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quinta-feira, 9 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16182: Memória dos lugares (340): Gadamael, 1974: foto dos régulos de Ganturé e de Gadamael... O de Ganturé chamava-se Abibo Injassó (Carlos Milheirão, ex-alf mil, CCAÇ 4152/73, Gadamael e Cufar, 1974)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CCAÇ 4152/73 ( Gadamael e Cufar, 1974)  > 1974 > Régulos de Ganturé e de Gadamael... O de Ganturé chamava-se Abibo Injassó.

Foto: © Carlos Milheirão (2016). Todos os direitos reservados.




1. Mensagem de Carlos Milheirão [ex-alf mil, CCAÇ 4152/73, Gadamael e Cufar, 1974]


Data: 9 de junho de 2016 às 00:02


Assunto: Foto de Gadamael


Olá, caro Carlos Vinhal

Porque li um "post" em que alguém falava do régulo de Ganturé, lembrei-me de que tenho uma foto onde estão os dois (o de Ganturé e e o de Gadamael). Não me lembro de quem é quem mas lembro-me que o de Ganturé se chamava Abibo [Injassó].(*)

Abraço,

Carlos Milheirão (**)

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Notas do editor:



(...) A CART 494, comandada pelo então Capitão de Artilharia Alexandre Coutinho e Lima, embarcou em Lisboa, no navio Niassa, em 17 jul 63, tendo desembarcado em Bissau em 24 jul.

Esteve em Ganjola  (Norte de Catió), desde 17 set 63 (, desembarcámos às 11H00, ) até 15 dez 63, sendo a primeira tropa portuguesa a ocupar aquela localidade.

O baptismo de fogo foi no dia da chegada, em pleno dia (16h30); um grupo inimigo (IN) atacou com grande intensidade de fogo, aproximando-se a cerca de 3 metros, nas poucas zonas onde já estava instalado.

O IN teve 4 mortos confirmados, encontrados no meio do capim, com as respectivas armas: 2 Espingardas Mauser, 1 carabina e 1 pistola metralhadora PPSH. As nossa tropas (NT) não tiveram a mais pequena beliscadura; foi um dia de muita sorte.

Desde 17 set 63 até 28 mai 65, ocupou Gadamael, sendo a primeira Companhia naquela localidade. Neste período, construiu, a partir do zero, dois aquartelamentos: a sede da Companhia e o destacamento de Ganturé.

Realizou uma intensa actividade operacional, no sector que lhe foi atribuído, bem como a abertura e manutenção dos respectivos itinerários. Gadamael foi uma verdadeira plataforma logística, pois no seu “porto” desembarcavam os reabastecimentos para a Companhia e para as guarnições de Guileje, Mejo e Sangonhá/Cacoca, que davam origem às respectivas colunas, para os levar ao destino.

A Companhia realizou uma permanente acção psicossocial, no sentido de fazer regressar as populações, que se traduziu pelo regresso a Ganturé do seu Régulo Abibo Injassó e de 108 elementos da população.

Desde 28 mai 65 até 18 ago 65, esteve no sector de Bissau, onde desenvolveu acções de patrulhamento, acção psico social e assistência sanitária às populações.

A Companhia regressou a Lisboa em 18 ago 65, a bordo do navio Uíge; seguimos para o Regimento de Artilharia Pesada nº. 2, em Vila Nova de Gaia, onde o pessoal foi desmobilizado. (...)






sexta-feira, 3 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16164: Dossiê Guileje / Gadamael (27): Tenho cada vez mais a certeza de que andaram a gozar comigo - ou connosco - durante 13 anos (António J. Pereira da Costa, cor art ref (ex-alf art, CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-cap art e cmdt, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74)


Guiné > Região de Tombali > Sangonhá, a sul de Gadamael-Porto > c. 1967/68 > Vista aérea do destacamento, "uma espécie de fortim do faroeste", com um heliporto, uma pista de aviação, barracões e três poilões... Na altura  estava a chegar uma coluna militar [lado esquerdo]. Foto, provavelmente tirada de uma aeronave DO 27, de autor desconhecido. Proveniência: Álbum fotográfico Guiledje Virtual. Cortesia do nosso saudoso amigo Pepito (1949-2014), cofundador e líder da AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) até à data da sua morte (, em Lisboa)

Foto: ©  / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados (Edição e legendagem: L.G.).




Guiné > Mapa da província > Escala 1/500 mil (1961) > Detalhe: Posição relativa de Sangonha e Cacoca, as nossas posições mais próximas da fronteira com a Guiné-Conacri, a sudeste. Estes dois destacamentos e tabancas foram abandonados pela CCAÇ 1621 em 29/7/1968, por ordem de Spínola.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)


1. Comentário de António José Pereira da Costa ao poste P16152 (*)

Cor art ref (ex-alf art , CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-cap art e cmdt, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74)

Olá,  Camaradas:

Considero que o abandono controlado de Sangonhá, Cacoca e, posteriormente, Ganturé, preparou o que viria a suceder em 1973. 

Sei, porque assisti à reunião, que o brigadeiro Spínola queria recuperar tropa da quadrícula para a intervenção e, por isso, contra a opinião do "meu capitão", determinou o abandono imediato de Sangonhá e Cacoca. Por fim, já em janeiro de 1969, Gandembel foi-o também e Mejo, onde chegou a haver uma companhia sediada, já o tinha sido. 

Podemos dizer que, em janeiro de 1969, a extremidade sul  da Guiné estava guarnecida por Cacine, Cameconde, Gadamael e Guileje o que é manifestamente pouco, até em termos de apoio mínimo. 

Tenho para mim que o controlo da estrada Cacine-Guileje era essencial para a manobra das NT, mas muito difícil de obter e manter. A superioridade do In em termos de apoio de fogo (artilharia) foi sendo cada vez maior (parece que com apoio topográfico e observação) e a possibilidade de cada uma das companhias actuar, com êxito, no seu sector, restringindo a passagem ao In era muito pequena. Além disso, o In não necessitava de residir na área, a não ser a sul de Cacine onde se estabelecera desde o início e ficou. 

A situação táctica tornou-se numa bomba-relógio que teria de explodir, mais tarde ou mais cedo.
Saliento que a capacidade de actuação do Comando do COP 5 era mínima, com três companhias dispersas, sem cavalaria (necessária para a movimentação das unidades) e sem qualquer unidade de intervenção que pudesse lançar no terreno numa acção mais elaborada. Podemos dizer que para além de boas(?) comunicações nada tinha que justificasse a sua existência. 

Já tenho pensado que alguém estava à espera de um "desenlace"...  Mas isto já é teoria da conspiração. 

Cacine era um bom local para desembarque de reabastecimento, especialmente material pesado, e juntamente com Gadamael concedia domínio sobre o rio e possibilidade de apoio de vária ordem.
Quanto à reunião de 15 de maio de 1973 só peca por tardia e eu não vejo como é que se poderia alterar de modo tão drástico e em tão curto espaço de tempo a FAP que operava na Guiné. A substituição das metralhadoras por canhões era elementar. Nunca supus que cada avião fosse tão mal armado, neste campo.

Sabemos que desde o começo se queria "embaratecer a guerra". Assim chegou-se, de facto a um pacto de silêncio em que a alta hierarquia das FA e "os políticos". Creio que aqueles não queriam levantar ondas junto daquelas. Já me referi ao facto de a nossa artilharia ser ceguinha e surda, respondendo a olhómetro às iniciativas do In. Já nesse tempo existiam radares contra-morteiro e referenciação pelo som e luz, só que...

E outro exemplo é o radar ANTPS-1D da BA 12, que repousava tranquilamente a 12 metros de altura. Já se perfilava então a possibilidade de sermos atacados com os tais MIG e nas condições que o António resume. Para lhes fazer frente nada melhor que três unidades AA da II GM. Pode não ser eficaz, mas é histórico.

Isto se não acontecer um ataque aéreo com qualquer teco-teco ou com um Antonov a largar bombas à mão, pela porta do fundo, sobre um pequeno quartel da periferia. Não se riam porque isto foi feito na Guiné... pelas NT. Nunca entendi aquela da contracção do dispositivo nem vejo quais as vantagens. Será que se esperava que se pudesse vir a expandi-lo? Boa táctica esta do encolher para, mais tarde, esticar...

Kandianfara era já nossa conhecida, em 1968, assim como o Porto de Camassó (no Quitafine), mas não era atacável por estar fora do TN [, território nacional]! Outra coisa que não entendo, mas aceito.

Já noutro lugar escrevi que não houve guerra e que Portugal nunca declarou guerra a nenhuma potência estrangeira e, por isso,  o Senegal e a República Guiné eram países contra os quais só "para gastos de casa" havia acusações. 

O emprego de tropa especial [, BCP 12,] naquele sector, "só depois da casa roubada", causa-me apreensão. Será que o comando empenhou todas as suas reservas e não tinha nenhuma para acorrer a uma nova situação? Ou estabeleceu prioridades e só actuou no Sul de pois de ter resolvido (?) o problema do Norte.

De qualquer modo parece que ficou provado que uma boa antecipação ou, no mínimo, uma resposta pronta, poderia ter resolvido os problemas no Sul, no Norte e no Leste. Assim, foi sempre que atamancada uma solução, com as consequências que se conhecem. 

Tenho cada vez mais a certeza de que andaram a gozar comigo - ou connosco - durante 13 anos (11, no caso da Guiné).  Mas felizmente houve o 25 de Abril, senão teríamos outra Índia. Pior e não é difícil ver porquê. Na Índia éramos prisioneiros de um exército regular de matriz britânica. Na Guiné éramos os colonialistas, salazaristas, imperialistas e lacaios de qualquer coisa que não me ocorre, o que era um problema, já que o nosso governo era relapso a aceitar os seus falhanços e adorava heróis mortos.

Um Ab e desculpem qualquer coisinha. (**)
António J. P. Costa
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quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15326: Blogpoesia (423): E é esta a História de Portugal (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659)

1. Em mensagem do dia 30 de Outubro de 2015, o nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), enviou-nos este poema da sua autoria alusivo à História de Portugal:


E é esta a História de Portugal

Mário Vitorino Gaspar

Portugal é Pátria/ Mátria.
O seu Povo tem História!
O Povo possui sua mestria:
– Contos vastos da memória!

Mas o Povo foi esquecido…
Narrados feitos da fidalguia
Povo sem nome naufraga perdido.
O Povo tem seu cenário do dia-a-dia.

História de reis. Povo a lutar:
– Fica História, Político e o Doutor!
O Povo ergue-se sempre a batalhar.
Republica? História do rei e senhor!

Guerra Colonial? É a Liberdade…
Meio século de povos colonizados.
Aos oprimidos reposta a verdade.
Opressores/oprimidos os Soldados.

Nostalgia da Revolução dos Cravos:
– Militares junto do Povo, é a Liberdade!
A luta foi vencida pelo Povo, seus bravos.
Vitória do Político, que mente de verdade.

O Povo! Tem sua História esquecida?
Heróis, evaporadas as façanhas na escrita.
E a História sem o Povo é empobrecida
Esta e a nossa História. Acredita?

Como sempre lá está a sofrer o Povo…
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de outubro de 2015 Guiné 63/74 - P15308: Blogpoesia (422): Com trastes e trapos velhos... (J. L. Mendes Gomes)

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15303: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIX Parte): Chegou a 3.ª Companhia de Comandos e Pesadelo

1. Parte XIX de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 21 de Outubro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XIX

1 - Chegou a 3.ª Companhia de Comandos 

Jeeps e Mercedes, tudo pintado de camuflado, G3 novas, e o que é que isto nos reserva, escrito nas caras deles, novas também, boinas a estrear na cabeça, de tecido camuflado para ser tudo a condizer, olhares dentro dos óculos escuros. Tudo, tudo novo a estrear, tudo camuflado. Apresentaram-se uns aos outros no cais, os tarecos nas mãos com destino a Brá, para as instalações deixadas pelos velhos.
Bem-vindos à Guiné, que tudo vos corra bem, felicidades.


A vida em Mansoa continuava animada, o IN e a selecção de futebol na primeira linha dos pensamentos. Emboscadas, patrulhamentos, um ou outro tiro, só de longe.

O grupo a caminho da Bissau, para mais uma saída, marcada para o dia seguinte. Uma Mercedes à frente, outra a fechar, o jeep no meio. Já tinham passado Nhacra há muito, estavam próximos de Bissalanca, o jeep a andar mais devagar, calor a vir do motor, cheiro a queimado, olhou para o Alegre, a boina na cabeça, as fitas verde e vermelha a baterem-lhe na nuca, o jeep a andar ainda mais devagar, então vais parar, o Alegre com a cara a ficar vermelha, meu alferes, o jeep não responde, não me digas Alegre, meteste óleo, meti ontem, meu alferes. Capot no ar, as mãos a sacudir a fumarada, e agora, caraças?
Qualquer dia dá-lhe o badagaio, pensara há tempos, tanto pisar no acelerador e tanto pensamento nisso, era inevitável, o ME-14-04 pifou, gripou mesmo. Envolto numa grande fumarada, rebocaram-no até Bissau. E em Brá, quando lhe virou costas, parou e voltou a olhar para ele. Fiel companheiro há cerca de um ano, não o podia abandonar assim, sem o tocar mais uma vez. Quando se chegou a ele, com o motor ainda a fumegar, viu esfumarem-se também recordações que ambos tinham vivido.
Em Bissau, entregaram-lhe outro, isto também gasta óleo, é bom não se esquecer, a linguagem polida do major do serviço de material do QG.

