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sábado, 21 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24779: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (12): Almocreves e ferradores, mais alcunhas e locais da Aldeia Nova de São Bento (José Saúde)



O candeeiro a petróleo


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.    


 Coisas & loisas do meu tempo de menino e moço


Camaradas,

Foi precisamente à luz de um candeeiro a petróleo que dei os meus primeiros passos de vida. Depois, veio o aprender de o a, e, i, o, u, e um pouco mais tarde a desejada bênção da luz elétrica. Tempos difíceis onde o trabalho, principalmente no campo, era o elemento mais certo para parte de uma comunidade cuja faina ao “sabor” das calamidades não se apresentava desrespeitada pelos magros tostões ganhos na base do suor derramado na imensidão da planície.

Fui uma das muitas crianças que se habituaram a conviver com as carências deparadas no dia-a-dia, porém, e afirmo-o seguramente, que jamais soube o que fora andar descalço, ou falhas alimentares em casa, vestindo sempre aprimoradas roupinhas e esse minino cresceu, fez-se homem e conheceu uma vida repleta de histórias, sendo também que existem outras estórias as quais não renegarei. Ah, também fui militar (Ranger) e conheci o conflito da Guiné.

Quando parti para a edição do livro “ALDEIA NOVA DE SÃO BENTO – MEMÓRIAS, ESTÓRIAS E GENTES”, o 10º dos 11 já editados, admiti que a tarefa que me esperava assumia-se bastante difícil. Encarar e enquadrar no texto geral o fator da intemporalidade, de construções físicas francamente alteradas, por exemplo, ou trabalhar, com minuciosidade a exatidão das eras, das festas religiosas, da origem e evolução do povoado, do cante alentejano e dos seus ilustres cantadores, das festividades originárias de uma plebe que soube comer o pão que o diabo amassou, ou de gentes que sofreram os auspícios que o sistema político impunha, ou de lugares da minha aldeia que paulatinamente se foram transformando, ou ainda as profissões que se foram extinguindo, enfim, uma panóplia de recolha de informações que levaram dias, meses e anos a trabalhar.

Todavia, a obra que deixo ao povo, o meu, será, de certeza, uma mais valia que tem como princípio básico quem somos e de onde viemos. Há gráficos que falam da evolução populacional de entre outros temas que ficarão a posteridade, ou do fluxo de pessoas que procuraram outros destinos, nomeadamente Lisboa e seus arredores, ou da migração para países onde por lá fizeram as suas vidas, proporcionando a alguns ao seu solo sagrado, mas com outras condições de vida.      

A obra é feita de eloquentes factos que nos enchem de orgulho.  

(i) Almocreves    


Um almocreve de outros tempos

      

Os almocreves foram outrora pessoas que lidavam diariamente com animais, sendo os trabalhos no campo, uma das suas principais ocupações. Durante a idade média, até a tempos mais recentemente, os almocreves exerceram, também, a função de agentes intracomunitários, sendo indispensáveis no fornecimento de bens às comunidades que viviam dispersas pelas aldeias, vilas e cidades.

Em Aldeia Nova de São Bento os almocreves marcaram, na realidade, gerações. Foram homens cuja disponibilidade de esforços físicos fizeram parte do seu dia-a-dia. Distribuíam-se pelos lavradores da terra: os senhores Bártolo, Luís Madeira, família Barroso, Guanito, Luís de La Féria, Morgado, de entre outros, e por lá trabalhavam, mas sem folgas ou férias que se protelavam por anos consecutivos. Ou seja, trabalhavam do nascer ao pôr-do-sol e sempre de cabeça erguida. Eram, no fundo, assalariados, mas com um trabalho fixo.

Claro que a jorna não faltava em casas que, à época, não se viam obrigadas a mendigarem, uma vez que o salário não faltava no final de mais uma semana de trabalho que nesses tempos marcavam o pagamento das respetivas jornas. Tanto mais que o almocreve trabalhava de segunda-feira até ao domingo, logo os tostões ganhos traduziam-se numa vida mais tranquila.

Sabia-se que as dívidas da semana feitas na mercearia seriam pagas com o recebimento do pré, isto é, logo na semana seguinte, o que proporcionava ao merceeiro confiança num freguês que não apresentava no seu livro de querelas a condição de mau devedor. Portanto, era um privilégio ser-se almocreve.

As funções de um almocreve dividiam-se consoantes as necessidades do lavrador. Ora era o lavrar da terra para mais um alqueve, ora era o rasgar de regos para as sementeiras, ou para transportar os cereais para as eiras onde as debulhadoras fixas se instalavam, ou transportar o pessoal que por altura da apanha da azeitona, ou das mondas e das ceifas seriam transportadas nos carros de bestas, ou, ainda, em pequenos trabalhos solicitados pelo patrão. Limpezas das cavalariças ou da mansão do seu proprietário, eram canseiras que o almocreve não escusava.

