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quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 – P9343: In Memoriam (104): Carlos Adrião Geraldes (1941-2012), ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.

Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.

Guiné > Zona Leste > Pirada, 1965 > Da esquerda para a direita: Cap Barão da Cunha, Cap Tadeu, Alf Mil Médico Duarte e Alf Mil Carlos Geraldes

Fotos: © Carlos Geraldes (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.




Mais um camarada que desaparece do reino dos vivos, mas não da nossa memória. Ontem, por telefone, soubemos da notícia da morte do Carlos Geraldes. O coração pregou-lhe a grande partida. Aos 70 anos. Na noite de quarta para quinta-feira passadas, o Carlos morreu, no Hospital de Viana do Castelo, vítima de ataque cardíaco.



Rui Vieira, seu amigo, 30 anos mais novo, foi o mensageiro da funesta notícia. Foi também ele quem nos deu mais pormenores biográficos sobre o Carlos Geraldes, membro da nossa Tabanca Grande desde 2009, e ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.

Nasceu em Lisboa, a 23 de Junho de 1941. Foi para Viana do Castelo, aos 4 anos, quando o pai, desenhador técnico, foi trabalhar para os Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Os pais do Rui e do Carlos eram amigos. Daí a amizade (e a admiração) que ligava o Rui ao Carlos, uma figura tutelar, de referência, um cidadão exemplar, um homem do seu tempo… O Rui é também leitor e admirador do nosso blogue. Acompanhava os escritos do seu amigo, publicados no nosso blogue, e que vão da poesia ao conto. Recorde-se que da sua série Gavetas da Memória publicaram-se 14 postes, mas também um conjunto de Cartas (Carlos Geraldes) (em 10 postes) revelando o seu dia no nordeste da Guiné, até ao seu regresso.

Rui Vieira aceitou o nosso convite para escrever um texto de homenagem póstuma ao seu amigo e nosso camarada. Prontificou-se também a falar com a Dona Isabel, viúva, no sentido de salvaguardar o espólio do Carlos relativo à Guiné (cartas, fotos, textos e outros documentos).

Ao Rui, à Isabel, ao irmão, arquiteto, sobrinhos, demais família, amigos do Carlos, bem como pessoal da CART 676, aqui a fica manifestação do nosso pesar mas também da nossa admiração por este camarada que nos honrou com a sua presença e a sua colaboração na Tabanca Grande. Nunca o chegámos a conhecer pessoalmente, nem nunca participou nos nossos encontros. O seu nome passará a figurar, no nosso blogue, na lista dos amigos e /ou camaradas que da lei da morte se foram libertando. E com ele já soma 19. Paz à sua alma.
Os editores.

PS1 – O Rui Vieira, natural de Lisboa, está a fazer o seu doutoramento em história contemporânea. É investigador na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É especialista no domínio da história da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Estamos-lhe gratos por ter contactado os editores do blogue. Ficamos a guardar o seu prometido texto de homenagem ao Carlos Geraldes.

PS2 - A nossa melhor homenagem ao Carlos, que era um homem culto e sensível, é dizer-lhe que está aqui connosco nos poemas, ora mais tristes ou pungentes, ora mais irónicos ou líricos, com que nos brindou em vida… Aqui fica uma pequena seleção de um conjunto de poemas a que ele deu o título “Guiné: A Face Oculta”, e que nos mandou com a seguinte nota, em 22/11/2009: “ (…) Peço desculpa pela desfaçatez, mas também eu escrevi ‘poemas’ em noites de maior solidão. Reuni aqui alguns que me parecem retratar melhor os sentimentos despertados pelas noites africanas. Curiosamente tinha-lhes dado um título, ‘Guiné: A Face Oculta’, mas era a minha face que sentia e queria manter oculta. Nada tem a ver com essa escandaleira que nos dia de hoje está a vir a lume em todos os meios de comunicação (…)".


A toalha branca

Pousada aos pés da cama
Está uma toalha branca,
Onde limpo o rosto após a jornada.

Dá-me calma, alento, vigor.
Mas hoje está para ali,
Inútil, enxovalhada.

Haverá alguém que diga:
Pronto, tudo acabou!
Já não há mais nada!

Será que é hoje? Amanhã?
Quem sabe?
Qual será o fim da derrocada?

Pirada, Abril de 1965


Os meus amigos

Os meus amigos
São as lentas sombras da memória,
Que me visitam em dias de chuva.

São aqueles com quem respirámos
A alma, os tormentos e a glória,
Dos heróicos dias do passado.

São aqueles com quem chorámos
As tristezas e as breves alegrias,
Deste mundo inacabado.

(E também a melancolia das tardes frias...)

Os meus amigos (os mais queridos),
São as palavras e as cores
Que vão morrendo aqui e agora.

(Os meus amigos voltaram esta noite.)

Pirada, 24 de Agosto de 1965


Noites de Paúnca

Depois vem a noite.
Plena de luzes brilhantes
Parecendo tão longe
Como sóis agonizantes.

Gritos horríveis, gritos de bichos
Rasgam o silêncio das trevas
Sem abalar a indiferença
Dos que adormecem nas casernas.

E as coisas cómicas,
E as coisas tristes,
Acabam por se misturar,
Ficando tudo mais indiferente.

Quando nasce o Sol, finalmente,
As coisas cómicas e as coisas tristes
Ficam novamente cómicas,
Ficam novamente tristes...

Paúnca, 21 de Outubro de 1965


A patrulha

Alargam-se os caminhos da povoação
Já se distinguem as enormes mangueiras,
Ouve-se o rumor abafado do pilão,
O falso matraquear de armas traiçoeiras.

Perdida a prudência, exauridos,
Pelas crianças, caem vencidos.
Pois em troca de balas e tiros,
Recebem longos abraços e risos.

Agora, já é tarde,
Muito tarde para voltar,
Ninguém mais recorda o ódio,
A crueldade ignóbil de matar.

Lá longe, a caminho da bolanha,
Vai uma rapariguinha a cantar,
Lembra aos tristes soldados
As longas saudades do mar.

Paúnca, 16 de Janeiro de 1966
____________

Nota de CV:

 - Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9330: In Memoriam (103): Maria Manuela Flores França, ex-Cap Enf.ª Paraquedista (Maria Arminda Santos)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6863: (Ex)citações (94): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (José Brás)

1. Mensagem de José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 16 de Agosto de 2010:

Carlos, [...]

Já vi que saiu o último texto do José Dinis**.

Eu havia escrito hoje de manhã um texto a propósito do dele, mas de facto, mais sobre o do Carlos Geraldes.
Segue como o acabei agora mesmo se sequer uma leitura de revisão, como faço aqui quase sempre porque penso que o coração tem muito a ver com a nossa relação no blogue.
Se achares que tem qualidade, publica.

Um forte abraço
José Brás


Camaradas
Recebi do José Dinis uma mensagem com pluri-destinada, em que ele faz uma análise ao poste 6854, do camarada Carlos Geraldes com título comprido que não repito.
Não comento, nem o poste do Carlos Geraldes (pelo menos directamente), nem o texto-comentário do José Dinis.

O que me traz aqui, de novo a um tema que não morreu nem morrerá agora só porque, com razão se diz, já muito debatido, o que me leva a juntar mais este rol de palavras, é o facto de, no texto do JD aparecer referida uma referência (sic) do texto do CG ao meu livro "Vindimas no Capim".

Já havia lido o poste 6854 e mesmo que aligeiradamente, formado sobre ele a minha opinião, não me parecendo de perder com ele mais tempo que a sua leitura.
Depois de ler o escrito analítico do JD, e de ter descoberto a tal referência à referência, voltei ao blogue no propósito de descobrir o que não havia descoberto antes, isto é, a tal referência.

Li, reli... e confesso que fiquei na mesma.

Terá de ser tomado como referência ao "Vindimas...." O uso de um ou outro termo isolado e sem o enquadramento, político, ideológico, histórico ou simplesmente moral que formatou o meu livro no José Brás que era então e que, sem qualquer tipo de preconceito nem temor, digo que, sendo hoje o mesmo, é também diferente do que era, caldeado nos trambolhões que sempre a vida nos arma.

Devo, neste lugar do que escrevo, dizer que desde que me conheço capaz de pensar, nunca alinhei nesta ideia simplista do CG, ou para me redescobrir pensando assim, terei de recuar aos meus quinze, dezasseis, quando refilava com meu pai e lhe dizia que, sendo os ricos o mal do mundo, era necessário que morressem todos.

E nem sinto qualquer necessidade de dizer que concordo com a afirmação sobre crimes que teremos cometido em toda a nossa história, a maioria cá dentro e sobre o nosso próprio povo, e muitos fora, no desejo de sair de nós, de vencermos um mar que nos emparedava tão perto da outra fronteira, de buscarmos caminhos novos para chegar a mundos de sabíamos já a existência, e, certamente, não para lhes levar apenas a cruz mas, sobretudo, a espada; não para lhe oferecermos riquezas que não tínhamos mas, sobretudo, sacarmos as que adivinhávamos que tinham.

E nesse frenesim, nessa ousadia, nesse sofrimento, matando e matando-nos a nós próprios para renascermos depois, acabámos por dar ao mundo um inigualável contributo que geraram mudanças globais espantosas em todas as áreas do humano viver, e, em especial, a possibilidade de sair do homem medieval para o homem da renascença.

O nosso contributo permitiu aos países desenvolvidos da Europa, a acumulação dos capitais necessários ao advento da revolução industrial e do capitalismo.

Mesmo a propósito, a palavra capitalismo.

Peguemos nela, abramos as portas e as janelas do edifício que se gera no acto de a pronunciar pensando fundo e largo, achemos-lhe todos os crimes em seu nome cometidos desde que nasceu, e vejamos se não lhe achamos também virtudes na história do caminhar humano.

Podemos ver as imagens que Marx nos deu nos seus escritos sobre os milhões de seres humanos deslocados do feudalismo rural para a porta das fábricas de um mundo novo. Podemos vê-los mão de obra barata e disponível, mais miserável ainda do que era nos seus campos, alimentando o enriquecimento dos patrões mas também a explosão industrial e, até, um pensamento operário inexistente até então.

Só a ganância dos patrões pôde responder às questões novas, postas pela maquinaria à disposição da criação de novas formas de riqueza, de objectos de consumo, de um novo comércio, de novas formas de trabalhar a terra e mesmo de organização das sociedades.

Não me passa pela cabeça, com esta distância e julgando saber o que sei, condenar às penas do inferno esse tempo de exploração do homem, sem meter no saco todos os benefícios que me trouxe e sem a consideração da sua inevitabilidade na dialéctica do negativo/positivo.

Como, então, iria eu negar a espantosa odisseia dos navegadores e dos guerreiros portugueses que, na ganância dos seus maiores, e, digamos mesmo sem medo da palavra, dos seus desígnios, acometeram outras terras e outras gentes, impondo cultura nova ou nem isso, apenas no desejo e na necessidade de cevar riqueza nos recursos estranhos, riqueza que, provavelmente sem saberem, iria das condições ao mundo para novo salto?

Quer dizer que concordo eu com as sevícias, com os massacres, com o saque?

Nem pensar, meus camaradas, nem pensar.

Quer dizer que me desdigo do que disse no "Vindimas no Capim", sobre a exploração brutal dos rurais pobres por uma burguesia gananciosa e endinheirada, donos de terras ou de comércios espúrios?

Nem pensar, meus camaradas, nem pensar.

Quer dizer que me desdigo sobre o que disse do direito dos povos das colónias à sublevação e à guerra pela posse da terra que, na verdade sempre tinha sido sua?

Nem pensar, meus camaradas, nem pensar.