Em Brá, os novos continuavam os treinos. Na mata em frente, ouviam-se disparos e os gritos dos instrutores. Aulas de aplicação militar a tiro, para habituarem os ouvidos às chicotadas. Na parada encontrou-se com o Capitão Alves Cardoso.
Então, quando é que saem? Precisam de alguma coisa?
Preciso mesmo, leve-me alguns na próxima saída do seu grupo, ok?

Adulai Jamanca, o 1.º à esquerda e Lifna Cumba, o "Joaquim" ao centro, em Brá, antes da saída

Ajustar pormenores da acção 

Base aérea de Bissalanca. Com a devida vénia ao blogue especialistas da BA12. 

Seis horas, na Base Aérea de Bissalanca, o grupo com 4 equipas.
Helis no ar, sobrevoaram Mansoa, o Oio, o pequeno Olossato lá em baixo, sempre em rota para Noroeste, em direcção à fronteira com o Senegal.


A formação a desviar-se para a esquerda, Ganturé dum lado, Binta à direita, começaram a baixar, a bolanha, saltar, corrida para a mata. 

Estávamos na zona de Bigene. Notícias recentes insistiam em referir aumento da actividade IN no corredor Sano-Sinchã-Fangor-Canja. O objectivo do grupo era nomadizar na zona durante cerca de 48 horas, procurar indícios de actividade IN. Deram com alguns trilhos e um, com marcas de movimento, pareceu-lhes adequado para ali passarem a noite, emboscados. 
Duas ou três da madrugada, um restolho. Uma cobra mordeu uma das pernas do Lifna Cumba, mais conhecido entre eles por Joaquim. Com a ajuda de uma lanterna, localizada a mordedura, o enfermeiro deu-lhe o soro anti-ofídico depois de ter lavado e desinfectado a ferida. 
A partir daquela altura, se alguém estava com sono, acordou mesmo. Ninguém dormiu, a atenção redobrou. Após a chegada do sol calcorrearam as margens daquele trilho que acabou por os levar a uma picada. Atravessaram-na e continuaram a andar para norte em direcção à fronteira. Por volta do meio-dia, de um Dornier que os sobrevoava, receberam a ordem para voltarem para trás em direcção à estrada Ingoré-Barro, que antes tinham atravessado, e que aguardassem a recolha. Horas mais tarde o grupo foi recolhido, por uma força do BCav 790.

Na estrada Barro-Ingoré, a aguardar coluna de regresso, com o alferes Rogério Coutinho (frente direita) e mais dois elementos da 3.ª Companhia de Comandos (atrás à direita)

Locais diferentes, quase sempre o mesmo, apenas para marcar presença num dos santuários do IN. Macacos, casas de mato abandonadas, gado, trilhos pisados. 

Depois foi o regresso a Mansoa, pele gasta de tanta porcaria e tanto banho. Joaquim Lifna Cumba, em último plano, sorridente. O susto já tinha passado.
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Nota
1 - Comandante da 3.ª Companhia de Comandos

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2 - Pesadelo 


Uma povoação junto ao mar, o dia nevoento, o vento a soprar forte, a ronca do farol, a sirene dos Socorros a Náufragos, as mulheres dos pescadores, todas de preto, mantos negros das cabeças até às costas, a correrem descalças para a praia, aos gritos, um velho louco chamado Pilau a gritar para os céus, uma pistola de madeira, uma camisa verde, a bicicleta com o nome dele pintado no quadro, a brincar sozinho no quintal, o pai a deixá-lo na casa dos avós, a desaparecer ao longe na Lutz2, o nascimento do irmão, a azáfama do parto no quarto dos pais, a madrinha, o tio e a avó, o espelho interior do guarda-vestidos a partir-se, os ditos delas da má sorte que os espelhos partidos trazem, a entrada na escola, a vontade de fazer chichi, a vergonha de pedir para sair da sala, o tinteiro da carteira na mão, a transbordar de chichi roxo, o professor Martins zangado, aos berros, os outros a rirem-se, os calções a molharem-se-lhe cada vez mais, a mãe a dar-lhe palmadas no rabo enquanto lhe dava banho, seu porco, o padrinho a dar-lhe uma moeda de 2$50, uma mulher a lavar as escadas de pedra com um sabão amarelo, não passes agora que escorregas, ele sempre a teimar, a mãe a fazer-lhe pontaria com não sei quê, a acertar-lhe na cabeça, a corrida para a farmácia, a gritaria, o senhor Monteiro a limpar-lhe a ferida com álcool. 
Vontade de fazer chichi, barulhos de vozes, muito longe dali, um mal-estar sem descrição, água a escorrer pelo corpo, dentes a bater, um frio de arrepiar, o lençol todo molhado para trás, calor, a tiritar de frio outra vez, lençóis até ao queixo. 

A ida para o Gerês, naqueles tempos nem luz tinha, uma casa antiga e grande. O medo do escuro, o irmão doente, o ambiente mais escuro, uma noite quente, as janelas, todas as que estavam viradas para a serra, a abrirem-se com um sopro de vento. 
Depois a mudança para uma casa linda e cheia de sol. A escola, a paixão pela professora mal a viu, o primeiro livro de leitura, os rabiscos, as letras a desenharem-se, a primeira carta de amor para a Marília no meio do livro, a mãe a folheá-lo à noite, o encontro da carta com as mãos da mãe. O que é isto? 
Para a cama já, imediatamente! O pai a chegar mal disposto, a entrar no quarto com a carta na mão, então é isto que andas a aprender, seu malandro, o cu das calças do pijama cortado às fatias pelo cavalo-marinho. 
A noite aos ais, dentro dos cobertores, pela manhã arrastado até à escola pela mão, a conversa do pai com a professora, vermelha a ler aquelas indecências, mas é a letra do menino, quem lhe ditou esta pouca vergonha, o pai a sair todo sorrisos para ela, cara feia para ele, estás tramado, a professora com uma cara tão zangada a dizer para a classe que eram tantas as poucas-vergonhas escritas que nem as podia ler e a palmatória a cair numa mão e na outra, vezes que nem contou. 
O pior estava para vir, não acabara ainda o castigo. Vá ao quadro de honra, risque os pontos que tem neste período, já! Era uma vez o 2.º episódio do Ladrão de Bagdad, a desaparecer à medida que os pontos iam ficando debaixo dos riscos. As brincadeiras com os Dantas e com o “Merda-Seca”, as bolas de todos os tamanhos, as pistolas de pau e de barro, as corridas, o baloiço alto, parecia o trapézio do circo que vira uma vez, o baloiço a ganhar balanço, a corda a partir-se, ele e o baloiço a caírem em cima do arame farpado espalhado pelo chão, o sangue a escorrer dos buraquinhos, todo, outra vez a mãe a lavá-lo com água, sabão e palmadas. 

Vozes outra vez, uma luz difusa, noite talvez, o corpo todo picado de dor, costas e tudo, um calor de escorrer águas, lençol fora, dentes a bater.

Numa tarde quente, viu-se a subir sozinho para a Casa do Povo, ninguém lá dentro, uma sala abandonada, montes de papéis espalhados pelo chão, no meio uma fotografia grande de um homem com bigode, de cabelo escorrido, farda castanha, Adolfo Hitler escrito em baixo, quem será? 
Outra vez de cama, quente na cabeça e frio no corpo, o jornal com fotografias de muita gente junto de um caixão, oh mãe quem é este que diz aqui que morreu? 
O Chefe do Estado, o Marechal Carmona, não sabes ler? 
Dias quentes e abafados, os domingos passados em Quintã, na quinta dos Noronhas, os relatos dos jogos de hóquei em patins, Emídio Pinto, Raio, Edgar, Jesus Correia e Correia dos Santos, os golos na baliza dos espanhóis, Zabalia, Trias, Más, Rocca, Puigbó, os ruídos das interferências do rádio, é muito longe, pai? 

Gritos, pareceu-lhe ouvir, um rádio roufenho, golo de quê, Portugal não sei quantos, Inglaterra, uma voz que não era estranha, a esperança é a última coisa. 

O liceu, os dias passados entre as aulas e as viagens da camioneta do Gerês, as tardes a matrecos no Carvalhal, as aulas, os soquetes das meninas, os namoricos imaginários, os olhos presos na televisão do café, a única em toda a povoação e redondezas, que maravilha, como se pode ver ali tudo que se está a passar agora? Os jogos do Benfica com o Barcelona e o Real Madrid, as taças ganhas no meio dos vivas ao Benfica e ao Costa Pereira, ao Ângelo, Germano, Eusébio, aos Cavéns, ao capitão Coluna, o José Augusto numa ponta, Simões na outra, Bella Guttman de pé no banco, o Santamaria a chorar, o Di Stefano à beira do Gento, metro e meio de um gajo a correr como o carago, colado à linha da esquerda, manda-me esse galego para canto, um espectador com um Kentucky, enrolado numa mão, a fazer fumo, boina na cabeça que não deixava os outros verem. 
A Florbela Queiroz em biquíni na piscina, o Henrique Mendes de laço, a Simone e a Madalena Iglésias, a Paula Ribas, o Galarza a falar espanhol com um piano, o Robin Hood com um frade ao lado a assaltarem um coche, o Danger Man a chegar de descapotável ao cimo de um monte, lá em baixo as luzes de Hong-Kong a iluminarem a baía, um carro sozinho a andar com o Homem Invisível ao volante, o Santo do Roger Moore, o pai do Litlle John, do Adam, do Hoss gordo, dos Cartwrights todos, a música a incendiar a pradaria, o papel a arder, Bonanza a aparecer com eles a cavalo. 
E, num dia, outras coisas, um capitão chamado Galvão tomou o Santa Maria, o Pandita Nehru ocupou Goa, Damão e Diu, o Artur Agostinho a contar como se lá estivesse, a brava resistência das gloriosas tropas portuguesas, as chacinas das populações no Norte de Angola, tudo a seguir e ao mesmo tempo, nós todos a olhar, calados, o arrepio pela espinha, uma vontade de lá estar também, o Salazar a falar com os óculos na ponta do nariz, as tropas a desfilarem, o assalto ao quartel de Beja feito por um tal Varela Gomes. 
Lisboa, os cheiros da cidade, Mafra ao longe, o Convento, guerras com cartucho de bala simulada, com alfinetes nos caracóis, melão com verde branco, crosses em fato zuarte quase até à Ericeira, 10 dias de licença, guia de marcha para Angra do Heroísmo, alcatra com vinho de cheiro, formação da recruta, 3 ou 4 meses depois de muita maluqueira, a notícia, para a Guiné, uns dias de férias outra vez na terra, numa despedida um amor súbito a abrir-se. 
Vozes desconhecidas, os olhos pesados, caras enormes em cima dele a mexerem os lábios, devo estar a sonhar, tanta coisa junta, um de bata branca com uma seringa, o que se passa, a cabeça, o peito, as costas, o corpo todo a doer, a escorrer suor até nos pés. 
Há dois dias que está assim, ouviu longe. Fala alto, deve estar a delirar, ouviu um a dizer, vamos levá-lo para Bissau, para o hospital. 
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Nota
2 - Motorizada alemã

(Continua)

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Nota do editor

Poste anterior da série de 22 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15280: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVIII Parte): Extinção da Companhia de Comandos do CTIG; Mansoa e Valium

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Guiné 63/73 - P15183: O nosso querido mês de férias (12): Era para entrar de Licença em Agosto, mas fui vítima de uma injustiça, acabando por a gozar de 22 de Setembro a 26 de Outubro (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) com data de 27 de Setembro de 2015:

Caros Camaradas da Tabanca Grande
O Tema proposto é óptimo. Há muito a dizer.
Era para entrar de Licença em Agosto, mas fui logo vítima de uma injustiça, acabando por gozar a Licença desde 22 de Setembro (sexta-feira) a 26 de Outubro (quinta-feira) – a Licença era de 30 dias, mais 5 dias ao abrigo de…

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Pode ler-se: "Até ao dia 22…" 

"Pouca coisa há que contar disto, embora haja muito que contar. Eu não me sinto em condições propícias para o fazer e nunca me encontrarei. Isto aqui é mau de mais para falarmos”

