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sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22712: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (78): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Outubro de 2021

Queridos amigos,
É num ambiente de perplexidade, e num lapso de dias, que Paulo Guilherme é novamente confrontado com manifestações de racismo, em proporções violentas. Demorará muitos anos a perceber qual o fermento daquele ódio escondido, de que ninguém ali fala, na Guiné a ferro e fogo, ouve as mensagens veementes do governador e comandante-chefe que diz que a Guiné é para os guinéus, aqui e acolá apercebe-se que há hostilidades contidas, sabe Deus a que custo. São dois episódios inesperados que aqui se narram, o segundo ficará atamancado até ao jovem oficial partir. Espera-se que tenha sido uma decisão assisada, a História veio alertar, aí por novembro de 1980, que o azeite não se mistura com a água, que há ressentimentos seculares que não se apagam só porque se encontrou um slogan de conveniência para usar como bandeira a unidade Guiné-Cabo Verde. A guerra de Paulo Guilherme está prestes a findar, ele regressará com esta inquietação, e persistiu em estudar o que escondia a cortina de silêncio a tanto rancor camuflado, até lhe descobrir a essência de agruras que demoram muito tempo a sarar.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (78): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo mon adoré, estou ansiosa que venhas, pairo num torvelinho de saudades, não me sai da mente a ideia de que tu vens trabalhar para Bruxelas, não sendo prejudicado no tempo de reforma e de modo algum lesado no montante dos teus rendimentos, compreendo perfeitamente a tua preocupação em ajudar os teus filhos, sobretudo aqueles dois que têm trabalho precário. Percebi ontem, na nossa longa conversação telefónica, que aguardas a marcação da entrevista com o dirigente da Confederação Europeia dos Sindicatos, muito surpreendida fiquei quando ele te anunciou que o acompanharás numa conferência internacional a realizar em Estocolmo sobre os desafios do sindicalismo na vida quotidiana no quadro do alargamento comunitário.

É neste ambiente de expetativa que ao contrário de Penélope vou rendilhando os últimos tempos da tua comissão. Estamos, pois, num dia de chuva diluviana, convidaste o engenheiro da TECNIL para um repasto na messe dos oficiais, o mesmo é dizer em Bambadinca. Até agora, já vão algumas semanas, são conversas rápidas, cumprimentos formais, hostilidade zero, são duas peças na construção de uma estrada que se vai revelar extremamente importante, será um piso alcatroado que unirá uma área significativa do Leste da Guiné, tu garantes a segurança e ele manifesta-se pela sua competência na persecução das obras, não há laivos de intimidade. Quando me enviaste os apontamentos rabiscados do teor da conversa havida enquanto comiam fora de horas um bife com ovo estrelado acompanhado por um bom Vinho do Dão, tudo parecia estar a correr bem, lá fora chovia que Deus dava, até comentaste que nos baixos de Bambadinca já devia estar tudo inundado, descobriram os dois que tinham frequentado os mesmos cineclubes, tertúlias afins e quando chegaram às leituras teceram comentários a diferentes livros que tinham lido, tudo numa atmosfera de aprazimento, o cenário da guerra ficara noutra latitude e longitude.

E pediste para os dois cafés e uísque, estavam ambos nitidamente estimulados por interesses comuns desde os escritores existencialistas, passando pelo teatro de Tennessee Williams, inevitavelmente o cinema de Louis Malle, Visconti, Fellini, David Lean. De supetão, o confrade engenheiro dá guinadas na conversa e pergunta-te com um total descaro se tu tens consciência de que a guerra ainda não foi ganha devido a um conjunto de interesses que lesam a Pátria. Ficaste aturdido, parecias ter recebido uma picada que te impedia o raciocínio, mas lá voltaste ao diálogo lembrando que por uso e costume os militares não apreciavam com os civis os temas da guerra, daí não poderes responder. Ele continua a espicaçar-te, que tivesses à vontade, não havia ali ninguém com o ouvido à escuta, o tom de voz dele acalorava-se, o olhar era penetrante e então, de modo perentório, deu-te a saber que existia uma solução militar para acabar rapidamente com o conflito, os guerrilheiros apercebiam-se da nossa indecisão e carregavam com mais força. Foi a tua vez de redigires, recordando àquele senhor que não medias meças com aqueles que procuravam combater, os teus soldados guineenses eram inequivocamente valorosos. O senhor engenheiro perdeu as estribeiras, os portugueses brancos e estes pretos incapazes da Guiné não tinham fibra, o terrorismo alimenta-se dessa incapacidade, essa falta de vontade para vencer. Procuraste pôr termo à conversa, ele continuou a perorar, e é nisto que te atirou com um argumento que parecia um ferro em brasa, bastavam seis companhias de cabo-verdianos e em escassos meses a peste seria erradicada.

Paulo, meu adorado amor, eu posso imaginar o que te custou escreveres este pedaço das tuas memórias, pedindo-me para pôr em letra de forma, sem tirar uma vírgula, o senhor engenheiro, quando lhe perguntaste como era possível um efetivo de seis companhias bater todo aquele território e afugentar para todo o sempre a guerrilha, ele parecia de cabeça perdida, gesticulava de pé que para todos aqueles guerrilheiros se tinha que adotar uma solução final, tudo morto, fosse qual fosse a idade, com lança-chamas, à granada, com faca de mato, regando com petróleo, ninguém ficaria para contar a história.

Tomei nota do que escreveste no fim do teu texto, estavas hirto, bailava-te no pensamento todos os outros momentos em que viras escancarado um racismo que te era incompreensível, demoraste muitos anos a perceber que a presença cabo-verdiana agudizara o relacionamento, quem chegava vinha para mandar, vigiar e punir, eram parte firme da classe dirigente local, mandantes dos colonos que, regra geral, não possuíam saúde e até cultura como aquela gente do arquipélago. E também só muitos anos mais tarde é que te foi dado perceber como aquela unidade Guiné-Cabo Verde, sempre matraqueada pelo pai fundador do PAIGC, era pouco mais do que uma bola de sabão embora um excelente argumento para atrair cabo-verdianos revolucionários numa guerrilha onde havia bons combatentes, mas falta de quadros. Mas como tu dizes, ainda faltava um último teste, que chegou dias depois, quando, regressado de mais uma coluna ao Xitole, alguém avançou para ti em alvoroço, dizendo-te que tinhas no teu quarto o substituto, pois bem, mais sentado que deitado numa cama estava um jovem cabo-verdiano que te recebeu com um sorriso jovial, por sorte não revelaste o teu estonteamento, conversaram amenamente, pediste licença para te banhar e mudar de roupa, e depois iriam dar uma volta para se conhecerem melhor. É neste entretanto que um dos teus soldados apareceu esbaforido a dizer que o pelotão exigia um encontro urgente com o nosso alfero, era assunto muito sério que não podia ser postergado, enquanto lavavas o corpo ias deitando contas à vida dos graúdos problemas que se avizinhavam.

Como aconteceu, mudaste de farda, lá foste ao encontro dos teus homens, por detrás da escola encontraste gente furibunda, ouviste das boas, tinhas muita prosápia quando falavas no amor àquela terra e àquelas gentes e fazias-te agora substituir por um cabo-verdiano, em toda a Bambadinca já se sabia que tinha chegado mais um encarregado dos colonos brancos para lhes dar porrada, vai falar com o comandante, nem te passe pela cabeça que vais para a tua terra e ficamos entregues a alguém que sempre nos tratou a chicote.

Enquanto eu escrevia estas notas que tu alinhavaste, procurava entender o pesadelo que representava a chegada do teu substituto, como seria possível descalçar a bota. São estes os apontamentos que nestas noites de vigília, enquanto aguardo a chegada do homem mais amado do mundo que muito provavelmente vem tomar conta da minha vida na Rua do Eclipse, vou redigindo, mas sempre com a perceção que esta comissão que tiveste na Guiné se prolongou como um fogo adormecido. Vamos ver adiante se tenho ou não tenho razão. Bisous milles enquanto aguardo o telefonema a anunciar a tua chegada, Annette.