Do "Vindimas..." não retiro nem uma palavra das que lá estão, pese embora que eu próprio, às vezes leitor delas, discorde de algumas, numa análise à estética que toda a ideologia tem, dinâmica como não poderia deixar de ser.

Há uma coisa de que sempre discordei e sempre discordarei sem apelo nem agravo.
A ocupação das parcelas que detínhamos em África ultrapassou em muito o seu tempo histórico, moral e ideológico, fechada num conceito velho, tosco e mau, que mais valor dava ao simbolismo dos cantados heróis da raça e à ferramenta da cruz, do que às reais conveniências do seu próprio País no quadro das posturas novas da humanidade.

Dessa teima, colhemos todos nós o sofrimento e a contradição de lutarmos contra quem não odiávamos, e disso é prova, sim, a atitude e a postura geral dos nossos combatentes de quem ninguém poderá dizer com justiça, as coisas horríveis que se ouvem de outros, pese embora reconhecer um ou outro excesso cometido.

Daí que, ao contrário do que aconteceu com outros processos de descolonização, o abraço tenha sido e continue a ser possível.

Sempre pensei que daria a vida se alguém quisesse ocupar-me a casa ou o País.

Desgraçadamente, vivo num País ocupado pela ideologia do mercado e pelo capital financeiro que os donos do mundo acumularam e usam como mortífera arma, e contra essa ocupação não posso nada, nem tenho fisga ou espingarda.

Abraços
José Brás
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6833: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (23): José Brás, há muitos anos, elemento activo do Grupo de Forcados de Vila Franca

(**) Vd. poste de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6861: (Ex)citações (92): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6862: (Ex)citações (93): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (António J. Pereira da Costa)

Guiné 63/74 - P6862: (Ex)citações (93): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (António J. Pereira da Costa)

1. Mensagem de António José Pereira da Costa*, Coronel Art na reserva, na efectividade de serviço, que foi comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, com data de 16 de Agosto de 2010:

Caro Camarada
Se ainda for a tempo, quero deixar um comentário para o Carlos Geraldes**.

Primeiro quero recordar que as revoltas e as revoluções não se improvisam nem surgem por geração espontânea ou por loucura súbita dos povos.

Creio que já lembrei que nos 20 anos anteriores à chegada do Teixeira Pinto houve 12 sublevações das populações da Guiné. Em 1924 creio que terá a última em grande antes do Pidjiguiti.

Claro que as actuações condenáveis (escravatura, roubos, devastações, etc.) começaram logo à chegada, como ele diz. Mesmo vistas no contexto do tempo não podem deixar de criar e acumular revolta nas populações locais. A tensão foi-se acumulando e depois... o resto já sabemos.

Foi mais um caso de nascimento de uma nação, como já afirmei no meu último poste.

A reacção das nossas autoridades foi a que sabemos e a nossa também. Recordo que a nossa atitude foi-se alterando ao longo da guerra que durou 13 anos. O ânimo e a "mentalização" (aceitação activa da necessidade de combater) foi diminuindo ao longo dos anos. Como acabaria não sei.
Creio, por isso que o Geraldes não foge à verdade pelo menos até ao 4.º parágrafo.

Depois...
Depois cada caso é um caso. Mas eu não creio que a generalidade de nós tenha o perfil que ele desenha.

Não o terá tido no passado e não o será na actualidade. Não creio mesmo que "os mais selvagens entre 1000" tivessem sido tantos e não tenham sido "repreendidos" pelos outros (nós todos). Relembro que nas unidades operacionais a grande maioria eram cidadãos fardados.
Claro que cada bala pode matar um chefe-de-família, uma mãe, uma criança, mas isso faz parte da guerra.

Contaram-me que, em Cacine, antes de eu chegar, um dia uma das primeiras companhias que por lá passou foi atacada com armas pesadas e o 1.º Sargento, depois do ataque, gritava e chorava com a perna de uma criança na mão:

- Podia ser a minha filha!... Podia ser a minha filha!

Eu próprio ainda por lá encontrei um miúdo - um "português suave" - o Manel que, na sua cor de café com leite e cabelo quase liso e semi-louro, tinha a cabeça descascada com pequenos estilhaços.

Um Alfa Bravo do
António Costa
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6805: Controvérsias (99): O que é que o País pode dar aos ex-combatentes? (António J. Pereira da Costa)

(**) Vd. poste de 15 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6861: (Ex)citações (92): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P6861: (Ex)citações (92): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), dirigida ao nosso Blogue em 16 de Agosto de 2010:

Camaradas
Cito: "Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?" (Do poema em Linha Recta de Álvaro de Campos).

Imagino que uma boa parte do pessoal já atingiu a idade do condor (do sexo com dor), mas a razão ainda nos vai escapando. Somos uns emotivos, por isso, reagimos emotivamente, dando pouca, muito pouca atenção aos conteúdos. Neste caso, posso dizer, o bombo saiu à rua. Mas a malhar nele não se faz música. O bombo também obedece a regras musicais, ou abafa os restantes instrumentos e fere-nos o ouvido.

Vamos a detalhes:

1 - Logo no começo refere-se: "E nem se lembram de que tudo foi uma mentira, com mais de quinhentos anos". Penso eu, que se refere a eventual manipulação de factos históricos, filtrando os motivos de vergonha, para exaltar e despertar qualidades do génio lusitano, pois acrescenta a seguir: "Desde tempos imemoriais... quem tinha a força tinha o direito". Assim, à moda do Bush quando mandou invadir o Iraque.

Posso concordar. De facto, todos sabemos que a nossa instrução primária, e os subsequentes estudos secundários, obedeciam a programas aprovados pelo regime, logo, em consonância com o discurso oficial, frequentemente capcioso. E essa foi a nossa cartilha. Foi nesse tempo que aprendemos a odiar os espanhóis. Foi nesse tempo que nos fizeram aceitar as ideias de unidade territorial e de Pátria. Ideias, que, ainda hoje, são determinantes ou condicionantes para os nossos comportamentos. Estranhamente, quando foi a nossa geração a apadrinhar a democracia (às vezes bárbara democracia) que resultou do 25 de Abril.

Quantos daqueles milhares do 1.º de Maio estavam politicamente esclarecidos? Quantos saneamentos levados a cabo por trabalhadores, não lhes serviram de trampolim para benefícios próprios? Refiro-me a contradições da nossa geração, a experiências que denotam insuficiência cívica. Será que hoje já estamos convenientemente formados, com maturidade, sentido do rigor, da ordem, da justiça e não pactuamos com aventureirismos?

2 - Segue-se o 2.º parágrafo que parece suscitar a grande confusão: "quando lá chegavam com as G3 em riste..."

Bem, não se pode tomar a nuvem por Juno, mas lá que houve excessos... houve. E o governo cristão, e a civilização cristã, chegaram a homenagear e condecorar alguns "heroísmos revanchistas". Até hoje parece que os aceitamos como bons, pois a Pátria, no conjunto do seu Povo, ou representada pelos eleitos do Povo, ainda não veio dizer que exagerámos, e que o antigo regime, por isso, deu cobertura a injustiças. Garanto-vos que na África sob jurisdição portuguesa, até aos anos cinquenta do século passado, praticou-se o esclavagismo (vide Norton de Matos - Biografia, Bertrand Editora).

Argumenta-se com o terrorismo, como se os portugueses, em 1640, tivessem tido um comportamento de protecção a acto terrorista. Mas, mais grave ainda, o estado português em 1961 estava informado sobre o que iria acontecer, e continuou a caminhar contra as instâncias internacionais sob o comando do velho néscio.

Em que é que exagerámos?

Na maneira descriminatória relativamente a muitos daqueles povos, pois a par de uma missão religiosa, existia um crápula que negociava mão de obra sem direitos, quer para o estado, quer para as grandes companhias; exagerámos, não dando atenção à Carta da ONU, anterior à nossa adesão, que ficou a dever-se a um truque com a transformação de colónias em províncias, criando expectativas sobre a sua regulação e governo; exagerámos no estúpido orgulhosamente sós, que durou de 1958 a 1974, enquanto, se tivéssemos seguido o caminho da Carta, teríamos 30 anos para construir sociedades modernas e submeter o modelo a referendo; exagerámos, condenando e não convidando os emancipalistas a colaborar na construção das novas sociedades; exagerámos, ao admitir que a nossa capacidade para prosseguir a guerra seria inesgotável, com grandes argumentos em S. Bento e no Terreiro do Paço.

3 - Segue-se uma alusão ao romance do Zé Brás, Vindimas no Capim, que, no entanto, me parece despropositada, na medida em que interpreto o romance como um retrato da vivência de uma geração subjugada ao trabalho duro e mal pago, por vezes em condições de indignidade, desinstruída, que era mobilizada para a guerra de África a dar o corpo ao manifesto, onde apenas tinha como prémio, a sorte de se salvar, ou os namoros de ocasião com as meninas do Jorge.

Não sei se quer referir-se ao heroísmo desses desgraçados, levados das suas famílias e das esperanças que alimentavam, para em condições infra-humanas obedecerem cegamente à cadeia de comando, a ponto de darem tudo pela Pátria. Esta dádiva máxima não era percepcionada, nem nas causas, nem nos efeitos, mas, naquele momento, causava grande perturbação aos sobrevivos.

4 - Pátria. Peço-vos para reflectirem no lugar onde nascemos, no que queremos e fazemos dele, na capacidade do colectivo em intervir no destino da nação. Peço-vos para reflectiram sobre o que pensamos de relações sociais no lugar da Pátria, como aceitamos, ou reagimos, à impunidade dos gestores bancários, dos sectores privado e público, mediante actos de fácil reprovação; peço-vos para reflectirem sobre PIN - Projectos de Interesse Nacional, que delapidam o público em favor do privado; peço-vos para reflectirem sobre tantas manigâncias neste país, e para pensarem porque é que isso acontece.

5 - O que vos pedi em 4) tem a ver com o último parágrafo do Geraldes, que critica os encontros onde se apresentam alguns, com laivos de heróis, boinas e medalhas, em manifestações marciais que, em vez de celebrarem a camaradagem solidária, cimentada nas dificuldades, antes exaltam qualidades guerreiras ou brutais, por vezes sem correspondência com os sentimentos perante o perigo.

Talvez concorde, se o Geraldes pensa na solidariedade que devia resultar do sofrimento colectivo durante a guerra, para, agora, (digo eu) guiar-nos para acções colectivas, de regeneração moral, de orientação para o interesse público, de repúdio pelos oportunistas que, de lés-a-lés, desprestigiam instituições, comprometem equilíbrios da natureza, hipotecam o futuro, acções que dariam de nós, antigos combatentes, a imagem de esforço, seriedade e vontade de actualizar e incrementar o progresso colectivo. Nunca em Portugal um governo se lembrou de mobilizar o Povo para o progresso. Afinal, andámos lá fora a malhar os costados, e aqui cruzamos os braços perante tanta leviandade.

6 - Da generalidade dos comentários, que evocaram Camões, mas esqueceram-se de Fernão Mendes Pinto, retenho uma liminar condenação ao Geraldes. Afinal o texto fez-me reflectir, sobretudo nesta belíssima vida moderna, adornada de Mercedes e Audis, com casas a espelhar sucessos pessoais, ainda que, algumas, sem mão de arquitecto, nem licenças camarárias, mas uma "boa vida", ou a fingir uma boa vida, em hossana ao individualismo. Para mim o poste valeu como exercício de introspecção.

