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terça-feira, 11 de agosto de 2009

Guiné 63/74 – P4808: Estórias do Zé Teixeira (37): “A vala, salva vidas” (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mais uma estória do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, enviada em 8 de Agosto de 2009: 

A VALA, SALVA VIDAS

(do meu Diário)

Buba, 1968 - Julho, 22

…Chegado a Buba, toda a gente correu para os poucos chuveiros existentes, formando fila. Enquanto uns se molhavam, outros esfregavam o sabão, fazendo um rodopio. Os restantes, completamente nus, esperavam pacientemente uma vaga, quando o IN apareceu a baptizar a Companhia atacando de canhão sem recuo, morteiro e "costureirinha". De repente um estrondo lá longe. Logo se ouviu a frase mágica que eu nunca mais vou esquecer - “Aí estão eles” - vinda de vários lados.

Numa fracção de segundos, o tempo da vida ou da morte, toda aquela gente desapareceu da vista.

Depois, bem depois, foi ouvir uma música muito estranha, de granadas de canhão e de morteiro a rebentar por perto. Armas ligeiras a vomitar fogo, rebentamentos a distância originários das nossas armas pesadas. Enfim, uma festa. Terrível festa. Os guerrilheiros atacaram com canhões sem recuo de dois sítios diferentes, segundo dizem, causando ainda mais confusão. Felizmente caíram todas fora do arame farpado, não deixando mazelas. Tentaram durante alguns minutos arrasar Buba, o que não conseguiram por fraca pontaria.

Em simultâneo com o ataque desabafa uma tempestade de chuva.

Deitado na vala e a aguentar a chuva e a metralha, completamente nu, com o corpo cheio de sabão, assim esperei que acabasse a "festa", para me ir vestir pois o sabão do corpo saiu por si, graças à chuva.

Que espectáculo! Centenas de corpos (muitos nus) encharcados, mas alegres, saíam calmamente da vala. O chuveiro rapidamente se encheu de novo, como nada tivesse acontecido. A vida continuava porque mais uma vez escapámos.

Perante esta dantesca cena, rendi-me à necessidade de me recolher, encostado à parede da caserna e dar graças a Deus, pela vida que sentia palpitar no coração, a recuperar de um grande susto.

VALA BENDITA

Estranho ruído ao cair da noite escura.
Quebra o silêncio expectante,
Atira-me para a vala,
Abrigo sem cobertura.
Salva-me a vida, naquele instante.
Tenebroso e longo momento.
Angustiante.
O coração bate como nunca senti.
Eu também fugi,
Ao ouvir, “aí estão eles”.
Que algum camarada gritou,
Quando, ao longe o estrondo da “saída”
Para o perigo o alertou.
Porém,
A granada que ali tão perto rebentou,
Mais uma vida levou.
Ah Vala!
Trincheira do medo,
Trincheira da sorte.
Vala bendita,
Que nos escondes da morte.
Momentos.
Minutos que são horas.
Tanto tempo…
Em que a vida não acontece.
O silêncio dos rebentamentos,
Impera.
O corpo estremece,
O medo entorpece.
Alguns, talvez poucos,
Dirigem a Deus uma prece
No tempo da catequese aprendida
Desordenada,
Remendada.
Há muito tempo esquecida.
Mas bem sentida.
Na esperança que a bala a si destinada,
Seja pela mão de Deus
Desviada.
E não lhe roube a vida.

Um abraço,
Zé Teixeira
1º Cabo Enf

Fotos: © José Teixeira

domingo, 25 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3791: Estórias do Zé Teixeira (36): O El Gonzalez (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Publicamos hoje a 34.ª estória de Zé Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, enviada em 2 de Janeiro de 2009.


O EL GONZALEZ

El Gonzalez, abafador de tacos de profissão (1). Estado natural, alcoolizado. Conheci-o na quinzena em que, perdidos nas Serras da Beira Baixa, nos preparavamos para partir para a guerra na Guiné. Como tudo servia para carne para canhão, El Gonzalez já marcado pelo vício do álcool, logo deu sinal de si. Num ambiente tão propício, como o de viver sobre calor escaldante, longe da família e num ambiente de guerra, a situação agudizou-se.

Como telegrafista o Pré era baixo, mas certo e sabido que no dia em que El Gonzalez andasse sóbrio era para se deitar um foguete, na certeza que poucos se gastariam nos cerca de dois terços de comissão que teve de cumprir. Como arranjava o patacão, não sei. É certo que havia sempre alguém a pagar uma cervejita, só para o ver feliz, mas não era o suficiente para o seu grau de alcoolização permanente.

Durante a visita que Marcelo Caetano fez à Guiné, coube-me a sorte de ir passar a noite na outra margem do rio de Buba, exactamente no local de que servia o PAIGC para nos vir cumprimentar à canhoada, enquanto a sua Infantaria atacava do lado oposto, junto ao cemitério ou junto à pista de aviação. Local onde o comandante Manecas - o futuro comandante do PAIGC responsável pelos Mísseis Strela, não foi apanhado à mão pelos Fuzas, porque a sua estrelinha o acompanhava, no célebre ataque a Buba em Outubro de 1969, estudado no terreno pelo Capitão Peralta (cubano) e pelo próprio Manecas. Operação que se lhes tivesse corrido de feição, Buba teria caído nas suas mãos. Era esse pelo menos o seu projecto, segundo me contou o Comandante em Março passado. Ataque que eu não vivi por ter ido uns dias antes para Empada.

Após uma penosa marcha, por Sinchã Cherno, para iludir os possíveis espiões existentes na Tabanca, como se confirmou posteriormente na sequência do referido ataque de Outubro, existirem em Buba e para ultrapassar as barreiras naturais do rio – braço de mar, que se espraiava até Buba, inundando e alagando as terras limítrofes, para recolher novamente ao sei leito na maré vasa.

Pois bem, o El Gonzalez, foi o telegrafista, que nos acompanhou nesta árdua missão.

Na nossa marcha, pudemos apreciar um belíssimo espectáculo, nunca mais visto. Caranguejos multicolores, aos milhares espalhados no tarrafo, formando um colorido tapete que mudava de forma e cor em função da nossa evolução no terreno. Ao sentirem o ruído que provocávamos na marcha, ao pôr os pés no chão, fugiam à nossa frente, procurando um buraco na lama para se esconderem, formando uma espécie de semi-circulo. Nessa deslocação precipitada mudavam de posição no terreno, modificando permanentemente as cores do tapete que formavam com os seus corpos. Espectáculo fantástico que devo ao senhor Primeiro Ministro, dado que se ele não tivesse ido à Guiné, eu possivelmente não teria ido passar a noite a tão perigoso lugar e assim perderia a esta imagem que ainda retenho no baú das minhas recordações.

O El Gonzalez, chegado ao local, pousou o rádio, encostou-se a ele e adormeceu, roncando toda a noite. Acordou no dia seguinte, à pressão, já o sol ia alto e a primeira pergunta que fez foi:
- Onde estamos ?

Certo e sabido que com o seu roncar, não havia inimigo que tivesse a coragem de se aproximar e impossibilitou que algum camarada mais despreocupado adormecesse.

Na sequência desta aventura, enviei-o para o Hospital em Bissau como alcoólico crónico, na esperança de conseguir recambiá-lo para Lisboa. Oito dias depois, apareceu em Buba como curado. Passados uns dias, face ao seu contínuo estado, foi de novo dar um passeio até Bissau, mas só à terceira tentativa, logrou ganhar o passaporte para a Capital.

Isto passado mais de ano e meio de comissão.

(1) Depois da colocação de tacos no soalho das casas. Com uma lixadeira faz o polimento dos tacos e a enceramento

Zé Teixeira
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3767: Estórias do Zé Teixeira (35): O Lisboa (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3767: Estórias do Zé Teixeira (35): O Lisboa - E seu irmão que morreu no desastre do Cheche (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mais uma estória de José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, que nos foi enviada no dia 2 de Janeiro de 2009:


O LISBOA
E seu irmão que morreu no desastre do Cheche

Pela alcunha se pode calcular que o Ferreira era natural de Lisboa. Simples e humilde. Casado e com filhos. Picheleiro de profissão, Atirador por missão. Tinha uma relação muito boa com a avó. Suponho que foi ela que o criou na sua meninice

O Lisboa viciou-se na batota, já na Guiné, creio eu. Era um dos que, recebido o Pré no fim do mês, desaparecia. Só os víamos, no refeitório e nas saídas para o exterior. Acabada a grana ficava na pendura até ao fim do mês seguinte. Um ambiente de guerra também fomenta este tipo de formas de estar na vida.

Um dia ou noite, não sei bem, já em Empada, numa situação de desespero, levantou a parada demasiado alto. Jogou a aliança de casamento e lerpou. O Paraquedista, alcunha dada a um camarada que tentou as alturas e veio cair na tropa macaca, agarrou a aliança com ambas as mãos e passados oito dias, continuava a afirmar que a tinha ganho no jogo, era dele e ponto final.

O Lisboa bateu a várias portas na tentativa de quem interviesse para recuperar a aliança. Como resposta tinha um conselho - aprende a ter juízo. Ele bem choramingava, mas de nada lhe valia.


O Oliveira (vaguemestre), eu, o Lisboa e o El Gonzalez, ainda periquitos em Ingoré

Bateu-me à porta. Hesitei, porque o Paraquedista não era flor de bom cheiro. A forma de ser e estar na vida deste homem não me convidava a uma relação amistosa, mas aceitei o desafio.

Após várias insistências de minha parte, atirou, enraivecido, a aliança do camarada para o chão, rosnando que se ele lhe repetisse a cena, nunca mais lhe devolveria o anel.

Naturalmente que o Lisboa se aproximou de mim numa relação de camaradagem de quem está longe dos seus e encontra um amigo.