(continua)


Coluna auto deslocando-se de Bambadinca para o Xime, nas proximidades de Ponta Coli, imagem do blogue
Trabalhos de construção da estrada Xime-Bambadinca, com a sede do batalhão ao fundo, imagem do blogue
Imagem da messe dos oficiais em Bambadinca, ao tempo em que se deu o almoço mirabolante em que se começou na nostalgia das incursões culturais lisboetas e se acabou numa cena de ódio
A messe de Bambadinca depois da independência, imagem do blogue
O último jantar em Bambadinca, agosto de 1970
A LDG Alfange, nela se viajará até Bissau, a partir do Xime, ficou a mágoa da despedida a toda aquela fidelidade inquebrantável
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22689: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (77): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22689: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (77): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2021

Queridos amigos,
É um período de suspense, em breve um dirigente da Confederação Europeia dos Sindicatos fará uma proposta de trabalho a Paulo, Annette rejubila, já sonha que o seu amoroso saia da Rua do Eclipse todos os dias para tratar da vida mesmo com itinerâncias europeias, que é o timbre desta gente. Annette está em Amesterdão, já vigora o Tratado de Nice, a União Europeia parece caminhar a uma outra velocidade, no horizonte perfilam-se dez adesões. Com o sentido do dever, foi esta a promessa que deu a Paulo quando aceitou entrar num romance que também tinha uma história de guerra colonial, vai continuando a coligir os papéis, já fez contas aos meses que Paulo esteve na Guiné, aquela comissão deve estar para findar em breve. E então surge aquela história de ódio, parece-lhe tudo inacreditável, se é para meter no romance à força é algo que lhe parece abominável, com lisura e discrição irá perguntar a Paulo se as coisas se passaram exatamente assim. Talvez um pouco pior do que eu te contei, responderá ele, aquele ódio estava latente, e hoje não se manifesta abertamente, são dois povos que guardam o azedume e a virulência graças à providência da distância.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (77): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo adoré, cheguei ontem à noite a Amesterdão, conferência de peritos em História Europeia, juízes do Tribunal de Luxemburgo, professores universitários de Estudos Europeus, representantes políticos e outras sumidades que em grande recato e durante dois dias cheios vêm debater os desafios e as oportunidades do Tratado de Nice e tecer considerações sobre a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que foi aprovada na mesma data que este tratado. Muita chuva, um trabalho insano, couberam-me quatro línguas, está aqui gente de toda a Europa, incluindo do Espaço Económico Europeu, presentes observadores de dez países candidatos, é uma autêntica cacofonia, cada um tem direito em exprimir-se no seu próprio idioma. Com tempo tão severo, a despeito dos cocktails oferecidos a todas as delegações e às equipas de interpretação, vim cedo para este meu pequeno hotel, avancei um pouco mais com as notas do teu romance e tenho várias interrogações a pôr-te. Como me disseste no último telefonema que gostavas muito que eu visitasse o Rijksmuseum, a nossa conferência é mesmo ali ao lado, aproveitei a hora do almoço, houve sempre durante os dois dias quase duas horas para almoçar, procurei satisfazer o teu pedido e contemplei com grande satisfação o conjunto de obras sobre as quais tu emitiste uma opinião, são quadros que te emocionam muito e eu procurei partilhar dos teus sentimentos, vou enviar-te imagens com pequenos comentários, de um modo geral coincidentes com os teus.

Recebi os teus papéis avulsos a que tu denominas os preparativos da operação Beringela Doce, encontrei alguma analogia na meticulosidade que tu pões nas tuas diligências com os preparativos da operação Rinoceronte Temível: a discrição das conversas com os teus camaradas responsáveis pelas viaturas e pelas transmissões; o teres forjado uma convocatória inócua para reunir nos Nhabijões com os comandantes das milícias de Amedalai, Taibatá e Demba Taco, a todos lembraste que a fuga de informação custaria caro, os guerrilheiros, se adivinhassem o itinerário, ficariam em condições de preparar ciladas mortíferas; o teres angariado munições, equipamentos, e dinheiro para carregadores em conversas havidas na via pública com o responsável, como se estivesses a falar de banalidades; o teres convocado o picador do Xime, Seco Indjai, que seria o vosso guia, mandando-lhe a informação de que precisavas da colaboração dele em Amedalai para descobrirem todos os recantos possíveis onde se escondiam as canoas da população afeta à guerrilha; e o verdadeiro espetáculo da deslocação até ao Xime já contou do dispositivo militar, para gerar a ideia de que a operação será no Poidom ou na Ponta do Inglês, ora o que tu foste lá fazer foi discutir com os artilheiros um plano de fogo. Vou inserir toda esta documentação no lugar certo, correspondente à operação Beringela Doce.

Já tenho todos os teus esclarecimentos sobre as obras do porto do Xime, que ficara pronto em novembro do ano anterior, li com a devida atenção as cartas que mandaste para Teixeira da Mota e Ruy Cinatti, achei imensa graça ao pedido feito por Teixeira da Mota sobre uma pesquisa a sonôs, os cetros reais dos Beafadas, e como ele faz a descrição: ferros com mais de metro e vinte de altura, com braços laterais, que terminam habitualmente em pequenas figuras de bronze, quase sempre representando figuras humanas, são sempre símbolos de realeza, tu bem inquiriste toda a gente, ninguém sabia da existência de sonôs.

Tomei igualmente nota de um apontamento teu retirado de um livro que a professora primária de Bambadinca te emprestou, tem a ver com uma citação de um antigo governador da Guiné, Carlos Pereira, cujo nome ficou ligado ao derrube dos muros que protegiam Bissau, na década de 1910: “No regulado do Cuor, situado na margem direita do Geba, defronte de Bambadinca, habitavam até 1908, Beafadas cujo chefe era Infali Soncó, que nesse ano foi destituído. Após a sua destituição, os Beafadas abandonaram o Cuor, indo uns para o Oio e outros para Quínara. O governador dessa época investiu como régulo do Cuor Abdul Indjai. Era Serua, portanto de colónia francesa, vinha de um grupo étnico diferente, não pôde conseguir povoar o Cuor com gente do seu grupo étnico. E como o território é pobre, foi abandonado por Abdul e ocupado imediatamente pelos Oincas”. Acho que faltam informações complementares sobre a presença deste grupo étnico, traria um melhor esclarecimento ao leitor.

Meu adorado amor, bem procuro entender as razões desse ódio ou de permanente suspeita que os guineenses dedicam aos cabo-verdianos. Lembro-me de várias histórias anteriores que tu contaste, logo aquele encontro no que tu chamas a Tasca do Zé Maria com o chefe de posto de Bambadinca que te pediu para que, sempre que houvesse castigos aos teus soldados, os remetesses para ele, seriam zurzidos com um chicote de pele de hipopótamo, que tu apuraste ser uma bestialidade, arrancava facilmente a pele às primeiras chicotadas; o comportamento dos seus soldados quando se feriu o Paulo Ribeiro Semedo, aquela frase que jamais esqueceste “não pego em cabo-verdianos”; e agora o calafrio que sentiste na conversa havida com um engenheiro da TECNIL em dia de almoço inusitado na messe de oficiais de Bambadinca, devo dizer-te que a leitura do teu texto me deixou arrepiada.