Viemos de Licença eu e o Furriel Miliciano Manuel Ferreira Jorge. Deslocámo-nos para Bissau de avioneta fretada. Depois de solicitarmos que o piloto desse umas cambalhotas, o que veio a fazer, acabámos por ver guerrilheiros do PAIGC a fugirem quando sobrevoávamos a zona.
Em Bissau ficámos numa Pensão – não recordo o nome, era um casal e a ideia que tenho, visto não conhecer a cidade, situada junto do Posto da PSP. Ficava, julgo que, perto do Café Benfica.
Poucos dias em Bissau, mas histórias não faltaram.
Desde Janeiro de 1967 que não cortava o cabelo. Todas as manhãs íamos ao Café Benfica comer um prego, especialidade da casa. Um Tenente-Coronel assistia ao nosso pequeno-almoço: prego com um pão enorme e cerveja. E o Senhor Oficial olhava muito, nada dizia devido estarmos vestidos à civil.
No dia da véspera do embarque tivemos de vestir a farda. Com um cabelo enorme metido dentro da boina. Quando a tirava da cabeça era o bonito, o cabelo em pé. Pois o Senhor Coronel ao nos ver fardados pergunta:
– Pertencem a que Unidade?
Respondemos, depois de muitas perguntas, inclusive a Companhia e em que zona e local estava, ainda esta:
– Quem é o vosso Comandante de Companhia?
– Capitão Mansilha.
– Conheço bem, quando chegarem de Licença digam que o Coronel f… manda cumprimentos!
Seguimos para o Quartel-General e depois para a Agência de Viagens Sagres. Balcão longo, e no lado direito 3 Capitães. Depois de falarem entre eles, olharam-nos profundamente, e um deles, disse:
– Não sabem cumprimentar os superiores? O Jorge respondeu prontamente:
– Então, bom dia!
Zangados os três, disse o Jorge:
– Estamos em Gadamael Porto, no sul em pleno mato, não em Bissau, e lá o cumprimento militar não existe. Existe o respeito a amizade. No mato não há nada disso.
No dia seguinte seguimos para o aeroporto, e o Boeing 700 e tal tinha sido inaugurado na partida do mesmo para Bissau. No avião tentámos namoriscar as Hospedeiras de Bordo. Quando almoçámos, isto por os pratos serem pequenos exigimos, de brincadeira, pratos para adultos. Curioso que nos foi facultado este atrevido pedido.

Chegados a Lisboa corremos para a saída, lá estavam os três Capitães. Como se estivéssemos numa Operação, sem trocarmos entre nós uma palavra, o Jorge pela direita e eu na esquerda, corremos e empurrámos os tipos, ficámos à frente. O Jorge seguiu para Amadora e eu para Alhandra. Tínhamos combinado encontros em Lisboa.
Sozinho e abandonado na carruagem. Triste e penso, convicto que iria passar os 35 dias, os últimos da minha vida. É difícil viver com a morte a bater à porta, e viver é ignobilmente um sonho. Vivemos nas trevas do nada. Aquela guerra é a guerra deles, embora seja a minha, vivo-a por acreditar na liberdade. Eles lutam por ela, e eu?
Desde o dia em que nasci, a morte sorria. Todos sabemos que a morte é o fim, só desconhecemos quando vai chegar esse fim. Estou enterrado nesse fim misterioso. O problema é que eu penso, se não tivesse esse condão de pensar tão fácil seria a vida. Uma vida sem nada. Mas penso, penso no amor. Se existisse efectivamente amor, problemas não existiam. As guerras com amor nunca existirão. Amor nas guerras? Creio que sim... Mas amor, amor não há guerras.
A minha mãe, que me ama disse que nasci e chorei. Queria viver a rir, não choro… Nem sequer recordo ter chorado. As lágrimas que verti caíram na alma. Sinto-as mergulharem e encharcarem o meu ser. O amor conhece-me, amo… Se não amasse não o conhecia.
E a morte? Pressinto-a do mesmo modo que está junto de mim quando posto perante um engenho explosivo. Aí domino eu, mas olhar para a frente, uma curva. É nessa curva que me encontro. Se a passasse… Mas não sei o que está para lá da curva. Somente vejo a curva, o início dela. Sucede o mesmo quando leio, só até à última letra da página. A página seguinte… É a curva, o virar da página e ler essa página. Viramos uma, outra? Para ganhar algo nesta vida, existirá alguém que fica a perder e se acreditar na verdade, se amar a verdade, amo a vida. Amo a vida, mas do modo como vejo aquilo lá no fundo, quem luta por algo vencerá. Mas acredito que posso ajudar, sendo ajudado. Não acredito naquilo que fizeram de mim.
Cumprirei a missão. Não vou esquecer. Tentarei amar aquilo que sofro. Disse para mim: Goza enquanto é tempo!
E assim iniciei os 35 dias de Licença, certo que iria cumprir.

A alegria da chegada.
Corri para o “cais 14”, e as fragatas imperiais e as bateiras dos pobres avieiros? Os golfinhos aguardavam a minha chegada. Riram e mais parecia me quererem falar. Após o encontro com a mãe e o pai, vieram os irmãos, cunhadas e sobrinhos.
Iria passar o tempo praticamente em Lisboa.
Estava preocupado, os 35 dias tinham de ser gozados e não gastos. Entretanto a minha mãe pede que vá com o meu pai a Casegas, à sua terra, Beira Baixa. Tinha combinado com o Jorge irmos à Feira de Vila Franca de Xira que começava no sábado, dia 30 de Setembro. Teríamos de regressar a 29.
Viajámos num Renault, mas contra a minha vontade. Acabara de sair do mato e ia para o mato.
Meu pai imensamente contente, e aguardava que o meu primo António acordasse, após uma noite de trabalho. Nesse primeiro dia, junto de uma fonte juntavam-se pessoas, umas atrás de outras para encherem as bilhas de água. A terreola é muito pobre.
Espantado ao ver um indivíduo, mais ou menos da minha idade, a apalpar tudo o que havia para apalpar. Acabava de comprar um maço de tabaco e fumava. Depois de o ver apalpar uma mulher – parecia-me que para ele tanto fazia quer fosse solteira, casada, divorciada ou viúva – eu comecei por ficar preocupado. Toda aquela gente que se juntava naquele Largo se calava. Por mero acaso – julgo que foi mesmo um acaso – ele olhou para mim. Mais parecia estar numa operação militar e disse para aquela criatura, que não conhecia:
– Ouve bem o que te digo!...
O indivíduo – pretendendo sorrir – olhou-me bem nos olhos, e deve ter verificado que estava zangado. Com o indicador virado para baixo na direcção da ponte medieval digo em tom agressivo:
– … Só vais parar na ribeira. Corre… Se não correres corro contigo…
Todo aquele pessoal me conhecia, eu ia reconhecendo um ou outro.
Chegou o meu primo António. Ainda não me vira e cumprimentou-me, dizendo em voz alta após saber o que fizera àquela figura da terra:
– Sabem, é o meu primo Mário, somos uns palermas… Foi preciso o meu primo estar aqui para que este imbecil fosse avisado. Coitado, também é uma vítima. Os pais por tanto quererem que estudasse acabou nisto.
Eu e o meu primo – um amante da cerveja – que era igualmente a minha companhia.

O tempo passa. Regressámos. O meu pai para cumprir aquilo que dissera, acelerou, embora a feira fosse no dia seguinte. Feira de Outubro, neste caso iniciada em Setembro.
Encontrei-me com o Jorge que chegara de comboio, seguimos para Vila Franca de Xira e jantámos num restaurante montado todos os anos, no mesmo local. Os empregados já me conheciam. Comemos chocos com tinta e alguma poeira. Começámos a percorrer e ouvia-se, com frequência o rebentar de uns estalinhos colocados na zona da frente de um carro que percorria uns carris e estalava, no impacto contra uma superfície lisa. Uns carros lançados com mais força era o suficiente para nós combatentes nos lançarmos na areia que secava sobre terra molhada. Risotas de todo o lado. Ficava calado e o Jorge corria atrás das pessoas. Entretanto depois do Jorge dormir na casa dos meus pais seguiu para Amadora. Marcámos o local dos encontros.

Passei o fim-de-semana com os familiares, saí e foi o reencontro com os amigos. As oportunidades para beber umas cervejas foram muitas, assim passei os dois dias, não deixando de me juntar com uns amigos no Café Ritejo. A minha tertúlia, lá estava o João Luís, e tive então de falar na estúpida da guerra. Uns velhotes amigos e meus mestres dessa universidade cumprimentaram-me e tive de lhes contar por alto o que passava. Não eram aquelas conversas que me entusiasmavam, pelo contrário, fugia delas. Aproveitei então visitar as madrinhas de guerra, em especial uma. Estava com dúvidas e realmente nem sequer sabia que atitude tomar. Estava a ser incorrecto. Dei um pouco de mim a cada uma, mas estava a agir mal. Tinha de tomar uma posição, não devia enganá-las. Gostava de todas, tal era o labirinto da minha cabeça. Namorava todas… Seria que namorava? Pouco tempo tinha ocupado, sentindo-me incapaz de olhar de frente qualquer delas. Meus dedos ramos de arbustos crescem e apoderam-se de tudo. Insensato. Este meu sonho! Carícia trémula bater de asas. Bebo lágrimas e suores que correm nas fontes dos meus olhos são salpicos. Já nem sei o que dizer. Asneiras! Penso nos poemas que escrevo às toneladas, mas são armas apontadas ao «eu», estilhaços aos bocados.
E nesta terra distante da guerra continuo em guerra, não discuto a guerra que continua. Choro o silêncio inexistente da paz.
E a verdade da liberdade? A liberdade morre na fantasia e harmonia da palavra. A terra enterra e desenterra cruzes que tremem ao vento. Interessava que fossem gozados aqueles últimos dias em terras de Portugal, longa desse Portugal inventado que nos esperava… Que me esperava.

Na segunda-feira fui para Lisboa sozinho. Segui para o Parque Mayer, depois de beber uma bica no Café Lisboa – local de encontro das velhas coristas – fui para o interior do parque. Vestia calças claras e casaco de xadrez. Fui pescado por uma senhora de 55/60 anos. Rosto com uns traços cuidados e pele enrugada. Com uma cana-da-índia, curvada na ponta, puxou-me. Peixe de África, da bolanha. Estava numa barraca dos tiros: “Vai um tiro, freguês?”
Conversámos, chegando entretanto uma rapariga simpática – mais ou menos com a minha idade – fez-nos companhia, e sempre insistiram nos tirinhos.
Um indivíduo musculado aparece e dirige-se à moça, segredando-lhe ao ouvido. Percebi o que pretendia. Elegantemente tira de entre os seios uma nota de 500$00.
Quando estendia a mão com o montante, segurei-a e com mão esquerda e dei à nossa companheira o dinheiro com a direita.
Ele avançou… Eu também. Até que só eu avançava. A criatura paralisada, e disse-lhe:
– Não apareças enquanto cá estiver. Deixa a Senhora em paz. Desaparece!
A rapariga assustada disse que “não deveria meter-me com aquele estúpido, tinha de ter cuidado”. Pediu-me para esperar por ela, após falar com a outra companheira. Decerto pedindo para se ausentar mais cedo. Lanchámos numa Pastelaria, bebi umas cervejas. Levou-me para um quarto, curiosamente limpo. Disse-lhe carinhosamente: “Tu é que vais gozar”! Retirando peça por peça, a nudez encarece e ele entontece e aquece. Aparece, endurece e cresce. Gozo. Império do Rei Gozo. Eu gozei, to não gozaste… Ela gozou. Sempre lhe ia dizendo: “Tu é que vais gozar”!

Retirei-me da cama sem uma palavra e fui ao duche. Enquanto corria, sem ser necessário o púcaro que não o era, mas sim lata mascarada de púcaro, senti umas mãos acarinharem-me o corpo. Após secar enterrei-me na cama e nela. Era um dos 35 dias… Classificado por mim com nota “20”. Saímos, ela não pagou o quarto, era amiga da casa, fomos jantar a uma Cervejaria, bebi algumas cervejas. Levei-a ao Parque Mayer e segui para a Estação do Rossio para apanhar o comboio dos Teatros, das Revistas e dos Filmes.
Em Alhandra – já o sabia – estava aberta a Cervejaria Soltejo. Conversei com o Senhor Manuel, e pedi um copo de 2 decilitros de vinho verde.
Abriu uma nova garrafa “Três-Marias”, e para a despedida mais um copo.
Convite para aparecer sempre.