Abraços fraternos
JD
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6855: Controvérsias (102): Polémica M.Rebocho / V.Lourenço, resposta a António Graça de Abreu (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6860: (Ex)citações (90): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P6860: (Ex)citações (91): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (Manuel Maia)

1. Comentário de Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), deixado no poste 6854 de autoria de Carlos Geraldes, com data de  16 de Agosto de 2010:

Caro Geraldes,
Li o teu texto, e pergunto-me que mal te fez o mundo para teres este tipo de relação conflituosa contigo próprio...
Depois de me ter habituado a ler-te, fiquei deveras surpreendido com este fel destilado, que em minha opinião se não coaduna contigo.

Todos temos momentos de revolta com a vida mas deveremos procurar os mecanismos de contenção que impeçam que ofendamos gratuitamente quem quer que seja, especialmente aqueles que tal como nós, militares à força, atravessaram os mesmos problemas, sofreram na carne as mesmas vicissitudes, conheceram as mesmas dúvidas, os mesmos medos, as mesmas revoltas.

Aquilo que lês aqui e ali sobre as bajudas, os galos, as tainadas, não são, estou certo, quaisquer loas a um bacoco heroísmo, mas tão só o reavivar de momentos que por esta ou aquela razão ficaram gravados no subconsciente de quem os narra e que no fundo são comuns praticamente a todos...

Os tiros, foram a resultante da nossa presença na guerra e muitas vezes o exteriorizar dos medos, que dizes ninguém contar...

Todos tivemos medos, todos pensamos muitas vezes na impossibilidade de regresso, mas todos tínhamos vinte e poucos anos e a pujança da vida dessa idade.

Nunca assisti a situações como as que descreveste (fiz a guerra entre 72 e 74) e no meu tempo posso testemunhar que a acção psicológica funcionou não havendo crimes ou abusos como os que narraste...
Cabia também aos condutores de homens (e tu eras comandante de um grupo de combate...) a obrigação de dirigir, responsavelmente, os seus militares, por forma a evitar manifestações de primitivismo criminoso como referiste...
Se os testemunhaste e não agiste, então sentes esse peso na consciência.

A súmula que apresentas relativamente à história deste país a que pertences, este reduzir de nove séculos de construção e sustentabilidade de um povo com capacidades e heroicismo incomuns, um povo que se atreveu mar adentro à cata de novos mundos, a uma miserabilista insinuação de que se tratou de bandos de salteadores, violadores, ladrões, burlões, é de facto demasiado redutora, curta de vistas, e decididamente evidenciadora de que estarás doente, provavelmente a sofrer.

O Carlos Geraldes que também foi cordeiro em África, o Carlos Geraldes, homem culto, não pode apresentar um discurso deste jaez...

As almoçaradas dos homens de cabelos ralos e caiados pelo branco da velhice, contrariamente ao que dizes, são extremamente salutares, e mau grado este teu posicionamento que redundou no poste alvo destes comentários, estou convicto que no próximo convívio da Tabanca Grande, estarás presente com um arejamento de ideias.

Sei que provavelmente estarás a remoer-te por dentro a tentar perceber o porquê de assinares um texto tão caustico, tão violento, diria mesmo tão ofensivo.

Peço-te para reflectires, acalmares, contares até dez antes da explosão.

Um abraço
Manuel Maia
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6837: Blogopoesia (79): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (6) (Manuel Maia)

(**) Vd. poste de 15 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 9 de Agosto de 2010 Guiné 63/74 - P6840: (Ex)citações (90): O nível das modalidades desportivas amadoras de Bissau tinha baixo nível e recorria aos militares ali estacionados (Rogério Cardoso)

domingo, 15 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)

1. Texto de Carlos Geraldes, membro da nossa Tabanca Grande, de 69 anos, residente em Viana do Castelo, ex-Alf Mil, CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66):


A Guerra Colonial: Todos Querem Ser Heróis! (*)

E nem se lembram de que tudo partiu de uma mentira, com mais de quinhentos anos. Mentira piedosa dirão alguns, mentira necessária, dirão outros, mas na verdade não passou de uma redonda e grosseira mentira, repetida vezes sem conta! Foi a nossa epopeia!

– Mas descobrimos novos mundos!
– Como? Não existiam já antes?
–  Desbravámos novos caminhos, novas rotas! Evangelizámos!
– Mas onde plantámos os nossos Padrões (quais marcos de propriedade), e nos estabelecemos com fortificações, não foi para mais facilmente assaltar, roubar e reduzir à mais cruel escravidão outros seres humanos como se fossem gado para exploração, abate e consumo?

 Desde tempos imemoriais que a regra foi sempre a mesma. Quem tinha a força tinha o direito. E como povo “civilizado” que éramos (!?) considerávamo-nos também superiores aqueles que não tinham os nossos costumes e que até nem praticavam nem conheciam a nossa religião. Eram os “infiéis, os gentios, gente bárbara e sem a alma que apenas a fé cristã proporcionava aos convertidos, conforme então piamente se acreditava.

E a pretexto que era urgente converter essas multidões de gentios, aproveitava-se, já agora também, para os aligeirar dos bens que possuíam e até de outras riquezas que eles nem sabiam serem objecto da nossa cobiça, só porque nos considerávamos com muito mais direitos a essas riquezas do que eles. Assim devastámos tudo o que de tentador se nos aparecia pela frente. Ouro, pedras preciosas, especiarias, minério, tudo era avidamente carregado a bordo de caravelas, naus, e todos os navios mercantes que vieram depois. Como paga deixávamos algumas bugigangas, espelhos, facas, aguardente… e os nossos rudes costumes também, nunca conforto e civilização!

Mas mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, já dizia o poeta sábio. E os povos das nossas colónias ganharam coragem e sublevaram-se. Veio por isso a guerra colonial.

Dos altares da Pátria teceram-se louvores, cânticos e hinos aos soldados que rumaram em armas para as terras africanas. A juventude de um povo analfabeto e desinformado, cego e magnetizado por tanto aparato, seguia como uma legião de cordeiros para uma matança sem fim à vista. Quando lá chegavam, com as G-3 em riste, assaltavam as tabancas, as moranças, correndo pelas picadas mais distantes, disparando a torto e a direito. O que é que interessava uma ou duas centenas de pretos a mais ou a menos? Ninguém lhes pedia contas disso, só tinham de lhes dar uma “ensinadela”, de os meter na “ordem”. Estavam “superiormente” autorizados a matar, dizimar, desfazer tudo quanto lhes desse na real gana. Não era a ali a África selvagem, o lugar de todos os infernos, o cenário perfeito onde os brancos podiam praticar impunemente todas as espécies de atrocidades? Então…?

Inchados de orgulho pateta, contam como eles trataram como “vinha vindimada” as terras dos “pretos”, como corriam atrás das raparigas de impudicos peitos nus, como suaram as estopinhas, mergulharam na lama até aos peitos, passando pelos maiores perigos e tormentas, como só eles passaram!

Mas não admitem, nunca, como tremeram de medo no meio da escuridão da mata e que, sempre que sentiam as “costas quentes”, também fizeram o gosto ao dedo, só para aliviar um agora denominado de “stress” (para não lhe chamarmos “pura selvajaria”), chacinando velhos, crianças e mulheres indefesas, galinhas, cabras, vacas e, até morros de “baga-baga” tudo varrido na frente, com umas boas rajadas da velha G-3, tiros de “bazooka” ou granadas de morteiro atiradas ao acaso.

E agora, porque voltaram, até já se julgam heróis, apenas porque também lá estiveram. Só porque fizeram aquela viagem por um mundo que não entendiam, escondidos atrás de uma arma, cumprindo “ordens” que não compreendiam nem discutiam, julgam ter direito a um estatuto de heróis!

Periodicamente, os que ainda restam dessas “expedições” reúnem-se para confraternizar à mesa de um qualquer restaurante. Pançudos, com os ralos cabelos já esbranquiçados exibindo, por vezes, as velhas boinas das “Campanhas de África”, contam chalaças marialvas, recitam os nomes das velhas armas que usaram, riem-se e choram com saudades dos tempos que já lá vão. No fim fazem juras e saudações militares. Qual Vietname, qual carapuça! Ninguém é mais digno de crédito e admiração do que eles!

.../...

Ao chegar a casa, dão um beijo na mulher, calçam as pantufas e com um profundo suspiro de alívio e sentimento do “dever cumprido”, ficam para ali a “ruminar” o inevitável Telejornal, porque a seguir vai dar a bola!

E não é que agora, vêm todos dizer que foram uns heróis?!

Carlos Geraldes
carlos.geraldes@live.com.pt

2. Nota do editor L.G.:

Este texto, com data de 7 de Julho,  vem no contexto de algumas reacções à publicação do conto do Mário Cláudio, Para o livro de ouro do Capitão Garcez.

O Carlos queixou-se de ter sido "silenciado"... Ora não é prática nossa silenciar ninguém, muito menos um camarada que costuma cumprir com lealdade e fair play as regras de convívio do nosso blogue, e é um activo colaborador. O que aconteceu é que os editores foram de certo modo surpreendidos pela "crueza" da sua linguagem e pelas considerações (menos felizes) que faz da generalidade dos antigos combatentes da guerra colonial... Ora essa generalização é abusiva, meu Caro Carlos, na falta de um verdadeiro retrato, sócio-antropológico,  a corpo inteiro,  da nossa geração que combateu em África...

O próprio autior entendeu meter esse texto, inicialmente na gaveta,  por o achar "um pouco forte"... Três meses depois de o terescrito, decidiu reenviá-lo em 7 de Jullho...

Arrefecida, entretanto, a polémica à volta do conto do Mário Claúdio, perdeu-se a oportunidade (editorial) de publicar o texto do Carlos Geraldes... Mas, enfim, nunca é tarde para o fazer... O texto fica postado (bem como as explicações das a seguir pelo autor):

Olá queridos amigos:

Tenho estado de facto a "hibernar" se bem que a estação não seja muito propícia a isso.

Fui despertado pela "polémica" sobre um belíssimo texto, inédito (?), de Mário Claudio, escritor que mal conheço, apenas pela notoriedade que lhe advém dos inúmeros trabalhos que publicou e consequentes prémios arrecadados. Aliás, sinto até um certo orgulho por me ter cruzado com ele duas ou três vezes numa pastelaria em Paredes de Coura, onde ele, me parece, deve ter residência temporária. Facto que muito enobrece tais idílicas e serenas paragens do nosso Minho profundo. Mas nunca me atrevi a falar-lhe, nem sabia tão pouco que também tinha estado na Guiné a cumprir o serviço militar.

Estamos todos de parabéns, portanto. A Tabanca Grande ficou MAIOR!

Quanto à tal "polémica", deixem que vos diga que não vale nada! Até faz lembrar as "bacocadas" à volta da obra do Saramago. Como sempre, quando a caravana passa, ficam cães a ladrar. Não é que não tenham o direito de ladrar. É a maneira de eles se expressarerm e, o direito à livre expressão, foi uma das mais importantes conquistas de Abril. Mas atenção à responsabilidade! Responsabilidade para com os outros, para os que estiveram, os que estão e os que estarão nesta terra que nos criou. Responsabilidade pelo futuro que construímos com os nossos exemplos pois isso, infelizmente, ainda não é muito perceptível pela maioria. Apenas nos interessamos pela notoriedade de aparecer, de dizer coisas, muitas delas toscamente apreendidas, imitadas sem delas nos apercebermos totalmente, sequer. E assim se cria agora esta estéril "polémica" que já cheira a coisa morta logo à nascença.

Nos princípios deste ano tinha escrito um pequeno texto, inspirado num comentário pouco abonatório sobre o nosso blogue.  Declarava alguém que a existência deste e de outros blogues do género, só serviam para certos indivíduos fanfarrões se virem pavonear de hipotéticos feitos nas guerras de Àfrica.