Começas por sublinhar a época das chuvas, como ela muda a natureza, os solos alagados, todos aqueles cursos de água transformam o piso que a TECNIL quer macadamizar em toalhas de lama, escorre água no solo, nos rios, pelas ribeiras, bolanhas, estradões, picadas, é uma desolação. No dia em que ocorreu esta terrível conversa, a pedido de Fodé Dahaba, foste tirar fotografias à sua noiva da tabanca de Bambadinca, manhã cedinho, ainda com muitos cinzentos no céu, eram fotografias que iriam para Lisboa para alegrar aquele noivo a adaptar-se à sua prótese. E segues prontamente para junto dos teus homens, estão entre Ponta Coli e Amedalai. Viajaste numa aberta de chuva, parece que o dia se vai recompor, até há sinais de quentura na manhã, no meio daquele macadame espezinhado as máquinas resfolegam, é uma azáfama contínua, tudo indiciava que seria um dia de trabalho ameno. “Mas não, deu-se uma travessura no tempo, quando todos se preparavam para mordiscar o que traziam no bornal, o tempo imprevistamente arrefeceu e foi-me dado observar algo que eu já vivera em pleno Cuor, o céu chumbou-se, o ar esfriou, estoirou um relâmpago, parecia iluminação de teatro ou aquelas cenas de filme que se chamam a noite americana, e depois desabou um dilúvio, não enganava ninguém, era chuva espessa, o saibros tornou-se escorregadio, houve mesmo quem se estatelasse enfiando o armamento dentro da lama, eu estava confuso, tinha pensado que íamos viver um tornado com aquela semiescuridão, a chuva não abrandava, nisto o engenheiro dirigiu-me a palavra, as obras não podiam continuar, íamos levar toda a maquinaria para Amedalai. Prontamente disse que sim, e fomos cavaqueando pelo caminho, e soltou-se-me o convite, se o senhor engenheiro está de acordo, hoje não se come do bornal, permita-me que o convide para a messe de Bambadinca, alguma coisa se há de arranjar, tomamos um duche para tirar este lamaçal, há de se arranjar roupa seca, olhe, se o tempo não se compõe vamos ficar ali abrigados, já basta andarmos aqui todos os dias sem tempo para dar dois dedos de conversa, é uma ocasião propícia para pôr a escrita em dia”. E assim foi. Chegaram a Bambadinca, encomendaste uns bifes e uns ovos, houve higiene e mudança de roupa, tudo respirava amenidade. Não te passava pela cabeça uma conversa infernal que te deixou sem pinga de sangue.

Meu adorado, também chove horrivelmente lá fora e estou ensonada, prometo dar notícias ou daqui de Amesterdão ou da tua miraculosa Rua do Eclipse. Como te disse pus notas nas fotografias, tem a ver com o meu gosto, espero que os meus comentários às mesmas não te desagradem. Foi de propósito, repito, foi mesmo de propósito, que não falei da tua próxima viagem a Bruxelas para ouvires as propostas de Gottfried Scholtak. Será que a minha vida se encherá da plena alegria de te ter sempre a meu lado? Como tu costumas dizer, faço figas, bisous milles, j’insiste, milles et plus milles, Annette.

(continua)


Ruy Cinatti, retrato pintado por Maluda
A Ronda da Noite, por Rembrandt, porventura o quadro mais célebre do Rijksmuseum de Amesterdão

Nota: Título mais inexato para um quadro não pode existir: estamos em pleno dia, todo aquele grupo nada tem a ver com uma operação de vigilância militar. Foi ao limpar-se a tela, em 1946, em que se fez desaparecer uma camada de verniz escurecido que apareceu uma luz radiosa, sempre o contraste entre o claro e o escuro, parece uma cena de teatro em que os personagens se prestam ao papel de uma evacuação militar. Não falta um cão e crianças, a menina que vemos ao lado de um presumível arcabuzeiro leva uma galinha à ilharga. Se é facto que a primeira impressão é de que estamos perante uma milícia que procede a uma ronda, a observação atenta leva-nos à convicção de que toda aquela gente está a pousar para um quadro como poderia pousar para uma fotografia, Rembrandt exige-nos um olhar ainda mais atento às duas figuras centrais, banhadas pela luz.

Lamento de Jeremias pela Destruição de Jerusalém, por Rembrandt

Nota: Todo aquele rosto está marcado por uma infinita tristeza. O profeta refugiou-se numa gruta solitária, limita-se a ver à distância quem combate, Jerusalém incendiada e muita gente em fuga. Pôde salvar um vaso em ouro do Templo e os textos sagrados. Rembrandt deslumbra-nos pelos seus banhos de luz, há as sombras e a obscuridade e o que fica na luminosidade é o espelho da desgraça, a postura de pesar, as linhas perfeitas da indumentária, um pé descalço perfeitamente delineado e as riquezas do Templo. É no contraste entre o claro e o escuro que temos o dramatismo para a aflição do profeta. Anotei que é a tua segunda preferência, depois da Ronda da Noite.

Retrato de Tito, o filho de Rembrandt, pelo pintor

Nota: Li numa publicação que o único filho de Rembrandt jamais foi monge, vestiu o hábito monástico exclusivamente para a pintura, o genial pintor seguramente que queria um quadro que assegurasse a polarização do olhar do espetador naquele rosto: há como que um holofote que destaca a palidez do rosto, bem enquadrado pelo capuz do hábito religioso. É um jovem melancólico, entregue à meditação. Porventura o pai pretendia que observássemos o filho com uma concentração total, este retrato parece soltar uma doçura amena e temos uma segunda leitura sobre a excecional paleta de Rembrandt que nos dá um vestuário em castanho-quente, como se enfatizasse a intimidade que é devida ao amor de um pai pelo filho, neste elo pictórico.

Lendo a carta, por Vermeer

Nota: Vermeer conquista prontamente a nossa adesão pela forma com que nos obriga a entrar nos conteúdos dos espaços iluminados, neste caso o pretexto é a leitura de uma carta, jamais saberemos se a mesma é uma manifestação amorosa, informação de negócios ou recados de família. Está tudo polarizado na figura central e há um cuidado muito subtil nos tons azulados que se atravessam. O importante é que o espetador fique agarrado à genialidade da forma e procure interpretar o enigma daquele conteúdo, o que encerra a carta.

O bebedor feliz, por Frans Hals

Nota de Annette: é uma pasta de óleo quase transparente, todo o seu semblante e encenação corporal irradiam a felicidade a que corresponde o título. Surpreende as cores claras, ele que é useiro e vezeiro nos tons enegrecidos. É um retrato muito comunicativo, parece que quer brindar connosco, já deve estar um pouco alegrete, a termos em conta as cores das maçãs do rosto. O único senão que eu posso apontar é aquela sua mão direita levantada, parece-me um tanto artificiosa. O rendilhado da gola impressiona-me muito, e como tu observaste não há uma crítica a pôr a toda a indumentária.

O Charlatão, por Jan Steen

Nota: O charlatão operou um camponês, extraiu-lhe um tumor, a razão de muito sofrimento. Mas aqui reside uma das genialidades de Steen, fazer sobressair o grotesco, a imagem da crendice, há algo de Bruegel na organização da massa humana, o homem que vem no carrinho tem a aparência de bem bebido, é toda esta cenografia com o povoado ao fundo, aquela mesa à direita onde constam os instrumentos pseudocirúrgicos que definem uma atmosfera flamenga de beatitude, de crendice e até de uma enorme alegria de viver.
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Nota do editor

Último poste da série de29 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22669: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (76): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22669: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (76): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2021

Queridos amigos,
Estamos no pico da época das chuvas, há muitas entradas e saídas no pelotão de Paulo, parte gente muito amiga, irá ficar uma saudade irreprimível, curiosamente algumas dessas relações terão futuro. Depois de uma vida nómada, é distribuída uma tarefa de responsabilidade mas num quadro de mais acalmia, há que garantir a segurança de quem anda a pôr macadame e tapetes de alcatrão numa estrada que ficará conhecida como a de Xime-Bambadinca. Primeiro desmatou-se, e muito, para dissuadir emboscadas em pontos que outrora deixaram recordações sinistras, como Ponta Coli. O único senão são as tremendas chuvadas, e é numa dessas situações que lembravam o dilúvio universal que Paulo vai conhecer uma dimensão do ódio da boca de um homem civilizado, ouvirá um discurso alucinante que descreveu a Annette com o pedido de o registar por inteiro, era um ódio que depois se soltou na vida da Guiné e em Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (76): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adorable Annette, fiquei estonteado com o telefonema do dirigente da Confederação Europeia dos Sindicatos e do seu convite para vir dirigir o departamento dos consumidores. Ao que consta, o meu trabalho voluntário tem sido muito apreciado, a atual dirigente, a italiana Rossana Vittorini regressa a Itália para funções no seu sindicato nacional, devo ir a Bruxelas dentro de uma a duas semanas para conhecer a proposta da confederação, fiquei de orelha arrebitada quando me perguntaram se eu podia meter licença e fazer um contrato até cinco anos. Não embandeiremos em arco, mas, meu amor adorado, vislumbra-se a possibilidade de nos juntarmos. Quando ontem à noite te telefonei senti perfeitamente o eco da tua legítima alegria e comunguei com o choro que se seguiu. Vamos fazer figas e, entretanto, avancemos para o que ainda falta desta comissão. Imagina tu que a mexer nestes últimos papéis encontrei esboços dos preparativos da Operação Beringela Doce de que já falámos, caso tu consideres útil, poderás utilizar estas folhas.