Seu irmão mais novo, cerca de um ano depois, também foi parar à Guiné. Estavam ambos em zonas de elevado grau de guerrilha. Nas matas do Boé ou para os lados da mata do Cantanhez, o diabo que escolhesse.

Um dia soube-se do desastre de Cheche no Corubal (*), quando se procedia à retirada da Companhia que se encontrava em Madina do Boé. Quando apareceu a listagem dos mortos neste drama, houve alguns curiosos que foram ler os nomes na expectativa de localizar alguém conhecido, suponho.

- Ouve lá oh Lisboa, está aqui um gajo que deve ser o teu irmão, pelo nome …

Era mesmo. Calculem o estado em que ficou o pobre do Lisboa. O seu irmão morrera afogado no Rio Corubal, uns dias antes, quando integrava a Companhia que fora apoiar a retirada dos mártires de Madina do Boé.

De quem se havia de lembrar o rapaz, para desabafar as mágoas, do Teixeira.

Momentos dolorosos que acompanhei de perto e que me abalaram profundamente. Com ajudar numa situação destas ? Que soluções para mitigar a dor, a quem não tinha pais e agora via desaparecer o irmão?

Eu sabia que havia uma Lei que possibilitava aos mobilizados que tivessem irmãos na guerra, serem desmobilizados, desde que o requeressem por escrito.

De imediato fiz seguir um requerimento para o Comandante Chefe. Uns dias depois chegou um rádio a dar instruções para o Lisboa seguir de imediato para Bissau com destino a Lisboa. Nesse mesmo dia a DO do correio passava. Foi só reservar o lugar e o Lisboa nem teve tempo de se despedir.

Boa sorte Lisboa, te desejei e continuo a desejar, sem saber por onde andas.
Zé Teixeira
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3671: Estórias do Zé Teixeira (34): O meu conto de Natal (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Notas de L.G.:

(*) Sobre o desastre do Cheche, no Rio Corubal, no âmbito da Operação Mabecos Bravios, e sobre Madina do Boé, vd. os postes publicados no nosso blogue (1ª e 2ª série):

17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)

2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXX: A retirada de Madina do Boé (José Martins)

3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)

12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1292: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte I)

15 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

21 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1388: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (III parte)

sábado, 27 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3671: Estórias do Zé Teixeira (34): O meu conto de Natal (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mensagem de José Teixeira (*), ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, com data de 24 de Dezembro de 2008, dirigida ao nosso editor-chefe.

Obrigado, Luís.

Talvez amanhã passe por aí de tarde para o fraternal abraço.

Junto o conto de natal que acabo de escrever.

Neste Natal quer na vossa casa haja felicidade, paz e amor. Assim será mais natal.

Beijo especial para Alice





O meu conto de Natal

Naquele tempo em que eu era pequenino e o Pai Natal ainda não tinha sido inventado, havia um menino que estranhamente nascia todos os anos no mesmo dia e à mesma hora. Esse menino chamava-se Menino Jesus e nascia no dia vinte e quatro de Dezembro à meia-noite.

Segundo dizia a minha avó, que Deus tem, esse simpático Menino, que nascia todos os anos à mesma hora e no mesmo dia, mal acabava de nascer entrava em todas as casas para deixar um prendinha aos meninos e meninas que se portassem bem. Na casa dos ricos entrava pela chaminé e na casa dos pobres entrava pelo buraco da fechadura ou pelos buracos existentes nas paredes, que deixavam passar muito frio, depositando as suas prendinhas, junto à lareira nos sapatinhos ou tamanquinhos que os meninos e meninas lá deixavam na noite anterior, depois da Ceia de Natal em que estranhamente até os meus tios iam do Porto, de lá tão longe, para comer connosco e era uma festa muito grande, com bacalhau, rabanadas docinhas, formigos, sarrabulho doce e tudo mais.

Claro que eu teimosamente deitava-me no preguiceiro, junto à lareira à espera do tal Menino Jesus que me ia trazer uma prendinha, pois eu tinha-me portado bem, nos últimos dias, só que o soninho aparecia muito antes e eu só acordava no dia seguinte, na minha cama, depois da chegada da minha avó, que se levantava muito cedo para ir à missa das sete. A essa hora, já o Menino se tinha ido embora, pois tinha muito que fazer naquela noite e eu ficava triste por não conseguir conhecê-Lo.

Num ano em que eu já era crescidote, resolvi pregar uma partida à minha avó e ao Menino Jesus. Na véspera do tal dia de Natal, quis ir para a cama mais cedo, por mais que minha avó estranhasse. Até pensou que eu estaria doente. Talvez as rabanadas ou os formigos tivessem levado açúcar em demasia. Ou o sarrabulho doce, petisco que eu adorava, tenha levado um pouco mais de vinho fino.

Assim, no dia de Natal, mal a minha avó, saiu para ir à missa das sete, eu, descalço e de mansinho para não acordar os meus irmãos, abri a porta, atravessei o quinteiro, ainda húmido da geada e fui à cozinha espreitar o meu tamanquinho rapelho, que deixara junto à lareira na noite anterior. O tamanquinho estava lá, mas prenda, nem vê-la. Fiquei muito triste e aflito, afinal o Menino Jesus não viera a nossa casa, mas eu tinha-me portado bem! Lá isso é que tinha! já não fazia chichi na cama e comia o caldo todo.

Quando minha avó chegou da missa, saí-lhe ao caminho, dizendo com voz triste:
- O Vó, o Menino Jesus não veio esta noite. Não há prendas para ninguém.

Responde-me ela, com um brilho maroto nos olhos:
- Atrasou-se um bocadinho, mas cruzou-se comigo ali no caminho, ao fundo da leira da figueira. Aqui está a tua prendinha.

... Uma regueifa bem quentinha. A prenda de todos os anos da minha avó e madrinha.

Bom Natal para todos

Zé Teixeira
____________

Notas de CV:

Texto de José Teixeira.

Foto: © José Martins (2008). Direitos reservados.

Vd. último poste da série de poste de 20 de dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3655: Estórias do Zé Teixeira (33): Histórias de Natal (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

(*) Vd. último trabalho de 22 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3661: Blogoterapia (84): Vai-te embora, tuga dum carago! (José Teixeira)

sábado, 20 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3655: Estórias do Zé Teixeira (33): Histórias de Natal (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mensagem de José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, datada de 19 de Dezembro de 2008, com quatro pequenas histórias de Natal e não Natal, nas suas sentidas palavras:

Carlos
Junto o texto sobre o Natal.
José Teixeira




HISTÓRIAS DE NATAL, OU... TALVEZ NÃO

1. Reencontro com a Djuvae

No Natal de 1968 a Djuvae de Mampatá Foreá, prestou-se para ser postal de mensagem de Natal. Não era propriamente uma beleza em termos físicos. Era sim, uma rapariga, perdão, uma bajuda muito alegre e comunicativa. Tenho gravados na memória bons momentos passados juntos, sobretudo ao principio da noite, quando nos juntávamos, eu, ela, a Fátma Ió, a Auá e a Mariema à porta da sua morança. Desde contarmos histórias, cantarem para mim lindas canções fulas e outras brincadeiras, até que surgia o Hamadú, o Sargento do Pelotão de Milícias, o zelador pela segurança da população que acumulava com a função de marabu na pequena Mesquita local. Obrigava-nos a seguir cada um para sua casa ou abrigo sem ruído, estragando assim a festa.

Quando voltei a Mampatá em Março de 2008, esqueci-me de a procurar e não a reconheci, quando se abeirou de mim. Para me obrigar a ir ao caixote mais fundo da minha memória, dirigiu-se-me e com o seu sorriso característico, recordou-me a maneira como eu a cumprimentava naquele tempo da nossa juventude:

- Tissera, bó ka na lembra ! Mama garandi, mama piquena, apalpando os seus próprios seios.

Creio que basta aos camaradas que tiverem a coragem de lerem estes apontamentos, apreciarem a foto junta, para tirarem conclusões.

- Tu és a Djuvae ?

- É mesmo! - Enquanto se pendurava no meu pescoço num fraterno e demorado abraço.

Nesse dia, àquela hora foi Natal para mim.

A Djuvae, em 2008 quis tirar uma fotografia comigo, sentada na minha perna, tal como antigamente


2. Desencontro de Hamadú

O Hamadú, acabada a guerra foi viver para Buba. Procurei-o em 2005, mas não o consegui ver. Estive com uma das filhas e com uma neta. Ele, como sempre, estava na Mesquita a exercer a sua missão de Marabu.

Em 2008 tinha como objectivo, voltar a procurá-lo. Logo em Guiledge, soube que tinha falecido em Dezembro.

Nesse momento não houve Natal.


3. Reencontro com Ádama

Quando voltei a Mampatá, veio ao meu encontro a Ádama, a mãe da nha mindjer, a bebé que me foi apresentada com 42 graus de temperatura e desenganada pelo doctor de Bissau.

Ia morrer, com paludismo agudo, mas eu salvei-a administrando-lhe um anti-palúdico num acto médico que hoje me levaria à prisão. Como prémio foi-me oferecida pela mãe, para nha mindjer.

A menina, hoje mulher, não vive em Mampatá, logo não a pude ver, mas a mãe, essa ajudou-me a recordar alguns dos momentos que mais me marcaram: a sua vinda todas as manhãs com a bebé ao colo, parte mantenhas a Fermero e trazer uma cantara de água fresca que ia buscar à fonte de Ieroel (o local de onde o IN nos atacava ao cair da noite) ou então o pequeno cacho de bananas – tua mindjer parte agua para tu na bibe,ou, parte banana.

Se à noite ao passar pela morança onde viviam não ia dar um beijinho à bebé, logo a mãe me chamava: - Fermero vem parte mantenhas a mindjer di bó . E, quando vindo da Chamarra com destino a Buba, passei por Mampatá, aquela mãe, veio a correr depositar-me nos braços a bebé: - Toma, leva minina, mindjer di bó.