Como achei, depois, que o texto estivesse um pouco forte, guardei-o na gaveta. Mas agora perante as palavras de Mário Cláudio e as consequentes reacções, vou servir-me dele como mais uma testemunha de defesa do "réu", embora nunca tivesse sido para aqui chamado, apenas porque assim sempre foi a minha percepção da realidade vivida na Guiné.

Também eu fui testemunha (ainda nos benévolos tempos de 1964/66) do ambiente denso que a guerra arrastava atrás de si. Nunca a leitura de Joseph Conrad me parecera tão real ("O Coração das Trevas"). Estavamos ali a viver num cenário quase idêntico, emoções de tal maneira semelhantes, que a nossa mentalidade ia-se moldando a pouco e pouco à tenebrosa lógica da guerra com as suas obscenas crueldades tornadas puras banalidades. O acto de maltratar outro ser humano, mutilá-lo, matá-lo, esventrá-lo, esmagá-lo contra uma parede, trazia tanta impacto moral, tanto remorso, como matar um insecto importuno. E além disso até era um acto legal! A guerra tudo justifica!

Matar uma jovem mãe, com um tiro certeiro de G-3 que a atravessasse de lado a lado e esmigalhasse também a cabeça do bebé que ela transportava à costas numa fuga alucinada, era um acto merecedor de aplausos pela pontaria certeira do bravo soldado ansioso de mostrar uma valentia que nunca iria ter de outro modo.

Quem falou mais nesse crime? E em muitos outros que se seguiram? E os prisioneiros mantidos em Nhacra ( a "idílica" Nhacra!) dentro de uma jaula de arame farpado? E o prisioneiro morto com um canivete sucessivamente espetado no pescoço, só para o calar, na atrapalhação de uma noite de operação em território IN?

Bom, a guerra tem os seus fantasmas e é bom que os saibamos enfrentar de uma vez por todas.

Hoje parece que lidamos ainda com essas recordações, como se se tratassem de bilhetes postais de um passado heróico, feliz e distante. Por isso me repugnam certas basófias, certas festanças e jantaradas como se quisessem comemorar factos gloriosos do nosso passado comum. Feitos glorificados por uma "história" embelezada por uma certa doutrina política e nada interessada em mostrar a pura realidade.

Desculpem-me este desabafo mal amanhado, mas assim de repente é o que sinto cá por dentro.

Um grande abraço. Viva Àfrica, viva a Humanidade!
Carlos Geraldes

PS. Em Anexo envio o tal texto escrito em Abril deste ano [A guerra colonial: todos querem ser heróis]
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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4357: Questões politicamente (in)correctas (39): Havia racismo nas Forças Armadas Portuguesas ? ... E no PAIGC ? (Nelson Herbert)

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6631: Parabéns a você (123): Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66 (Os Editores)

1. O dia 23 de Junho é também data de nascimento do nosso camarada Carlos Adrião Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.
Dizia-nos ele em Agosto do ano passado, quando se atabancou, que tinha 68 anos, o que quer dizer que de hoje a um ano completará 70. Bonita idade. Fica desde já marcado encontro.

Ao nosso camarada Geraldes, que vive numa das mais lindas cidades de Portugal, a princesa do Lima, Viana do Castelo, desejamos que este dia de aniversário que se prolongue por todo o S. João, santo muito festejado nas terras do Norte.
Que a sua vida seja repleta de saúde e alegria junto de quem mais ama e tão longa quanto a vista que do alto do Monte de Santa Luzia o olhar consegue abranger.


2. Carlos Geraldes que esteve na Guiné nos idos anos de 1964 a 1966, depositou no nosso blogue alguns testemunhos da sua passagem por aquela terra de África. Aconselhamos a tertúlia a reler e os mais novos a ler as estórias publicadas nas duas séries Gavetas da memória e Cartas, a que podem aceder através dos respectivos marcadores. É uma leitura muito interessante.

Já vai algum tempo que não temos notícias dele, provavelmente por estar à espera de inspiração ou que lhe venham à memória outras estórias para nos contar. Carlos não te esqueças de nós.

3. Aqui deixo algumas fotos do Carlos Geraldes:

Pirada, 1965 > Cap Barão da Cunha, Cap Tadeu, Alf Mil Médico Duarte e Alf Mil Carlos Geraldes

Pirada, Dezembro de 1965 > Alf Mil Carlos Geraldes, Cap Seco, Alf Mil Correia e prof António Oscar Baldé





Paunca, 7 de Janeiro de 1966 > Carlos Geraldes em frente à Mesquita

Carlos Geraldes na actualidade
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P6624: Parabéns a você (122): António Costa, ou Tó Zé, de soldadinho de chumbo a cadete da Academia Militar, de Alferes em Cacine (CART 1692, em 1968/69) a Capitão no Xime (CART 3494, 1972) e Mansabá (CART 3567, 1972/73), cobrindo-se de glória da defesa antiaérea da BA 12, em Bissalanca (BRT AA 3434, 1971/72) (Miguel Pessoa / Tony Levezinho)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5574: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (14): O menino que gostava de saber palavras novas

1. Mensagem de Carlos Geraldes (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), com data de 28 de Dezembro de 2009:

Caro amigo:
Esperando que estejas a passar esta Quadra com a melhor das disposições juntamente com os teus familiares e amigos e, desejando óptimas perspectivas para o ano de 2010, aqui envio mais uma pequena crónica para fechar este ano de 2009.

Um grande abraço do
Carlos Geraldes


GAVETAS DA MEMÓRIA (14)

O menino que gostava de saber palavras novas


Em Pirada, logo após os primeiros dias da nossa chegada, apareceu a rondar a casa onde se alojaram alguns oficiais e sargentos, um rapaz com um ar meio ingénuo e meio atrevido a querer meter conversa numa linguagem atrapalhada, mistura de crioulo, fula e português. Sempre com um sorriso enorme, ria-se quando nós nos ríamos dos seus disparates e pontapés na gramática, olhando-nos atentamente quando não entendia tudo o que se lhe dizia. Durante o dia via-se a vadiar por ali, não ia à escola e não parecia ter qualquer ocupação.

Habituados a desconfiar de tudo e de todos, mergulhados naquele ambiente inteiramente novo, embora não directamente hostil, suspeitámos que algo de esquisito haveria ali escondido por detrás daquele sorriso resplandecente. Por isso não lhe demos muita confiança e chegámos até a escorraçá-lo à bruta. Mas ele regressava sempre como um cachorro vadio, de rabo entre as pernas, tentando conquistar as simpatias do Nine o nosso impedido que tinha também um coração grande de menino a quem tinham roubado a infância.

Quase sem darmos por isso, já ele andava a carregar lenha, a trazer os sacos de pão acabadinho de fazer no forno do M. Soares, ajudando o Nine a preparar o pequeno-almoço, varrendo o jardim das traseiras, tagarelando sempre em alegre camaradagem com o nosso impedido. De uma algaraviada que quase não se entendia nada, passámos a pouco e pouco a reparar que ele fazia nítidos progressos na fala e já se fazia entender quase na perfeição.

Em menos de um mês o Adérito, assim era o nome dele, dominava menos mal o português, à mistura é claro com alguns termos de crioulo que nós também já sabíamos utilizar. E estava sempre disposto a ajudar em qualquer coisa.

Quando aprendia uma palavra nova vinha radiante repeti-la para que nós lhe disséssemos se a estava a pronunciar bem.

- Alfero, olha hoje sabe palavra nova, “inauguraçom”!

- Inauguração, palerma!

E sempre a rir, lá ia ele tentando corrigir a pronúncia: - “ão, ão, inau…gura…ção.


- Alfero, qué que é um “opiniom?”

– Opinião, Adérito, opinião! Quer dizer o que tu pensas de uma coisa qualquer, o que pensas de mim, por exemplo.

- Alfero, “opiniom” tem “manga de ronco” - rematava logo ele radiante por ficar a saber mais uma palavra e a saber aplicá-la.


- E compro... vati... vu? - voltava ele, suando com o esforço de se fazer entender.

- O quê? Que queres tu agora?

- Comprovativo, nosso alfero?!... suplicava a medo.


E a pouco e pouco ia juntando, como a galinha, que vai catando o milho grão a grão, as palavras novas que escutava nas conversas dos soldados na caserna, dos sargentos na tasca do velho Palha. Depois ias repeti-las na tabanca perante uma assistência de outros miúdos que o miravam incrédulos da sua nova sapiência.

Mas o Adérito via mais longe, via para lá do horizonte da bolanha, para lá do chão que o vira nascer. Como seria lá em Bissau? Era uma pergunta, uma curiosidade que lhe minava o pensamento. Os diabos dos soldados brancos vieram tumultuar a sua alma simples. Suspirava romper mundo fora, talvez nos camiões da tropa, quem sabe? E a melhor das armas que se deveria levar era o saber fazer-se entender, disso não lhe restava a menor dúvida. Os brancos não tinham tudo? Pois tinha que saber falar como eles! Os outros que ficassem para ali sempre na mesma vidinha de sempre. Talvez à espera de serem mortos numa guerra que nunca tinham pedido. Ele tinha que fugir dali para fora!

(Na noite do primeiro ataque ao quartel, Adérito, quando corria a refugiar-se junto dos soldados brancos foi ceifado, por uma rajada de metralhadora disparada não se sabe donde, nem por quem. Renasceu hoje no fundo de uma das gavetas da memória, como um rosto radiante no meio de tantos outros que teimam em não se confundirem com a poeira vermelha da picada levantada pela desengonçada GMC que aos solavancos trouxe de volta os soldados brancos.)

Os meninos de Pirada na sala de aulas
Foto: © Carlos Geraldes (2009). Direitos reservados


Viana, 28 Dezembro de 2009
carlos.geraldes@live.com.pt
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5385: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (13): O primeiro ataque a Pirada e a morte do Gila

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5385: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (13): O primeiro ataque a Pirada e a morte do Gila

1. Mensagem de Carlos Geraldes* (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), com data de 28 de Novembro de 2009:

Caro amigo:
Envio agora, integrado nas memórias que vou retirando das gavetas, um relato que há muito estava para ser feito, cansado de ver tanta gente a gabar-se de ter ido à guerra, como se tivesse assistido a um magnífico jogo de futebol, decisivo para as cores do seu clube.

A guerra onde participámos como protagonistas não foi só regada com o sangue dos nossos soldados, mas sim com a de muitas vítimas inocentes. Cujo destino aliás, foi sempre esse ao longo dos séculos, nunca tendo conhecido ouro. Quando penso nisso vem-me automáticamente à lembrança o rosto daquela jovem mãe que fugindo desvairada quando nos viu chegar de surpresa à tabanca, foi logo varada por uma bala assassina que logo ali lhe ceifou a vida atravessando também o crâneo do bébe que transportava às costas. O autor do disparo ainda se riu da proeza.

Um grande abraço, amigo Carlos Vinhal e preparemo-nos calmamente para mais um Natal.


O Primeiro Ataque a Pirada (A Morte do Gila)

Não sei se o deva contar, porque nem sequer fui testemunha ocular. Nesse dia, 28 de Maio de 1965, estava de férias na Metrópole junto com a família. Um mês inteiro longe da guerra, na total ignorância de como as coisas se iam passando por lá a milhares de quilómetros. Só quando regressei de avião a Bissau é que me contaram a novidade. Pirada tinha sido atacada!

Ao princípio custou-me a acreditar, até porque quem mo contou também não sabia bem os pormenores. Mal pude conter a impaciência nos dias que se seguiram à espera de boleia num Dakota (o velhinho, mas muito útil DC-6) para Nova Lamego onde depois teria um jeep da Companhia para me ir buscar. O sempre sorridente alferes Pinheiro lá estava pontualíssimo para me servir de condutor de regresso a casa.