Então, deixa-me ainda falar das saudades que eu sentia naquele tempo. Apareceu Cherno Suane, estava a recuperar do seu duplo traumatismo craniano, tudo tinha a ver com a minha anticarro de Canturé, de outubro de 1969. Foi uma alegria abraçá-lo, deram-no como capaz para o serviço, mas eu sinto que se instalou uma limitação na sua vida, fala mais lentamente e não tem a afoiteza que lhe conheci no andar. Vamos ver. Como recordarás, foi este querido amigo que te apresentei nas férias de verão, fomos visitá-lo no local onde trabalha, no Largo de São Paulo, veio depois jantar connosco. Fiquei com uma enorme gratidão com o Teixeira das transmissões, colaborador impecável, revelou-se incansável na reconstrução de Missirá, nunca recusou andar com aquele rádio monstruoso às costas nas operações. E partiu igualmente o Barbosa, era conhecido pelo Boina Verde, era o seu verdadeiro fetiche. E contei-te também que depois de termos feito uma operação de que resultou uma emboscada com sucesso, já teríamos retirado pelo menos uns dez quilómetros, caminhávamos em direção a Missirá e ele veio dizer-me que tinha que voltar nem que fosse sozinho àquele local, dera agora pela falta da boina, lembrava-se que a tinha posto no chão ao lado onde estava deitado, foi o cabo dos trabalhos convencê-lo que não nos podia obrigar a tal violência, comprometi-me a que voltaríamos no dia seguinte, foi nova operação, temíamos encontrar um grupo do PAIGC naquele local, felizmente nada aconteceu e ele recuperou a boina. E reapareceu também Albino Amadú Baldé, a quem eu ternamente chamava o Príncipe Samba, mantinha a pose de um aristocrata, olha bem para esta fotografia que te envio, a pose natural de alguém que tem linhagem nobre. Fiquei magoado com a decisão de o passar à disponibilidade, ele que teve fraturas e ficou diminuído pela mina anticarro, em Bambadinca entendeu-se que ele podia ficar em regime de colaboração mas sem vínculo nem direito a reforma ou a qualquer tipo de pensão, bem procurei dialogar com os novos senhores do mando em Bambadinca, o Albino está presentemente a dar aulas, mas acho uma tremenda injustiça esta marginalização, ele foi efetivamente o comandante da milícia de Missirá, valoroso e de uma fidelidade sem mágoa. Irei visitá-lo anos depois e sabe Deus o que me custou ouvi-lo dizer que vivia numa discreta miséria, estendia-me a mão a pedir ajuda.

E começou o meu mês de julho, a minha incumbência é a de montar segurança permanentemente não só à equipa da TECNIL como aos trabalhadores que acompanham o alcatroamento da estrada, estamos na fase de trabalhos já depois do Xime e em direção a Amedalai, qualquer coisa entre 8 a 9 quilómetros separam estes dois locais onde decorrem os trabalhos. Junto ao Xime já se alcatroou, desmatou-se tudo à volta até um local que no passado deixou sinistras lembranças, Ponta Coli. A maquinaria é pesada e por isso é obrigatório todos os dias recolher a um porto seguro, decidiu-se que fica toda instalada em Amedalai ao fim da tarde, e com o despontar do dia daqui se parte quer para aprontar o macadame quer para atapetar com alcatrão. Uma parte da equipa do TECNIL parte ao amanhecer do destacamento do Xime, o grosso dos trabalhadores permanece em Amedalai, é daqui que eu e cerca de 20 homens (não mais, estamos em plena época das chuvas, há muita gente a sofrer de malária) os acompanhamos, montamos segurança em áreas desmatadas, tudo com os primeiros alvores do dia, sempre da mesma maneira: na primeira linha um grupo de cinco picadores, depois dois Unimog pejados de trabalhadores, seguem-se as máquinas, das mais potentes às mais ligeiras, nós seguimos os flancos, aqui começa a nossa vigilância de águia.

Nunca te esqueças que a época das chuvas nos reserva a mais completa incerteza, o amanhecer tem sempre alguma neblina, às vezes há uma chuva intensa e depois o dia aquece sufocando-nos as gargantas e as narinas, é quase sempre um tempo de estufa, e por ali andamos como suor a empapar-nos a farda. Às vezes os imprevistos do tempo obrigam a paragens, os trabalhadores estão a lançar o cascalho, cai aquela água toda dos céus, e toda aquela pedra britada escorre para as bermas, dá o seu trabalho ir buscá-la para a fixar na futura estrada. Por ali andamos a patrulhar, só posso falar por estes primeiros dias, não há flagelações, não encontramos indícios da presença de guerrilheiros, na verdade desmatou-se em profundidade em ambos os lados, não nos interessa o que andam as máquinas a fazer nem nos apegamos à barulheira dos trabalhadores, o que nos interessa é detetar a presença guerrilheira e neutralizá-la, nada mais.

Cada um leva a comida no bornal, não há tempo para folgar à mesa, e quem vigia não deve perder-se em cavaqueiras com quem trabalha, mesmo no período da manja. A exceção que abro é quando aparece o responsável pelas obras, um engenheiro que deve ser cabo-verdiano, é de trato afável, um homem que deve estar próximo dos 35 anos, pelo que me é dado ver impõe-se pela sua competência, nada de gritarias nem de insultos, desloca-se entre os grupos que trabalham, dá ordens, presta esclarecimentos aos capatazes, para para retificar, vê-se a olho nu que é respeitado. E assim passam os dias, aproximadamente quando se aproxima o lusco-fusco já estamos todos em Amedalai, temos nessa altura a garantia de que a estrada está picada até à ponte de Undunduma, e assim se chega a Bambadinca e temos quase metade do dia por nossa conta. De vez em quando há exceções, havia uma semana de idas e vindas ao alcatroamento da estrada quando recebemos indicação para seguir para Mansambo dois dias, os de lá partiam para uma operação, competia-nos dar segurança a quem ali ficava. Tudo correu bem e voltámos à rotina de Amedalai. E veio um capricho dessa época das chuvas que me vai arrastar para um episódio que ainda hoje me faz pensar no ódio que vive dentro dos homens, bem camuflado até que chega a circunstância de um desabafo. É o que eu te vou contar a seguir, e permite-me, minha doce Annette, é suficientemente impressivo para constar do nosso romance.

Tive hoje um dia estranho em casa, imagina tu que olhei as coisas com uma certa distância, como se já tivesse a criar o sentimento de que vou viver para Bruxelas. Bom, há que controlar os sonhos para não haver os amargores da deceção. Tenho agora uns dias de muito trabalho com as aulas em Santarém e na Caparica, mas não deixarei de telefonar. Bisous, mas também besinhos para a mulher mais formosa da Bélgica e arredores, ton amoureux, Paulo.