Tão belos momentos, quer no antigamente, quer em Março de 2008 foram Natal para mim.

A Ádama e a Djuvae no dia em que sendo Março, foi Natal para mim


4. O encontro com o filho de Binta Bobo

Também a Binta Bobo, irmã mais nova da Ádama, ainda uma criança, foi mensageira da paz naquele Natal de 1968. Às costas levava nha mindjer, a bebé, filha de sua irmã mais velha a Ádama,

A Binta Bobo (a mais alta)com a bebé. A seu lado, a companheira de brincadeiras, filha mais novas do Hamadú com a maninha às costas

A Binta Bobo, cresceu, fez-se mulher. Em 1974, devia estar uma garota linda! Creio que ainda não tinha casado, mas já estava destinada, ou prometida, ou negociada desde pequenina.

Da relação com um militar português engravidou e teve um filho. Foi repudiada e a sua vida a partir de então não foi nada fácil, até que a morte a veio buscar prematuramente.

Seu filho, procurou-me em 2005 no Saltinho. Queria conhecer o pai. Pensava ele que eu o conhecia, mas não. Quando deixei Mampatá a Binta era uma criança.

O filho da Binta Bobo quer conhecer o pai

Afinal a vida é feita assim de retalhos. Uns são de alegria, afecto, paz e amor. Tudo somado dá origem ao Natal, que se quer todos os dias. Outros, pela sua crueza provocam sofrimento e dor. Então não há Natal.

Que cada um de nós, tenha, nesta quadra em especial, a coragem de construir o Natal e se possível o faça em todos os dias da sua vida, pois Natal é sempre que o HOMEM QUER.

Zé Teixeira
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3651: Estórias do Zé Teixeira (32): Um Pide, um marabu e um balanta de Bula que se converte ao Islamismo (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3651: Estórias do Zé Teixeira (32): Um Pide, um marabu e um balanta de Bula que se converte ao Islamismo (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mensagem de José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, com data de 16 de Dezembro de 2008

Carlos
Boa noite
Junto texto sobre uma história de conversão ao Islamismo.
Fraternal abraço
José Teixeira


Há dias tive o grato prazer de conhecer um guineense que se encontra em Portugal a cursar Psicologia.

Reportando-se à sua origem balanta, contou-me a história da conversão da sua família ao Islamismo, que nada teria de interesse se a política do Estado português de então não tivesse uma interferência directa no assunto.

Seus pais eram naturais dos arredores de Bula, onde possuíam uma lala que exploravam, sendo sustento de toda a família.

Em meados da década de 50 o seu pai contraiu a tuberculose, pelo que tiveram de vir para Bissau, com o objectivo de tentar a cura, o que conseguiu.

Recuperado da doença, a família pensou em voltar para Bula, onde tinham a lala sua base de sustentação. Entretanto deram-se os acontecimentos no Cais do Pdjiguiti. Na sequência deste acontecimento e numa tentativa de exploração a seu favor, o PAIGC, dinamizou toda uma campanha de mobilização em Bissau, notando-se uma fuga de africanos para o mato e alistagem no Partido.

A reacção do Governo português não se fez esperar, tendo decretado que quem estivesse interessado em ausentar-se de Bissau para o interior da Província tinha de se fazer portador de um salvo conduto emitido pela autoridade civil mais próxima da sua residência, caso contrário, se fosse encontrado pelas autoridades civis ou militares seria detido e considerado inimigo da Pátria, com as consequências que não são difíceis de adivinhar.

O pai do meu amigo, deslocou-se ao Posto civil mais próximo, nos arredores de Bissau a requisitar o salvo conduto para se poder deslocar para a sua terra. Um Cipaio seu vizinho, apercebeu-se da situação e foi a sua casa discretamente avisá-lo para não ir buscar o salvo conduto, dado que a Pide, logo de seguida o iria prender, como estava a fazer com todos os que tomavam esta iniciativa.

Face a este conselho, o pai do meu amigo, não foi levantar o salvo conduto no dia previsto e manteve-se por Bissau, mais uns tempos.

Passados uns dias, apareceu no lugar onde morava um agente da Pide a perguntar por ele. Dirigiu-se a um marabu(*) que se encontrava sentado à sombra de um mangueiro e tendo a seu lado o pai do meu amigo, pois eram vizinhos.

Claro que ao ouvir o seu nome, ficou assustado, mas o marabu com toda a calma informou que conhecendo toda a população local, tal nome não lhe dizia nada. Disse mesmo:
- Este aqui é meu filho e chama-se XPTO - um nome afecto à sua família para não criar suspeitas.

O Pide lá se foi embora, continuando a sua pesquisa, presumindo com certeza que o indivíduo que procurava se tinha ausentado para o mato, dado que nunca mais apareceu por aquelas bandas.

Comovido pela atitude do marabu que o salvou da prisão, dedicou-lhe uma amizade profunda tendo-se convertido ao Islão com toda a sua família.

A vida continuou, apareceram mais filhos, aos quais foram dados nomes próprios e sobrenomes da família do marabu. Um deles hoje é padre católico.

(*) Muçulmano que dirige as orações nas Mesquitas e da formação catequética das crianças. Pessoa querida pela postura na vida e pelo respeito que merece face ao posto que ocupa na religião, tal como os nossos padres das Igrejas Cristãs.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3559: Estórias do Zé Teixeira (30): Aquele Minuto (José Teixeira)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3559: Estórias do Zé Teixeira (31): Aquele Minuto (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mais uma estória do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, enviada em mensagem datada de 1 de Dezembro de 2008.


Aquele Minuto!

... Saí de manhã até à Bolanha de Beafada (bolanha dos passarinhos), a montar segurança à coluna que ia para Aldeia Formosa. Tinha como missão assistir os picadores que iam à frente a tentar detectar as possíveis minas que o IN costuma colocar. Deixei a bolsa de enfermeiro na 1.ª viatura e seguia atrás dela.

Como havia muitas poças de água, instalei-me ao lado do condutor. Em determinado momento tive um pressentimento e saltei da viatura seguindo à sua frente. Não andei 50 metros e senti um rebentamento, fui projectado pela deslocação do ar e senti algo a cair em cima de mim. Deduzindo que eram estilhaços – pensei - desta não escapo [...]


(Do meu diário 31 de Julho de 1969)


Aldeia Formosa 1968 > Cemitério de viaturas destruídas – na primeira da foto foram-se duas vidas. 

Buba 1969 > Uma coluna de Aldeia Formosa para Buba, trilhando já parte da nova estrada em construção, às portas de Buba.

Buba - O depósito de água e uma das casernas adaptada para outras funções.

Buba 2005 > A minha caserna transformada em escola. Ali mesmo junto à porta tinha a minha tarimba.

Buba 2005 > Outra caserna/escola em Buba 

Buba 2005 > A capela católica num Domingo de manhã no momento da celebração da Missa. 

Buba 2005 > A estrada ao lado da pista de aviação, agora transformada em zona de habitação.
 
Buba 2005 > As primeiras casas de Buba, para lá do cimo da pista.

Fotos e legendas: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.

Ainda o sol se escondia para lá da floresta, naquela manhã de 31 de Julho de 1969, já a coluna de mantimentos partia de Buba para Aldeia Formosa. Coube-me a missão de acompanhar o Grupo de Combate que na frente, fazia a picagem do caminho em busca das minas traiçoeiras, muito habituais naquela zona. Chovera bastante nos dias anteriores, pelo que o terreno estava enlameado e cheio de poças de água, para mal dos picadores que viam a sua missão mais complicada e riscos acrescidos a quem ousasse pisar tal terreno.

Era meu hábito sempre que via um soldado branco em cima das primeiras viaturas da coluna, obrigá-lo a descer pelo risco que pesava sobre estas de poderem pisar uma mina não detectada pelos picas. Nesse mesmo dia obriguei o Franklim, o Rádiotelegrafista de serviço, a saltar da primeira, bem contra a vontade dele. Aos africanos, normalmente civis, apenas deixava um aviso, que nunca fora, até então, correspondido.

Enquanto os picas iam à frente, eu seguia atrás da primeira viatura, religiosamente em cima do rodado, não fosse o diabo tecê-las.

Dá-se uma avaria numa das viaturas da retaguarda e a coluna pára por uns minutos. Os picas seguiram em frente, criando um espaço limpo de minas. Logo que houve ordem de marcha, a coluna acelera a marcha obrigando a tropa a apressar o passo.

Para que havia eu de correr se logo ali na primeira viatura – a rebenta minas – carregada de sacos de areia e bebidas, havia lugar para mim !

Se o pensei, de imediato o fiz, sentando-me ao lado do condutor em assentos construídos de sacos de areia. Em cima da viatura seguiam quatro civis africanos, bem lá no alto.

Umas centenas de metros à frente, já bem dentro da tristemente célebre bolanha dos passarinhos, dei comigo a interrogar-me: - Tu que não deixas os teus camaradas viajarem nas viaturas da frente, vais instalado logo na rebenta minas ao lado do condutor . Este pensamento empurrou-me para o chão e lá continuei eu a correr à frente da viatura. Não andei cinquenta metros, quando ouço um grande estrondo, mesmo ali, e sinto-me voar em direcção à mata. Uma chuva de projécteis não identificados caem em cima das minhas costas, com alguma violência. Angustiado pensei : - Desta não escapo, ficando a aguardar sinais de dor que teimavam em não chegar. Passei então a mão à procura de sangue quente, mas apenas encontrei pequenas pedras e lama.

Já respirava de alívio, nesta fracção de minuto, quando vejo cair à minha frente, um, dois, três africanos, os que vinham lá em cima da viatura e foram projectados pelo ar. Um deles, ao levantar-se, trazia o olho esquerdo pendurado. O sopro tinha-lho arrancado da órbita ocular. Estava estranhamente confuso. Pudera! Um olho a ver-lhe os pés, o outro a olhar em frente !