O primeiro encontro foi nos Restauradores, Palácio do SNI. E uma moça bonita estava encostada à parede. O Jorge diz-me:
– Vou atravessar, entre ela e a parede!
Rindo tento desviá-lo, desvincular-se da ideia. Pediu licença à garota e passou.
Fomos então ao Parque Mayer e existiam as barracas dos tiros, mas só para falar a já entrada na idade. Prostitutas. Salazar tinha proibido. Conversámos e ri para a minha companheira, fazendo-lhe sinal. A oportunidade iria surgir. Combinado entre mim e o Jorge que “amigo não empata amigo”, no momento próprio cada um de nós seguiria seu caminho. Existia sempre o “ponto de encontro”.
Depois de me encontrar com a Cabíria (será este o nome que usarei quando falar da minha menina dos tiros). Cabíria, põe-se o nome de uma personagem que adorei Giulietta Masina do Filme “Noites de Cabíria” do realizador Federico Fellini.
O encontro foi muito semelhante ao primeiro, mais requintado, ainda estávamos no início de uma relação que em princípio teria a duração de menos de um mês. Mais parecia estar a viver um amor, um amor impossível, visto eu ter uma duração de 35 dias, dias que pretendia serem gozados, neste caso com prazer, os últimos. Ela sabia que esses dias iam terminar. Dissera que tinha as minhas madrinhas de guerra – algumas – até uma bonita sueca loira e de olhos azuis com quem escrevia desde os 13 anos.

Naquele dia reencontrei o Jorge, fomos para um bar e demos uma nalgada em cada rabo de mulher, sentada ao balcão. Sentámo-nos e pedimos, decerto cerveja. Aquela que estava mais próxima da nossa mesa pediu licença e sentou-se. Ouvimos:
– Não pagam nada? – O Jorge respondeu:
– Vai uma gasosa?
– Brincalhões! A gasosa é uma seca! Não os conheço, não os costumo ver por aqui.
Respondi:
– Somos africanos, e caçadores
– São ricos?
– Não vês que sim!
– Apalpam bem. Mexeram e aproveitaram o açoite.
Mandámos vir um gim gordon’s, e conversámos enquanto despejávamos umas cervejas e ela chamara já uma colega para acompanhar o Jorge que chamou a atenção:
– Somos caçadores mas outro tipo de caçadores, não caçadores que caçam, mas também os que são caçados…
E todos bem bebidos saímos os quatro para quartos bem perto, e vimos que bem defronte havia um outro Bar, teríamos oportunidade de o visitar. Desta vez estávamos na mesma. Foi divertido, as moças mereciam, sabiam já que éramos simplesmente militares da guerra a pretenderem divertir-se.

O Jorge seguiu para Amadora e eu no comboio dos Teatros, para Alhandra. Fui um pouco à tertúlia do Café Ritejo e conversei, já tarde mas ainda estava o João Luís e uns tipos a jogarem bilhar na Cervejaria Soltejo o Ti Manel. E disse-lhe, hoje trago-lhe uma surpresa, encontrei o livro “Palavras Cínicas”, vamos ler aqui umas curiosidades:
– Escreve este homem, escritor: "Vi que a vida era má e escrevi estas cartas"... – E continua:
 – Se as leres no meio de um festim, as porás de parte com enfado, mas buscarás a sua consolação quando o mundo te fizer chorar; "A vida é a escola do cinismo. Trazes coração? Esmaga-o ao entrar como uma coisa que nos compromete, que nos avilta. Se acaso és bom – tolice – não venhas. Aqui para triunfar, é preciso ser mau, muito mau. Sê mau, cínico, hipócrita, e persistente que vencerás. Serás aclamado, respeitado e invejado. Ri do Bem e da Virtude, da Alma e do Sentir. Ri de tudo, que é preciso querias. Abafa um protesto com um sorriso, uma agonia com uma gargalhada, um estertor com uma praga. Sê polido, meu amigo. Encobre a raiva sob o riso, e o riso sob o pesar. Sê mau, sobretudo. Se a alma compromete estrangula-a, se o riso desmascara sufoca-o, se o choro atraiçoa esfia-o às gargalhadas. Não ames nem creias. Todo o homem que ama é homem perdido, e todo aquele que crê nunca será ninguém. Odeia sempre. Odeia os que sobem e os que pretendem subir, odeia os que subiram e os que um dia subirão. Odeia todos e desconfia. Lembra-te que o Ódio dá mais prazer que o Amor".

Isto são alguns exemplos de “Palavras Cínicas” de Albino Forjaz Sampaio. Fui sempre contra as guerras, mas estou numa e cumpro. Não desertei por dois motivos: o primeiro tem a ver com o amor pela minha mãe e em segundo lugar foi ter à minha responsabilidade homens, e em seu nome parti não de braços descobertos, mas de arma na mão, pronto para tudo, até ter de matar para viver. a um determinado momento lê-se em Palavras Cínicas:
"Tu és filho de uma prostituta pois a tua mãe só foi de teu pai e o teu pai foi o primeiro a quem ela se entregou, que depois o egoísmo do seu amor fez conservar junto de si...".

Depois, é sempre a mesma conversa, até faz a pergunta:
- "Tu crês em Deus? Crês sim, que bem o sei. Pois bem; vai dizer-lhe que eu o odeio com toda a força do meu ódio. Tu que te dás com ele, que crês nele, que és amigo dele, vai dizer-lhe que eu o odeio, porque ele deixou morrer aquela criatura aqui do lado, cujos seis filhos abandonados me vieram comer o meu jantar".

Acrescenta:
 – "... Todos aqueles a quem fazemos bem lá dentro a secreta esperança de um dia nos correrem a pontapé... ". (...) "Em que acredito eu? No crime e no dinheiro. O crime é Deus, o dinheiro é Deus, e de ambos o dinheiro é maior. É por dinheiro que se compram almas, por dinheiro é que as mulheres se vendem".

Existe muita verdade nas palavras. A vida é vida, há-de ser vivida. Os dias passados, não são passados, talvez vividos. O amor surge e evapora-se por vezes, mas não morre, o amor vive connosco os dias todos. Prometo que amarei eternamente. Amo-te, desconhecida, aquela mais à frente amo eternamente, e a outra lá ao fundo amarei neste e noutro mundo. Amar a única maneira de alcançarmos o Amor no Mundo, uma Terra sem Ódios nem Guerras. Tudo isto é negado nas oito cartas de Albino Forjaz Sampaio. Adeus ao Mundo e para todos os amigos, mesmo todos. Meditem, vale a pena, é o que ele pensa, possivelmente que nem sequer em tal tínhamos ouvido falar, surgiu, concordamos ou não. No negativo, não esquecer que na multiplicação o menos por mais dá menos...
O Ti Manel escutou e sorriu. Despediu-se dizendo:
– Não desistas. Ele tem razão em muito do que diz.
Lá estava o copo de verde. Bebera demais. Dirigi-me para o Cais 14 ver o amado Tejo e despejar os vapores.
Fiz a visita a umas madrinhas de guerra e entre encontros e desencontros, alguns encontros – na cama. Noutro caso: – “mim cá nega”! – Tal como nos faziam as bajudas.

Depois de um encontro nos Restauradores, seguimos para a Portugália, e entre cervejas, eram as cervejas. O empregado verificando estarmos os dois metidos por entre copos de imperiais bebidas trazia consigo uma bandeja, com vontade de retirar os copos vazios. Eram muitos. O Jorge disse:
– Daqui não sai nenhum, deixe que os alinho. São todos da mesma altura, é fácil. Já está! Ó amigo espere, mas pode puxar aquela mesa para aqui e ficam os copos melhor. e nós também.
O empregado assim fez, acabámos por beber litros de cerveja e retirámos para o Parque Mayer. Aí pedi à Cabíria que ajudasse o Jorge a arranjar uma companheira. Assim foi. A mesma volta, encontros amorosos e demorados, não sabendo como iam decorrendo o novo amor do Jorge.
Depois de irmos levá-las de retorno, visitámos o Bar de rabos de fora dos bancos, e a tal palmada, escutámos:
– Hoje há outro! – Respondendo outra:
– Esse também já cá esteve!...
Bebemos duas ou três cervejas, como não estavam as moças da primeira vez saímos, deslocámo-nos para o outro Bar. Tinha uma portinhola. Tocámos a campainha, este era diferente. Surgiu um tipo que respondeu pelo postigo:
– Não podem entrar!
– Não podemos entrar? Mas que ideia essa! Temos dinheiro!
– Não entram!...
O Jorge põe a mão no bolso do casaco e tira a Licença dada no Quartel-general, em Bissau e o Bilhete de Identidade Militar e toca a campainha. Surge o mesmo tipo que fecha o postigo. O Jorge, bem bebido, toca novamente a campainha, tento desistir dizendo-lhe termos outros sítios para passarmos algum tempo. Toca consecutivamente até que a porta se abre e vemos um homem grande. Nessa altura já o Jorge tomava balanço para rebentar a porta. Algo impossível visto ser muito forte. O Jorge disse apontando o indicador direito e na esquerda a papelada, enquanto os abanava:
– Estou de licença e vim da guerra na Guiné. Lá mato pretos… Aqui mato brancos!
O grandalhão respondeu:
– Podem entrar!
Puxava pelo braço do Jorge, com força, dizendo:
– Vamos embora!
Acabámos por seguir, a verdade é que se tivéssemos entrado estávamos bem arranjados. Por entre mortos e feridos…
O Jorge e eu fomos na direcção da Estação de Caminhos de Ferro do Rossio. Cada um seguiu o seu caminho.

Em Alhandra, no Ritejo ainda restavam alguns amigos da Tertúlia, já velha. Falei um pouco com o João Luís que foi comigo até ao Soltejo, e a tratar de fechar a caixa, volto a interromper o Manuel. Abre uma garrafa de vinho verde “Três-Marias” e vai um copo. O Manuel diz:
– Queres dar uma volta comigo?
Como ele também sabia não ter nada para fazer, e eu interessado mais em me despedir. E, pensei, com o copo de verde na mão enquanto o Manuel acabava de arrumar o balcão. Pois aquilo vai mal, a passagem por Ganturé não foi famosa e o “corredor”? Para quem não quer guerra, muito menos esta… Cumpro, e comprometo o meu interior. O consciente apoquenta-me, assumi e como responsável só tenho de aguentar. Neste nono mês, se cumprissem, estou a 9 meses… Mais uma vez nove. Quem emprenhou?
Ando em baixo, não me parece que isto dê certo. Aquelas trampas das poesias, pareço estar a brincar denominar de poesias. São sepulturas, isso sim. Mortes!
- Estás a pensar em quê, anda daí! – Disse o Manuel.
Entrámos no carro. Nem perguntei para onde íamos.
– Vamos para Vila Franca?
– Já vais saber!...
Vila Franca mesmo.
– Ó Manuel leva-me para o “Zé Barbeiro”, possivelmente nem sabe que conheço muito bem esta casa de petiscos. E então para aqueles que gostam de comer uma perdiz, codorniz ou coelho bravo… Não falando dos pequenos camarões do Tejo.
Entrámos, ao analisar os rostos vejo conhecer a grande maioria dos presentes. Tinha convivido de perto com alguns. Tudo empregados e donos de restaurantes, cervejarias, tascas e até de pensões.
Todos sentados. Começaram a surgir nas mesas codornizes, depois seguem as imperiais. Inicia-se o repasto.
– Bom apetite a todos! – Disse o Zé Barbeiro, dono da casa.
Não estava ali para comentários, era mais um pedaço dos 35 dias de despedida. Segurei uma codorniz na mão e bebi meio copo de cerveja. Ao fim de dez minutos, olhei para o Manuel ao meu lado, e para toda a sala, ornamentada de utensílios e fotos de caça e caçadores. Verifico que um empregado que bem conhecia tinha umas quatro imperiais à sua frente. E continuo a percorrer a vista pelas mesas – não era preciso ir mais longe, na minha mesa – havia quem tivesse duas, três, quatro imperiais à sua frente. Vou desvendar este mistério. O Manuel arranjou alguma parecida com ele. Tenho meio copo, lá vai… E agora?
– Mais uma rodada? Será mesmo… E é!
Uma golada, outra imperial posta à minha frente. Zás, outra rodada! É isso, se alguém bebe o copo da última rodada, vem outra rodada. Muitos saem bêbedos daqui, mas eu não! A festa continuou, e o Manuel ria. Verdade que ele acompanhava o ritmo, mas existiam alguns com quase uma dúzia à frente. E as codornizes iam seguindo o ritmo. Terminada a maratona, ponho a mão no bolso para pagar o que me cabia, o Manuel segura-me a mão e diz:
– És aquele que nada tem a pagar, vamos embora!
Tropeçavam uns nos outros, e lá saímos e seguimos para Alhandra, o Manuel rindo, disse:
– Pregaste a partida àqueles palermas que se julgam bons bebedouros.
Lá fui para casa, a minha mãe estava acordada, ralada comigo e era bem cedo. O meu pai saíra de casa para o trabalho.