(continua)


Uma vista da tabanca de Amedalai, fotografia de 1997, tirada pelo meu estimado amigo Humberto Reis, seguramente que aqui houve estabelecimento comercial, sabe-se lá se de mancarra ou de venda a retalho
Desculpa as cartas brutais que por vezes te mando (inclui excerto de aerograma de Mário Beja Santos), aguarela de Manuel Botelho
Quando visitei o meu inesquecível Albino Amadú Baldé, há uns bons anos
Cherno Suane, o guarda-costas e o irmão
Entre grandes amigos, Bissau, outubro de 1969, Barbosa, o da Boina Verde, é o primeiro à esquerda, o Teixeira está ao meu lado
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22652: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (75): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22652: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (75): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 202

Queridos amigos,
Paulo responde a um pedido de esclarecimento de Annette, ela não sabe em rigor o que é o fenómeno do macaréu, e interroga também o estado de espírito de Paulo numa fase em que a comissão militar pode acabar a qualquer momento, ela sente uma profunda melancolia, há muita gente a partir e que o acompanhou ao longo destes quase dois anos, vive-se naquela permanente estafa de patrulhas de reconhecimento, colunas ao Xitole, visitas às tabancas em autodefesa, vigilância no novo ordenamento dos Nhabijões, atividades operacionais avulsas, é nisto que o major de operações do novo batalhão o previne que ele e os seus homens, mesmo adoentados, vão garantir a segurança a quem trabalha no alcatroamento da estrada entre Xime e Bambadinca, uma vigilância que consome doze horas consecutivas. E como lhes disse o novo major de operações, chegado ao fim de julho, logo se verá, se não receber informação sobre o fim da comissão irá para um destacamento, nessa altura toma-se a decisão de qual.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (75): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Boa noite, minha estrela da manhã. Julgo importante tecer alguns comentários aos elementos que te enviei relativamente ao período sobrante de junho e dar-te uma panorâmica das minhas atividades no mês de julho, como te referi no início de agosto recebo o guia de marcha para Bissau, onde fico a aguardar transporte, virei no navio Carvalho Araújo que atracará na mesma doca de onde parti em 24 de julho de 1968. E tentarei dar algumas respostas a questões que tu me pões. Sentes-te intrigada com o fenómeno do macaréu, que é bastante raro e circunscrito a um conjunto de rios em todo o mundo. Curiosamente, na minha última passagem por Bissau, por razões do julgamento de Quebá Sissé, estive no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, sabes bem que tinha sempre um caderninho no bolso, bem repimpado numa cadeira destas instalações dei comigo a ler uma conferência que foi proferida na Sociedade de Geografia de Lisboa em maio de 1946, na sessão solene comemorativa do V Centenário do Descobrimento da Guiné. O autor, de nome Marques Mano, logo me encantou pela embriaguez das suas sonoridades a descrever o macaréu, é brilhante na movimentação, prende-nos do princípio ao fim, gostei tanto que tomei nota de tudo, transcrevo o que tanto me deslumbrou e continua a deslumbrar:
“Para ir tão longe, a maré não encontra a sua frente leitos abertos e vazios; encontra nos dois rios doces que convergem na testa do estuário central, leitos onde, de margem a margem, corre uma toalha de água doce que desce com rapidez. Deste modo é obrigada a subir em macaréu. A maré-cheia, empurrada do largo estuário para o rio estreito, encontra-se com aquela corrente contrária que lhe trava os filetes da água inferiores e os que, correndo livremente sobre esses, vão cair sobre ela. Deste modo, a maré é continuamente represada ao longo do percurso do rio, a água que chega galga a represa, para ser também travada, e a altura da enchente sobre a vazante aumenta deste modo incessantemente, até que a enchente se enrola numa vaga grossa poderosa que corre sobre a vazante… O trovejar da enorme vaga ouve-se a alguns quilómetros de distância ainda lá no fundo da floresta. Calam-se os homens e os animais bravios para escutar o monstro que sobe o rio correndo. Quando chega, as cordas de água precipitam-se em vertiginosa desordem contra a vazante, contra as margens, contra as árvores ribeirinhas, espadanando, enrolando-se em remoinhos, arrastando à sua frente quanto se lhe oponha. Passa, e o corpo líquido, sinuoso e rápido do monstro, enche o leito do rio e continua correndo e rugindo”.

Espero, meu adorado amor, que este texto te sensibilize para a grandiosidade deste espetáculo da natureza. Sobre os tornados, mandei-te também outra documentação, acredita que assisti a um ainda na margem do Geba, na bolanha de Finete, aquelas ventanias furiosas que açoitavam e atormentavam as gentes em Bambadinca, o faiscar dos relâmpagos, a sensação de que aquele ciclone tem a velocidade de um tufão, desfaz as árvores, levanta os telhados, as chapas zincadas parecem voar como folhas de papel e subitamente o ciclone cala-se, volta o calor, o céu limpo, o ar imóvel parece ter feito desaparecer a tormenta que assolou os homens, a vegetação, os edifícios.

Quero-te confessar o meu estado de espírito neste tempo, estamos em plena época das chuvas, saiu e entrou muita gente no meu pelotão, continuo naquela girândola de colunas ao Xitole, escoltas, patrulhamentos noturnos, acompanhamento das obras intensas nos Nhabijões. Há separações que me custam muito, por exemplo o Teixeira das transmissões, o Barbosa da boina verde, até ao Domingos Silva, o meu intérprete quando converso com alguém que fala exclusivamente crioulo. Apercebo-me que estou a viver uma situação um tanto semelhante àquela que um querido amigo meu, o pintor Manuel Botelho, desenvolveu num trabalho em torno de uma farta correspondência que adquiriu na Feira da Ladra, ela em Lisboa, num bairro popular, ele no Bachile, um recôndito para lá do Cacheu. Ao princípio, a narrativa dele é acalorada, é um descobridor que faz crónica para a sua namorada, fala-lhe do que é o quartel, o arvoredo, a comida, a população local, as amizades nascentes; ela responde, sempre marcando a prosa pelos caminhos da saudade, fala-lhe do trabalho e da família, põe-lhe perguntas, pede-lhe encarecidamente que seja prudente, ama-o de todo o coração. E nesta correspondência trocada ao longo do ano sentimos a palpitação e o confronto que um vai dando ao outro. A partir do segundo ano começa-se a notar que há um cansaço, há muita emoção estafada, ela pede-lhe por amor de Deus que escreva mais e que lhe diga se a ama como quando partiu para a guerra, ele queixa-se da dureza da vida, começamos a ver aquele correio a rarear, as frases curtas, a secura, a profunda melancolia, ele não esconde que tem medo do futuro. O Manuel Botelho transformou toda esta correspondência numa instalação, impressionou-me profundamente, criou um ambiente alusivo à guerra de um lado e a um ambiente doméstico do outro lado, e vamos sentindo a passagem da vivacidade à dolência, parece que as palavras se vão gastando, a distância tornou-se devastadora, imobilizou aqueles dois jovens amantes, são dois confidentes em plena solidão. E o talento do artista é deixar-nos em suspenso sobre o que representará o regresso do combatente e se ainda haverá vida e amor que baste naquela relação.

A melancolia, aquele sabor amargo da rotina, a partida daquela gente do batalhão com quem me relacionara na perfeição, a chegada de nova gente, a perceção de que era inútil falar-lhes do que eu pensava do Xime ou das populações em autodefesa, em muito contribuiu para que eu mantivesse a preocupação de cumprir à risca o que os novos comandos ordenassem. E é por isso que volto àquele ataque a Demba Taco, de que falámos recentemente. Em resumo, voltei daquele patrulhamento na região de Semba Silate, lá comprovei a existência de indícios de gente da guerrilha que por aqui passava, caminhava-se para o fim do dia e dirigi-me a passo estugado para Amedalai, daí podíamos regressar de viatura, neste tempo já se picava a estrada até à Ponte de Undunduma, num ápice estaríamos em Bambadinca. É nisto que começamos a ouvir deflagrar estampidos em cadência, pomos o ouvido à escuta, distinguem-se perfeitamente as saídas dos canhões sem recuo, os morteiros 82, a cantilena das costureirinhas, nome por que tratávamos as pistolas-metralhadoras cujo som se aparenta com o das máquinas de costura. Converso com Mamadu Bari, o comandante da milícia de Amedalai, é Demba Taco que está sob fogo. Decido não regressar a Bambadinca, comunica-se pelas transmissões e pede-se que ao nascer do dia venham viaturas até Amedalai, iremos ajudar quem está sob a tormenta, manda a prudência que não nos devemos pôr a caminho na noite escura, há que pensar em minas e emboscadas. E vamos assistindo ao fogo nos céus, há seguramente moranças atingidas.