Só então verifiquei que a viatura de onde tinha saltado, pisara uma mina AC nada restando do assento onde estivera por momentos sentado.

Não me é fácil, passados mais de trinta e nove anos transcrever o que senti naqueles momentos. Sei apenas que as pernas tremiam como juncos verdes batidos pelo vento e recusavam-se aceitar o peso do meu corpo, quanto mais andar. O coração parece que queria rebentar com o peito. Mas... havia um ferido e eu era o enfermeiro mais próximo. A bolsa de enfermagem estava na viatura sinistrada e podia haver, havia mesmo, mais minas .

Recordo-me que vi chegar um africano meu ajudante, saquei-lhe a bolsa, lavei muito bem a órbita do olho sinistrado, que não tinha sinais de estar ferido, apenas saltara da órbita pelo sopro de ar provocado pela explosão, coloquei-o com jeitinho no sítio, protegi-o com uma compressa e ala para Buba, rumo a Bissau. Tive a alegria de cerca de meio ano depois encontrar o africano ferido, em Bissau, feliz da vida sem problemas de visão.

No local do acidente a saga continuou. Primeiro foi o Franklim que se protegera atrás de um atrelado. O condutor da viatura saltou ao ouvir o estrondo lá na frente, deixando a viatura destravada. Esta recuou um pouco e o atrelado passou por cima da perna do Frank. Valeu-lhe o lamaçal em que estava deitado. A perna enterrou-se na lama e não sofreu nem uma pisadura.

A viatura sinistrada, carregada de bebidas foi um convite ao fartar vilanagem da tropilha. Cada um safou-se como pode. Eu só saquei duas garrafas do Verde da minha terra. Em poucos minutos ficou vazia. Seguiu-se a retirada da viatura do caminho para a coluna seguir caminho.

Mesmo ali no meio da confusão estava uma mina AP, comodamente escondida que se deixou pisar por toda aquela gente e por mim, possivelmente. Rebentou debaixo de um pneu do atrelado da segunda viatura, (o tal que tentara esmagar a perna do Frank), quando a coluna se pôs de novo em marcha.

Dois dias depois, numa coluna a Nhala, foi localizada mais uma mina no local.

Também na guerra, houve momentos de sorte.
Deixo-vos com o primeiro parágrafo do meu diário desse dia:

Vi a morte à minha frente. Deus pela sua infinita bondade, não permitiu que fosse ainda a minha vez de deixar o mundo.

Zé Teixeira
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 25 de julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3093: Estórias do Zé Teixeira (30): Uma Vida que Deixei Fugir (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Vd. último poste de José Teixeira de 22 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3342: O meu baptismo de fogo (15): Estrada de Buba-Aldeia Formosa, 22 de Julho de 1968 (José Teixeira)

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3093: Estórias do Zé Teixeira (30): Uma Vida que Deixei Fugir (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

José Teixeira ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro CCAÇ 2381 Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70
 
1. No dia 17 de Julho de 2008, recebemos uma mensagem do nosso Enfermeiro José Teixeira, com mais uma das suas estórias.

Caros editores.
Mais uma estória minha, que é de nós todos.

Abraço fraternal
José Teixeira


2. UMA VIDA QUE DEIXEI FUGIR

Por José Teixeira

Saímos de Buba pela seis da manhã com destino a Aldeia Formosa, próximo poiso da CCAÇ 2381 durante alguns meses. Como companheiros tínhamos a CCAÇ 1792 - Lenços Azuis, que nos veio buscar a Buba.

Na coluna, seguiam cerca de três dezenas de viaturas carregadas de mantimentos para as tropas estacionadas em Aldeia Formosa, Mampatá, Chamarra e Gandembel, incluindo os três obuses de 14cm que iam reforçar a defesa de Aldeia Formosa e áreas limítrofes

A estrada (picada) está num estado lastimoso; buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros, foram percorridos em oito horas e meia.

A coluna seguia lentamente, cautelosamente. Os piras concentrados. As mãos de alguns, integrados no grupo de picadores, agarravam febrilmente as varas de ferro com que picavam a terra à procura de algo mais duro que indiciasse uma caixa de madeira ou chapa metálica, onde poderia estar a perigosa mina assassina, que muitos de nós nunca tínhamos visto nem imaginávamos como seriam. Ouvidos atentos aos sinais toc-toc que se repercutiam na terra e ao mais pequeno som diferente, logo ordem de paragem. Ninguém mais se mexia. Uma insistência, o rebuscar da terra envolvente, numa ansiedade indescritível.

Por vezes a descoberta de uma raiz ou uma pedra, provocava um respirar aliviado e a marcha continuava. O olhar atento que se desdobra em todas as direcções; o caminho que se vai trilhar em busca de sinais de terra remexida de fresco; a mata cerrada que nos cerca, onde o inimigo pode estar, aguardando o melhor momento para atacar e matar. Roubar a vida a quem ama a vida, obrigando a uma partida prematura, deixando o futuro cheio de saudades de quem parte e quem assim parte leva imensas saudades do futuro.

O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena núvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo, a conselho de um soldado da milícia que estava a meu lado e me arrastou para o meio de uns arbustos ali na mata. Ele foi a mão de Deus que me protegeu das picadas das abelhas. Não sei se o voltei a ver alguma vez, mas estou-lhe muito agradecido, pela lição que me deu, a qual não só me salvou de umas dezenas ou centenas de picadelas desta vez, como da outra em que eu voltei a cair em situação idêntica.

Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela côr que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada um tanto hilariante de toda a gente que protegia a coluna de viaturas naquele sector. Se o IN tivesse atacado nesse momento seria um desastre total, tal foi a desorganização gerada

Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo...

Que culpa teria aquele jovem que me morreu nas minhas mãos, sem eu lhe poder valer, que os homens não se amassem? Que os políticos não se entendessem?

A sua vontade de fugir à morte impressionou-me e ainda hoje parece que estou a ouvir os seus últimos e já ténues gritos de vida.

Estava a comunicar via rádio com Buba a informar que se tinha passado uma zona considerada perigosa, o entroncamento da estada de Aldeia Formosa com a estrada que seguia para Empada em Sinchã Cherno, sem qualquer dano, quando a viatura em que seguia accionou uma mina anti-carro.

Era a quinta viatura, a mais frágil das que tinham pisado a estrada. Aparentemente estava livre de perigo das minas, dado que as anteriores viaturas eram extremamente pesadas, quer pela carga que traziam, quer pelos sacos de areia que substituam os bancos.

Logo atrás vinha o primeiro Obus de 14, um dos três que se destinavam reforçar a defesa de Aldeia Formosa e áreas limítrofes.


Foto 1 > Um dos Obuses já colocado em Aldeia Formosa.

Ouso pensar que o condutor talvez se tivesse desviado um pouco do rodado feito pelas viaturas antecedentes, sem pôr de parte a hipótese de a mina estar programada, para o carro do rádio ou eventualmente para o Obus.

Dos quatro camaradas atingidos foi o que aparentemente menos sofreu. Não apresentava ferimentos externos. Do estado de choque em que caiu, rapidamente foi recuperado.

Foto 2 > Os três enfermeiros da CCAÇ 2381 – António Lemos, o Jorge Catarino e o Zé Teixeira. Falta o Marques da Companhia dos Lenços Azuis a CCAÇ 1792, que connosco partilhou estes momentos.

Pouco tempo depois começou a sentir falta de forças e a cor da pele que reflecte a vida começou a fugir da sua face.

Sede. Muita sede e o corpo a arrefecer. A angústia e o desespero começa a tomar conta dele e de nós os enfermeiros, que nos apercebemos da situação, sem lhe poder valer. Com a queda tinha rebentado vasos sanguíneos internos, que implicava internamento urgente para ser operado a fim de se localizar a origem e se poder estancar a hemorragia. As forças fugiam a cada momento. Passado algum tempo gritava desesperado:

- Já não vejo! Já não vejo! Vou morrer. Eu não quero morrer, salvem-me!

Impunha-se uma evacuação urgente, mas como?

Os dois aviões que nos tinham acompanhado até aquele local e batido a zona, tinham-se ido embora. As comunicações via rádio foram destruídas pela mina.

- Que raiva, meus Deus!

De nada valeu a água que esgotamos, o soro que lhe demos, o carinho e... talvez as orações de alguns.

A morte veio matar o futuro daquele jovem. A vida fugiu-lhe rodeada de amigos que nada puderam fazer.

O destino marcou no tempo, aquela hora, aquela viatura, aquela vida cheia de vida, que deixou de ser vida. Partiu para sempre cheia de saudade de um tempo a que tinha direito a viver e nem sequer teve tempo para conhecer, porque o seu futuro deixou de existir.

A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficámos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista.

Isto foi a guerra... a dura guerra que vivi!

Zé Teixeira

Fotos e legendas © José Teixeira (2008). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2920: Estórias de Zé Teixeira (29): Um aborto e o porco (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2920: Estórias de Zé Teixeira (29): Um aborto e o porco (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70

1. O nosso Fermero José Teixeira enviou-nos em 23 de Maio mais uma das suas estórias.

Caros amigos editores.
Do sótão das minhas memórias, retirei mais uma estória verdadeira, com algo de caricato.

Fraternal abraço
J.Teixeira
Esquilo Sorridente


Um aborto e o porco

Por José Teixeira

Manhã cedo, batem à porta da enfermaria. Era uma bonita bajuda, creio que era conhecida por Zéza. Morava mesmo ao lado da oficina auto do Quartel, muito perto da casa da Domingas, a lavandera de muitos dos militares estacionados em Empada.

Um respirar acelarado, de quem tinha vindo a correr. Lágrimas nos olhos, sufocada.
Apanhou-me, quando me preparava para ir tomar o pequeno almoço.

- Fermero vem depressa, minha mãe tem doença, sangue, manga di sangue. Ela na vai mori.