Recomecei novo dia conversando com a minha mãe e logo vou ao encontro do meu pai na Padaria. Era Padeiro, como eu e os meus irmãos não quiséssemos ser padeiros restou ao meu pai entrar para uma Sociedade Panificadora. Chegou mais uma hora da verdade. O dinheiro que ficava cá o meu pai colocava no Banco, e pedi 5 mil escudos, tendo ele respondido:
– Vê bem o que andas a fazer?
Retirou de um cofre o dinheiro e deu-mo na mão. Conversámos, sei que o enganava mas, em relação à minha mãe, tinha a certeza que não ia nas minhas conversas. Isto no que diz respeito à guerra. Enviava fotos sempre à civil mas enganá-la…

Seguiram-se mais uns dias. Namoro; encontros com madrinhas, com cama… E sem cama; “mim cá nega!”; Lisboa e as meninas… Não só a do Parque… Resumindo: Muito amor, até fartar e despejar de cervejas e não só…
Comboio para o Rossio, deixara de me encontrar com o Jorge, mas os locais eram os mesmos, variavam os restaurantes onde almoçava ou jantava.
Junto do Teatro Tivoli um andarilho pediu-me a licença de isqueiro ao me ver acender um cigarro. Ri com um certo aparato e o tipo fica zangado. Pedia e voltava a pedir e eu ria, até que me diz:
– Deite o isqueiro para cima do telhado e não paga imposto!
– Mas não pago imposto, nem deito o meu Ronson para o telhado.
Tinha o “V” de vitória. Tinha-o comprado em Bissau. E o homem insiste:
– Vem esta PIDE – não é outra coisa – chatear-me com a licença do isqueiro! Desampara-me a loja!
Ele sumiu-se. Fui até ao Parque Mayer. Outro dia igual, depois de almoçarmos, mas qual o meu espanto quando a Cabíria me diz:
– Larguei o Júlio, o tipo que ficava com o meu dinheiro, sabes a razão? Se quiseres acredita, tenho de te dizer, gosto de ti… Mas não rias, estou disposta a arranjar trabalho, sou nova, espero por ti…
– Eu não interesso a ninguém, sou peça de caça morta… Vou ser caçado e nunca mais me vês. Até hoje safei-me… Mas no dia 26 de Outubro que se aproxima, irei com uma arma apontada à minha cabeça. Estou como o outro, vamos festejar… O quê? Não sei… Olha! Vamos aquecer a alma! Anda e deita-te, e se me amas prova-o… Sou teu e faz de mim o que quiseres. Aviso-te que cair de focinho, não! Estivemos até à noite, a Cabíria não tirava os olhos de mim, o que me deixava preocupado. Estaria ela mesmo a esperar que regressasse?
Não a vi mais, tinha sido a minha companhia numa boa parte dos 35 dias que se aproximavam do fim.

Regressei de comboio. Fui a Cais 14 e sentei-me num dos degraus. Tomara banho naquele sítio. O Tejo, meu irmão. Tinha de ir visitar os meus amigos golfinhos. Oiço uma voz:
– Então estás bem? – Perguntava um paneleiro da terra.
Respondi-lhe:
– Sabes o que vais fazer? Corres até ao Largo da Praça… Vai, vai…
– Olha-me este se calhar julga que manda em mim… Parvo
– Segue em frente, é sempre a direito.
De manhã acordei e dediquei a manhã à família. Já faltavam poucos dias e dedicara pouco tempo aos amigos. Estivera com o Doutor Armando Diogo, com o Baptista Pereira, mas tive pouca vontade de lhes responder, sempre a guerra.
O Doutor recordava-se da conversa que tivéramos sobre o livro “Palavras Cínicas”, de Albino Forjaz Sampaio.
Pensei visitar a malta em Vila Franca de Xira, com aquela metida na cabeça dos 35 dias, os últimos 35 dias, esquecera-me.
Quando chego ao Maioral, é uma festa e lá estavam alguns dos meus camaradas da Tertúlia semanal com o Escritor Alves Redol. O meu primo que frequentava Direito disse ter uma prenda para mim. Deu-me algo embrulhado, julguei estar escondido. Abri, era um livro sobre Che Guevara. E o meu primo começou:
– A PIDE foi à Faculdade de Direito e apanhou-nos a Edição deste livro, fizeram uma fogueira e deitaram fogo aos livros que iam apanhando, saquei deste e pensei em ti. No livro há um discurso em que o camarada Che Guevara fala da Guerra de Guerrilha na Guiné.
Fiquei contente com tal prenda, mas fugi de falar da guerra. Talvez por isso segui para Alhandra após me despedir de um modo pouco digno da minha parte de amigos de anos. Soubera terem passado por situações que só quem não quer, não vê termos um regime opressor. Após quase 500 anos aquilo que vi nada glorifica os portugueses que nada levaram àqueles povos que nem falam português.
Fui apanhar em Alhandra alguns amigos, falei com o Gineto dos “Esteiros” de Soeiro Pereira Gomes – Joaquim Baptista Pereira que me contou as últimas e com o Doutor Armando Diogo falámos dos Processos que moveram na Guiné, tendo o Processo Militar sido dirigido pelo Capitão da Companhia 1620 e o Processo Civil pela PIDE, isto após ter rebentado uma granada quando os negros civis estavam num Batuque e morrera 10, ficando feridos mais de 20.
Fiquei por Alhandra e na Cervejaria Soltejo falei com o Ti Manel. Recordámos as conversas havidas antes do embarque. Ele quase implorara que eu desertasse. Assumi e estou nestes risonhos e gozados 35 dias á espera de morrer. E perguntei ao sábio Ti Manel:
– Como é possível ter-se o prazer de gozar quando se espera o fim, a marcha final? Pode um homem novo morrer numa guerra que detesta e já mesmo antes de ser um dos protagonistas? Pouco tempo mas se do ventre materno nasce o ser… Trajando o nu, igual, destino de boas e más gentes!
O Ti Manel respondeu:
– E acrescento. Só caminhou pela vida pecadora, e sem pecar rompeu o silêncio com gritos, gemidos e ais. Cresceu, Roberto, títere comandado de atilhos. Aprisionado de mãos opressoras. Libertou-se.
Respondi:
– Livre? Pairo na solidão que me mordeu as entranhas, as vísceras… Caio e não me ergo!
O Ti Manel, ouvindo interrompe:
– A fome transforma os prisioneiros em oprimidos e os donos de searas e de fábricas comandam os cordéis. Este mundo que olhas, por que o vês, repleto de cactos, de ervas daninhas e de homens, semeia algures a paz!
Olhando para o Ti Manel renasci:
– Nascentes nas areias que matam a sede do homem só, um mundo de tal bela natureza! Pássaros de voo livre esvoaçam, por entre castelos celestiais de nuvens desenhadas. O mundo, de todos e pertence a todos? O homem semeia! Oh mundo de tal bela natureza! Por vezes tão satânico. Com seus horrores anormais: sismos e inúmeros cataclismos. Mortes sem conta – sem olhar a quem, o bom e também o mau. Plantando cruzes em cemitérios e covas fundas. Oh homem… Oh homem de tal bela natureza! Planta a Paz, o Amor no Mundo. Apetece-me Ti Manel, mas tenho dificuldades neste momento em acreditar plenamente.

E estava no final da licença. Fui ver o rio Tejo, o meu Tejo. Lá estagnei.
Jantei e voltei ao Soltejo. Bebi e esperei pela noite.
O Manuel olhava-me, todos haviam abandonado a cervejaria.
O velho copo de vinho verde. Outro. Oiço o Manuel com as chaves do carro na mão:
– Queres vir?
Não sabia para onde, respondi de modo risonho e brincalhão:
– É mais uma voltinha… Para aquela menina de amarelo.
Entrei no carro, após uns minutos começo a ver não conhecer aquele percurso. O carro parou. O Manuel entrou num prédio novo e de portas abertas, começou por subir os degraus de uma escada e tocou uma campainha. Aberta a porta e depois de dar o primeiro passo vejo aquilo que nunca vira. Um mundo novo. Bacanal.
Ouvimos de dentro:
– Descalcem-se!
Tirei a camisa, os sapatos, as meias, calças e cuecas. Era uma festa profunda. Eu quero lá saber. Vi uma moça que conheço, estava sozinha, quem sabe… À minha espera. Tinha-a desejado, eis que cai nos meus braços. Pleno século XX. Olhei para o Manuel, das surpresas, que ria e já acompanhado. Bebidas e frescas. Levei uma fresquinha para minha menina, a coelhinha. Na mão levei uma cerveja, dei um gole. Agarrei-a e ela abriu os braços e puxou-me!
Pela noite fora, não esqueço…
Regressámos e no dia seguinte partimos para Bissau após as despedidas do cais.
Havia razões para o meu estado de espírito. Disseram-nos que o Amigo Pestana e o Costa tinham morrido com rebentamento de uma granada. Afinal a morte não me levou – por enquanto – mas percebera que ela andou bem perto.
A morte?
Em Bissau falava-se de uma grande Operação no sul da Guiné, no nosso Sector. Aliás era preferível estar-se em combate do que viver o clima de Bissau. Só se falava em Guerra.

Em Bissau no final da Licença 

Vim de Licença em 1968 pelo Carnaval (Terça-Feira de Carnaval a 19 de Fevereiro), mas foi diferente muito embora tivesse ido a Abitureiras – Santarém entregar alguns haveres à família de Vítor José Correia Pestana, este encontro foi traumático, morto a 12 de Outubro de 1967 no rebentamento de uma granada armadilhada, depois de se ter lançado para cima do engenho explosivo após ter tropeçado no fio, tentando salvar os camaradas. Ficou com a barriga perfurada e membros superiores e inferiores presos por fios. Ainda foi assistido pelo Médico tendo pedido aos camaradas que lhe dessem um tiro na cabeça. O Soldado Costa teve morte imediata.

No topo da Mesa, na Ida para a Guiné, Fur Mil Vítor José Correia Pestana Morto a 12 de Outubro de 1967

Esta Licença foi diferente, não existia o estado de espírito e a presença da morte, muito embora faltasse bastante tempo para o final da Comissão… Em termos Operacionais o Ano de 1968 foi rigorosamente mais farto em Operações. O PAIGC melhor armado, mas estava positivamente mais preparado.

Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Setembro de 2015 > Guiné 63/73 - P15178: O nosso querido mês de férias (11): vim duas vezes... e na segunda casei-me (Hélder Sousa); vim duas vezes... e na segunda já não regressei (António Murta)

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15122: Da Suécia com saudade (50): A propósito do 'massacre de Sangonhá' (ou Sanconhá), de 6/1/1969... Contrariamente ao que escreve o gen pilav ref José Nico no poste P15038, não encontrei, até agora, nos arquivos do reino da Suécia, qualquer referência à eventual presença, nesse dia e local, de uma equipa cinematográfica sueca...


Guiné-Bissau > Bissau > ONG AD - Acção para o Desenvolvimento > 12 de dezembro de 2013 > Atelier ambiental transfronteiriço em Sanconhá (sic). Foto: cortesia da página da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, cofundada e dirigida, até à sua morte, pelo nosso saudoso amigo Pepito (1949-2014).

 "De 6 a 7 de dezembro de 2013, realizou-se em Sanconhá, junto à fronteira com a Republica da Guiné, o 2º atelier transfronteiriço, o qual tomou decisões muito importantes. Salienta-se a criação do 'Parque Comunitário Para a Paz, de N’Compá', a primeira área transfronteiriça dos dois países, a partir do qual se estabelecerá um processo de cooperação para o desenvolvimento das populações de ambos os lados da fronteira."

Foto (e legenda): © AD - Acção para o Desenvolvimento (2013). Todos os direitos reservados



1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia...

[ foto atual à esquerda: José Belo, ex-alf mil inf, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); atualmente é cap inf ref e vive na Suécia há quase 40 anos]

Data: 17 de setembro de 2015 às 17:36
Assunto: O poste 15038 e..."Os olhos azuis"


"Romanceamentos"


Os antigos combatentes continuam,e continuarão,a sentir profundo orgulho no seu serviço prestado na Guiné.

Existem dificuldades, mais do que compreensíveis,  em esquecer que algumas das ajudas humanitárias e económicas dadas por outros países aos movimentos de libertação que nos combatiam,  acabavam por, indirectamente, aumentar as suas capacidades militares e o número de mortos e feridos que nos iam causando.

Independentemente das ideias políticas de cada um, não o reconhecer seria mais do que falacioso na injustiça para com os camaradas que directamente vieram a sofrer as consequências destes auxílios.

Uma política nacional de apoio económico e social aos movimentos de libertação em África, América Central e do Sul, assim como ao Vietname, foi a dominante sueca nos anos sessenta e inícios de setenta.

Mas terá alguma vez havido "amizades" entre as políticas nacionais dos diversos países europeus, independentemente de o facto aparentamente poder "chocar" alguns militares com altos postos?

Assim como o governo português, no que julgava ser uma política colonial de defesa dos interesses nacionais, näo foi pedir sugestões aos suecos, não se pode estranhar que estes também o não tenham feito quanto aos seus interesses.

A Força Aérea de que todos nos devemos orgulhar

O sr. general José Nico apresentou de forma interessante, e profissional, a actuação da nossa Forçaa Aérea aquando das operações em Sangonhá [ou Sanconhá, para os guineenses, antes e depois da independência].

Mais uma vez se pode verificar com profundo orgulho a coragem, voluntarismo, eficácia e dedicação demonstradas pelos profissionais que faziam os possíveis, e os "impossíveis", para obterem o melhor rendimento e resultados do material de que dispunham, arriscando muitas vezes a vida ao procurar contornar muitas das limitações enfrentadas diariamente.