E então lá me contou como tudo se tinha passado, enquanto eu o ouvia embasbacado, ainda pouco crente que me estivesse a falar verdade.

O M. Soares, como sempre, fora informado que um numeroso grupo de guerrilheiros se estava a juntar do outro lado da fronteira, no Senegal. Estava bem armado e tinha intenção de fazer qualquer coisa ao quartel da tropa em Pirada. E até se sabia o dia e a hora em que isso iria acontecer. O nosso Capitão fez aquilo que a prudência mandava, entrincheirou-se o melhor que pôde e aguardou. Aliás, tomou até uma medida que sempre me pareceu um pouco ousada e timorata. Quis contra-atacar. Planeou então uma manobra para emboscar o inimigo que supostamente viria atacar o aquartelamento do lado ocidental a coberto da povoação nativa, a cintura de palhotas que envolvia Pirada. Para isso mandou que o alferes Pinheiro e o seu Grupo de Combate se fossem colocar, muito discretamente, do lado de fora da tabanca, numa zona baixa, já perto da bolanha, onde aí, montariam uma emboscada e contra-atacariam os assaltantes encurralando-os contra o quartel. Só que as coisas nem sempre correm tão bem como se planeiam no papel. A noite estava escuríssima, conforme me ia contando o Pinheiro:

- Eu mal consegui dar com o sítio que o capitão me tinha dito onde eu e os meus homens nos deveríamos ocultar para depois apanhar os gajos. E depois quando a festa começou deu-me a impressão que afinal estávamos mais afastados do que era previsto. E pelo arraial que faziam deviam de ser mais de duzentos. Olha, eu, pelo sim pelo não, para não estar para ali a fazer fogo sem mais nem menos, resolvi que o melhor seria esperar muito caladinho e ver como as coisas se iriam passar. Se revelássemos a nossa posição até talvez ficássemos numa situação muito perigosa. Aliás poderia acabar por fazer fogo contra os nossos, não achas? Por isso, ficámos ali muito quietinhos à espera que tudo passasse. No quartel estavam mais bem protegidos pelos abrigos, eu ali não tinha protecção nenhuma!

Sim, o alferes Pinheiro tinha razão, era insensato atacar às cegas um inimigo que não se sabia bem onde estava nem de onde vinha, muito superior em número e armamento. Tomou uma decisão que à primeira vista poderá ser tomada como um acto de cobardia, mas que na verdade, tratou-se apenas de evitar um mero suicídio colectivo totalmente gratuito e ineficaz.

Assim o ataque desenrolou-se durante grande parte da noite, com a população nativa aterrorizada, escondida o mais que podia para escapar às balas perdidas que voavam em todas as direcções, varando de lado a lado as palhotas e as vedações dos quintais, enquanto do quartel atiravam morteiradas em todas as direcções e abriam fogo de metralhadora à vontade numa ânsia de aniquilar um inimigo que nem conseguiam descortinar.

Segundo depois me contou o M. Soares, elementos do PAIGC passearam-se mesmo pelo centro do povoado, donde, até debaixo do alpendre da sua casa fizeram fogo na direcção do quartel. Mas a ele e à família nem num cabelo tocaram. Admirável cavalheirismo romântico, que não seria fácil encontrar ali no mais remoto interior da Guiné. Gesto que, no entanto, lhe acarretaria futuros problemas com as desconfianças que a tropa foi alimentando a seu respeito, esquecendo que paralelamente M.Soares sempre lhes fornecera amplas e atempadas informações das andanças dos grupos inimigos que transitavam regularmente pelo Senegal, vindos da Guiné-Konakri em direcção à região do Morés, no triângulo Mansabá, Mansoa, Bissorã. Na verdade a imunidade de M.Soares devia-se muito à sua condição de hábil agente duplo que soube manter durante muito tempo e isso acaba sempre por ter um preço amargo de pagar.

Planta de Pirada

Messe dos Oficiais

Com o raiar do dia já depois de as armas se terem silenciado é que, aos poucos e poucos se foram verificando os estragos. Felizmente do nosso lado não houve mortos nem feridos, apenas danos materiais. As instalações ficaram com as paredes crivadas de balas, e duas viaturas foram atingidas mas nada de grande monta. Na tabanca é que tinha sido pior, tinham ardido umas dezenas de casas, devido talvez ao nosso fogo de morteiro. Quatro mortos a lamentar e bastantes feridos sem grande gravidade, pois grande parte da população tinha fugido para longe. O posto médico depressa se encheu e o pessoal de saúde não teve mãos a medir, enquanto patrulhas percorriam toda a zona de onde o inimigo teria estado a fazer o fogo, agora facilmente identificável pelo elevado número de cápsulas vazias de vários calibres espalhas pelo chão. Os rastos deixados pelo grupo dos atacantes indicavam também que deveriam ter sofrido algumas baixas pelos vestígios de sangue deixados nos percursos de fuga em direcção do Senegal. Mal recuperados do susto que tinham apanhado, tanto oficiais como sargentos e praças nem tinham vontade de falar no assunto.

Mas envergonhados também pelas reacções primárias a que se entregaram, quando ainda naquela manhã, prenderam um atónito gila que inocentemente tinha carregado na sua bicicleta, vários sacos de cartuchos vazios que fora apanhando pelo caminho que percorrera despreocupadamente (?). Logo ali o acusaram de espião e resolveram fazer justiça pelas próprias mãos. Enquanto o capitão e o resto dos oficiais e sargentos se fecharam na caserna, a turba uivando cada vez mais enfurecida, arrastou o pobre desgraçado para o meio da parada e no meio de insultos e pancadaria acabou de matar o pobre do gila, regando-o em seguida com gasolina e chegando-lhe fogo.

E até me mostraram fotografias, que acabaram por depois fazer desaparecer, cientes da barbaridade cometida.

Ainda cheguei a tentar falar com o capitão sobre o acontecimento. Mas apenas me respondeu com um silencioso encolher de ombros revelador de uma total incapacidade de impedir o linchamento. E se calhar até de algum tácito consentimento para serenar os ânimos.

Mas só na antiga Roma é que os cruéis imperadores proporcionavam ao povo espectáculos de morte, para o poder controlar a seu bel-prazer!

Teria acontecido aqui o mesmo?

Porém, com o passar do tempo tudo foi esmorecendo e caiu no esquecimento.

Mas, o gila teria deixado família? Mulher, filhos, outros parentes? Qual teria sido a raiva e a dor deles? Como teriam encarado o futuro?

A guerra não foi só recheada de heroísmos, ou uma alegre perseguição das bajudas lavadeiras apanhadas desprevenidas no regresso da bolanha, ou uma imprevidente saída para o mato na escuridão de uma noite tenebrosa.

A guerra foi também um longo rosário de pesadelos que nos marcou profundamente, mas que teimamos em não valorizar também.

Recolhi a Paúnca logo que pude, para tentar esquecer.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5340: Blogpoesia (59): Guiné: A Face Oculta (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5277: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (12): O Furriel Emanuel

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5340: Blogpoesia (59): Guiné: A Face Oculta (Carlos Geraldes)

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 22 de Novembro de 2009:

Boa noite, amigos

Peço desculpa pela desfaçatez, mas também eu escrevi "poemas" em noites de maior solidão. Reuni aqui alguns que me parecem retratar melhor os sentimentos despertados pelas noites africanas.
Curiosamente tinha-lhes dado um título, "Guiné: A Face Oculta", mas era a minha face que, sentia e queria manter oculta. Nada tem a ver com essa escandaleira que nos dia de hoje está a vir a lume em todos os meios de comunicação.
À laia de prefácio escrevi também um texto explicatico "Como tudo aconteceu... " que deveria anteceder todos os pretensos poemas.

Aqui ficam para quem quiser dar-se ao trabalho de os ler e interpretar.
Fico a aguardar os vossos comentários se for caso disso.

Um abraço do
Carlos A. Geraldes


Como tudo aconteceu...

Na manhã do dia 08 de Maio de 1964, embarcaram no paquete "Uíge" 1.160 militares com destino à Guiné-Bissau.
Iam incumbidos de uma missão de “soberania”, ou seja, acabar de vez com o avanço da insurreição armada naquela antiga colónia portuguesa.

Mais de uma centena eram oficiais e sargentos milicianos, vindos de todos os cantos de Portugal. Portuenses, lisboetas, minhotos, algarvios, açorianos e até um angolano. Só os cabos e os soldados é que eram na generalidade provenientes da região minhota.
A todos tinha sido ministrada uma intensiva instrução de combate anti-guerrilha, mesmo assim muito incompleta, à “portuguesa”, que “eles depois saberão desenrascar-se”, como disse alguém fumando elegantemente um bom charuto, enquanto se refastelava num sofá diante da lareira bem aquecida da Messe dos Oficiais de um quartel qualquer algures do Norte.

- E para onde é que vocês vão?, perguntava o façanhudo a um dos imberbes oficiais milicianos que nessa noite estava de serviço.

- Para Moçambique, para a Namaacha, respondeu o jovem alferes meio envergonhado.

- Ah! Estão cheios de sorte! porque se fossem para a Guiné. bem..., aí é pior que o Vietname, vocês sabem, não é? Vim de lá agora e sei bem o que digo.

- Pois é mesmo para lá que vamos!, - interrompeu um capitão, comandante da recém mobilizada Companhia, que tinha acabado de entrar, batendo com a porta atrás de si.

- O quê, meu capitão?, disseram várias vozes em uníssono.

– É isso mesmo, ouviu, nosso alferes? Hoje mesmo, ou amanhã o mais tardar, precisamos avisar todo o pessoal da Companhia da alteração das ordens. Recebi agora mesmo novas instruções do Q.G. Temos de estar prontos para embarcar para a Guiné daqui a dois dias. Parece que somos mais necessários lá. E ordens são ordens, que remédio, não é? Ah! E não se esqueça de telefonar ao alferes Meireles que foi a casa de licença. Não se esqueça, saímos depois de amanhã, num comboio especial que estará nas Devesas para nos levar até Stª Apolónia e depois, em viaturas, seguimos directos para o cais da Rocha do Conde de Óbidos. Mais alguma dúvida? Bem, vou para o meu quarto, boa noite! - e saiu por onde entrou, batendo novamente com a porta, o que provocou uma lufada de ar gelado que arrefeceu subitamente a sala, onde todos os presentes ficaram mudos e paralisados.

- Bom, paciência, foi mesmo azar... que se há-de fazer?, tartamudeava o façanhudo fanfarrão, agora fazendo-se de compreensivo para consolar o aturdido alferes, que já não sabia se havia de dar um pontapé no cachorro do comandante anichado diante da lareira, se ordenar ao impedido que lhe trouxesse mais um whisky duplo.

Lá fora fazia uma verdadeira noite de inverno. Sem chuva, mas com um vento seco gelado anunciando neve de certeza.
No dia seguinte, o Meireles estava a fazer a barba muito descansado quando tocou o telefone.

- Como? O que estás para aí a dizer? Não pode ser!

E o que é que vou dizer ao alfaiate que ainda tem lá a farda n.º1 para acabar de fazer? – O quê? Está tudo tratado? Bom está bem, seja o que Deus quiser!.

E foi assim que aconteceu. Em menos de um Credo fui recambiado para a famigerada Guiné, que toda a gente, nos bastidores da guerra, considerava já um segundo Vietname, senão ainda pior.
O resto foi dois anos de medos, alegrias, desespero e revolta. Todos tentaram adaptar-se, escapar de todos os perigos e “passar” o tempo o melhor possível. Uns conseguiram-no melhor que outros.