Hesitei em mandá-la esperar um pouco, enquanto eu ia ao mata bicho, ou seguir de imediato a jovem até sua casa, ver o que se passava com a mãe, que a trazia tão aflita.

Optei pela segunda opção. Bolsa de enfermagem ao ombro e lá vou eu.

A mãe, de etnia Manjaco, era uma viúva recente di home garandi lá de Empada. Entrou em aventuras sexuais e sofreu as consequências naturais dessa atitude, engravidou. O aborto, foi a solução encontrada com o apoio de uma curiosa, tal como cá, ainda hoje, infelizmente, acontece em muitos casos.

Deparei com uma mulher exaurida, sem forças, sequer para falar, diria que quase em estado de choque e profundamente envergonhada, deitada num velho e sujo colchão de palha. Será que merece este nome? Não sei.

O sangue vazou para o chão térreo, fazendo pequenas poças, onde chapinei sem me aperceber.

Que fazer num caso destes, tão longe de um hospital sem médico por perto, sem meios adequados e sobretudo sem conhecimentos que me permitissem, salvar aquela vida.

Comecei por solicitar a um colega que fosse junto do Comandante, apelar para que se pedisse uma evacuação urgente.

Uma Zimema K, o único anti-coagolante que trazíamos connosco no mato, talvez desse algum jeito, mas o mas importante era colocá-la a soro e esperar que a avioneta ou o hélio pedidos para a levarem para o Hospital em Bissau, chegasse. Podia demorar uma hora ou um dia, nunca se sabe.

Aqui começou a minha luta. Encontrar uma veia, que me permitisse pôr o soro a correr para o seu organismo. A perda de sangue e a dureza da pele, eram factores a considerar, as veias erma coisas que já não se viam nem se sentiam na apalpação e a pele, característica dos povos que não usam sal na comida, por não haver, têm a pele muito rija e seca. (E nós cá no mundo ocidental, a fazer campanhas contínuas a combater o uso de sal em demasia, pois provoca graves doenças) que paradoxo!

Primeira tentativa, infrutífera. Segunda tentativa, de resultado idêntico.

A ânsia e o desespero, apossavam-se de mim, tal a urgência em conseguir resultados positivos para salvar aquela vida.
Há que insistir com paciência. Vamos lá a mais uma tentativa!

De repente, um porco que, suponho, dormia debaixo da cama, acordou e assustado com o reboliço, arranca por ali fora, tropeça nas minhas pernas e foge porta fora a grunhir ruidosamente.

Mais uma tentativa se foi e minha luta continuou, até a agulha, cansada de tanto trabalhar se partiu.

Por fim, lá consegui, com a ajuda do Lemos, o camarada enfermeiro que veio em meu auxílio a pôr a senhora a soro e deste modo, creio, salvar-lhe a vida.

O Héli chegou a tempo de a enviar para o hospital em Bissau e segundo me disse a filha, antes de eu dizer adeus à Guiné, tinha recuperado e estava pronta para outra.

Nesse dia fiquei sem pequeno almoço.

Zé Teixeira

Na foto José Teixeira, de costas, transportando a maca

Foto e legenda: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.
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Nota de CV:

(1) - Vd. último poste da série de 26 de março de 2008 > Guiné 63/74 - P2685: Estórias do Zé Teixeira (28): Trágico enamoramento (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

quarta-feira, 26 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2685: Estórias do Zé Teixeira (28): Trágico enamoramento (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)


José Teixeira
ex-1.º Cabo Enfermeiro
CCAÇ 2381
Buba, Quebo, Mampatá e Empada ,
(1968/70)

1. O nosso camarada José Teixeira mandou-nos, ainda antes da sua viagem à Guiné-Bissau, mais uma das suas estórias, que são indiscutivelmente uma mais valia para o nosso Blogue.




O Lobo de Matosinhos com a famosa Alzira

Foto: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.


2. Trágico enamoramento
O Alzira e... a alzira


Por José Teixeira

O Alzira, alcunha de um camarada de Lisboa, muito comunicativo e com uma excelente voz para cantar o fado, logo uma figura típica na Companhia.
Mobilizado como Condutor, não tinha viatura atribuída, pelo que era mais um Atirador de serviço.

Chegados a Aldeia Formosa (Quebo), surge-lhe pela frente a alzira, velha e ferrugenta GMC, que alguém outrora, baptizara com tal nome.

O Alzira mirava e remirava a alzira. O namoro começou ainda em Buba, quando ele viu pela primeira vez a viatura. Os seus esforços para conduzir a bicha foram nulos, pois a alzira estava afecta à Companhia que nos recebeu – Os Lenços azuis.

Não havia nada que fizesse desanimar o homem. A alzira tinha de ser para ele.

Logo na primeira coluna a Buba, a alzira foi mobilizada para carregar mantimentos e o Alzira para montar segurança, solução ideal para se dar o desejado encontro, para quem há vários meses não pegava num volante. Bastava uma palavrinha ao Condutor da alzira e um desenfianço do Alzira, do Sector em que estava integrado e ei-lo todo ufano a saltar para cima da sua pequena, com a cobertura do furriel da sua equipa.

Tudo corria às mil maravilhas. O Alzira em cima da alzira a dar ao pedal. Ela a gemer por todos os lados com os solavancos provocados pelos buracos da picada e húmida pela passagem nas bolhanhas que a estrada atravessava.

O IN apercebeu-se da festa e veio ajudar, montando uma emboscada.

Iniciado o fogachal, o Alzira pensa possivelmente que o seu lugar não era ali e salta rapidamente de cima da alzira para o chão.

Uma mina anti-pessoal estava à sua espera, nesse preciso momento, mesmo ali a servir-lhe de tapete, na berma da mata, para não ser detectada pelos picadores.

A alzira, impávida e serena, insensível à dor que o Alzira sentia ao perder uma perna, continuou a sua marcha, pelo menos até 1973, quando foi vista e assistida por outro camarada, o Lobo de Matosinhos, Mecânico-Auto.

Possivelmente ainda se encontra por lá, toda ferrugenta se teve a sorte de não marcar encontro com alguma AC

O Alzira, esse regressou a Lisboa, após longas horas de sofrimento e luta contra a morte, pois o héli só o veio buscar horas depois.

O romance acabou de maneira trágica.

Do Alzira nunca mais soube notícias. A alzira, tive o prazer de ver de novo, agora em fotografia, tirada em 1973, cavalgada pelo camarada Lobo.

Zé Teixeira
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Nota dos editores:

(1) Vd. último post da série de 2 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2604: Estórias do Zé Teixeira (26): Mama firme (José Teixeira)

domingo, 2 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2604: Estórias do Zé Teixeira (27): Mama firme (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)


José Teixeira,
ex-1.º Cabo Enfermeiro
CCAÇ 2381
Buba, Quebo, Mampatá e Empada ,
(1968/70)

1. Nesta estória, o nosso camarada José Teixeira conta como um jovem Enfermeiro Militar se deixou encantar por um escultural par de maminhas de uma mulher grande que mais parecia pertencer a uma bajuda.

Qual de nós não se entusiasmou a apreciar uma bajuda com mama firme ou desviou o olhar pudicamente, quando uma mulher grande que, não tendo o encanto da mocidade, impunha um natural pudor.
C.V.


2. Mama Firme

Por José Teixeira

Na chegada à Guiné, de imediato entrava no nosso vocabulário corrente algumas palavras e frases em crioulo, que creio jamais as esqueceremos. Bajuda, mama firma, mulher grande, parte catota, cá miste, gosse, gosse, kunversa giro, vianda, etc.
Depois em função do local onde nos instalávamos, outras surgiam, como djarama nani, oh curá-me, na pinda, etc.

Mama firme, saltava pela boca fora enquanto os olhos, comiam, se possível, os belos e carnudos seios que as bajudas naturalmente nos presenteavam.

Tão natural como a sede que sentíamos, elas andavam despidas da cinta para cima. Esta naturalidade sadia, que para quem estava habituado na cultura ocidental, a imaginá-los dentro de um saquinho, intocáveis, protegidos dos olhares curiosos por uma blusa ou camisola, tornava-se uma novidade gratificante ao olhar e aos sentidos mais profundos de um sensualismo contido por uma educação marcadamente religiosa.

Naturalmente, éramos impelidos a fazer o correspondente teste ou apalpação, ao qual as bajudas nem sempre se prestavam.

Eu não fugi à regra. Tinha uma vantagem acrescida em relação à maioria dos magalas. Eram elas que me procuravam na Enfermaria, à procura de mesinho para as suas maleitas: Fermero, cabeça ê na dê, parte quinino; bariga suma tambô, parte mesinho; minino ê na turse; a mim na tem doenza, etc, etc.

Para quem passou pela Guiné, não é necessário relembrar o quanto eram (e continuam a ser) belas, muitas das bajudas e até mulheres grandes, que connosco se cruzaram nos caminhos que em conjunto palmilhámos.

Logo nos primeiros dias de estadia em Ingoré, manhã cedo, fazia o rastreio do tipo di doenza dos nativos que se encontravam na fila à espera da sua vez para serem atendidos.

Deparo com uma jovem alta e esbelta bajuda, redondinha de cara, com uma expressão muito alegre, que cativava mesmo.
Estava despida da cinta para cima, como era uso e costume. Os seios avantajados completavam uma fisionomia, que atraía todos os olhares machos.

Como um bebé que acaba de descobrir a palavra mamã e não se cansa de repetir, eu balbuciei: - mama firme - e preparava-me para fazer o teste da apalpação para alimentar os meus instintos sensuais.

Levo um rápido - nega mesmo, a mim mudjer garandi - enquanto cruzava os braços sobre os seios e expressava um belo sorriso.

Pode lá ser! Uma bajuda tão bonita, já sem cabaço, pensei eu. E, insisti novamente animado pelo sorriso cativante. Obtenho a mesma resposta, mas não desarmo.