A azáfama dos almocreves pelas ruas da nossa aldeia era intensa. O transitar pelas artérias onde as calçadas em pedra suportavam as rodas dos carros que possuíam um aro em ferro, apresentavam-se propícias para estridentes sons que levavam, amiúde, à curiosidade de crianças que não evitavam saltar para a “arrebicha” de uma “viatura” que para eles, garotos, era simples delícias.

Recordo ver ranchos de pessoas transportadas em carros de animais a caminho dos seus locais de trabalho. Lembro, ainda, a atividade dos abegões em volta de um carro que por vezes tinha necessidade de uma revisão.

Almocreves, uma profissão que, entretanto, se esfumou no tempo!

(ii) Ferradores

     O mestre Gregório


Conheci-o com tenra idade! Homem educado, amigo, sábio na sua arte e sempre afável para com o próximo, o mestre Gregório vestia, diariamente, o habitual fato-macaco (azul) e ei-lo a cruzar as ruas entre a sua casa no Largo da Igreja e a sua oficina, situada defronte à Sociedade 5 de Outubro.

Naquele espaço, fértil em amizades, o mestre Gregório trabalhava minuciosamente as ferraduras para o gado equídeo e para os asininos. Ou seja, ali se juntavam, mulas, machos, cavalos, éguas, burros e burras. Todos estes animais tinham ferraduras apropriadas para os seus cascos.

Contava o povo que, em tempos muito recuados, as sobras dos cascos dos animais eram triviais pitéus para a presença de lobos na aldeia, ouvindo-se os seus uivos ao longo da noite e a plebe assustava-se. Os ferradores, nessas eras, possuíam uma abastada agenda diária de trabalho, dado que a tração animal era, afinal, a única força motora para trabalhar a terra. Neste contexto, ao final do dia não sobrava tempo para uma atempada varredela aos restos dos cascos que por lá ficavam. Tanto mais que a luz elétrica nas ruas era, nesses recuados tempos, vã.

O mestre Gregório fez, na verdade, escola numa arte que sempre o motivou. O ferrar implicava o arrancar de velhas ferraduras e de cravos já gastos pelo muito andamento do gado por caminhos velhos e estradas pulverizadas com pedras.

Do mestre Gregório guardo excelentes recordações. Revejo-o no seu dócil manusear de ferramentas literalmente úteis à sua profissão; da preparação dos cascos dos animais; da turquês para o arrancar dos cravos; do martelo para os cravar; da lima que alisava esses mesmos cascos; o avental para colocar as patas dos animais nas suas pernas; a feitura das ferraduras num lume feito na oficina com carvão de pedra, como na altura se dizia, e com pura veracidade; o trabalhar os moldes; o curvar do ferro na bigorna e tudo à base do fogo; enfim, uma profissão que paulatinamente se foi perdendo no tempo.

Resta relembrar e trazer a público a profissão de ferreiro onde a nossa aldeia foi abundante, existindo vários ferradores que quase não davam mãos a medir para satisfazer as solicitações agregadas à imensa quantidade de animais então existentes. A aldeia e a serra, repleta de famílias, foram assíduos fregueses destas oficinas.

Hoje, as máquinas agrícolas ultrapassaram a força animal de antigamente. Os ferreiros foram substituídos pelas oficinas. Fica, porém, a certeza que o mestre Gregório foi um conterrâneo que deixou história como ferrador na nossa terra.

Ferrador, uma profissão que se conservou ao largo de anos!



Jana trabalhando a arte de ferrador


A profissão de ferrador conservou-se ao longo do tempo em Aldeia Nova. A geração Mira Monge, o João, o Manuel e o Lourenço, um homem que, entretanto, se instalou em Vale de Vargo, foram irmãos que deram continuidade ao ofício e que se entregaram à tarefa com uma enorme determinação. A oficina localizava-se no Largo dos Madalenos, sendo propriedade do João e do Manuel e teve como seu sucessor o Jana, como o povo o conhecia, mas sendo o seu nome próprio João.      

O Jana, para além da sua profissão, a de ferrador, foi um excelente cantador do cante alentejano, pertencendo, inclusive, ao Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento. Recordo visitá-lo e vê-lo entregue à arte em moldar e trabalhar o ferro e de onde saíam as ferraduras para “calçar” as bestas.
      