Não sei se os mais instruídos, os “citadinos” tiveram mais dificuldades que os mais simples, os “camponeses”. Talvez até fosse ao contrário, mas as sequelas não foram muito evidentes para se poder tirar conclusões.
Porém no coração de todos guardou-se de certeza e foi crescendo sempre, cada vez maior, uma determinada “Face Oculta...”

Nas cartas e aerogramas que se enviavam para casa surgiam aqui e ali, palavras que denotavam uma certa crise psicológica inegável. Só o companheirismo, o instinto gregário, daquele grupo de soldados que se conglomerava sob o mesmo aquartelamento, sob o mesmo abrigo de troncos de palmeira, auxiliava a que se seguisse em frente, sem o rebentar de dramas emocionais mais graves.

Os longos serões, à volta de uma fogueira ou de um Petromax, libertaram sentimentos nostálgicos que noutras situações surpreenderiam o mais rude.
Daí o aparecimento destes poemas, chamemo-lhes assim.

Analisados sob um ponto de vista médico psiquiátrico, serão detectados, com certeza, os claros sintomas da depressão, da auto punição, da eterna inquirição das causas e dos efeitos. Mas são mais um testemunho da guerra colonial, na Guiné, da década de 60, no século XX.

Carlos Geraldes, 2005


Face Oculta

Às vezes acontece que

Às vezes acontece que me lembro de coisas
Que fiz há muito tempo,
Como quando acendi um cigarro
Pela primeira vez contra o vento.

(Outras vezes nem me consigo lembrar
Do simples nome de um parente...)
Nem para onde me leva o pensamento
Preso entre o Ser e o Nada.

Levanto-me e atiro à noite as preocupações verticais.
Queria ficar aqui a servir de abrigo às aves leves
Que viessem pousar ao toque de uma guitarra subtil.
... E acabaria o tempo...

Ficaria eu... Um jogo de xadrez...
Um filme parado...

(Sim, esse é o meu desejo!)


Bissau, 05 de Julho de 1964

***
Como um afogado

À noite atiro-me para cima da cama
Como um afogado que desdenha a frieza da água.

Enrodilho-me no meu desprezo pelo tempo
Pelas pequenas preocupações e
Por outras coisas que povoam o mundo.

Geralmente adormeço
Para depois acordar no dia seguinte
(sempre igual a tantos outros!)
Lavado e esquecido do passado,
Mas mal!


Bissau, Agosto de 1964

***
As altas vertentes

Para alcançar as altas vertentes
Do deserto da coragem,
Tenho de atravessar o ar frio
De uma noite de emboscada.

Abrir um rasgão na alma doente
De tantos dias fechada,
De tantos dias vazia,
Por morte tão brevemente negada.

Preciso beber a embriaguez da dor,
Ignorar a longa ausência de alguém.
Preciso não sei o quê,
Preciso não sei de quem...


Bissau, 13 de Setembro de 1964

***
A toalha branca

Pousada aos pés da cama
Está uma toalha branca,
Onde limpo o rosto após a jornada.

Dá-me calma, alento, vigor.
Mas hoje está para ali,
Inútil, enxovalhada.

Haverá alguém que diga:
Pronto, tudo acabou!
Já não há mais nada!

Será que é hoje? Amanhã?
Quem sabe?
Qual será o fim da derrocada?


Pirada, Abril de 1965

***
Soldados de Paúnca

Os soldados, deitados na caserna,
Silenciosamente inertes,
Vão remoendo na sombra,
As esperanças de iludir a morte

Outros, à volta de uma mesa,
Jogando cartas, apostam tudo,
Querem conquistar o mundo,
Sempre a rir, desprezando a sorte.

Mas hoje aqui é domingo!
(Como está bonito o palmeiral e a bolanha reluzente!)
Mas há sempre uma criança que chora...
Quando a chuva cai, assim de repente,

Passou ainda agora, mesmo agorinha,
Um velho de olhar profundo
Que apenas me disse: “- Bom dia!”
Ou quereria apenas dizer: “- Má Morte!”?


Paúnca, 10 de Julho de 1965

***
A noite da guerra

Soluços são paisagens
Que não vislumbro,
Amarguras que não sinto.

Há uma noite desfazendo-se em luz,
Risos e gritos por toda a parte,
Como ecos de uma guerra.

Hoje vi a primeira flor,
(Mas o jeep, indiferente, nem parou...)


Paúnca, Julho de 1965

***
Os meus amigos

Os meus amigos
São as lentas sombras da memória,
Que me visitam em dias de chuva.

São aqueles com quem respirámos
A alma, os tormentos e a glória,
Dos heróicos dias do passado.

São aqueles com quem chorámos
As tristezas e as breves alegrias,
Deste mundo inacabado.

(E também a melancolia das tardes frias...)

Os meus amigos (os mais queridos),
São as palavras e as cores
Que vão morrendo aqui e agora.

(Os meus amigos voltaram esta noite.).


Pirada, 24 de Agosto de 1965

***
O trovão

Para lá da noite,
Para lá do brilho de um olhar,
Há a raiva violenta do trovão.

Para o lado de cá, o que restou
Depois daquele persistente atraiçoar
Senão um vastíssimo mar de ilusão?

(...)
Se lá no fundo das matas,
Onde mora o medo sombrio,
Os homens levam agora as almas a enterrar!


Paúnca, 11 de Outubro de 1965

***
As regras

Se alguém quiser escrever
Do luar e das terras por onde passa...
Olhar-se no espelho e ver a Vida a cantar
Não entre em qualquer igreja, templo,
Ou santuário, para se arrebatar.

Porque registar o luar,
E as terras por onde passa,
Não necessita caneta
Nem talento para rimar.

Redigir do luar
E das terras longínquas,
(por onde às vezes ele passa...)
É coser a alma com o sal,
A raiva,
E o amigo que nos abraça!


Paúnca, 21 de Outubro de 1965

***
Noites de Paúnca

Depois vem a noite.
Plena de luzes brilhantes
Parecendo tão longe
Como sóis agonizantes.

Gritos horríveis, gritos de bichos
Rasgam o silêncio das trevas
Sem abalar a indiferença
Dos que adormecem nas casernas.

E as coisas cómicas,
E as coisas tristes,
Acabam por se misturar,
Ficando tudo mais indiferente.

Quando nasce o Sol, finalmente,
As coisas cómicas e as coisas tristes
Ficam novamente cómicas,
Ficam novamente tristes...


Paúnca, 21 de Outubro de 1965

(Já em Lisboa, em 1968, soube pelo Mário Soares que uma versão destes versos teria sido gravada numa placa de madeira e colocada na “parada” do quartel de Paúnca, pela guarnição que nos foi render)

***
Suspense

De súbito,
No silêncio das trevas,
Dilacerando a escuridão,
Apertamos as armas
Em vão...


Paúnca, 10 de Novembro de 1965

***
Tambor negro

O tambor negro é um poço
Rodando no espaço,
Num vaivém dengoso,
Embalado no regaço.

No silêncio da noite
É radar permanente,
Um som que nos enleia,
Uma vingança latente.

Por todas as flores decepadas
Em covas violadas...


Paúnca, 01 de Dezembro de 1965

***
O coração dos cobardes

Ah! Quando o frio da morte empalidece as faces,
E o remorso pelos sentimentos ultrajados,
Esmaga o sombrio coração dos cobardes.

Ah! Quando a solidão canta a triste mágoa,
Dói no ser, na existência ameaçada,
Dói nos mais longínquos recantos da alma torturada.


Paúnca, 03 de Dezembro de 1965

***
Quando voltar

Quando voltar,
Quero tocar violão
Sentado bem no fundo
Do meu cadeirão.

Quieto e devagarinho,
Soltarei os meus queixumes,
Os meus prantos,
As minhas juras de amor.


Paúnca, 03 de Dezembro de 1965

***
Os náufragos do Apocalipse

A música da noite esvoaça
Eterna sobre o nosso olhar atónito
De náufragos do Apocalipse.

Berros aflitos, gemidos,
Ladrar de cães, ganidos,
Adivinham a morte dos proscritos.


Paúnca, 03 de Dezembro de 1965

***
As marcas

Dentro de mim
Estão as marcas,
As rezas, e as trevas
De todos os mistérios do Mundo.


Paúnca, 07 de Janeiro de 1965

***
A patrulha

Alargam-se os caminhos da povoação
Já se distinguem as enormes mangueiras,
Ouve-se o rumor abafado do pilão,
O falso matraquear de armas traiçoeiras.

Perdida a prudência, exauridos,
Pelas crianças, caem vencidos.
Pois em troca de balas e tiros,
Recebem longos abraços e risos.

Agora, já é tarde,
Muito tarde para voltar,
Ninguém mais recorda o ódio,
A crueldade ignóbil de matar.

Lá longe, a caminho da bolanha,
Vai uma rapariguinha a cantar,
Lembra aos tristes soldados
As longas saudades do mar.


Paúnca, 16 de Janeiro de 1966

***
As tinas grandes da alegria

Nas recordações débeis que quase enlouquecem,
Surgem formas arredondadas que apetecem,
Cheiros, conversas e lágrimas que se esquecem.

Numa atmosfera de Olimpo e árvores meigas,
Corações radiantes e beijos breves,
Transbordam as tinas grandes da alegria.

Mas a noite volta e, com ela o terror,
A angústia, a raiva, e a esperança
De uma catástrofe há muito anunciada.


Paúnca, 20 de Janeiro de 1966

***
Cadáver que busca sepultura

Caminhando pela areia da estrada,
Sou aquele que agora aqui chegou
Com a arma ao ombro carregada.

Envelhecido, sem jeito,
Embora soldado poeta,
Sou um mercenário perfeito.

Mortal, de certeza também sou,
Um cadáver que busca sepultura,
Num silêncio lento de esquecer.


Paúnca, 29 de Janeiro de 1966

***
Oceano negro

É das sombras que sai o brilho húmido
Das flores e das lágrimas doloridas.
É junto ao portão dos gritos e das fúrias,
Que mora a melancolia das carícias perdidas.

Finalmente é aqui que me quedo,
Que me debruço e tombo
Num profundo oceano negro.


Paúnca, 29 de Janeiro de 1966

***
O Sol das rapariguinhas

Há o Sol nas varandas
E o riso das rapariguinhas.
Mas há sempre chuva
No fim das batalhas perdidas.

Quando cantam os corvos
Desço aquela encosta distante,
Enxovalhado pela fadiga
De um amigo que nos mente.


Paúnca, 27 de Março de 1966

***
Os olhos vagos

Os seres de olhos vagos choram
Num vão de escada inacabada,
Enquanto o músico, o doido e o político,
Vagueiam pelo mato de mão dada.

Quando premimos o gatilho,
A Lua já mergulhou no pantanal...


Paúnca, 28 de Março de 1966

***
O fim da noite

(Poderia falar das flores, do mar, mas que sei eu?)

Agora que o tempo congelou,
Nada abafa o som da longa noite,
Cheia como a Lua, um ventre de mãe.

Na estrada, pisada pelos camiões,
Ouvimos ainda o tam-tam magoado,
Da grande e misteriosa noite.

No mato por mil fogos devorado.
Nada é triste de esquecer.
Mas vi, além, um Sol derrubado,

Na longa, grande, eterna e misteriosa noite...


Bissau, Abril de 1966
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5277: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (12): O Furriel Emanuel

Vd. último poste da série de 21 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5309: Blogpoesia (58): Para os amigos e camaradas da Guiné que esta noite tiveram insónias (Luís Graça)

- Poste actualizado às 23h20 conforme instruções do autor dos textos.

domingo, 15 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5277: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (12): O Furriel Emanuel

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 13 de Novembro de 2009:

Boa noite, Carlos
Aqui vai mais um apontamento de ficção em modelo real.