Então ela, aproveitando um momento em que aproximei a minha face, comprimiu um dos seios, esparranhando-me a cara com o seu leite, branco, cremoso e quente, que guardava para o seu bebé, para gáudio do mulherio presente que expressou uma sonora gargalhada colectiva.

Eu, de rabinho entre as pernas, retirei-me para dentro da enfermaria e fui limpar a cara a uma compressa.

Zé Teixeira
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Nota dos editores:

(1) Vd último post da série de 10 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2518: Estórias do Zé Teixeira (25): Estranho convite (José Teixeira)

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2518: Estórias do Zé Teixeira (26): Estranho convite (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

José Teixeira (ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro CCAÇ 2381 Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70) conta-nos como recebeu um convite inesperado do seu amigo Raúl Fodé, apresentado no último post da série Estórias do Zé Teixeira (*).


Estranho convite

Por José Teixeira

Numa daquelas noites que mais parecem dia, graças à fonte luminosa da lua que em algumas épocas do ano inunda as terras da Guiné, sentados na raiz de um frondoso poilon, eu e o meu amigo Raúl Fodé, já perto do fim da minha Comissão, reflectíamos sobre o que seria a Guiné nos anos próximos.

Para ele, o mais importante era que o homem grande de Bissau – Spínola – conseguisse conter o PAICG e acabar com a guerra que lhe matava os irmãos.

Bandido (1) qui vai na mato tinha muita gente boa, gente que ele mesmo conhecia, gente que como ele rezava a Alá todos os dias às mesmas horas, voltados para o mesmo lado, a cidade Santa de Meca. Também havia muitos cristãos dizia ele, que tinham fugido para o mato.

Perguntei-lhe então porque é que essa gente não entregava as armas e regressava. Deixava a luta e procurava a paz?

- Ká pudi mesmo - disse ele com veemência. Olhou para mim muito sério, respirou fundo e ficou-se num mudo silêncio por largos minutos, até que explodiu:

- Esta terra era muito rica, grandes bolanhas, manga de roz, milho, peixe e caça. A população era feliz: Manjacos, Beafadas, Fulas, Mandingas e até Balantas, sem problema. Tínhamos a nossa Lei. Os Régulos eram respeitados.
Apareceram os brancos da Casa Gouveia e outros. Empada tornou-se grande no comércio. Todos os dias seguiam para Bissau, barcos carregados. A população ganhou alguma coisa?
Repara - apontando - casa de branco, outra casa de branco, outra e outra. A Avenida principal de Empada estava plena de palacetes estilo colonial, que os brancos abandonaram e agora estão ocupadas por personalidades gentílicas, na sua maioria, graças à psico que impera por razões de estratégia militar.

Note-se que ainda hoje lá se encontram num estado de degradação total, bem como a própria avenida. Que linda que ela era!

- A população - continuou ele - que tanto trabalhou, que tem ela? A velha morança para habitar, a guerra que nos dividiu e nos mata em cada dia que passa.

Recordo que em 1969, viviam em Empada dois brancos: o merceeiro, que explorava um pequeno entreposto comercial, onde com terrível suspeição, se viam entrar diariamente, muitas caras desconhecidas, vindas não sei de onde.
Depositavam os seus sacos de produtos agrícolas ou de coconote e compravam panos, cana sabão e outras utilidades.
Tal como apareciam, rápidos e em silêncio assim desapareciam, cumprimentando na linguagem local os seus conterrâneos, embrenhando-se na mata.

O outro branco era um velhinho, muito alegre e comunicativo. Muito acarinhado pela população. Estava na Guiné desde jovem na região Tombali há muitos anos. Dedicava-se a estudar e orientar as linhas de água para um eficiente irrigação das terras cultiváveis e deste modo proporcionar melhores e mais rentáveis produções agrícolas.

A politica e a guerra não lhe diziam nada. No mínimo, não expressava sentimentos ou opiniões. A população, essa dizia-lhe muito. Deste modo era querido e respeitado por todos e tolerado pelos militares. Nunca o vi no quartel e a sua casa também não era poiso de fardas. Creio mesmo que se furtava ao contacto com os militares.

Tive o privilégio de conversar algumas vezes com o simpático velhinho, cujo nome se escondeu no sótão mais afastado da minha memória, chamemos-lhe Fernando.

Retenho a imagem de alguém que amava aquela terra e aquelas gentes, como nenhum outro branco que eu tenha conhecido na Guiné.

Mas voltemos ao Raúl Fodé. Desviou a conversa para as necessidades da população, nomeadamente a saúde e, de repente, lança-me um desafio que me deixou profundamente perturbado.

Dizia ele: - Agora temos médico (de vez em quando), temos enfermaria, mas quando a tropa branca for embora, a população fica sem nada. Há muitas tabancas aqui à volta(2). A população precisa de enfermeiro.
Teixeira, nós queremos que tu fiques em Empada, para tratar da população. Tens mulher e tens vianda, fica. Vai a Bissau entrega a arma (a G3 que eu não usava) e volta para Empada.

Hoje ao recordar este episódio, sinto quanto fiquei baralhado da cuca. Sei que a minha resposta começou pelo o silêncio de uma mija, voltado para o tronco da árvore, seguindo-se uma sonora gargalhada.

- Tás maluco! Eu ficar aqui! Quando o bandido vier, sou o primeiro a embarcar.
-Repara no Fernando - retorquiu o Fodé - toda agente lhe quer bem. Vai às bolhanhas fazer o seu trabalho. Bandido o trata direito e respeita. Fernando é gente boa, não precisou de fugir como todos os outros brancos.

- Mas eu... quero ir-me embora. Não posso, não quero ficar.

- Mas nós gostava...

Dois meses depois abandonei Empada, para só voltar em romagem de saudade em 2005. Infelizmente o Raul Fodé, já tinha partido para junto de Alá.

Ficamos a correspondermo-nos durante alguns anos. Numa das suas últimas cartas recebo um estranho apelo: - Teixeira, a guerra está perigosa, a população foge para o mato ou para Bissau. Eu quero ir para Lisboa, peço-te para me levares para junto de ti.

Argumentei que não era possível. Ele tinha mulheres (3) muitos filhos, seria impossível. Argumentou que vinha sozinho, as mulheres e os filhos ficavam em Empada, viriam mais tarde.

Foi um dilema que me ficou na consciência. Pouco depois perdi o contacto. Soube posteriormente que faleceu na sua Empada, onde era estimado e querido.

A substitui-lo na Mesquita ficou outro meu amigo, também ajudante de enfermeiro o Braima, a quem tive o prazer de abraçar em 2005.

Foto 1> Guiné-Bissau> Empada 2005> José Teixeira encontra um antigo milícia, que quis ficar na fotografia, acompanhado de sua filha.

Foto 2> Guiné-Bissau> Empada 2005> José Teixeira com o seu antigo companheiro Braima. Após a morte de Raúl Fodé, Braima substituiu-o na Mesquita de Empada.

Fotos: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.
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Notas do autor:

(1) Bandido, pessoa que se afasta da tabanca fiel ao governo, inimigo, turra (para a tropa)

(2) Tabancas controladas pelo PAIGC, mas na enfermaria não fazíamos o controlo, como também não havia qualquer controlo sobre a população que ia a Empada vender ou comprar produtos na loja local.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 5 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2507: Estórias do Zé Teixeira (25): Raúl Fodé (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2507: Estórias do Zé Teixeira (25): Raúl Fodé (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)


O nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), que vive em Matosinhos, mandou-nos mais um testemunho da sua vivência com aquela boa gente da Guiné.

Desta feita, apresenta-nos o Raúl Fodé, uma figura marcante de Empada, com quem o Zé Teixeira mantinha longas conversas, não fossem eles camaradas na área da saúde.


O Raul Fodé

por José Teixeira (1)

Escrever sobre o Raúl Fodé é deixar vir à ribalta da memória acontecimentos, vivências e emoções que o deslizar galopante dos anos impregnou de poeira impiedosamente. Marcas que afectaram positivamente as nossas vidas, contribuindo para uma forte e sincera amizade.

Partiu uns anos depois ao encontro eterno com Alá e as suas setenta mil virgens, mas o seu espírito continua vivo na minha memória.

Homem culto, profundamente religioso, homem afável e conversador, observador atento a tudo quanto o rodeava, muito respeitado localmente pelo seu carácter, facilmente cativava amizades.

Servia Portugal como soldado da milícia na área da saúde, em Empada, como enfermeiro auxiliar no Pelotão de Milícias. Por tal facto colaborava na enfermaria do quartel no acolhimento e tratamento das maleitas da população.

Alfaiate de profissão, era um gosto vê-lo, sempre que a vida militar o libertava, à porta da sua morança a costurar. Era também o Imã na Mesquita local, onde orientava as rezas, escrevia as tábuas do Corão para os putos decorarem, como é principio básico da religião muçulmana, ou mesmo a catequizá-las, levando-as a cantarolar aquela cantilena tão característica, que nos transportava à nossa infância, quando cantarolávamos o Pai Nosso ou a Salvé Rainha, orientados pela respeitável mestra (catequista) local, ou mesmo à escola onde tentávamos encornar a tabuada, o célebre dois vezes um.. dois, dois vezes dois... quatro...

À noite, sentado na soleira da porta da sua morança, dava conselhos aos mais novos ou ouvia respeitosamente os mais velhos ou quem tinha outro tipo de conhecimentos, que porventura lhe interessassem para enriquecer a sua já vasta biblioteca cerebral.

Considero-me um felizardo em ter podido viver e conviver com o Fodé. Sempre disponível na enfermaria, quando saíamos para as operações em conjunto, era o meu braço direito no transporte do equipamento de enfermagem – bolsa e maca.

Quantas noites ficámos os dois à conversa! Tudo se discutia: religiões, cristã e muçulmana, com os seus dogmas, verdades e princípios, literatura, geografia, política, etc. A política era um tema perigoso, que se falava quando estávamos sozinhos, pois até no mais interior da Guiné a PIDE tinha ouvidos.