O mesmo näo o posso fazer quando o sr. general começa a divagar em análises político-sociais que de tudo um pouco envolvem no respeitante à Suécia, suas gentes, realidades económicas. Não menos, por leituras aparentemente fáceis sobre o luteranismo e suas influências histórico-actuais.

O sr. general terá, obviamente, todo o direito de ter as opiniöes que achar por boas.

Ao ponderar sobre assuntos técnico-operacionais da sua Arma e Especialidade há que humildemente saber ouvir.

No entanto, ao entrar por divagações políticas, alguns de nós, com a mesma humildade e respeito anteriormente referido, pdoerão... discordar.

Toda a divagação pós-operacional se situa na hipótese de que o nosso sucesso em Sangonhá [ou Sanconhá] se tornou possível pelo facto de os guerrilheiros do PAIGC estarem a participar ,como figurantes, em filme sueco de propaganda quanto às suas capacidades militares.

Tal conclusão é unicamente baseada num relatório apresentado pela polícia política da ditadura, que o sr. general cita de memória, pois acaba por admitir não ter até à data podido provar a [sua] existência por... [ter] desaparecido.

Basear täo "nuanceadas" conclusões em relatório único da polícia política, envolvida na guerra de propaganda e contra-propaganda, será, pelo menos, um pouco limitado nas fontes.

Muitas e díspares opiniões se poderão ter sobre a Direção Geral de Seguranca [, DGS],mas será pouco admissível acreditar-se serem os mesmos ingénuos e incompetentes na contra-propaganda da zona de guerra na Guiné.

Nem a nível oficial, nem a níveis pessoais, existe qualquer referência a tal filme entre as gentes do PAIGC,

Sabendo-se o gosto pelo "ronco" por parte da maioria dos locais, ou mesmo a lógica utilização de tão grande desastre militar como arma de arremesso (então ou posterior) entre as inúmeras facções políticas guineenses, este não documentado desastre é, pelo menos, estranho.

As [escrutinadíssimas] fontes suecas

Decidi então procurar na Suécia respostas.

Primeiro junto do Partido do Governo na data da ocorrência (socialistas), não encontrando nos arquivos qualquer referência a filmagens em Sangonhá [ou Sanconhá].

Forneceram-me contactos quanto aos arquivos do Departamento Estatal que trata dos assuntos relacionados com os apoios aos países em desenvolvimento e, tanto referido à Guiné como ao PAIGC em particular,  nada está referenciado quanto a tal ocorrência.

Para acalmar o nosso gosto mórbido quanto a possíveis "conspirações do silêncio" acabei por também contactar os sindicatos dos cineastas, fotógrafos e jornalistas na busca de participantes vivos, mortos ou feridos nas pessoas dos profissionais neles registados.

Nada quanto ao filme, participações, e muito menos quanto a mortos ou feridos.

Quanto aos últimos, numa sociedade totalmente aberta ao escrutínio dos cidadãos como é a sueca, mortos e feridos em África sem terem surgido nos jornais,TV, rádio, ou em discussões inter-parlamentares, é algo de impossível.

Temos portanto até hoje o tal relatório da Direção Geral de Segurança misteriosamente desaparecido em Portugal.

A não ter uma das tais suecas de olhos azuis ido aí para o destruir,  restam-nos sentimentos de fé, certamente muito válidos quanto aos Arquivos do Vaticano mas...quanto à política da ditadura e seus agentes?

Não tendo qualquer procuração jurídica, necessidade ideológica ou desejo pessoal de defender as políticas do reino da Suécia ( e quem sou eu para o fazer?), ficamos à espera que alguém encontre referências documentadas sobre o assunto, e deste modo, evitando intrepretações subjectivas,  passíveis de debates mais ou menos... romanceados.

Um grande abraço, desde Estocolmo,
do José Belo.

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(...) Segunda parte do trabalho da autoria do General PilAv José Francisco Fernando Nico, versando a ajuda da Suécia aos Movimentos de Libertação africanos, durante a guerra colonial, enviado ao Blogue pelo nosso camarada Miguel Pessoa, Cor PilAv Ref (ex-Ten PilAv, BA 12, Bissalanca, 1972/74) em 22 de Agosto de 2015.

(...) A razão para o suicídio do PAIGC em Sangonhá

(...) Por acaso tudo se aclarou alguns dias mais tarde ao ler um relatório da DGS que chegou ao gabinete do Comandante do Grupo Operacional 1201. Para mim foi uma espécie de relâmpago que tudo iluminou e desvendou, num instante, a lógica daquele comportamento estranho do PAIGC. Não consegui agora encontrar nenhum registo desse documento mas o facto é que me marcou tanto que nunca mais esqueci o essencial do que li. Resumidamente, a DGS dava conta de que o ataque se tinha enquadrado numa acção de propaganda promovida pela Suécia. Na minha opinião, muito provavelmente a pedido do próprio Amílcar Cabral, resolveram aproveitar o abandono de Sangonhá para simular a tomada do aquartelamento pela guerrilha. O cenário não podia ser mais perfeito. Antes de abandonar a posição, as instalações do aquartelamento tinham sido destruídas pelo Exército e essa imagem podia ser facilmente mostrada em fotografia e filme como sendo consequência dos ataques do PAIGC. Depois, a posição “acabada de conquistar” podia ser utilizada para mostrar o poder de fogo do PAIGC contra as posições que se preparavam para conquistar a seguir: Ganturé e Gadamael. Uma equipa de repórteres, incluindo fotógrafos e cineastas,  deslocou-se para esse efeito à Guiné-Conacri onde se juntou aos guerrilheiros. Um total de 400 pessoas terão estado envolvidas em toda a operação,  segundo as informações do régulo Abibo,  de Ganturé.

Ficou assim explicado porque razão o PAIGC se tinha exposto em pleno dia a levar com as bombas da aviação. É que não era possível fotografar nem filmar sem luz. Também não fazia sentido estarem escondidos quando tinham acabado de derrotar e afugentar o inimigo. Tinham, é claro, a noção de que iam correr um grande risco e por isso o terem levado a ZPU-4 para se defenderem. Mas cometeram um segundo erro, este gravíssimo. Foram detectados e,  em vez de embalarem a trouxa e rumarem novamente à Guiné-Conacri, deixaram-se ficar. Pessoalmente penso que, como os dois primeiros aviões não abriram fogo, assumiram que, ou os tinham atingido, ou os tinham dissuadido e resolveram continuar a fazer a “fita”.

Faltava explicar a utilização das peças anti-carro porque, como já foi dito, não eram, nem armas de guerrilha, nem adequadas às flagelações aos aquartelamentos. Não há mesmo conhecimento de terem sido utilizadas em qualquer outra ocasião.

Uma explicação muito credível ocorreu-me quando descobri algumas fotos dessas armas no arquivo Amílcar Cabral da Fundação Mário Soares. Fiquei até convencido que respeitam à acção do dia 6 de Janeiro de 1969. Passo a explicar.

O objectivo da operação era produzir propaganda, como referiu a DGS no seu relatório. Havia, por isso, necessidade de mostrar grande capacidade militar e poder de fogo, factores esses que estariam a determinar avanços do PAIGC no terreno nomeadamente a conquista de posições ocupadas pelos portugueses. Acontecia que aquelas peças anti-carro tinham um reparo longo, tinham rodas e um cano comprido. As eventuais audiências alvo da propaganda ficariam certamente muito mais impressionadas se o ataque fosse feito com estas peças de artilharia em vez dos tradicionais morteiros ou dos canhões sem recuo que eram armas relativamente pequenas. Só uma razão desta natureza os poderá ter levado a não utilizar o armamento tradicional nesta flagelação a Ganturé: nenhuma granada rebentou no perímetro do destacamento. (...)

(...) Concluindo, ironicamente pelo menos desta vez, a bondosa ajuda humanitária sueca cujo objectivo foi soprar “os ventos da história”,  contribuindo para a derrota militar dos portugueses,  não conseguiu infligir baixas às nossas forças. Ao invés, provocou um número substancial de mortos, feridos e incapacitados entre os guerrilheiros e, muito provavelmente, também entre os apoiantes cubanos, repórteres, fotógrafos e cineastas suecos. Que foram encontrados diversos despojos de pele branca é um facto,  mas nunca se conseguiu saber a quem teriam pertencido. O PAIGC e o governo sueco, em escrupulosa obediência às regras da propaganda nunca revelaram, nem durante a guerra, nem depois, este desastroso embate. (...)


terça-feira, 25 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15038: FAP (83): Pedaços das Nossas Vidas: VI - Um ataque com "olhos azuis" - II Parte: Um ataque atípico no dia 6 de Janeiro de 1969 (José Nico, Gen PilAv)

1. Segunda parte do trabalho da autoria do General PilAv José Francisco Fernando Nico, versando a ajuda da Suécia aos Movimentos de Libertação africanos, durante a guerra colonial, enviado ao Blogue pelo nosso camarada Miguel Pessoa, Cor PilAv Ref (ex-Ten PilAv, BA 12, Bissalanca, 1972/74) em 22 de Agosto de 2015.

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PEDAÇOS DAS NOSSAS VIDAS

Cumpri muitas missões durante a minha carreira na Força Aérea Portuguesa. A comissão na Guiné, porém, sobrepôs-se a todas as outras e marcou-me indelevelmente para o resto da vida. A mim e certamente a todos os que, de algum modo, partilharam a mesma experiência. É dela ou de acontecimentos com ela relacionados, que vos irei dando conta…
José Nico
Gen PilAv



VI – UM ATAQUE COM “OLHOS AZUIS” (2)

Um ataque atípico no dia 6 de Janeiro de 1969

Naquela segunda-feira, a notícia de um ataque com canhões, ao início da manhã, a Gadamael Porto, sede da CArt 2410 deu logo a ideia de que qualquer coisa estranha estava a acontecer. Não era nada normal o PAIGC desencadear flagelações àquela hora. O que era normal era atravessarem a fronteira durante o dia, estabelecer bases de fogos e depois esperar pelo fim do dia para desencadear os ataques. Podiam depois retirar a coberto da noite, em segurança, com a certeza que, nem o Exército tinha condições para os perseguir, nem a Força Aérea para os detectar e atacar.

Na Base 12 o dia de trabalho estava a começar e o pedido de apoio aéreo que chegou através do Comando-Chefe fez os dois pilotos da parelha de alerta largar o pequeno-almoço, apanhar rapidamente o equipamento e meterem-se no jeep de apoio em direcção à linha da frente. Lembro-me de ter ouvido o que se estava a passar mas tinha outras missões para esse dia e não cheguei a envolver-me no que aconteceu depois. No entanto, num cantinho da memória persiste uma sensação de choque associada à notícia porque fiquei com a perturbante impressão de que tínhamos entrado numa nova fase da guerra.

Dos G-91 prontos na linha da frente, os dois de alerta, como era normal naquela altura, estavam configurados com tanques de combustível externo, 8 foguetes 2,75 polegadas e as 4 metralhadoras 12,7mm19. Não havendo outras informações para ajuizar a situação no terreno o que a experiência ensinara era que a presença dos aviões faria o PAIGC “encolher as unhas” e terminar o ataque. Os dois pilotos procuraram, por isso, descolar e chegar o mais rapidamente possível a Gadamael Porto.

Apesar de andar empenhado na recuperação deste episódio há muito tempo, porque penso que deve ficar registado na nossa memória colectiva, não consegui identificar até agora um dos dois pilotos envolvidos. Por exclusão de partes e porque éramos muito poucos, penso que foi o Capitão Amílcar Barbosa20 o chefe da parelha de alerta, mas não tenho a certeza absoluta. O outro piloto está bem identificado e foi o então Tenente Balacó Moreira de quem obtive muita da informação sobre o que se passou.

Dos registos sobreviventes sabe-se que os aviões descolaram às 09H00, que a flagelação teria começado cerca de uma hora antes e visava objectivamente Ganturé, a curta distância de Gadamael Porto onde, para além de um pequeno núcleo populacional, estava destacado o 4.º grupo de combate da CArt 2410. Numa primeira fase os rebentamentos foram espaçados e compridos dando a impressão que o inimigo estava a regular o tiro21. De Ganturé a resposta estava a ser dada com o morteiro 81 operado pelo furriel miliciano Luís Guerreiro. Com o correr do tempo o PAIGC foi aumentando a frequência dos disparos até que a artilharia de Gadamael Porto também entrou em acção na tentativa de suster a flagelação mas sem resultado. O PAIGC disparava cada vez com mais intensidade mas, felizmente, as granadas passavam silvando sobre Ganturé e iam danificar o arvoredo que se estendia para lá da posição.

