6, quer por Fernandes de Sousa Henriques, da CCAÇ
3545, quer por Amadú Bailo Djaló, da CCAÇ 21, ambos os depoimentos são unanimes ao afirmarem a morte de dois elementos da guerrilha, em combate ocorrido em 7 de Janeiro de 1974, e o transporte dos seus corpos para o quartel de Canquelifá. Um seria cubano e o outro cabo-verdiano, provavelmente os dois cadáveres que se encontram na foto 4.

A ser verdade que o elemento cubano capturado seja o tenente Ramón Maestre Infante, como é indicado pelo escritor Ramón Pérez Cabrera, no livro de que é autor, e que abaixo se reproduz, independentemente de haver a discrepância em relação ao seu local, ao escrever que foi em Copá (onde não se verificou a captura de qualquer elemento da guerrilha) mas, ao que tudo leva a crer, foi em Canquelifá.

O que é um facto é que este militar cubano morreu… vinte e cinco dias depois da sua partida de Havana.

◙ Eis uma brevíssima biografia, enquanto cidadão militar, retirada da literatura consultada:





● Tradução

“Enquanto as actividades iam acontecendo nas matas guineenses, em Havana um novo contingente de instrutores cubanos preparava-se para prestar a sua ajuda internacionalista aos combatentes do PAIGC na Guiné-Bissau. Um deles, Ramón Maestre Infante, deixou Cuba por via aérea em 13 de dezembro [1973] para a África. Chegou a Conacri e, sem perder tempo, seguiu viagem para Kandiafara e em poucos dias foi incorporado num destacamento de guerrilha no teatro de operações” (op.cit., p.180).



● Tradução

“Em 7 de Janeiro (2.ª feira), Ramón Maestre cumpriu, junto com um jovem guerrilheiro cabo-verdiano, a importante missão de assediar o quartel de Copá com morteiro, mas a acção foi suspensa para o dia seguinte. Na manhã do dia 8Jan (3.ª feira), Ramón Maestre e o jovem guerrilheiro partiram novamente e quando estavam a colocar o morteiro foram surpreendidos por uma patrulha portuguesa. 

No intenso tiroteio, Ramón Maestre foi ferido, morto ou feito prisioneiro [?], enquanto o cabo-verdiano conseguiu escapar sob o intenso tiroteio. A princípio, os portugueses acreditaram que o combatente era guineense, mas após identificá-lo como cubano, decidiram levá-lo ao quartel de Buruntuma [? - talvez Canquelifá, o quartel mais próximo] com a intenção de transportá-lo posteriormente para a capital de Bissau, mas não puderam levá-lo porque o quartel fora cercado pelas FARP e o fogo antiaéreo impediu que os helicópteros pousassem na área. Finalmente, o corpo do oficial cubano foi sepultado fora do quartel depois de lhe cortarem o corpo em duas metades e amputar as orelhas e as mãos como prova da nacionalidade” (op.cit., p.180).

► Encontrámos mais uma referência ao seu nome no ponto 13 (Anexos) do livro “El Grito del Baobab” (O grito do Baobá), de que é autor o escritor cubano Coronel (reformado) Humberto Trujillo Hernández, editado pela Editorial de Ciências Sociais em 2008. Porque não conseguimos ter acesso ao seu conteúdo, aqui se dá conta, somente, desse facto, o que lamentamos. Caso haja algum tertuliano que o tenha, faça o favor de nos informar.

2.8 – JAIME MOTA – cabo-verdiano, natural da Ilha de Santo Antão

Algumas notas

► Das fontes consultadas, a investigação realizada pelo jornalista cabo-verdiano José Vicente Lopes, parece não deixar quaisquer dúvidas, não só em relação à data, como ao local da ocorrência, conforme se retira da leitura aos P14150 e P14151, de 15Jan2015, em particular de algumas passagens retiradas do artigo do mesmo autor, designado por “O martírio de Jaime Mota”.






Eis alguns fragmentos:

(i) – De acordo com as informações dadas pelo, também cabo-verdiano, Amâncio Lopes, Cmdt do 2.º Grupo GRAD a actuar na região de Gabú, refere que no dia 3 de Janeiro de 1974, vai com Jaime Mota, e outros elementos, para a operação de Canquelifá, que corre bem. “No dia 7Jan voltámos ao mesmo quartel e cometemos um erro que foi fatal para Jaime Mora e outras pessoas”.