Como língua, usava a da sua etnia, a da sua religião, o português falado e escrito correctamente, o crioulo e mais uma ou duas línguas locais, de povos ligados pela religião na Mesquita local.

Gostava muito que lhe falasse de Portugal , de Lisboa sobretudo, onde sonhava ir um dia.

Um exemplo de exploração colonial

Uma das nossas conversas desandou para o rumo da Guiné nos tempos futuros. Sentia-se português, mas tinha muito medo do futuro, porque a tropa não sentia o pulsar da Guiné e os brancos que por lá tinham passado, no seu espírito comerciante de ganhar dinheiro, tinham feito muito mal à população.

Fui cáustico para com ele, questionando-o se não ganharia mais a trabalhar a terra, apesar do esforço e trabalho exigente, do que a servir a tropa, pois um dia a guerra teria um fim. O que seria da sua gente ?

Sua resposta cruel veio de seguida para abalar a minha consciência de branco, educado num ambiente colonizador, em que os africanos eram os pretinhos coitadinhos e nós, os portugueses, os seus salvadores, porque lhe levámos a religião cristã e a civilização.

Disse-me ele:
- A região do Tombali, tal como a de Forreá, foram outrora muito ricas em arroz, milho, madeiras, peixe, etc. As etnias tinham os seus chefes, as suas normas e conseguiam entender-se de modo a que tudo estava bem. Chegaram os brancos vindos de Bissau, a produção aumentou muito, desenvolveu-se a produção da mancarra, que deu cabo da terra. A população começou a trabalhar para os brancos, dividiu-se e lentamente empobreceu, apesar de trabalhar e produzir muito mais. Os brancos, esses, ganharam muito dinheiro. Repara, eu, Fodé, vou na bolanha, com mulheres e filhos, rasgo a terra e semeio mancarra. Arranco as ervas más, cavo a terra para amolecer e provocar o enraizamento, passo lá todo o tempo a defender de animais e do bandido. Quando está seco, corto separo e ensaco, transporto para loja do branco, que me paga um peso [moeda antiga que correspondia a um escudo] por saco. Quando chega o barco, tenho de fazer o transporte desde a loja do branco. Isto é tudo trabalho meu. Agora sabes quanto recebe o branco por cada saco de mancarra ?
- Dois pesos - disse eu convictamente.
- Dois? Era bom! Por cada saco de mancarra, cultivada, secada, ensacada e embarcada por mim, o branco recebe quinze pesos.

Era este Portugal que tínhamos na Guiné, antes da guerra colonial começar.

Zé Teixeira

Guiné-Bissau > Mampatá > 2005 > José Teixeira reencontra bajuda de outros tempos
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 7 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2087: Estórias do Zé Teixeira (24): Vítimas inocentes (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2087: Estórias do Zé Teixeira (24): Vítimas inocentes (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)


José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , (1968/70)

Mais uma estória comovente do nosso camarada Zé Teixeira.
Tão fundo lhe tocou este acontecimento que lhe inspirou um pequeno, mas belo poema.

Sabe-se que todas as guerras fazem vítimas independentemente de se ser militar ou civil, homem, mulher ou criança. Toda a gente está sujeita ao acaso de uma bala ou granada perdidas.
O nosso conflito não foi excepção.

No caso vertente, foi uma inocente bebé a vítima de uma guerra, que como todas são injustas e nunca deviam sequer começar.
CV

Vítimas inocentes

Era meu hábito, bater uma soneca depois de almoço, tendo como companhia a minha Maimuna (A bebé que em Mampatá Forreá me fazia companhia diariamente).
Na primeira vez que o tentei fazer, o raio da miúda chorou todo o tempo, obrigando-me a ir perguntar à Ansaro, sua mãe, qual seria a razão para ela não querer dormir comigo. Aconselhou-me a deitá-la junto às minhas costas. A catraia agarrou-me na camisa de um lado e do outro e adormeceu toda a tarde.

Fenómeno estranho, mas natural em ambiente de guerra. Segundo a mãe, à noite amarrava-a às costas, deitava-se e assim dormiam as duas. Era uma forma segura de em caso de ataque, ao fugir para o abrigo, ter a certeza que levava a bebé com ela.

Guiné-Bissau, 2005> Zé Teixeira, não com a "sua" Maimuna, mas com um menino que a fará lembrar.

Mais tarde em Buba, sofremos um violento ataque às cinco da manhã. Alguns feridos na população civil, entre os quais a Suade, mãe de uma bebé que morreu carbonizada.
A jovem mãe chorava inconsoladamente e pedia com insistência que a deixasse morrer, quando eu, com cuidado a tratava dos diversos estilhaços que tinha espalhados pelo corpo, mas sem aparente gravidade de maior. Porque ainda não conhecia o seu drama, eu não estava a entender a razão do seu estado emotivo, que chegou a perturbar-me.

Logo que estabilizei a doente, parei todo o trabalho, apesar de haver mais feridos (ligeiros) à espera e procurei acalmá-la e assim pude ouvir, viver e entender a drama que a consumia.

Tinha por hábito deitar-se a dormir com a bebé amarrada às suas costas, como era vulgar vê-las, as mudjer garandi, ou mesmo as badjudas e badjudinhas (com os manos mais novos) durante o dia, a pilar o arroz.

Alta madrugada deu-lhe de mamar e deixou-se adormecer com a criança a seu lado.

Surgiu o inesperado ataque. Estonteada pelo violento estrondo arrancou para o abrigo e quando repara que não levava a bebé consigo, voltou para trás, mas não chegou a tempo. Uma granada assassina que ia direccionada para o local onde estava o obus, rebentou na crista da sua morança, projectou-a para o chão e carimbou-a com estilhaços.
Quando recuperou, já era tarde. A morança estava num braseiro e a sua bebé lá dentro, carbonizada.

A morte da sua filha tinha-lhe tirado o sentido da vida. Assumia toda a culpa no acontecimento. Se nunca fazia aquilo, mesmo quando se passava algum tempo sem visitas do bandido, havido um ataque uns dias antes, porque o fez naquela noite? Perguntava-se a si própria e chorava, chorava ...

Momentos difíceis que ainda hoje me arrepiam.
Pobre criança, vítima inocente de uma estranha guerra,
Pobre mãe que carregava as culpas que não eram suas.

Descarreguei minha raiva num poema que nesse dia fiz, à sombra do mangueiro que havia na parada, meu companheiro de longas horas, pela sombra e protecção que me dava sem cobrar alvíssaras.

Guerra, Sinal de Morte

Uma granada.
Vinda não sei de onde.
Lançada, não sei por quem.
Rebentou.
... E aquela criança,
Que brincava, além
A morte, a levou...
Na areia brincava...
E sua mãe,
Que seus paninhos lavava.
Estremeceu.
Por triste pressentimento.
Seu olhar volveu.
...Um grito
E desmaiou.
No preciso momento.
Em que seu filho morreu.

Zé Teixeira
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Nota do editor:

Vd. Último post desta série de

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2080: Estórias do Zé Teixeira (23): Tuga na tem sorte (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)


Em mensagem dirigida ao blogue, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , (1968/70) mandou-nos mais uma das suas notáveis estórias. Esta descreve uma situação de ataque ao aquartelamento de Buba, momento em que se vivem situações aflitivas, ridículas, de sorte ou azar, e muita, mas mesmo muita confusão.

Temos também o relato de um encontro amistoso entre inimigos, no HM 241, durante o qual o nosso camarada ficou a saber que teve imensa sorte ao ter sido abortada uma saída para o mato, de um grupo de combate em que ele estava integrado, pois o IN tinha-lhes preparada uma recepção em grande.


Guiné-Bissau> 2005> Zé Teixeira, no Cais de Buba, matando saudades


2. Tuga na tem sorte!

Eram quatro horas da manhã do dia 14 de Fevereiro de 1969, quando acordei com o ruído provocado por um colega, que animado por uma cervejica a mais, se veio deitar. Apesar de estar com o fato que minha mãe me deu no momento em que iniciei a caminhada da vida, o calor era tanto que a transpiração se tinha alojado no lençol, no terceiro andar da camarata onde tinha poiso para dormir.
Em noites assim quentes tinha por hábito, antes de me deitar, meter-me debaixo do chuveiro, deixar correr a água uns minutos e de seguida estender-me no leito, com o corpo bem molhado, à espera que o sono chegasse.
Outros camaradas adoptaram o sistema de encher o estômago com umas bazookas, bem fresquinhas, deixando que os vapores do álcool os ajudasse a passar para o lado do morfeu, o deus dos sonhos.

Por mais voltas e reviravoltas que desse na tarimba, o sono recusava-se a voltar, pelo que resolvi repetir a dose de chuveirada e voltei para o leito.

Após dois dias seguidos de saídas para protecção aos trabalhadores, na construção da estrada Buba/Aldeia Formosa, ia ficar um dia no quartel de serviço à Enfermaria se nada houvesse de anormal por parte do IN que exigisse mudança de planos.

Estava uma noite daquelas em que não se vê nada a um palmo do nariz. Só quem por lá passou é que sabe o que são estas noites e o medo que metiam, sobretudo para quem estava de sentinela, emboscado no mato ou em marcha para alguma operação surpresa.

Estendido de novo na cama, agora com o corpo bem fresquinho, tentava conciliar o sono, antes do burburinho da partida para os trabalhos da estrada dos grupos de combate escalonados, previsto paras seis da matina.

Alvorada atribulada
Deviam ser umas cinco horas quando o IN resolveu antecipar a alvorada, com 14 canhões s/recuo, quatro morteiros 120, bazookas e lança rockets, sem faltar as célebres costureirinhas, tudo em simultâneo e a cerca de duzentos metros do aquartelamento.