 (iii)   Mote para as alcunhas na aldeia 

 Os nomes da minha Aldeia
Há nomes mesmo engraçados
Desde o Porca Chupadiça
Ao Manel Esfrangalhado
O Safarreta, o Catarro,
O Bento em Crendo, o Falcato,
Eu vi o Manel Macaco
Rir do António Chaparro
Por vezes quando me agarro
Recordar é uma teia
O Zé Engancha, o Enleia,
João Bufa, Esgaravana,
Peido, Peidinho e Peidana,
Os nomes da minha Aldeia.
Rei-Varrasco, Escalfa Cães,
O Sacadiço e o Farupa,
Catrapingas, Catraputa,
Sete e Meio e Dois Tostões,
Alho Bufo e Zé Rações,
O Gadelha e o Pelado,
O Beija-a-Poia, o Cagádo,
Facadas e Saltaréu,
Canivete e Faquineu,
Há nomes mesmo engraçados.
Gato Cravo e Paneirinho,
O Zé da Mona, o Garrocho,
O Galdrapas, o Carocho
O Chorrilho e o Chibinho,
O Tigre e o Carapezinho,
O Carola e o Belicha,
Meia-Nalga, Chico Espicha,
O Estrafique, o Biscoito,
Pé-Leve e Luís Dezoito,
Há o Porca Chupadiça.
Pata Curta, Nabo Seco,
Cu de Chumbo, Coradinhas.
O Mil Kilos, o Carinhas,
O Caga Azeite, e o Carapeto,
Cacetadas, Carapeto,
Rasga-a-Manta e Cu Suado,
Zé do Saco e Saramago,
O Mau Bofe e o Cachola,
O Nariz D’Aço, o Engrolo,
Mais o Manel Esfrangalhado 

Autor
Francisco Rafael Rodrigues,
Por alcunha o Carinhas


(iv) Locais de Aldeia Nova de São Bento

MOTE 

Anda tudo em alvoroço
P`ras bandas da varandinha
Porque o monte do Encalho
Namora o Monte da Vinha 

Está à rasca o Carrasquinho
Com a Tapada do Facho
E até a Horta de Baixo
Discutiu com os Alpendrinhos
O Outeiro do Almeirinho
Guerreou com Vale Pedrouços
Vai p`rá farra o Monte Poço
Ao sopapo e aos bofetões
Avança o Poço dos Cães
Anda tudo em Alvoroço 

Há cacetada bravia
Lá p`rós lados da Charneca
O Carapetal aperta
Com o Poço do Tio Matias
Até mesmo na Vigia
Há quem diga que a Laginha
Anda louca embeiçadinha
Pelo Monte do Africano
Pandemónio Franciscano
P`rás bandas varandinha 

Lá na nora do Malquarto
Todos vivem numa fona
Madalenos e Atafona
Não falam do Bairro Alto
A Vareta deu um salto
Fugiu com o Monte dos Talhos
Os Alpendres não quer ralhos
Que a Fonte-Branca incomoda
De mini-saia a Abóbada
Vai ao Monte do Encalho 

Va haver um casamento
Porque há muito que ela chora
A Horta das Pegas namora
Com o Moinho de Vento
O Poça de Lobo atento
Diz para a Horta de Cima
A Cova do Homem é minha
Crespo, Vale Covo e João Gago,
Pias, Ficalho e Vale Vargo
Namora o Monte da Vinha

Autor
Francisco Rafael Rodrigues, 
Por alcunha o Carinhas (16/7/1983) 


Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Texto e fotos: © José Saúde (2023).

___________

Nota de M.R.:

Vd. últimos postes desta série em:

sábado, 14 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24758: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (10): Mondadeiras, Ceifeiras e as Eiras no rossio (José Saúde)


As mondadeiras com o seu sacho



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços

Camaradas,

      Acomodado ao peso de uma idade onde o limite toca a infinidade do horizonte, lá vou caminhando por picadas incertas, agora não armadilhadas, mas jamais deixando debitar memórias que o tempo ousará apagar, enquanto a mente assim o permitir.

      Em “Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço”, recorro à obra dantes aqui citada e que se prende com a existência da terra que me viu nascer, 23 de novembro de 1950, cujo documento ficará perpetuado para as gentes aldeãs: “ALDEIA NOVA DE SÃO BENTO – MEMÓRIAS, ESTÓRIAS E GENTES”, edição Colibri, Lisboa.

      Hoje, leva-me a saudade a recorrer aos afazeres de homens e mulheres do campo de antigamente, sendo que cito precisamente as mondadeiras, as ceifeiras e as eiras no rocio grande.  Acrescento, ainda, um conjunto de expressões populares redigidas sob a pena do senhor Silva, um homem culto e que deixou memória na minha aldeia.