(ii) – Nesse dia, a determinada altura, “detectada a presença de um grupo do PAIGC, um pelotão de comandos africanos [um bigrupo da CCAÇ 21] acaba por surpreendê-los pela rectaguarda, precisamente no momento em que Amâncio Lopes, Jaime Mota e os restantes guerrilheiros procediam à recolha de dados para mais um bombardeamento ao quartel de Canquelifá”.

(iii) – Essa emboscada fatídica, segundo Amândio Lopes, “aconteceu já ao fim da tarde, quando ele e os seus homens aguardavam que escurecesse um pouco mais para procederem ao bombardeamento do quartel de Canquelifá e, como era hábito, desaparecerem rapidamente do terreno”.

(iv) – “Estávamos a comunicar, o cubano [?] sentou-se num bagabaga, o Jaime Mota sentou-se também um pouco atrás de mim, o radialista guineense também, e havia mais três elementos do meu staff para definir a direcção do fogo (só na artilharia, éramos uns sete ou oito elementos)”.

(v) – Nesse momento, sentimos tiros. “Na fuga, eu (Amâncio Lopes) ensaio ir numa direcção, no que um dos guineenses me grita, aflito, ‘por aí não, camarada Amâncio, porque o tiro está a vir dessa direcção’”.

(vi) – Invertemos a fuga. No recuo, verificámos que nem o Jaime Mora nem o cubano [?] estavam connosco. Mandei toda a gente parar e eu disse: ‘falta-nos o Jaime e o cubano’. O artilheiro guineense me diz: ‘camarada Amâncio, na direcção em que o Jaime e o cubano ficaram, não há chance… se você quiser ficar também… Pense bem. Não podemos voltar, porque se o fizermos será a nossa morte também”.

(vii) – Por outro lado, Honório Chantre (1941.10.25-2020.07.20), que, depois da independência da Guiné-Bissau, foi Ministro da Defesa Nacional de Cabo Verde, entre 1981-1986, recorda o seu conterrâneo como um homem muito ponderado e seguro, afirmando: “o Jaime não foi tropa portuguesa, mas tinha uma formação militar muito sólida. Esteve em Cuba, na União Soviética e tinha experiência de combate adquirida no terreno da Guiné. Juntamente com Amâncio e o Bibino, ele tinha a quarta classe daquele tempo, feita nos anos quarenta ou cinquenta, ao contrário de alguns colegas de Santo Antão que foram alfabetizados por nós em Cuba”.

(viii) – Depois… Depois, a confirmação da morte de Jaime Mota. Esta aconteceu na sequência da “operação de recolha e transladação dos três cabo-verdianos inumados em território da Guiné-Bissau”, em que participaram António Leite, Amâncio Lopes e Eduardo dos Santos. É referido: “fomos ao Leste e conseguimos localizar os restos do Jaime Mota, que pouco restava. Mesmo assim, foi fácil, porque sabíamos que ele tinha um dente de ouro e encontrámos uma caveira com dente de ouro”. (…)


Termino esta narrativa, com a mesma dúvida como comecei… Será que este documento, onde se procurou separar o caminho do “real” do da “ficção”, tem alguma utilidade?

Pelo menos, para mim, ajudou-me a compreender melhor alguns dos episódios mais marcantes e mais sofridos dos “encontros” tidos, de ambos os lados, nas matas de Copá e Canquelifá, situadas na Região do Gabú, Leste da Guiné-Bissau, entre o Natal de 1973 e 7 de Janeiro de 1974.

Obrigado pela atenção.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

08Fev2022

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Notas do editor:


Último poste da série > 15 de outubro de  2021 > Guiné 61/74 - P22631: Memórias cruzadas nas 'matas' da Região do Óio-Morés: o caso da queda do "T-6 FAP 1694", em 14out1963, incluido no documentário "Labanta Negro!", realizado pelo italiano Piero Nelli, 28 meses depois (fev 1966) (Jorge Araújo)