Um abraço para ti, para todos os companheiros da Tabanca Grande e para quem mais se quiser juntar debaixo da árvore sagrada da nossa memória.

O Furriel Emanuel é um tributo ao soldado prudente, dócil, fiel cumpridor das ordens que recebe, exemplo de um ser superior que não sabe que o é e que nunca o vem a descobrir, vitima da cegueira de uma humanidade cada vez mais desumana.

Um abraço
Carlos A. Geraldes


O Furriel Emanuel

Era de origem timorense. Magro, de cara chupada e pele muito escura, cabelo preto de azeviche, parecia mais indiano que indonésio. Apesar de ter sido criado em Lisboa (viera para Portugal com os pais, ainda era bebé), parecia que tinha vivido sempre no sertão de Timor, como aquele menino criado por uma matilha de lobos que, mesmo depois de ter sido transportado para a civilização, todas as noites ia para a janela espreitar a lua, saudoso da companhia dos seus irmãos caninos.

Na escola do bairro onde os pais moravam, era xingado constantemente pelas outras crianças que lhe chamavam preto da Guiné. Ficava furioso e tentava explicar pela milésima vez que não era preto nem era da Guiné, mas sim de Dili numa ilha chamada Timor. Nesses momentos chegava até a sentir alguma dificuldade em expressar-se correctamente em português o que mais contribuía para o gáudio geral da pequenada. Talvez por isso nunca conseguiu formar-se, ter um emprego fixo, tornar-se um lisboeta de pleno direito como os outros. Era talvez o apelo da selva que vinha do seu ser mais profundo que lhe dificultava o completo entendimento da vida moderna. Certos costumes corriqueiros da nossa vida normal, como tomar uma aspirina para uma dor de cabeça, por exemplo, era para ele uma verdadeira aflição. Colocava-se em bicos de pés, com o corpo tenso, arqueado para trás, lembrando a posição de um faquir a querer engolir uma espada. Raras eram as vezes em que ele conseguia deglutir a pastilha com sucesso. Tossia e vomitava como um desgraçado.

E muitas outras coisas de que agora já não me lembro mas que eram uma marca insofismável das suas características tão especiais. Emanuel não parecia português, de Portugal.

Quando desembarcou na Guiné sentiu que, ali, estava mais perto das suas raízes. Sentiu-se como peixe na água. Enquanto os restantes camaradas se queixavam do calor húmido e dos malditos mosquitos, Emanuel ria-se com satisfação e ia tagarelar com as bajudas da tabanca onde era aceite com grande regozijo.

Outra coisa: o furriel Emanuel não conhecia a palavra não. De convívio alegre e matreiro, estava, no entanto, sempre pronto para fazer tudo o que lhe pedissem ou lhe ordenassem, mesmo que isso parecesse ser quase impossível. Era sempre o primeiro a aparecer equipado, armado e municiado, quando o destacavam para chefiar uma ronda, fazer uma patrulha ou integrar o Grupo de Combate a que pertencia para alguma operação mais prolongada. Sempre sem uma palavra de desagrado, contrariedade ou medo (que era outra palavra que não tinha sentido para ele). Nas operações mais difíceis e arrojadas, nunca se lhe ouviu um queixume, uma manifestação de cansaço ou desalento. Sempre pronto, fresco e desperto mesmo se estivesse sem dormir há mais de dois dias. De aspecto frágil era, no entanto, incansável, rijo e cheio de força. Até metia medo. Foi também por isso que se serviram dele como carne para canhão, sem qualquer constrangimento. Arrastaram-no para uma guerra sem sentido, que ele nem ousou questionar. Fizeram-no passar fome, e ele nem se apercebeu. Deram-lhe ordens para matar, e ele matou sem pestanejar. Usaram-no até ao extremo e, no fim, esqueceram-no e abandonaram-no ignominiosamente.

Quando um dia recebeu a trágica notícia da morte de toda a sua família num terrível desastre de viação, ficou imóvel, perplexo, e uma enorme tristeza começou por lhe toldar completamente o rosto. Pela primeira vez ficou de olhar perdido no vazio em que a sua vida se tinha transformado. Desde esse momento Emanuel pareceu morrer por dentro, vivia apenas como um autómato. Dos seus colegas e superiores nem uma palavra de conforto, nem uma mão no ombro. Como era diferente, um inadaptado, foi sempre um incompreendido, nunca tinha ganho grandes amizades. Apenas os soldados da secção, sentiam por ele uma espécie de compaixão, talvez por agora partilharem de mais perto um mesmo rosário de dor, mas nunca tiveram coragem de o confessar.

Quando regressámos à Metrópole, aos nossos aconchegantes cantinhos familiares, o furriel Emanuel não tinha para onde ir, não tinha família, não tinha amigos, não tinha ninguém a quem se pudesse agarrar, à deriva numa terra que nunca fora a dele. Nos primeiros tempos ainda o viram vagabundeando pela Baixa de Lisboa, dormindo aqui e ali em pensões baratas, comendo em tascas manhosas na companhia de chulos e prostitutas.

Parece que acabou por morrer na Alemanha, para onde tinha conseguido emigrar, não sei como nem quando, pobre e abandonado como sempre, numa noite gelada, sem nunca ter conseguido voltar à sua tão saudosa ilha natal.

Se calhar nunca chegou a ouvir falar desse tal acréscimo de pensão que queriam dar aos ex-combatentes da guerra do Ultramar! Não se preocupava em estar a par dessas coisas, não era isso que lhe iria resolver os problemas.

Viana do Castelo, Nov. 2009
Carlos A. G.
carlos.geraldes@live.com.pt

OBS:-Negritos da responsabilidade do autor do texto
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5253: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (11): A Enfermeira Josefina

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5253: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (11): A Enfermeira Josefina

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 10 de Novembro de 2009:

Caro amigo:
Volto novamente ao vosso convívio com mais um conto em que misturo realidade e ficção. Não digo que os factos terão ocorrido tal e qual são narrados, mas também não digo que não tenham ocorrido em parte. A pairar deixo uma capa de ironia e benevolência para amenizar um pouco o ambiente da nossa Tabanca, por vezes tão cru e sanguinolento.

Um grande abraço do
Carlos A. G.


A Enfermeira Josefina

Protegido do sol dentro da tasca do velho Paiva, comerciante ranhoso com quem, de vez em quando, metia conversa só para que ele não pensasse que eu tinha a mania da grandeza por causa dos galões de alferes que trazia nos ombros, reparei que pelo outro lado da rua passava alguém estranho, que não me parecia ter ainda visto por estas bandas.

- Quem é aquela tipa? - Falei, eu, para o lado sem deixar de fitar a estranha aparição.

- Quem, aquela gorda? Não conhece? É a enfermeira que veio do Gabu para trabalhar no Posto, com o Chefe Barbosa. Coitado, agora que já não pode com uma gata pelo rabo, como se costuma dizer, é que lhe aparece isto - casquinou o depravado do Paiva que em tudo metia patifarias e sexo.

- Mas porquê, aquilo dá?

- Ai, isso não sei, meu alferes, antigamente diziam que sim, agora não sei. Parece que o marido a deixou. Vive só com a mãe. Para falar verdade, já está um bocado fora de prazo não está? Agora é mais banhas que outra coisa. Mas com a carestia que por aí há…, não sei se me entende. Não é de desperdiçar, pois não? - riu-se o Paiva que também se julgava um tipo cheio de piada.

Acabei de beber o whisky, desencostei-me preguiçosamente do balcão e vim até à porta, apreciar a nova habitante da aldeia que sem se dar conta da curiosidade que despertava nos basbaques, continuou imperturbável a caminhada em direcção à parte de cima da aldeia. A curiosidade era impossível de refrear e, para me certificar melhor, resolvi ir perguntar a quem deveria estar mais ao corrente do que se passava: o M. Soares gerente de uma das quatro casas comerciais que para ali estavam desterradas sem se saber porquê e para quê, tão perdidas como agulhas em palheiro.

Atravessei a rua afugentando dois ou três cães que me impediam a passagem e entrei pela outra loja, toda pintada de vermelho e branco. M. Soares acabava de atender um velho gila seu conhecido que lhe tinha trazido notícias e molhos de folhas de tabaco para mascar, vindo do Senegal. Pelo tom do discurso do matreiro comerciante e pelo resignado sorriso do velho contrabandista, pareceu-me que mais uma vez o Soares acabava de fazer um habitual acto de caridade com que costumava alimentar a sua já enorme popularidade entre a população local.

Depois de arrumar a mercadoria que tinha acabado de comprar, virou-se para mim com um enorme jarro de vidro na mão, cheio de água com rodelas de limão e cubos de gelo, que pousou no balcão.

- Sirva-se nosso alferes. O Demba acabou agora mesmo de fazer limonada. É o melhor que há para acabar com este calor dos diabos! – e enquanto dizia isto, alinhou logo dois copos limpos na nossa frente.

- Obrigado, não digo que não, mas você já sabe da novidade? Parece que temos por aí gente nova. Uma tal enfermeira que veio do Gabu. Não a viu passar?

- Ah! A enfermeira Josefina? Sim, já é habitual aparecer por aqui. Dantes vinha mais vezes, agora é que a não via há muito tempo. Vinha mesmo a calhar, não? Cuidado! Aquilo é gente difícil, por qualquer coisa de nada arranja sarilhos. Manga deles!

- Não, não! - disse eu logo muito depressa. - Foi só por mera curiosidade. Mas, diga-me, a que propósito é que a Administração a mandaria agora para aqui? Será porque, com a chegada da tropa, agora que a aldeia já tem médico, não querem deixar de marcar presença também?

- Se calhar foi por isso mesmo, alferes. Bem pensado. Aquilo lá em baixo, no Gabu é uma seita de manhosos. Têm medo que vocês lhes tirem os fregueses - respondeu o Soares com uma ampla gargalhada que se espalhou até ao outro lado da praça. E embrenhou-se numa emaranhada explicação dos meandros da Administração Civil aos quais não consegui dar muita atenção, convencido como estava que, de agora em diante, o futuro daquela gente e daqueles lugares estava, irremediavelmente, entregue ao poder da tropa, das nossas armas. Nesta guerra a autoridade civil estava condenada a passar para segundo plano. Tinha perdido o poder por completo.

Mas para não nos esquecermos da realidade social e política em que estávamos inseridos, convinha, de vez em quando, procurar entender e estar a par do quotidiano local. Um pouco de bisbilhotice faz sempre bem. Além de servir de distracção ajuda de certo modo a manter a segurança.

Aqui, neste caso particular, ninguém sabia dizer, ao certo, o porquê de ela ter vindo aqui parar. Apenas se sabia que era cabo-verdiana, enfermeira auxiliar e parece que, divorciada de facto. De pele cor de café com leite, roliça, denunciando propensão para a obesidade, resultado de uma juventude já muito vivida, sabia, no entanto, rebolar as ancas com uma sensualidade tão natural que até fazia ferver, em banho-maria, o sangue dos homens sedentos de fêmeas há longo tempo.

Quando soube que havia uma nova força militar estacionada no quartel da tropa em Pirada, não demorou muito a conseguir ocupar o lugar vago no posto médico da povoação, tornando-se desde logo unha e carne com o alferes médico, insinuando-se com aquela vozinha suave, quase inaudível, sempre disponível para o auxiliar em tudo o que fosse necessário. Daniel, o nosso alferes médico, ficou radiante pois, além de ter agora uma maior ajuda, a presença de uma enfermeira no posto médico era essencial para atender com mais facilidade e segurança as mulheres e as crianças que constituíam a maioria dos pacientes.