      Como eram felizes aqueles tempos de criança, neste caso no Sul alentejano!


Mondadeiras

      A monda fora uma ocupação específica que as mulheres exerceram nos campos, onde a finalidade era colher as ervas daninhas para a seara crescer sem os perigos provenientes de nefastas calamidades que o tempo por vezes causava. Ou seja, uma avalanche de ervas nocivas que impediam o crescimento para uma boa seara.

      As mondadeiras, com um sacho numa das mãos, seguiam em rancho a caminho dessa tarefa, tarefa esta inserida numa fase em que as searas, ainda pequenas, eram trabalhadas ao pormenor, colhendo-se, sobretudo, os pés de balanco que se confundia com os pés do trigo já nascido.

            Idas e vindas dos locais de trabalho, eram, muitas das vezes, a entoarem os famosos cantes alentejanos. As mulheres juntavam-se num determinado local, isto é, a uma das esquinas ou largos da aldeia, e lá partiam rumo à courela do senhor fulano tal.

      Nesses tempos existiam os manajeiros que, com um bordão na mão, nada lhes escapava. As mulheres, agachadas, tentavam ver ao pormenor tudo o que fosse erva para arrancar. E se existisse uma falha lá estava o manajeiro a mandar uma reprimenda a uma outra moça que, entretanto, começava a exercer tal função. Outra vezes era o próprio patrão que, numa ronda para se inteirar do evoluir do trabalho, lá detetava a possível falha.

      Neste capítulo, importa referir que uma das mondadeiras assumia a função em dar águas às suas companheiras. Uma tarefa que se dividia pelo rancho das mulheres. Com uma “enfusa” debaixo do braço, lá ia “matando” a sede àquelas que porventura necessitassem do tão precioso líquido, principalmente quando o sol, ainda baixo, raiava a pique.

      Os horários das mondadeiras eram do nascer ao pôr-do-sol. Havia as horas para almoçar e para a merenda. De resto, o árduo trabalho passava pelo suportar a incómoda posição em que as mulheres, ao longo do dia, estavam sujeitas.

      As jornas eram magras, mas assumiam-se como maquias importantes no orçamento familiar, tanto mais que os tostões ganhos reforçavam a compra de bens alimentícios.

Mondadeiras
(Luís Madeira)

Mondadeiras lindos ranchos,
Lenços de todas as cores,
Vão mondando e vão cantando,
Cantigas aos seus amores.

Um dia mais tarde quando,
Chega a ceifa que alegria,
Vão ceifando e vão cantando,
Mais depressa passa o dia.


Ceifeiras

      O mês de maio era o tempo das ceifas, ou das “acêfas” como habitualmente as nossas gentes o mencionava. As mulheres com uma foice, uns canudos feitos em cana para protegeram os dedos das mãos no manejo da sua foice, um lenço enrolado à cabeça, por cima um chapéu, meias de lã grossas para evitarem uma “espargana” de todo desaconselhável, visto o incómodo que causava era desagradável, utilizando roupas do tipo camponesas, e eis as ceifeiras, em rancho, prontas para mais uma jornada de trabalho. Porém, já no campo havia sempre uma que cuidava de fazer o lume e zelar pelos jantares das companheiras.


Cuidando do almoço

      Eram os tempos em que homens, por vezes, também se intrometiam neste árduo trabalho. Todavia, a ceifa era, sobretudo, uma ocupação mais adequada para o elemento feminino. Contava-se que, por norma, as mulheres, em cada faixa trabalhada na courela, ocupavam-se com dois regos para ceifar, começavam numa ponta, acabavam na outra, sucedendo o inverso quando a etapa terminava e logo recomeçava. Porém, existiam aquelas, que se admitiam como mais valentes, que levavam três regos de ceifa.


Momento de dar água a uma companheira

      Ceifavam e faziam pequenos molhos de cereal que a seguir eram transformados em outros molhos com dimensões superiores. Entretanto, tanto os molhos mais pequenos como os maiores, eram devidamente atados e encostados para o seu carregamento se tornar mais facilitado.


      Depois de o ceifar da courela outra se seguiria e por fim fazia-se a adiafa. Nesses tempos as trovoadas de maio, principalmente aquelas vindas dos lados da serra da Adiça, algumas medonhas, não davam folgas às ceifeiras. A ceifa parava, as mulheres aconchegavam-se junto aos pés das árvores, chaparros ou oliveiras, ou acomodavam-se junto dos molhos já feitos e prontos para seguirem para as eiras. Isto porque os molhos eram colocados em pé, tendo em conta essas adversidades naturais, logo, tornava-se mais fácil um enxugar da semente mais rápida.