Com a alva, vieram dois Unimog, uma secção em cada uma deles, já está gente a picar a estrada, há gente a pé e gente sentada, vamos todos preparados para o pior, mas não há sinal de guerrilha até chegarmos à tabanca em autodefesa de Taibatá, aqui está tudo calmo, continuamos a picar e o vento traz-nos o odor a queimado, entra-se em Demba Taco, sente-se no olhar de toda aquela gente o reconhecimento pela nossa vinda, Cherno Baldé, o comandante da milícia local, a máscara da exaustão, acompanha-nos na visita aos escombros do ataque devastador. E aqui te deixo, minha adorada Annette, outra reflexão, será que esta guerra é exclusivamente de libertação ou não é também uma guerra civil, já que esta população, predominantemente Beafada, jurou não querer participar na guerrilha, dizem-se portugueses, lembro-me do que vivi no Cuor, um régulo que foi ameaçado e que não aceitou as exigências do PAIGC, como todos estes seres nascidos na Guiné pilham e raptam, lançam o terror, vivem no estado absoluto da intimidação. Regressa-se prontamente a Bambadinca e nessa mesma tarde se trouxe o que de Demba Taco precisava: cunhetes de munições, rolos de arame farpado, tesouras corta-arame, uma prenda em sacos de arroz. Cherno Baldé não se cansa de me dizer que estão a pagar o abandono de Moricanhe, que nosso alfero me desculpe, não ter dado meios para os de Moricanhe continuarem a lutar aumentou confiança da gente do mato, haverá mais perigo para o Xitole e nós vamos sofrer mais.

Em Bambadinca, relatei ao novo major de operações o que vi e ouvi, não tinha ilusões que iria ficar tudo na mesma, o novo batalhão estava em fase de adaptação e não queria ousadias. À saída, o dito major informou-me que vou andar mais uns dias entre a ponte de Undunduma e estadias nos Nhabijões, durante o mês de julho ser-nos-á dado como principal incumbência a segurança diária nos trabalhos do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca. São as notas que eu agora estou a preparar, minha adorada Annette, infelizmente só guardei recordações, não encontro qualquer referência no meu caderninho desse tempo. É muito tarde, recebi hoje mensagem que tenho que telefonar amanhã com urgência para Bruxelas, o responsável pelo departamento dos consumidores da Confederação Europeia dos Sindicatos, o alemão Gottfried Scholtak, quer falar comigo. E à noite telefono-te, bisous milles, plus milles et plus milles, Paulo.

(continua)

O macaréu
Neste local, à direita, junto da paliçada, ocorreu em outubro de 1969 uma mina anticarro que me mudou a vida. Tirei esta fotografia um bom par de anos depois, na verdade o homem é capaz de transformar a natureza e fazer esquecer que naquele ponto houve muito sangue derramado
Vista aérea do Xime
A estrada Xime-Bambadinca e a picada Amedalai-Taibatá-Demba Taco, prosseguia até Moricanhe
Os trabalhos da TECNIL na estrada entre Xime e Bambadinca
O espetro de uma mina, aguarela de Manuel Botelho
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22632: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (74): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22632: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (74): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Acabaram-se as férias em Lisboa, Annette e Paulo retomaram atividades, Annette escreve ao filho, lembra-lhe que ambos visitaram Florença, há uns bons anos, o jovem sentia-se magnetizado pelo esplendor da cidade, arquitetura, belas-artes, a disposição da cidade junto do Arno, tinham ficado em Fiesole, fizeram passeio juntos, e quando a mãe trabalhava como intérprete ele maravilhava-se pelas galerias de arte e pelos palácios e jardins. Há a promessa de um trabalho para Jules, ele veio psicologicamente mais alentado de Lisboa, a relação com Paulo já chegou à intimidade, Jules disse-lhe mesmo em Lisboa que se sentia feliz com a adoração com que ele tratava a mãe. Annette conta o trabalho do livro que está a organizar para Paulo, foi esse projeto que alavancou esta estreitíssima relação de que nenhum dos dois quer abdicar. Para surpresa de Annette, julgava que o projeto do livro findava quando findasse a comissão na Guiné, Paulo deu-lhe a notícia de que vai haver um desfecho inesperado, ela que não se esquecesse que é um romance dentro de um romance, muitas vezes o que converge pode divergir, neste caso, sossegou-lhe ele, não há divergências, ele promete um final de obra que seja a celebração do amor. Cá estaremos para ver.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (74): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon cher Jules, mon brave gamin, desejo do coração que te encontres bem de saúde. Telefonei-te mal cheguei a Bruxelas, quando regressei de Lisboa, ainda desconhecia a minha agenda de trabalhos, o meu chefe admitira, antes de nós os dois termos partido para Lisboa, que setembro me reservava reuniões de trabalho só na Bélgica e Luxemburgo. Não aconteceu assim, depois de dois dias de trabalho em Bruxelas parti para Florença, um grande seminário no Instituto Universitário Europeu de Florença, juntaram-se grandes mestres da política e da investigação académica para debater o alargamento europeu em curso, não sabes o que eu aprendi sobre estes novos países, tanto os do Norte como os do Sul. Recordo uma viagem que fiz aqui contigo, estavas no primeiro ano da universidade, lembro-me perfeitamente da tua alegria esfusiante no Palazzo Vecchio e na Piazza della Signoria, tirei-te uma fotografia junto da Fonte de Neptuno, e depois junto da escultura de Donatello, Judite com a Cabeça de Holofernes, e a cópia do David de Michelangelo, prometi-te que iriamos ver o original na Galleria dell’Accademia, não aconteceu, fomos visitar a Ponte Vecchio. Tu tinhas estudado o estilo toscano e quiseste conhecer a Igreja de S. Croce e onde estão os túmulos de Michelangelo, Maquiavel, Galileo, Rossini e Cherubini. Recordo que mais tarde visitámos a catedral e o batistério, tu estavas louco de alegria com estes tesouros florentinos, ainda projetámos visitar S. Miniato al Monte, não fomos, tu pediste para visitar o Giardino di Boboli, depois eu passei um dia a trabalhar, ocasião que aproveitaste para visitar a Galeria dos Ofícios e o Museu Marino Marini, um escultor que tu tanto aprecias e que me ensinaste a gostar. Tirei alguns registos fotográficos nas poucas horas livres que tive, depois vim apressadamente com os meus colegas apanhar o comboio que nos deixou no aeroporto. Isto tudo para te dizer que Bruxelas me reserva bastante trabalho nos próximos dias, o Paulo falou com o Gilles Jacquemain quanto à hipótese de ficares a dar apoio informático num novo serviço da Comissão Europeia, parece-me ser um contrato promissor com a duração de um ano. Prometo dar-te notícias em breve, Gilles irá telefonar-me ainda durante esta semana.

Paulo e eu estamos sempre a debater o futuro, os nossos filhos estão sempre na linha da frente nas nossas preocupações, a nossa felicidade passa por vos ver bem, embora saibamos que a realização profissional nos tempos de hoje tem pouco a ver com o percurso que nos esperava quando saíamos das universidades, parecia que havia emprego para toda a gente, havia uma maior facilidade em adquirir competências, as remunerações eram mais elevadas, e já não falo do grau de estabilidade que tínhamos no horizonte, na vida laboral. Paulo e eu ganhámos um certo poder de aceitação de vivermos a nossa realização conjugal com tanta distância, confesso-te que nem sempre é fácil para mim, tenho felizmente este dossiê que me acompanha para toda a parte com o projeto do romance que foi o nosso ponto de partida, tu não podes imaginar como me inseri nele, tornou-se obra do casal, naquele dia que nos conhecemos ele disse-me mesmo que o romance se intitularia Rua do Eclipse.

Imagina o meu trabalho a compilar estes escritos, leio aerogramas para vários destinatários, consulto cartas e mapas, vejo fotografias, anoto dúvidas, procuro esclarecer-me pelo mail ou pelo telefone. Tudo parece bem encaminhado, faltam cerca de dois meses ou pouco mais para o fim da comissão do Paulo na Guiné, curiosamente ele já me disse que tem em mente um desfecho inesperado para toda esta obra. É no ajuntamento destes dias, semanas e meses que eu também vou adubando um amor sempre crescente pelo meu adorado companheiro. Estou agora num período em que ele voltou a Missirá, o pretexto foi a inauguração do gerador elétrico, comoveu-se muito, pedira insistentemente, e meses a fio, este benefício, chegou depois de ele sair do Cuor, mas estava muito feliz com a chegada de luz elétrica. Em Bambadinca, onde vive, está a processar-se a transferência de batalhões, é um tempo em que a guerrilha é muito intensa junto de povoados que estão em autodefesa, gente que é fiel a Portugal, que vive dentro de arame farpado, tem armas e munições, ripostam quando são atacados. O Paulo foi convocado para ir a Bissau testemunhar no julgamento de um soldado seu, um homem bom que teve a fatalidade de, por imprevidência, de desfechar os tiros quando subia para uma viatura num outro camarada, vai ser julgado por homicídio involuntário. Há um curioso aerograma em que Paulo conta que se reuniu com esse soldado e com um 1º cabo africano que podia traduzir para crioulo os argumentos em que os dois se deviam sintonizar: que esse soldado, de nome Quebá Sissé, não esquecesse que tinha uma muito boa folha de serviços, que quando fosse interrogado devia afirmar que era amigo devotado do falecido Uam Sambu, que tudo aquilo fora um azar monstro, que mesmo o comandante do pelotão podia confirmar que todo o seu comportamento anterior de homem de paz, que nunca perdia a cabeça, talvez naquele dia de manhã cedo estivesse ainda pouco desperto e ao subir a viatura, inadvertidamente, a sua espingarda passara da patilha de segurança para a posição de fogo, confessava a sua negligência, etc. e tal.