É fácil adivinhar a estrondosa alvorada, que se estendeu por longos e angustiantes minutos, animada pelo nosso morteiro de 80 mm, mais os de 60 que foram aparecendo, mais os obuses de 10,5 e mais as G3 que não podiam faltar nesta animada festa de alvorada.

Claro que eu, estando acordado, fui dos primeiros a chegar à meta, perdão à vala que se estendia em serpentina pela parada fora, vendo logo de seguida, centenas de corpos vestidos, à moda do pai Adão, mergulharem a grande velocidade, sem pedirem licença a quem tinha chegado primeiro. Foi um tudo ao molho e fé em Deus que originou alguns arranhões, hematomas e gritos, com palavras pouco agradáveis ao ouvido, à mistura.

Estranha forma de acordar as três Companhias Operacionais e a 15.ª de Comandos, se a memória não me atraiçoa.

Uma das primeiras granadas esmagou-se ali bem perto contra a parede do depósito da água, junto da minha caserna, fez um buraco e rebentou, deixando estilhaços em tudo o que era chão e... água, que rapidamente correu para a vala também, ensopando os corpos que lá se refugiaram. Foi o suficiente para acordar os mais retardatários, pois que os “velhinhos” impulsionados por uma mola invisível, ao ouvirem (acordarem) o som das saídas, lá longe, ou pelo grito “aí vem eles, filhos da puta, saltaram num ápice da cama e foram-se esconder na bendita vala, que tantas vidas salvou. Apenas um, por lá se deixou ficar, impávido e sereno, o colega, que me tinha acordado, cerca de uma hora antes e que só acordou horas depois, sem ter dado por nada do que entretanto aconteceu, tal era a “ramada”.

Mais rebentamentos se seguiram na parada, junto à Messe, junto à Enfermaria, na cozinha, etc. Depois foram-se perdendo por outras direcções que em nada nos afectaram, mergulhando a maioria no rio e na floresta em frente.

Perante tão poucos estragos, perguntei a mim próprio se de facto o IN estava ali para nos fazer guerra, ou apenas nos queria acordar. Da refrega tivemos um ferido ligeiro.

Sair de imediato, sim ou não?


Iniciadas as tréguas, são de imediato mobilizados dois Grupos de Combate (os que iriam ficar no Quartel durante o dia), para iniciarem a perseguição, tendo como enfermeiro de serviço, a minha pessoa.

Formados junto à saída para a pista de aviação, aguardávamos ordem de partida, quando o seu Comandante, o saudoso Alferes Barbosa (já falecido), repensa a estratégia e decide ir junto do Major Carlos Fabião, propor que a nossa saída se fizesse um pouco mais tarde, depois da aviação bater o terreno, pois o dia estava ainda a clarear. O risco de o IN estar emboscado por perto, a proteger tão grande arsenal, era evidente e uma perseguição desacautelada podia ser fatal.

Foi então a força dispensada.

Ao nascer do sol, veio a aviação, explorou o terreno e lá seguiu um Grupo de Combate a fazer o reconhecimento.
Verificou-se no local de onde partiu o ataque os indicadores do equipamento utilizado, com marcas de sangue, o que quer dizer que, no retribuir pouco amistoso de cumprimentos, acertámos no alvo. Regressaram com umas dezenas largas de invólucros, para registo histórico da festa de alvorada tão despropositada.
Os trabalhos na estrada nesse dia começaram mais tarde.

Eu segui para a Enfermaria, tratar arranhões, hematomas, unhas dos pés partidas ou arrancadas, uma ou outra ferida mais grave em resultado do conflito entre um corpo humano em fuga para vala protectora e um obstáculo mais agressivo, que lhe fazia barreira.

Os caixotes onde guardávamos os nosso parcos haveres, eram metidos debaixo da cama e à noite serviam de suporte (escadote) para os camaradas que tinham de subir para as tarimbas do 2.º e 3.º andares. Em caso de ataque nocturno, tornavam-se num perigoso impecilho na fuga apressada para a vala ou abrigo.

Feridos graves, houve um. Da parte da população houve alguns bem graves, tendo morrido carbonizada uma criança e foram queimadas nove moranças.

Encontro imediato com o IN

Um ano depois, já em Bissau a aguardar a embarque de regresso, fui ao Hospital Militar visitar o querido amigo Dr. Azevedo Franco e acompanhei-o na visita clínica aos seus doentes de ortopedia, entre os quais os IN aí internados em enfermaria própria. Um doente especial chamou-me a atenção pela sua história. Tinha sido ferido pelas nossas forças com uma rajada na perna que lhe atingiu também a barriga, ficando de intestino a céu aberto. Aguentou três dias enterrado no tarrafo de uma bolanha, até ser feito prisioneiro e enviado para o HM 241 em estado crítico. Estava safo, apesar de manco para toda a vida. Era apresentado como referência, pela sua capacidade de resistência.

Tentei entabular conversa e obtive como resposta: - “A mim ká sibe portugué, a mim ká miste papeia cum tuga”. Ao que eu ripostei: - Ká na tem probleminha, e, fui dar duas de conversa com o vizinho.

No dia seguinte ao entrar na enfermaria, notei-lhe um sorriso e fui cumprimentá-lo. Fiquei por ali cerca de meia hora, a falar em crioulo, das “nossas guerras”. Por onde andámos, onde nos cruzámos sem nos ver e nos cumprimentámos, nas linguagem da guerra maldita que nos separou até aquele momento. Talvez, não o afirmo, tivéssemos falado das razões que nos assistiam e fizeram de nós inimigos sem nos conhecermos tão pouco. A sua história de guerrilheiro começava com o início da guerra. Tinha corrido já a Guiné toda, mas nos últimos três anos estacionara no Sul, onde foi ferido e feito prisioneiro, precisamente o chão por eu andei também.

Ao saber que eu tinha estado em Buba, perguntou. Estavas lá naquele ataque que fizemos antes do sol chegar? (1)

Ao responder-lhe afirmativamente, continuou: - Logo que nosso ataque terminou, a tropa ia sair pelo portão da pista e recuou. Que pena! Eu estava logo ali à frente, emboscado, na curva da estrada, (para Sinchã Cherno) junto à berma da pista, à vossa espera. Tínhamos muito material a proteger e vocês tinham a mania de vir logo a correr atrás de nós... ia ser “manga de ronco”.
Pois... e eu estava lá, nesse grupo !

Tuga na tem manga di sorte! Um sorriso e um abraço talvez tenha selado este feliz momento.

A conversa continuou, enquanto o médico fazia a sua visita clínica.

Houve ainda outro dia em que pude voltar a falar com ele. Como gostava de ter gravado as nossas conversas, já que estes momentos jamais sairão da memória. Já com muito pó, a memória recusa-se a deitar cá para fora, tantos momentos, dias, horas, minutos marcantes, bons ou menos bons daquela vida de “guerrilheiro à força”.

Guiné-Bissau> Sare Tuto> 2005> Hoje, tal como ontem, encontro com o ex-IN. Na foto, ex-combatente do PAIGC que actuava em Buba.

Dantes era penoso reviver estes momentos, a mente recusava-se sem o espírito saber porquê. Traziam dor, amargura e sofrimento.
Hoje torna-se gratificante deixar a memória recuar e patinar naquele pântano, reviver, re-analisar ponto por ponto, acção por acção, gesto por gesto e redescobrir-me de novo.

Notas do Zé Teixeira:

(1) - De recordar em Outubro seguinte houve um ataque a Buba muito mais perigoso, com tentativa de assalto desenvolvido do lado da pista, precisamente pelo local onde este “nosso amigo” tinha estado emboscado, enquanto do lado do rio atacavam com artilharia pesada.

Este sim era para arrasar Buba com tentativa de penetração por parte do IN.
Pelos documentos que foram apanhados ao Capitão Peralta, (um croquis muito bem elaborado) foi possível verificar que este fez um estudo aprofundado de Buba e esquematizou o ataque de forma (aparentemente) tão bem organizada, que seriam “favas contadas” e Buba seria o seria o principio do fim, como o foi posteriormente Guiledje e Guidadje. Alguns pormenores, no entanto, segundo o Major Carlos Fabião (a) deitaram tudo a perder:

a) - O estudo do terreno pelo Peralta foi feito com a maré cheia. Um rio só, grande e largo. O ataque foi desenvolvido em noite de maré vaza, logo em vez de um rio só e grande apareceram-lhe também vários braços de rio. Foi a confusão total, pois tinha mandado avançar as tropas pelo meio do capim e montar o equipamento em determinado sítio junto à água, no meio do capim, em vez de água, havia muita terra à frente, sem capim, o que provocou a confusão.

b) - O Peralta ao fazer o reconhecimento deixou vestígios de passagem de pessoas que foram detectados pelas nossas forças. Foi decidido pelo Comando Militar de Buba, chefiado pelo Carlos Fabião, que um Grupo de Combate ficasse no exterior durante a noite.

Quando iniciaram o ataque, as tropas IN que se preparavam penetrar na povoação, viram-se confrontadas com um ataque pela retaguarda e fugiram.

Por outro lado, os fuzileiros reagiram a quente e contra-atacaram rapidamente junto ao rio, o que originou a debandada geral do IN.

Pregaram sim, um grande susto à nossa gente.

Seria interessante recolher o testemunho do comandante Júlio de Carvalho, que acompanhou o Capitão Peralta no estudo e comandou este ataque.

Felizardo fui eu, que entretanto já me tinha retirado para Empada e apenas ouvi lá de longe, o “manga de sakalata” em Buba.

(a) - Carlos Fabião em “A Guerra de África” por José Freire Antunes, Volume I, edição do Círculo de Leitores

José Teixeira
ex-1.º Cabo Aux Enf
CCAÇ 2381
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Nota do editor:

Vd. Último post desta série de 2 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2078: Estórias do Zé Teixeira (22): Saiu-lhe a sorte grande (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)