      “Ceifeiras, lindas ceifeiras”, sim, vocês foram mulheres camponesas que o rigor do tempo jamais vos incomodou.


      Aqui fica a nossa singela homenagem a essas mulheres de outrora!

Ceifeira, linda ceifeira (retirada do cante alentejano)

O sol é que alegra o dia
Pela manhã quando nasce
Ai de nós o que seria
Se o sol um dia faltasse
Ceifeira!
Ceifeira, linda ceifeira!
Eu hei-de,
Eu hei-de casar contigo!
Lá nos campos
Lá nos campos, secos campos
Lá nos campos, secos campos,
À calma
À calma ceifar o trigo,
Pela força
Pela força do calor!
Ceifeira!
Ceifeira, linda ceifeira
Ceifeira linda ceifeira,
Hás-de ser o meu amor!
Não é,
Não, não é a ceifa que mata
Nem os calores,
Nem os calores do v’rão!
É a erva,
É a erva unha-gata,
É a erva unha-gata,
Mais o cardo beija-mão!
Ceifeira!
Ceifeira, ó linda ceifeira
Eu hei-de casar contigo


Eiras no rossio


Eira no rossio onde o trabalhar das patas dos animais eram importantes

      A debulha feita sob com as patas dos animais era, de facto, interessante. Recordo os tempos das debulhas no rossio grande, local próximo das escolas primárias. Horas infindáveis a debulhar o cereal que os animais em círculo, e orientados pelos almocreves, lá passavam horas a separar o grão da palha.

      Primeiro chegavam os carros de bestas carregados de molhos, depois esses molhos eram desatados, seguindo-se o seu deitar, com preceito, na eira e finalmente a debulha.



Joeirando a semente numa eira no rossio

      Tudo, nesses tempos, tinha as suas regras. O homem, no centro da eira, tinha a perceção quando este primeiro trabalho se encontrava finalizado. Ou, a necessidade de dar continuidade à safra. Entretanto os miúdos entretinham-se a ver a azáfama dos homens.

      Com o primeiro patamar do trabalho concluído, passava-se para a fase seguinte: separar os grãos da semente da palha. Um serviço que por vezes se prolongava por muitas horas. Com uma pá o homem jogava para o ar o produto em bruto, mas quando não havia maré, não valia a pena insistir no penoso trabalho. O vento não soprava, logo, tinha-se, forçosamente, que se fazer uma espera.

      Por vezes lá vinha uma rabanada de vento, o homem aproveitava a maré e lá seguia o seu trabalho. Mas, de repente o vento silenciava-se e a pá recolhia aos seus aposentos. Muitas das vezes valia aquela parte da madrugada em que o vento voltava a dar um ar da sua graça, razão que levava o homem a um suspiro de alívio e terminar a lida.

      Noites, malpassadas, em que o homem acabava por não dormir, por causa da ausência da maré. Depois vinha o ensacar do grão num saco cujo destino era o celeiro, situado ali por perto, e a palha levada por carros com uma rede trabalhada acima dos taipais, sendo o destino final o palheiro, onde se guardava a forragem para os animais comerem ao longo do ano.

Eram assim as eiras de antigamente no rossio.

Expressões Populares de Aldeia Nova de S. Bento
(António Loureiro da Silva, 1991)


Estar contente é desvaído,
Homem grande é taçalhão
Leviano é estaravedas
Beliscar é refelão.
Mulher ruim é cochina
Chover brando é molisnar
Naco de carne é uma presa
Andar mal é salamanquear.
Discussão é batibarba
Desleixado, desbagochado
Ao nojo chamam rascunho
Ao inchaço, assolapado.
Chamam chispa à azeitona
Apanhada de empreitada
Denunciar é ameseio
Comida de verão, lavadas
Lida apressada, trafuna
Mulher imoral, jaronda
Ser esperta de mais, bespeta
Mulher suja é uma tronga.
Mulher porca é uma rafada
Inventar é alcatear
Palhaçadas são archotes
Pressentir é barruntar
Uma mobília é um estado
Melhor roupa, vestir de grave
Também chamam algaramojo
Às sardinhas com tomate
À chuvada repentina
Chamam-lhe esgaravanada
Muito falada, almotaço
A pedrada é caqueirada
Gastador é estrafalairo
Ter mau génio é revinhento
Vento frio é bisaranha
Irritadiço, perliquitento
Muito cheio é abarruntado
Um naco grande é farrajo
Cabelo alto é maronga
Coisa velha é tarraço
Sol muito forte é esturreira
Refilar é extrapaciar
Chuva rija é zurregada
Deixar de chover, escampar
Ter maldade é má ralé
Pedrada é bolegada
Ser parvo, é catarete
Chuvada forte é tuchada
Já chega é tem avondo
Dar uma queda é um estoiro
Muito magro é encartadinho
Fóu significa nojo
A diarreia é vareta
Muito calor, encalmado
Roupa da cama é fato
Muita febre, esbraziado
O trabalho é digudana
Muita sede, estar escalado
Barulho é lavarito
Estar doente, abarracado
Glutão é garganeiro
As caretas são mutetes
Botas de pano, criminais
Ser sabido é alquetete.
Tonturas são almareios
Estar ferido, escalavrado
Chuva miuda, corgeiro
Zangado enchibatado
Mulher chata é uma vima
Desejar é apojar
Leviana é vanzinha
Aparecer é acolar. 

Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24755: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (9): A pisa, a desfolha, a apanha da lenha nos montes, o cultivo da batata, a olivicultura... (António Carvalho, Medas, Gondomar)

domingo, 1 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24717: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (5): A nossa feira de setembro (José Saúde, Aldeia Nova de São Bento, Serpa)

A nossa feira de setembro



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 
    

Camaradas,  

Em primeiro lugar, aplaudo a excelente iniciativa que nos faz recuar ao nosso tempo de meninos e moços; em segundo lugar, aplaudo, também, tudo o que tenho lido sobre esse tempo no nosso blogue; em terceiro lugar, mas com a devida vénia, vou colocar um texto que fez parte de um dos meus livros sobre a terra que viu nascer: Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes, uma obra que vai na segundo edição.      

O texto diz-nos como era a feira de setembro, 1, 2 e 3, na minha aldeia e os seus diversos contextos para uma miudagem que não perdia a oportunidade de acompanhar passo a passo o desenvolvimento de uma novidade, anual, que traziam normalmente novidades. Aliás, era assim esse já recuado tempo, pois, atualmente tudo mudou de forma radical. 

A nossa feira de setembro

por José Saúde

 

Aspeto geral da feira, mas numa fase de construção. Vê-se a marcação das ruas ainda incompletas 


A curiosidade da rapaziada ao longo da semana que antecedia a nossa feira que se realizava nos dias 1, 2 e 3 de setembro, apresentavam-se divinalmente ao rubro. A bisbilhotice da miudagem era interessante. Tudo começava quando se dava início ao colocar os postes de iluminação, o estender dos fios nos postes e o subsequente colocar das lâmpadas, assim como a definição das ruas. 

Seguia-se o interesse pela chegada dos primeiros tendeiros que se faziam transportar por um carro puxado por uma besta. Depois as camionetas atulhadas com o material para o carrossel, ou de carros para a pista de automóveis, e outros que transportavam tudo o que fosse importante para a montagem do circo. O circo era constituído por famílias de artistas que utilizavam as suas próprias caravanas, o mesmo sucedendo para os proprietários dos carrosséis e da pista dos automóveis. De resto, tudo passava pelo coabitar nas próprias barracas.

Na verdade, a semana era deveras estonteante para uma juventude que passara o ano a pensar na sua feira. A malta, sempre ativa, não arredava pé do recinto e inteirava-se de todos os pormenores. Seguiam-se as cavaqueiras de uma mocidade que via na feira a grande novidade desse tempo.Novidades que se estendiam por diversos acontecimentos, quiçá únicos, vistos nessa altura.           

Apareciam os vendedores de versos avulsos, os amola-tesouras, as bancas de brinquedos no exterior do mercado, gentes a pedir esmola, as tendeiras a procurarem uma costureira para lhe arranjarem um vestido, ou de pessoas dos circos, carrosséis, ou da pista dos carros a procurarem um mecânico para um pontual arranjo no seu veículo, enfim, havia de tudo um pouco.

Recordo o mestre Portela que tinha uma oficina num casão que era propriedade de Luís de Lá Féria, propriedade esta que fazia parte da sua mansão familiar, hoje essa antiga residência é pertença da Junta de Freguesia, ser muito solicitado para os amanhos dos velhos automóveis dos feirantes, sobretudo de pessoas do circo que possuíam a maioria desses de transporte. Um ano tive a oportunidade em assistir a um arranjo na oficina do Portela do automóvel do “palhaço pobre” do circo e que era um espetáculo de homem. Os seus apartes punham a malta em delírio.