O intérprete, o cabo Domingos Silva, que também era testemunha, prometeu ao Paulo que iria ainda ensaiar com Quebá Sissé o que ele devia dizer ao juiz, não esquecendo de afirmar que se sentia completamente inocente e arrependido do seu deslize fatal – o Domingos observava a Paulo que tudo isto era uma conversa que não encaixava muito bem na cabeça de Quebá Sissé, enfim, problemas culturais. Encontrei no outro aerograma uma descrição do julgamento, para grande alívio de Paulo, Quebá ia dando respostas sensatas no seu português um tanto cantado, respondeu a tudo, confessou-se inocente e arrependido, como o Paulo lhe pedira no ensaio-geral. Não deixei de sorrir com a descrição que o Paulo faz do depoimento do Domingos, a gesticular e a falar muito alto, parecia um distinto ator amador, às vezes virava-se para a assistência, como se estivesse a pedir palmas. O depoimento de Paulo tinha que estar à altura de um comandante de pelotão: elogiou o militar que tinha um tratamento terno com as crianças, que era um prodígio de cozinheiro sem nunca regatear as obrigações dos reforços como sentinela, chegando a colaborar nas emboscadas e patrulhamentos, na medida do razoável, ele era cozinheiro; que todo o pelotão recebera com profunda mágoa e consternação a notícia daquele medonho acidente, tanta e tão profunda era a amizade que unia a vítima ao homicida involuntário. Ouvidas estas testemunhas o juiz preveniu que a sentença seria conhecida mais tarde, e foi bem benévola para o amável Quebá Sissé, ele já tinha estado engaiolado, acabou por sair em liberdade, como a sua comissão terminara voltou para a terra-natal, Farim. O Paulo nunca mais o viu, esteve a trabalhar na Guiné em 1991, procurou por ele, ninguém lhe conhecia o paradeiro.

Paulo voltou para Bambadinca, para os afazeres do costume, andava frequentemente numa localidade onde decorria um reordenamento chamada Nhabijões, um empreendimento de vulto, casas com arruamentos, mesquita, escola, fontanários, casas familiares assentes em quatro pilares de cibe, as paredes eram feitas com blocos de adobe, fazia-se uma trama com rachas de cibe mais finas para o telhado, onde se pregavam chapas de zinco. Há também um outro aerograma em que ele refere os odores deste novo povoado, tudo a cheirar a fresco. E no ponto em que me encontro, está a partir um batalhão e a chegar outro, é um período de transferência, quem chega bem à defesa, por precaução quer saber rigorosamente o que encontra, para não ter que dar contas à justiça. Também no pelotão do Paulo partem e chegam soldados.

Interrompo agora, houve um grande ataque a um povoado chamado Demba Taco, o Paulo patrulhava a vários quilómetros de distância, mandou informar Bambadinca que avançava em auxílio dos atacados, pedia apoio com viaturas, é já muito tarde, saio pelas seis e meia da manhã em direção ao Luxemburgo, vou ter um daqueles dias em que só se fala de Estatística ou de especialidades farmacêuticas, felizmente que vem aí o fim de semana, mal chegue a Bruxelas combino contigo um almoço ou um jantar, meu adorado filho. À tantôt, Maman.

(continua)

Praça da Senhoria, Florença
Palazzo Vecchio, Florença
Giardino di Boboli, Florença
Basílica de Santa Cruz, Florença
Museu de Marino Marini, Florença
Quebá Sissé, conhecido por “Doutor”, o cozinheiro de Missirá. Fotografia do início do março de 1969. Em 1 de janeiro de 1970, no mais estúpido dos acidentes, ao subir uma viatura, mete o dedo no gatilho e mata um camarada, Uam Sambu. Vai agora ser julgado em Bissau, Paulo é convocado como uma das suas testemunhas
Aqui foi o porto de Bambadinca, estamos no Geba estreito, em frente à bolanha de Finete
Restos de um Unimog 411, era a primeira mina nos Nhabijões, faleceu o condutor, de nome Soares
Rua do Eclipse, Bruxelas
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE OUTUBRO DE 2021 Guiné 61/74 - P22610: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22610: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Paulo Guilherme já regressou a Bambadinca, recomeçaram as andanças da guerra, há para ali uma atmosfera frenética, o batalhão de caçadores aguarda a todo o instante que cheguem os substitutos e até parece que a guerra deu tréguas com a exceção de uma singularidade que é a pressão em permanência do PAIGC sobre as tabancas em autodefesa. Ir-se-á abandonar aquela que estava mais ao extremo, em direção ao Xitole, de nome Moricanhe, a fatura virá depois, a pressão sobre a região do Cossé. E há o patrulhamento ofensivo de nome Beringela Doce, apanhou-se a coluna de reabastecimento ou de reaprovisionamento, o Paulo bem falou com o comandante que se estava a pagar a outra fatura, o abandono da Ponta do Inglês, ele encolheu os ombros, era problema para quem o vinha substituir. Deste modo se vivia a guerra. E de novo o serviço de justiça vai convocar Paulo para Bissau, ele vai testemunhar a santa inocência de Quebá Sissé que matou no acidente mais estúpido Uam Sambu, ao alvorecer de 1 de janeiro de 1970.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Páginas de comentários de Annette Cantinaux, constantes de um dossiê com a comissão de Paulo Guilherme, papéis que ela trouxe para organizar em Lisboa, havia inúmeros pedidos de explicação, ela pôs uma folha exterior a apensar um rol de imagens, aerogramas, até ordens de serviço e textos avulsos daquele alferes miliciano que voltara recentemente de Bissau; nessa folha exterior escreveu laconicamente: “Só de mim para mim”.

Nunca tive umas férias de verão como estas, com tanta ternura, com tanto desvelo deste meu adorado companheiro, recebeu com a maior afabilidade Jules, deu-nos a conhecer tanta beleza, sei que um dia destes tenho que regressar, um intérprete não pode falhar ao chamamento, é o seu modo de vida, tenho que cuidar de mim e dois filhos e continuar a pensar seriamente o que é que eu e o Paulo desejamos do futuro.

É um país surpreendente, a uma hora de Lisboa, na região Oeste, entramos num mundo frutícola e vinícola, há lindos castelos, visitei a Lagoa de Óbidos cheia de reentrâncias, o Paulo insistiu em mostrar a Jules onde passava as férias na sua juventude, um local chamado Foz do Arelho, um mar encapelado, uma vista panorâmica à esquerda em direção a Peniche, era um dia sem bruma, avistavam-se uns pontos ao fundo, o Paulo informou que eram as ilhas Berlengas, tenho a promessa de que lá iremos quando eu voltar a Portugal. Há praias lindíssimas, tomei uma fotografia de um pôr-do-sol na Praia da Areia Branca, tínhamos ido à Lourinhã visitar uma igreja que o Paulo disse ser do período manuelino e falou-nos daquela arquitetura que dias depois, já o Jules regressara a Bruxelas, encontrei no Convento de Tomar, em todo o seu esplendor, parecido só no Mosteiro dos Jerónimos, que me deixou emudecida, quando lá entrei pela primeira vez pensei que era o casco de um navio.