Em rota, a parelha de alerta conseguiu entrar em contacto rádio com Gadamael Porto que forneceu uma série de indicações sobre a direcção e distância a que entendiam estar a ser feito o ataque e até dispararam algumas granadas de fumo com o morteiro 81mm para tentar sinalizar esse local. Na carta 1:50.000 essas indicações apontavam para a antiga tabanca de Bricama a cerca de dois quilómetros a SW de Gadamael Porto. No entanto, quando os aviões chegaram à zona, ao passarem junto a Sangonhá, onde estivera instalada uma unidade do Exército até 29 de Julho de 196822, os pilotos foram surpreendidos com o que viram: o perímetro do antigo aquartelamento estava pejado de gente. Perceberam imediatamente que só podiam ser os guerrilheiros responsáveis pela flagelação a Ganturé. Mas o mais espantoso é que estavam ali, num espaço completamente aberto e sem qualquer espécie de camuflagem. Quase à vertical alguns detalhes tornaram-se então claramente perceptíveis como a presença de três armas com rodado. Uma delas, entre o perímetro do aquartelamento e a antiga pista, era uma anti-aérea ZPU-4 que abriu imediatamente fogo contra os aviões obrigando os pilotos a entrarem num circulo alargado para manter uma distância de segurança. Dentro do perímetro do aquartelamento, no meio dos destroços dos edifícios23, estavam duas peças de artilharia com um cano relativamente comprido e, na picada que saindo de Sangonhá se dirigia à Guiné-Conacri, viam-se algumas viaturas incluindo uma ambulância. Deviam ter vindo de Sansalé que era uma pequena aldeia da Guiné-Conacri muito utilizada pelo PAIGC nas suas movimentações junto à fronteira.

O que é que teria passado pela cabeça daquela gente para se expor daquela maneira? O PAIGC e os seus mentores cubanos vinham seguindo à risca a cartilha da guerra de guerrilha mantendo-se sempre encobertos e só atacando quando estavam em vantagem. Quando se sentiam em desvantagem furtavam-se ao contacto. No entanto, desta vez, estavam a fazer tudo ao contrário, de tal maneira que os dois pilotos dos G-91 tiveram dificuldade em assimilar a imagem que a vista lhes oferecia com toda a nitidez. Seria mesmo real o que estavam a ver? O ex-Tenente Balacó Moreira confessa que da sua experiência em operações quase diárias no teatro de operações da Guiné nunca tinha dado de caras com o inimigo numa situação tão vulnerável. No entanto, os aviões da parelha de alerta não estavam equipados para intervir naquele cenário. Quer os foguetes, quer as metralhadoras, para serem eficazes só podiam ser disparados a uma distância relativamente curta do alvo, bem dentro da densa e eficaz nuvem de projécteis cuspidos pelos canos da ZPU-4 à razão de 2400 tiros por minuto. Pela sua extensão e natureza aquele alvo exigia mais aviões e também munições mais capazes.

O comandante da parelha decidiu por isso abandonar a área e regressar imediatamente à BA12 para que a situação fosse ponderada e tomada uma decisão adequada às circunstâncias. Em qualquer caso, a partir desse momento era tudo urgente porque a guerrilha, tendo sido detectada, devia começar a desmobilizar e desapareceria rapidamente nas matas que rodeavam Sangonhá. Cada minuto de atraso na resposta aumentava exponencialmente as probabilidades de insucesso. Depois de informar Gadamael que iam regressar a Bissau o comandante da parelha entrou em contacto com o Centro Conjunto de Operações Aéreas (CCOA).
- Marte, Tigres chamam!
- Marte à escuta, transmita!
- Informe o Pirata24 que estamos a regressar a Bissau. A situação em Gadamael é a seguinte: flagelação a Ganturé continua a partir da pista de Sangonhá. Em Sangonhá vê-se muita gente no chão, uma quádrupla que abriu fogo quando os aviões se aproximaram, dois canhões com rodado, diversas viaturas e uma ambulância. Sugiro preparação de mais aviões com bombas. Diga se copiou.  - Afirmativo Tigres, tudo copiado vou já passar ao Pirata - respondeu o oficial de serviço.

Tinham passado trinta minutos depois da descolagem quando os dois aviões tocaram na pista de Bissalanca e iniciaram uma rolagem rápida para o estacionamento.

Furriel Miliciano Luís Guerreiro operando o morteiro de Ganturé
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Notas:

19 - Esta configuração “standard” permitia alcançar qualquer ponto do território, garantia algum tempo de permanência sobre o alvo mesmo no extremo Leste e dava alguma capacidade de intervenção se não existisse reacção AA.

20 - Cap PilAv Amílcar Barbosa, nascido em Cabo Verde e originário da Esquadra 51 de Monte Real que morreu no ano seguinte, no campo de tiro de Alcochete, ao lançar uma bomba equipada com uma espoleta experimental que funcionou mal.

21 - Não foi certeiro na fase de regulação, nem foi certeiro depois por razões que se explicam no texto.

22 - Na reestruturação do dispositivo ordenada pelo Brigadeiro António de Spínola depois de tomar posse como Governador e Comandante-Chefe, as posições de Sangonhá e Cacoca que ficavam entre Gadamael Porto e Cacine foram abandonadas.´

23 - Os edifícios foram destruídos pelo Exército quando a posição foi abandonada em 29 de Julho de 1968.

24 - Indicativo pessoal do Comandante do Grupo Operacional 1201 que na altura era o TCor PilAV Francisco Dias da Costa Gomes.

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A decisão

Assim que foi informado do que se passava, o Tenente-Coronel Costa Gomes pôs o Comandante da Zona Aérea, Coronel PilAv Diogo Neto, ao corrente da situação. Minutos depois este entrava no gabinete do Comandante do Grupo já com a caldeira a toda a pressão o que nele se percebia facilmente pela veia que no pescoço inchava notoriamente quando a tensão arterial subia. A primeira ideia que lhes ocorreu foi lançar uma operação helitransportada mas rapidamente perceberam que não só era demasiado arriscado como ia demorar muito tempo. De facto, com o número de helicópteros prontos não seria possível transportar mais que trinta paraquedistas o que era muito pouco. Não haveria surpresa e, além disso, não havia uma zona de aterragem reconhecida nem havia ideia do perímetro defensivo do PAIGC à volta de Sangonhá. A aterragem dos helicópteros teria de ser feita numa clareira ad hoc e relativamente longe do alvo não só porque não se sabia por onde andavam os guerrilheiros mas também por causa da ZPU-4. Acresce que se esta não fosse eliminada pelos G-91, o que não podia ser garantido, o apoio de fogo aos paraquedistas não seria exequível. Era também preciso reunir e preparar os homens o que iria demorar pelo menos uns 45 minutos. Finalmente, a velocidade do AL III também não ajudava. Tudo somado, mas em especial o risco de lançar trinta homens num local pejado de guerrilheiros, sem informações adequadas, fê-los desistir imediatamente da ideia.

As hipóteses de acção ficaram assim reduzidas aos G-91 e a quatro pilotos. Os dois da parelha de alerta que estava a aterrar, o Comandante da Zona Aérea e o Comandante do Grupo Operacional. Os restantes pilotos de G-91 estavam empenhados noutras missões e não estavam disponíveis. Também não havia tempo para montar a carga máxima nos aviões porque era preciso retirar os tanques de combustível e as calhas dos foguetes dos aviões que tinham ido a Gadamael e montar os suportes que permitiam levar duas bombas de 50kg em cada asa, em quatro aviões. Tudo no mínimo tempo possível. Assim, em vez de um total de 8 bombas de 200kg mais 16 bombas de 50kg foi dada ordem ao pessoal de armamento para montar apenas 8 bombas de 200kg mais 8 bombas de 50kg.

Entretanto, o Comandante-Chefe já tinha sido informado do que se estava a passar e quis falar com o Coronel Diogo Neto. Este meteu-se na viatura e lá foi ao Forte da Amura explicar o que lhe parecia mais razoável e eficaz. Como era de esperar a preferência do Brigadeiro Spínola ia para o emprego dos paraquedistas mas depois de ouvir as explicações do coronel concordou e deu o seu aval ao “plano de acção”.

Na BA12 os mecânicos e o pessoal de armamento, cientes da urgência da missão, esforçavam-se para aprontar os aviões o mais rapidamente possível. Não conseguiram porém evitar que o Coronel e os outros três pilotos que entretanto tinham chegado à linha da frente, completassem as inspecções e ficassem à espera, já sentados no cockpit, que o processo de configurar os aviões com as bombas de “fins gerais” terminasse. Mal as pontas dos arames de armar as espoletas foram cortadas e o sinal de tudo pronto foi passado aos pilotos, começaram a ouvir-se, numa sequência um pouco desencontrada, os silvos dos cartuchos de arranque à medida que iam sendo disparados seguidos do ronco surdo das turbinas em aceleração.


Canhão Zis-2 AC 57 mm pronto para ser atrelado a uma viatura de reboque. Imagem provavelmente relacionada com o ataque a Ganturé cedida pela Fundação Mario Soares.



Situação geral no terreno na manhã de 6 de Janeiro de 1969

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Era impossível falhar um alvo daquele tamanho

Os quatro aviões conseguiram descolar por volta das 11H00, três horas depois do início do ataque a Ganturé e hora e meia depois do regresso da parelha de alerta. A esperança de encontrar a guerrilha ainda em Sangonhá era já muito ténue e todos tinham consciência disso. À frente, no G-91 5408, o Coronel Diogo Neto subiu logo para os 8000 pés que era a altitude standard para iniciar o bombardeamento a picar (BOP) e acelerou para 400 KIAS apontado a Cacine. Os outros três seguiam-no numa formação de marcha bastante aberta.

A rota iria permitir que os aviões passassem Cacine já escalonados para o ataque e com Sangonhá a ficar na raiz da asa esquerda de modo a garantir uma picada com o sol mais ou menos “nas costas”. Sempre que tínhamos de enfrentar fogo anti-aéreo utilizávamos este procedimento para dificultar a pontaria aos apontadores e, neste caso, também a direcção do ataque ficava próxima do eixo maior do alvo.

Como seria de esperar os quatro pilotos estavam apreensivos e como acontecia sempre em acções mais complicadas o silêncio rádio foi completo. A única comunicação que o ex-Tenente Balacó Moreira, que voava a número dois no G-91 5412, se recorda foi a ordem para armar as bombas e passar a escalão pela direita quando passaram sobre o rio junto à povoação de Cacine. Logo a seguir cada um começou a tentar vislumbrar o alvo mas só no momento em que manobravam o respectivo avião para conseguir um “poleiro” que desse um bom angulo de picada é que foi possível perceber alguma coisa do que se passava “lá em baixo”. Balacó Moreira recorda-se que a quantidade de pessoas que avistou na zona do antigo aquartelamento era muito menor do que da primeira vez e que havia viaturas em movimento.
- Estão a retirar – pensou para consigo próprio.

A seguir viu o número um “pranchar” e voltar apertado pela esquerda subindo inicialmente acima da altitude inicial e depois, continuando a aumentar o pranchamento, mergulhar desaparecendo do seu lado esquerdo. Baixou a asa desse lado para tentar seguir a trajectória mas rapidamente o avião começou a ficar cada vez mais pequenino à medida que acelerava e se afastava em direcção ao solo. Naqueles escassos segundos não viu chamas à boca dos canos da ZPU-4. Quando o Coronel Diogo Neto avisou pelo rádio que tinha acabado de largar as bombas e estava em afastamento procurou efectuar uma última correcção à posição do seu avião. Naquele momento se a ZPU-4 disparava ou não já não lhe interessava para nada. A interpretação dos instrumentos de voo e o controlo da trajectória para posicionar o avião num ”poleiro” favorável não deixavam margem para se preocupar com o inimigo. Entrou então numa picada que lhe pareceu boa e depois foi corrigindo os desvios de modo a fazer o rectículo do visor caminhar progressivamente para um ponto atrás do rebentamento das bombas do avião da frente. O carrocel de ataque estava em marcha e com reacção ou sem reacção anti-aérea tinha era que acertar com as bombas no alvo, o maior de todos os alvos que atacou durante toda a comissão. Não falhou como não falharam os outros e ninguém foi atingido.

No final, os quatro aviões reencontraram-se à vertical do objectivo, circulando pela esquerda à altitude de ataque. Lá em baixo, Sangonhá ficara obscurecida pelo fumo e pelos detritos projectados pelas explosões dando a impressão que tudo tinha sido arrasado. Imagem bem enganadora que conheciam muito bem dos ataques aos “clusters” de armas AA que o PAIGC durante o ano de 1968 tinha tentado instalar em diversos pontos do Quitafine. Desfeita a poeirada constatava-se muitas vezes que as armas AA continuavam a disparar embora relativamente perto se avistassem as enormes crateras abertas pelas bombas. O que acontecia era que a combinação bomba/espoleta que utilizávamos penetrava demasiado no solo arenoso provocando crateras enormes que deflectiam os estilhaços para o ar sem causar danos significativos no plano horizontal.