O primeiro dia de feira era, na parte da manhã, destinado à corredora. Ali faziam-se os negócios do gado. Não havia cheques nem transferências bancárias. Todo o negócio era feito com dinheiro vivo. O vendedor aprontava para o preço do animal e o comprador retorquia com um valor muito abaixo do pretendido pelo dono da besta. Pelo meio aparecia o “cortador” (homem feito ao ganho de uma percentagem previamente acertada e normalmente um individuo de raça cigana), pessoa esta que fazia “chantagem” para a concretização no negócio, sendo os ciganos mestres nestas andanças.

Ciganos, “negociantes” de gado

A muito custo o vendedor lá ia cedendo ao preço lançado pelo comprador. Exemplificando: partindo do princípio que o vendedor pretendia dez notas, isto significava que uma nota, nesses tempos, era de 100 mil réis, sendo o preço lançado de mil réis, mas o comprador propunha o valor de 500 mil réis. Entretanto, aparecia o “cortador” a intrometer-se no negócio oferecendo, também, dinheiro para a compra do animal. Conversa puxa conversa, o vendedor fraquejava e o comprador avançava com mais uma nota. Chegava-se, finalmente, a um acordo e a passagem do dinheiro para a venda do animal ficar concluída.

Ao lado dos negócios do gado, situavam-se pequenas barrancas que continham os apetrechos para os animais. Cabrestos, chocalhos, albardas, golpelhas para transportar a palha, molins, arreatas, de entre outros utensílio

                                                            A corredora

Nesses tempos dizia-se que o primeiro dia era dos campaniços. Esta pressuposta dicotomia é-nos plenamente admissível. As pessoas viviam em montes dispersos na serra aldeã, logo, o dia era propício para se fazerem negócios. Havia que reforçar a frota com animais novos. A idade sabia-se pelos dentes das bestas. Mas, na feira compravam-se utensílios que não existiam normalmente na aldeia.

O povo enchia-se de gentes que, vestindo-se de grave, passeavam pela feira que assumia o estatuto de evento de grande porte. Comprava-se torrão, algodão doce, bugigangas, pratos, panelas de alumínio, tachos, cadeirões em buinho, jarras, molduras, jogava-se um tiro nas barracas onde as meninas, sempre solícitas, chamavam os clientes que no fim recebiam um miminho, andava-se no carrossel, conduziam-se os carros na pista, e, à noite, ia-se ao circo. 

Havia, ainda, quem se dedicasse aos jogos de lazer, onde o objetivo passava por trazer algo para casa ou umas moedinhas para os bolsos, ou desembolsar os tostões que lhe fugiam inadvertidamente da algibeira. Existiam também as barracas de comes e bebes e um frango assado na brasa, naquele tempo, apresentava-se como repasto de se lhe tirar o chapéu.

A rua que dava acesso à feira, aquela que se situa entre o Largo do Rossio pequeno e o Rossio grande, estava apetrechada com barracas de fruto, particularmente de peros amarelos, sendo o seu cheiro deveras divinal, sobretudo ao longo da noite. Ou de barrancas onde se vendiam as mantas trazidas pelos vendedores vindos das Beiras, onde se comercializavam os safões, as pelicas, com a famosa lã de ovelha, as mantas, de entre outros agasalhos de inverno.

Lembro, também, a visita dos forasteiros que se instalavam nas tabernas onde mastigavam os seus farnéis. Puxavam de um “talego” e lá vinham os bons nacos de presunto, ou de paios, ou de toucinho com “vieirinho” magro, que acompanhavam com o vinho, ou cerveja, arrefecidos no fundo do poço localizado no quintal, pois nesses tempos não havia frigoríficos, sendo que nessas vendas aconchegavam os seus estômagos. Existia, ainda, a possibilidade de refrescar a bebida, comprando-se barras de gelo na fábrica que os taberneiros colocavam em alguidares de barro.

O terceiro dia de feira era o mais forte. Pelo menos foi essa a impressão com que o povo ficou e que ainda hoje preservo. O circo, por exemplo, cedo anunciava “grátis às damas, damas grátis” e a plebe enchia as bancadas à volta da pista do espetáculo.

Nós, então crianças, delirávamos com a magia do espetáculo. Os contorcionistas, os palhaços (o rico e o pobre), os trapezistas, os ilusionistas, os malabaristas, o trabalho com animais ferozes feito pelos domadores, enfim, uma amalgama circense que nos levava a inimagináveis sonhos.

À entrada da feira, à esquerda, situava-se, habitualmente, a barraca do Favinhas, um retratista que fora, sem dúvida, um homem que fotografou milhares pessoas cujas imagens são agora restos de saudade. Não fora ele não existia hoje reproduções dos nossos antepassados.

Assim era, em resumo, a nossa feira de setembro!