Mesmo em férias, o Paulo tinha que enviar artigos para publicações, organizou espaço no seu escritório para estarmos os dois, abri este dossiê, bem volumoso por sinal, estamos em maio de 1970, ainda faltam alguns meses para a comissão de Paulo terminar, um dia em agosto, no porto do Xime, entrará numa lancha da Marinha, regressará a Bissau, a guerra acabou. Uma vez dei comigo a pensar que sou um pouco como Xerazade, sei que é um comentário amargo, Xerazade tinha a cabeça a prémio se deixasse de contar histórias, a nossa relação não será afetada, estou absolutamente convicta, quando acabar a história da comissão. Mas afeiçoei-me a esta história, àquele período dos preparativos, ao modo como ele se integrou nas comunidades do Cuor, como ultrapassou aquele vexame de dois dias de prisão simples, acusado de não estar a dar o máximo para assegurar a segurança do quartel, ele que escrevia para todos, que sonhava todos os dias com o conforto, a segurança e o bem-estar dos dois destacamentos de que era responsável. Demorei a entender como ele se sentiu um tanto estrangeiro por ir viver para Bambadinca, alteraram-se as relações com as populações, fracionaram-lhe o pelotão, foi incumbido, permanentemente, de emboscadas, patrulhamentos, colunas de abastecimento, de trazer e levar feridos, sacos de arroz, munições, convocado para operações, grande parte delas sem pés nem cabeça. De saúde abalada, foi para Bissau, regressou tonificado a Bambadinca, rememora ainda hoje aquela experiência que viveu no hospital militar, não só o que se passou na Neuropsiquiatria, mas por ter presenciado um pesadelo que ignorava, os amputados medem-se uns aos outros e consolam-se quando têm mais membros que os comparados.

Tenho feito perguntas ao Paulo sobre o ambiente que ele encontrou em Bambadinca, o batalhão está pronto a partir, aguarda o substituto, o próprio pelotão do Paulo já não é o mesmo, saiu muita gente, vieram também substitutos. É um período em que aparentemente o PAIGC está mais calmo ou diversificou a estratégia, menos agressivo no Xime, no Xitole e Mansambo, mas flagelando cruelmente as tabancas em autodefesa, é um período de flagelações constantes na linha que vai de Amedalai a Moricanhe. Soube-se no Cuor que ele regressara, o régulo veio com comitiva convidá-lo a assistir à inauguração do gerador elétrico, era a linha do progresso no Cuor. Devia ter dito que não, continua a pensar que ainda era muito cedo para se poder aplacar tão grande saudade, disse que sim, como se Missirá e Finete, o Cuor por inteiro, não fizessem parte da recordação mais terna e inviolável do seu tempo guinéu. Combinou com o capitão Figueiras e lá partiram para o evento, aos primeiros alvores da manhã, foi recebido ruidosamente, conseguiu guardar distâncias, enquanto viajava pelo Geba estreito recordou as dezenas de cartas enviadas para a engenharia, talvez a primeira fosse datada de outubro de 1968, promessas não faltaram, e agora estava ali, sabe-se lá porque lhe passou a ideia pela cabeça, uma faísca que parecia anunciar um tornado não era mais do que toda a luz elétrica que dava sinal de vida, um bonito contraste com as chapas zincadas que faiscavam à crueza do sol, soltaram-se umas lágrimas rebeldes entre os aplausos e a risada da população.

E volta para Bambadinca e é convocado pelo major de operações para o tal patrulhamento ofensivo, da sua inteira responsabilidade, tem um nome um tanto cómico, Beringela Doce, estão o major e ele na sala de operações, ele acompanha o movimento do ponteiro no mapa: sai de Amedalai, contorna Ponta Coli, avança para Gundaguê Futa-Fula, importa contornar as bases do Baio e do Burontoni, procurar sinais da presença do inimigo e seguir cuidadosamente para Ponta Varela, sai de manhã cedo, regressa no dia seguinte à tarde, algo como mais de 30 horas e um número incontável de riscos. Guardo os rascunhos que o Paulo ataviou, trouxe mesmo uma carta desta região do Xime, mas desta feita fazia-se acompanhar de secções de pelotões de milícias, inclusivamente gente de Finete e Amedalai, não foi envolvida a unidade militar do Xime, sabiam que não podiam sair do quartel, na medida em que o Paulo e os seus homens iam percorrer Ponta Varela. Uma noite destas conversei com o Paulo sobre tudo o que se passou: não havia indícios de passagem de população ou militares do PAIGC entre Amedalai e Ponta Coli, e mesmo até Chicamiel, a razão parecia ser muito simples, estava-se a alcatroar a estrada entre Xime e Bambadinca com alta proteção. Tenho aqui um papel do Paulo em que diz ter ouvido desabafos das milícias, estava anunciado que se ia abandonar Moricanhe e não havia já ilusões que seria a região de Badora a próxima a ser altamente flagelada. Há mesmo um comentário escrito pelo Paulo sobre a progressão até Ponta Varela: sinais muito antigos, mesmo indícios de uma antiga barraca do PAIGC, só em Ponta Varela é que encontrámos trilhos batidos, andámos sempre a corta-mato, pernoitámos entre Gundaguê Beafada e Madina Colhido.

Os acontecimentos dolorosos surgiram na manhã seguinte, vai-se de Ponta Varela até às proximidades do Poidon, nisto ouve-se tiroteio, acontecera que o soldado Serifo Candé viu avançar em sua direção uma coluna de lavradores ou de reabastecimento, não deu tempo para se perceber exatamente o quê e quem, Serifo atira uma rajada, feriu um homem e uma mulher, os outros fugiram, deixando para ali sacos de arroz e esteiras, pediu-se evacuação Y, perdida que estava a surpresa, regressou-se ao Xime e partiu-se imediatamente para transportar as milícias para os respetivos destacamentos. E tenho aqui um aerograma, um texto de profundo desalento em que o Paulo escreveu a um amigo a contar a conversa com o comandante, este insistia em policiamentos semanais para intimidar o PAIGC, não tinha ilusões, só as tropas especiais é que podiam desalojar forças tão enquistadas no terreno dos santuários, aprendera-se muito com uma operação chamada Lança Afiada, por ali se tinha andado doze dias até que a tropa regressou exausta e profundamente combalida, houve mesmo evacuações de barco no Corubal, gastara-se uma fortuna para resultados nulos, tinham-se apreendido umas toneladas de arroz, uns velhos desdentados e uns canhangulos, o PAIGC, inevitavelmente, saíra robustecido deste jogo do gato e do rato, o Paulo replicou que era indispensável manter Moricanhe e mudar a rota das operações, o Poidon era um celeiro, havia que aprender de uma vez por todas que se devia recuperar a posição da Ponta do Inglês. No final desse aerograma o Paulo observava que fora um discurso inútil, este batalhão está de partida, vamos ver se poderá passar a mensagem para quem dentro de dias vai chegar. É nisto que o tenente Pinheiro me informa que tem que estar dentro de dois dias em Bissau, é testemunha abonatória de Quebá Sissé, o amável cozinheiro de Missirá, que ao amanhecer do dia 1 de janeiro daquele ano, ao subir para uma viatura metera o dedo no gatilho da espingarda ferindo mortalmente Uam Sambu, que tombou para o regaço de Paulo, lá foram desvairados para a enfermaria de Bambadinca, mas nada se podia fazer mais, Uam espirara durante o voo em direção ao hospital militar. Enquanto arruma um saco de trastes para voltar a Bissau, Paulo conversa consigo próprio, é crucial que o magistrado perceba que se tratou do mais estúpido e funesto dos acidentes e que Quebá Sissé é um homem bom entre os bons.

(continua)


Pôr-do-sol na praia da Areia Branca
Trancoso, cidade medieval
Penedono, célebre pela sua castanha
Os achados arqueológicos de Freixo de Numão
Barbearia Chiado, no Bissau Velho
A azáfama no cais do Pidjiquiti
Guarita do antigo comando da defesa marítima da Guiné, hoje chefia do Estado-Maior da Armada
Uma evacuação em Madina Colhido (regulado do Xime) durante a operação Boga Destemida
Batelões civis navegando no rio Geba em direção a Bambadinca
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22585: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (72): A funda que arremessa para o fundo da memória