Desta vez, o solo era certamente mais consistente porque as crateras pareciam pouco profundas, com uma assinalável concentração na zona onde estava o armamento pesado. Os quatro aviões ficaram ainda alguns minutos a circular observando a metralhadora AA que era a grande preocupação mas que parecia inactiva desde o início. Lá do alto constataram que nada parecia mexer. Nenhum dos aviões tinha sobreposto o tiro ao dos outros e as dezasseis bombas tinham produzido uma cobertura relativamente densa. Só não era possível era determinar se o ataque tinha sido eficaz em termos de baixas no inimigo.

Depois, sem armamento, nada mais havia a fazer e o comandante da formação deu ordem para abandonar a área e regressar à BA12.

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O reconhecimento a Sangonhá

Três dias depois, a 9 de Janeiro de 1969, a Cart 2410 executou um reconhecimento a Sangonhá com cerca de 100 homens - militares, milícias e caçadores nativos (Gadamael e Ganturé ficaram reduzidos ao mínimo de pessoal para a sua defesa)25. A força foi comandada pelo ex-Alferes Miliciano Albino Rodrigues, que era o comandante do 1.º Grupo de Combate, ficando o Comandante da Companhia em Gadamael.

Saíram de Gadamael por volta das 6 horas da manhã, sem qualquer apoio de viaturas, normais ou blindadas. Às 08:30 descolou de Bissalanca o DO-27 3347, pilotado pelo Tenente Balacó Moreira, com a missão de apoiar a progressão no terreno e em particular coordenar o apoio de fogo se fosse necessário.

Em todo o percurso até Sangonhá não foram detectados trilhos novos, nem foram encontrados os habituais invólucros de granadas de morteiro ou de canhão S/R que os guerrilheiros normalmente deixavam espalhados no terreno após as flagelações.26

Após a passagem a vau do rio QUERUANE/AXE, e uns 200 ou 300 metros à frente, numa pequena elevação do terreno, foram encontrados os restos de uma fogueira (a noite de 5 para 6 tinha sido fria) junto a uma árvore alta com vestígios de ter sido utilizada como posto de observação, quer pelo aspecto do tronco, quer por alguns ramos partidos. Logo 3 ou 4 metros depois encontraram fio telefónico que foi seguido até ao respectivo carretel vazio. Concluíram por isso que naquela árvore teria estado um observador avançado munido de linha telefónica para orientar o tiro dos canhões A/C estacionados em Sangonhá.

Desde este local e numa extensão de cerca de 3 quilómetros, havia abrigos individuais de um lado e outro da estrada, e também resíduos de fogueiras. Logicamente, a defesa avançada do dispositivo instalado em Sangonhá estendera-se ao longo da estrada para Gadamael Porto.

Com a força já a meio caminho descolaram então de Bissalanca 2 T-6G armados com foguetes SNEB de 37mm e metralhadoras 7,7mm27. A missão era permanecer em espera um pouco a Norte de Sangonhá e actuar à ordem do PCV (DO-27) caso fosse necessário dar apoio de fogo. Depois, às 11:30, quando a força estava próximo de Sangonhá descolaram de Bissalanca dois G-91 armados com foguetes de 2,75 polegadas e quatro metralhadoras 12,7mm. Os dois T-6 foram nessa altura reabastecer tendo voltado a descolar novamente para acompanhar o resto da operação.

A primeira indicação de que estavam próximos do objectivo foi dada pela grande quantidade de abutres (os feiosos jagudis) pousados nas árvores ou voando em círculos. Ao mesmo tempo, o pessoal começou a sentir o cheiro nauseabundo de corpos em decomposição.

A força distribui-se então de modo a formar uma longa linha perpendicular à estrada e foi nessa formação que avançaram cautelosamente. O que descobriram a seguir ultrapassou todas as marcas e foi tão chocante que o pessoal descurou momentaneamente as regras de segurança que vinha a manter.

 O ex-Alferes Miliciano José Barros Rocha, comandante do 2.º grupo de combate, recorda desta maneira o que viu e sentiu:

“…na antiga pista [de Sangonhá], armas destruídas e pedaços de corpos de negros e brancos e 13 sepulturas. Uns dias depois tivemos a informação de 36 mortos confirmados e muitos feridos.
" O aspecto do local era medonho! A terra, cuja cor natural é avermelhada, tinha a cor cinza! O intenso cheiro a putrefacção! Os abutres (jagudis) às dezenas! As árvores queimadas! Enfim..." (...).
 …………………………………
“…recolhemos 3 carretéis carregados de fio telefónico e um vazio, uma mina A/P, uma ferramenta para aperto de rodas, invólucros de granada do canhão A/C 57mm, meia pistola, munições intactas da A/A de calibre 14,5mm, bonés, chapéus tipo colonial, uma bandeira, uma caixa de ferramenta, e mais algumas bugigangas..”.

A força permaneceu em Sangonhá cerca de duas horas tendo regressado a Gadamael entre as duas e as três da tarde. Quando já estavam perto do quartel o Tenente Balacó Moreira aterrou o DO-27 em Gadamael e ficou a aguardar a chegada da força. Foi ele que levou para a BA12, em primeira mão, os resultados provisórios do bombardeamento no qual tinha participado. Levou também a óptica do aparelho de pontaria da ZPU-4 que lhe foi oferecida pelo comandante do 2.º grupo de combate e que ele entregou depois ao Tenente Coronel Costa Gomes.

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Notas:

25 - Testemunho do ex Alferes Miliciano José Barros Rocha da Cart 2410. [In blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > 23 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2574: Estórias de Guileje (9): O massacre de Sangonhá, pela Força Aérea, em 6 de Janeiro de 1969 (José Rocha) b]

26 - Indicação muito forte de que a flagelação do dia 6 teria sido efectuada apenas com os canhões AC estacionados em Sangonhá.

27 - Esta configuração era muito eficaz para o apoio de fogo à forças terrestres. Cada avião estava municiado com 72 foguetes SNEB de 37mm e podia também utilizar as quatro metralhadoras 7,7mm.

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A razão para o suicídio do PAIGC em Sangonhá

Depois do reconhecimento a Sangonhá ficou por decifrar o que teria levado o PAIGC a efectuar aquela acção suicida. A prática normal da guerrilha não se ajustava, de modo nenhum, ao que acontecera no dia 6 de Janeiro de 1969. Não tinha sido apenas a hora a que foi desencadeada a flagelação, de manhã em plena luz do dia, mas também o facto do armamento e o pessoal estarem em campo aberto e serem facilmente detectáveis pelos aviões. Era ainda o recurso às peças anticarro na flagelação como se fossem obuses ou morteiros28.

Havia certamente uma justificação para este comportamento anómalo mas nenhum de nós imaginava qual poderia ser.

No dia 19 de Janeiro de 1969 coube-me efectuar no DO-27 3341 ”o sector de Buba” o que me deu a oportunidade de falar com os oficiais da CArt 2410. Foi nessa ocasião, pelo testemunho dos que tinham, de facto, posto os pés no que fora o “nosso alvo”, que me apercebi pela primeira vez da dimensão do desastre que o PAIGC tinha sofrido. Foi também nessa ocasião que o Alferes Barros Rocha teve a gentileza de me oferecer quatro munições da ZPU-4 que estivera instalada em Sangonhá e que tinha feito fogo contra os dois primeiros (pelo menos) G-91 que descolaram para tentar suster a flagelação a Ganturé. Destas quatro munições, como referi no início, ainda guardo uma comigo e, por arrastamento, a memória deste episódio.

Por acaso tudo se aclarou alguns dias mais tarde ao ler um relatório da DGS que chegou ao gabinete do Comandante do Grupo Operacional 1201. Para mim foi uma espécie de relâmpago que tudo iluminou e desvendou, num instante, a lógica daquele comportamento estranho do PAIGC. Não consegui agora encontrar nenhum registo desse documento mas o facto é que me marcou tanto que nunca mais esqueci o essencial do que li. Resumidamente, a DGS dava conta de que o ataque se tinha enquadrado numa acção de propaganda promovida pela Suécia. Na minha opinião, muito provavelmente a pedido do próprio Amílcar Cabral, resolveram aproveitar o abandono de Sangonhá para simular a tomada do aquartelamento pela guerrilha. O cenário não podia ser mais perfeito. Antes de abandonar a posição, as instalações do aquartelamento tinham sido destruídas pelo Exército e essa imagem podia ser facilmente mostrada em fotografia e filme como sendo consequência dos ataques do PAIGC. Depois, a posição “acabada de conquistar” podia ser utilizada para mostrar o poder de fogo do PAIGC contra as posições que se preparavam para conquistar a seguir: Ganturé e Gadamael. Uma equipa de repórteres, incluindo fotógrafos e cineastas deslocou-se para esse efeito à Guiné-Conacri onde se juntou aos guerrilheiros. Um total de 400 pessoas terão estado envolvidas em toda a operação segundo as informações do régulo Abibo de Ganturé.

Ficou assim explicado porque razão o PAIGC se tinha exposto em pleno dia a levar com as bombas da aviação. É que não era possível fotografar nem filmar sem luz. Também não fazia sentido estarem escondidos quando tinham acabado de derrotar e afugentar o inimigo. Tinham, é claro, a noção de que iam correr um grande risco e por isso o terem levado a ZPU-4 para se defenderem. Mas cometeram um segundo erro, este gravíssimo. Foram detectados e em vez de embalarem a trouxa e rumarem novamente à Guiné-Conacri deixaram-se ficar. Pessoalmente penso que, como os dois primeiros aviões não abriram fogo, assumiram que, ou os tinham atingido, ou os tinham dissuadido e resolveram continuar a fazer a “fita”.

Faltava explicar a utilização das peças anti-carro porque, como já foi dito, não eram, nem armas de guerrilha, nem adequadas às flagelações aos aquartelamentos. Não há mesmo conhecimento de terem sido utilizadas em qualquer outra ocasião.

Uma explicação muito credível ocorreu-me quando descobri algumas fotos dessas armas no arquivo Amílcar Cabral da Fundação Mário Soares. Fiquei até convencido que respeitam à acção do dia 6 de Janeiro de 1969. Passo a explicar.

O objectivo da operação era produzir propaganda, como referiu a DGS no seu relatório. Havia, por isso, necessidade de mostrar grande capacidade militar e poder de fogo, factores esses que estariam a determinar avanços do PAIGC no terreno nomeadamente a conquista de posições ocupadas pelos portugueses. Acontecia que aquelas peças anti-carro tinham um reparo longo, tinham rodas e um cano comprido. As eventuais audiências alvo da propaganda ficariam certamente muito mais impressionadas se o ataque fosse feito com estas peças de artilharia em vez dos tradicionais morteiros ou dos canhões sem recuo que eram armas relativamente pequenas. Só uma razão desta natureza os poderá ter levado a não utilizar o armamento tradicional nesta flagelação a Ganturé: nenhuma granada rebentou no perímetro do destacamento.

A título de curiosidade não devo terminar sem mencionar o único documento conhecido do PAIGC referente a este ataque. Trata-se de um bilhete enviado em 6 de Janeiro de 1969 por um dos mais celebrados comandantes do PAIGC, Pansau na Isna29, e dirigido a Aristides Pereira que estava na base mais próxima, Boké, na Guiné-Conacri. Na missiva para além de empolar a prestação da guerrilha, aparentemente para agradar ao chefe, solicita o envio de mais trezentas granadas para os canhões A/C e mais gasolina para continuar a atacar Ganturé “no duro”, o que não chegou a acontecer. Alguma coisa lhe terá quebrado o ânimo…

Bilhete enviado por Pansau na Isna a Aristides Pereira enquanto decorria o ataque a Ganturé. Documento cedido pela Fundação Mario Soares.

Concluindo, ironicamente pelo menos desta vez, a bondosa ajuda humanitária sueca cujo objectivo foi soprar “os ventos da história” contribuindo para a derrota militar dos portugueses não conseguiu infligir baixas às nossas forças. Ao invés, provocou um número substancial de mortos, feridos e incapacitados entre os guerrilheiros e, muito provavelmente, também entre os apoiantes cubanos, repórteres, fotógrafos e cineastas suecos. Que foram encontrados diversos despojos de pele branca é um facto mas nunca se conseguiu saber a quem teriam pertencido. O PAIGC e o governo sueco, em escrupulosa obediência às regras da propaganda nunca revelaram, nem durante a guerra, nem depois, este desastroso embate…
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Notas:

28 - As peças anticarro Zis-2, de 57mm, tinham sido projectadas para destruir os blindados alemães durante a II GG em tiro directo e mostraram-se tão desadequadas neste caso que nenhuma das dezenas de granadas disparadas caiu dentro do perímetro de Ganturé.

29 - Pansau na Isna não morreu em Sangonhá mas acabou por ser morto, no final do ano seguinte, pelos fuzileiros, a Norte de Bissau.

FIM
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Nota do editor

Vd. poste anterior de 24 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15035: FAP (82): Pedaços das Nossas Vidas: VI - Um ataque com "olhos azuis" - I Parte: "O ideal missionário do povo sueco" e "A escapatória ética da ajuda humanitária sueca" (José Nico, Gen PilAv)