Agora, isso quase lhe permitia pôr a funcionar em pleno o mísero consultório médico anexo ao Posto do Chefe Barbosa, ali no meio do mato profundo da Guiné, onde nunca chegavam os progressos da ciência, quanto mais os da medicina. Sentia-se um verdadeiro Dr. Schweitzer salvando os pobres indígenas das garras das doenças que os afligiam há séculos. Para a soldadesca então, era uma verdadeira bênção celestial, tão desprovidos andavam eles de visões femininas que até pareciam vir a dar em malucos, no meio de tanto fula, com aqueles costumes fundamentalistas que os árabes têm de esconderem constantemente as mulheres de qualquer olho cobiçoso vindo de fora do clã familiar.

Sempre que a Josefina passava diante do portão da caserna, os que por ali se encontravam, até se esqueciam do que estavam a fazer, deixando geralmente o colega a falar sozinho. Comiam-na, literalmente, com os olhos.

Mas ela não dava qualquer hipótese. Apenas falava ao furriel enfermeiro, num tom o mais profissional possível, sem lhe proporcionar grandes intimidades e, claro está, com o alferes médico. Com este, desfazia-se em sorrisos e atenções.

Por mais que os soldados pusessem a correr os mais escandalosos e escabrosos boatos sobre a conduta moral dela, ansiosos por uma escandaleira bem cabeluda, nunca chegaram a provar nada de palpável e as más-línguas foram obrigadas a meter a viola no saco.

Foi então que, num desses dias, sem mais nem menos, o Antunes, o furriel enfermeiro, aproveitando o ensejo de poder falar comigo a sós, veio dizer-me que a Josefina queria falar comigo. Eu que fosse ter à casa onde ela morava com a mãe, ao fim da tarde, rematou misteriosamente.

- Mas para quê? - Respondi intrigado.

- Meu alferes, parece que ela, amanhã, se vai embora e quer fazer uma festa de despedida. Convidou o doutor é claro, e a mim, porque lhe vou providenciar umas garrafas de cerveja e whisky da messe. Queria convidar também o alferes Carvalho, mas como ele foi para Bissau, por causa daqueles problemas com as gasolinas, lembrou-se de si, talvez, não sei… Venha que não se vai arrepender, de certeza. Até vai haver baile!

Um bocado a medo lá concordei, embora naturalmente desconfiado com o inesperado do convite. O que quereria de mim? Teria engraçado comigo? Sei lá!
Quando ao fim da tarde, depois de ter arranjado uma desculpa qualquer para não aparecer ao jantar na messe, dirigi-me à casa que o Antunes me tinha indicado, mesmo ao pé do poço, à entrada da tabanca. Era uma casa rectangular coberta de folhas de zinco que se diferenciava bem das outras, tradicionais, redondas e cobertas de colmo.

O alferes médico e o furriel Antunes já lá estavam em amena cavaqueira, bebericando whiskies e cervejas. Josefina assim que me viu, com um ar meio envergonhado, tratou logo de me arranjar uma ampla cadeira de encosto dizendo-me que estivesse à vontade, que não reparasse na modéstia da casa e outras banalidades mais ou menos em crioulo ou num português atrapalhado para se fazer entender melhor.

- Meu alferes, aqui a senhora enfermeira parece que nos preparou uma caldeirada de cabrito de estalo! - Começou logo por me elucidar o Antunes, no meio de alguns trejeitos maliciosos com a boca.

- O que quer beber, alferes Geraldes, vinho, cerveja ou whisky? - Acudia de lado a cabo-verdiana, inclinando-se oferecida sobre a mesa, posta com pratos, copos e talheres, demonstrando que, pelo menos, já sabia pronunciar o meu nome.

- Cerveja, cerveja! O que estiver mais fresco, claro - balbuciei procurando parecer o mais descontraído possível, como se aquela cena fosse mais um dos habituais acontecimentos do nosso dia-a-dia. Mas o que estava a acontecer? Isto seria mesmo verdade? Não estaríamos a viver uma cena de algum universo paralelo? Só nos filmes de Hollywood é que se viam coisas assim: …intrépidos aventureiros brancos esfalfados com a sede, a serem apaparicados por gentis donzelas nativas, todas derretidas, debaixo de um providencial alpendre decorado com flores exóticas, papagaios e candeeiros de luz mortiça a proporcionar um inesquecível ambiente de sonho e romance, ao som de um mavioso ukelélé, com um belo pôr-do-sol lá ao longe

Mas neste caso, os bravos aventureiros brancos eram apenas três soldaditos de um exército ferozmente dominador, apavorados com medo até da própria sombra e a donzela era uma anafada e sorridente mulata cor de café com leite que, com a aflição de ter tudo em ordem para agradar às visitas, se esfalfava correndo de um lado para o outro, balançando os fartos seios que se adivinhavam macios sob a bata branca do seu uniforme de enfermeira.

Lá fora a noite caíra de repente e nada se distinguia além da cerca do quintal. Mesmo sem querer comecei a indagar-me sobre o que, de facto, estaríamos a fazer ali. E até porque, pensando melhor, como nos ensinaram nos manuais da anti-guerrilha, afinal estávamos em território inimigo! Em plena noite escura, mais escura que alcatrão derretido, fora das instalações do quartel sem sequer termos trazido uma única arma! Se o inimigo quisesse, poderia acabar connosco, ali mesmo, num abrir e fechar de olhos. E ninguém ficaria a saber. Será que poderíamos confiar naquela mulher? Não estaríamos a ser observados? Não teríamos caído no meio em alguma armadilha?

Mas, enquanto me embrenhava nestas e noutras angustiantes conjecturas, já o médico tinha emborcado uma série de whiskys e galhofava eufórico com o furriel Antunes. Pela cabeça dele é claro que nada de suspeito se poderia passar, o que lhe interessava mesmo, era uma boa farra!

E o furriel alinhava descaradamente! O que poderia eu fazer? Ser um desmancha-prazeres? Não, isso também não! Por isso, desta vez, façamos por esquecer todas as regras, pensei. Mergulhemos de cabeça no abismo! Que se lixasse a segurança!

E assim a noite foi passando. A caldeirada de cabrito estava de facto esplêndida. Picante como mandava a lei gastronómica do país. As bebidas sucediam-se numa velocidade estonteante. As garrafas vazias já rebolavam pelo chão fugindo à decência e ao decoro. Josefina ria-se cada vez mais solta e descomprometida, aligeirando a roupa a pouco e pouco. O calor começava a ser demais…

Sem darmos por isso, quase de repente, estávamos todos bêbados, arrastando as palavras, sussurrando confidências que não se contam a mais ninguém a não ser aos mais íntimos amigos em momentos de grande entusiasmo, quando julgamos estar numa daquelas noites especiais. Daí a pouco já nem sabíamos conversar direito. Berrávamos, e cantávamos a plenos pulmões, alarmando a impávida vizinhança que, na tabanca, se mantinha num significativo silêncio.

Queríamos era gozar, experimentar até ao máximo todas as emoções há muito imaginadas e desejadas, alcançar o esquecimento total, adormecer profundamente para depois acordarmos livres de um pesadelo que nos mantinha como que enfeitiçados.

Foi então que surgiu aquela velha, a suposta mãe talvez, que até ali se tinha mantido escondida lá para dentro, na cozinha. Gritando qualquer coisa num dialecto esganiçado que não se entendia muito bem, começou a invectivar a filha para que nos mandasse embora, que acabássemos com aquela algazarra. E teimava, ralhando cada vez mais alto, abanando-a, puxando-lhe pelo braço para a fazer levantar. Josefina, sentada de pernas abertas numa cadeira, já nitidamente alcoolizada, continuava a encher copos de cerveja uns atrás dos outros sem lhe ligar importância. Mas perante a insistência da velha, que não dava mostras de desistir, levantou-se num repelão e, violentamente, enxotou a megera atirando-a lá para dentro, com dois berros malcriados. Depois virando-se para nós balbuciou com a voz já muito pastosa:

- Pronto, acaba tudo! Ir embora. Agora cá tem mais vianda, cá tem mais bibida! Vai dormir. Vai embora, vai! Nós fica, disculpa, nosso alfero, disculpa… - repetia misturando crioulo e português, enquanto se agarrava indecorosamente ao alferes médico.

Perante uma cena destas, só podíamos concluir que as coisas estavam mesmo a descarrilar. O melhor era dar o fora antes que se fizesse tarde de mais. Fiz sinal ao Antunes dando-lhe a entender que estava na “hora di bai”, na hora da partida.

Mas e o médico? Como de costume, o nosso homem, já não se podia aguentar de pé agarrando-se sem vergonha à anfitriã que, voltando sempre para junto dele, se desfazia em sorrisos e lânguidos olhares como uma qualquer adolescente apaixonada. Era bom de se ver que aquilo não iria ficar por ali. Nem sequer se aperceberam do que se estava a passar quando nós, muito sorrateiramente, começámos a sair à francesa. Batendo cobardemente em retirada, o Antunes e eu deixámos o doutor a curar, sozinho, mais uma das suas valentes carraspanas. A enfermeira que tratasse dele!

Na atrapalhação da saída, conseguimos ainda vislumbrar a Josefina a arrastar o nosso médico para dentro de um mosquiteiro montado numa tosca cama arrumada num dos cantos da sala. Abraçados e muito bêbados, caíram um por cima do outro, arrastando o mosquiteiro na confusão.

Cá fora na placidez total do Universo, terna era noite, como diria o poeta. Para lá do círculo de luz projectado pelo Petromax pendurado na parte de fora da casa, o mundo desaparecia tragado por um enorme manto de veludo negro. Tão negro que nem os nossos próprios pés conseguíamos vislumbrar. Era impossível que assim houvesse uma guerra, com os homens tacteando no escuro, procurando apenas a paz, o descanso e a tranquilidade. Como alegres participantes num jogo de cabra-cega, lá conseguimos chegar às nossas instalações e, num silêncio comprometido, despedimo-nos um do outro.

No dia seguinte, piscando os olhos perante a luz ofuscante do sol da manhã, não pude deixar de ser interpelado pelo M. Soares, o nosso vizinho que, nitidamente à minha espera, como uma verdadeira ave de rapina, não queria perder pitada de uma novidade ou hipotética escandaleira. Do outro lado da rua disparou logo à queima-roupa:

- Ó nosso alferes, então, ontem à noite, hein? Aquilo é que foi uma pândega! Tirou o dente de misérias, seu malandro!

- Quem, eu? Olhe que está enganado, não aconteceu nada, não! Hei! Não se ponha para aí a inventar coisas! Pergunte ao Antunes se não é verdade! -apressei-me a responder-lhe enquanto me escapulia para o quartel, procurando evitar, a todo o custo, mais perguntas sarcásticas. Mas nas minhas costas, a verdade e a ficção fundiam-se já numa onda enorme avançando em todas as direcções, como um furioso macaréu ao subir o rio da foz até à nascente. Não tardou, é claro que, a invencionice e a imaginação fértil de todos nós, originasse todos aqueles mitos e delirantes fantasias que saborosamente ficaram a ilustrar mais um episódio marcante da nossa passagem por estas paupérrimas terras africanas. As grandes façanhas nasceram sempre assim.

Da apaixonada Josefina não soube mais nada, nem nunca mais a vi. Quanto ao alferes médico, esse, continuou alegremente a embebedar-se sem se lembrar de nada.

Inesperadamente, na semana seguinte, fui destacado com o meu Grupo de Combate para Paúnca e por lá fiquei até ao fim da comissão.

Carlos Geraldes,
Viana do Castelo
Nov.2009

Pirada, AGO65 > Cap Barão da Cunha, Cap Tadeu, Alf Médico Duarte e Alf Mil Geraldes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5078: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (10): Como descobri o jogo do Ôri