Um abraço, camaradas

José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________ 

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de  1 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24716: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (4): A minha primeira viagem, de camioneta, a Lisboa, com 9 anos (Eduardo Estrela, Faro)

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Guiné 61/74 – P24657: Memórias de Gabú (José Saúde) (100): Os homens do volante. A minha singela homenagem aos condutores. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem rebuscada nas suas memórias.


As minhas memórias de Gabu

 Os homens do volante

A minha singela homenagem aos condutores

 A linha do tempo

Camaradas,

É no recanto das memórias que revejo que a linha do tempo existente dentro de nós, acumula inesquecíveis recordações e que nos dizem, em surdina, que fomos outrora singelos observadores do mundo, quiçá enlouquecido, que girava à nossa volta. O entusiamo dos nossos plenos 20, 21, 22 e 23 anos, crescia a uma velocidade alucinante em corpos que deambulavam por horizontes literalmente inolvidáveis, todavia, existia em cada um o tremendo sobressalto que a guerra de além-mar se apresentava como real.

E é nessa mesmíssima linha do tempo que caminho rumo a encruzilhadas, mas onde os trilhos armadilhados da Guiné se acrescentam a outros instantes da vida em que a alegria se cruzou com a tristeza.

Neste contexto, ouso afirmar que somos, e sempre o seremos, eternos seres humanos que combatemos numa guerra que, numa sensibilidade simplesmente verídica, conhecemos as mais distintas especialidades do exército português num conflito armado que deixou marcas.

E se é verdade que cada combatente terá feito o seu melhor no ramo para o qual foi então especializado, não deixa de ser também verdadeiro que todos fomos aguerridos guerreiros num palco onde ainda hoje proliferam as mais variadas lembranças em mentes que, felizmente, ainda se preservam ativas. Porém, aos camaradas que já partiram que descansem em paz, sendo que as suas memórias ficarão exatamente salvaguardadas.  

Falei no meu último texto sobre o saudoso enfermeiro Dinis, da minha companhia, dedico, agora, a minha singela homenagem aos nossos condutores. Não importava a natureza do fardamento que envergavam, nem tão-pouco o trilho por onde a sua viatura rodava, rodavam num caminho no qual o momento seguinte era uma incerteza.

Todos tinham a noção de que uma mina anticarro poderia, eventualmente, despoletar ao longo do seu percurso. As picadas apresentavam-se como cruéis, sendo por isso um dado adquirido a importância daqueles que, à frente às viaturas, lá iam picando cuidadosamente o terreno, mas com o devido cuidado.  

Para eles, os condutores em particular, fica expresso o texto que a seguir subscrevo e que faz parte do meu livro, o nono dos 11 já editados, – “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/1974” , da Editora Colibri, Lisboa.

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A “perícia” dos condutores enviados para a guerra na Guiné

Os homens do volante 

A coluna segue o seu destino com os cuidados redobrados dos condutores  

Somos, na generalidade, conhecedores do empenho que os condutores impunham numa especialidade à qual se dedicavam desinteressadamente. Sabemos o quão importante foram os conhecimentos adquiridos ao longo de uma singular aprendizagem que lhes proporcionou um contacto real com o universo da condução. Fizeram tudo o que esteve ao seu alcance, isto na minha singela opinião, obviamente. Cumpriram com os seus deveres e não viraram a cara à luta, não obstante as tormentas que o rebentar de uma mina obstinasse o seu querer e naturalmente dos camaradas.

Percebi, nessa altura, que a universalidade da especialidade não era comum a todos e distribuíam-se consoante as necessidades ou a sorte que lhes coube na roda da aventura. Razão esta que me leva a viajar num tempo sem tempo e citar especificamente a honorabilidade de camaradas que conheceram, por dentro, os teores de uma guerra que nos fora deliberadamente bárbara. Padeceram com condições adversas e suportaram as agruras impostas por uma peleja que não dava folgas.

Visualizar a sua despretensiosa ação pela mais recôndita picada numa Guiné a ferro e fogo, sabendo de antemão que as minas anticarro eram comuns, os condutores foram camaradas que não viravam a cara à luta e lá partiam para mais uma coluna, ou para as frequentes visitas a tabancas quando o momento passava por mais uma jornada em que a chamada “psicó” ditava ordem.

É evidente que façamos uma justa destrinça entre as colunas de reabastecimentos e de transporte de pessoal, onde normalmente se utilizavam as Berliet, por vezes intercaladas com Unimog, mas sendo este último veículo usado nas idas às tabancas onde íamos distribuir os aplaudidos “mezinhos” para uma população de todo carente e que vivia isolada na mata a contas com as duas frentes de guerra.

Creio que será de bom senso não desvirtuarmos uma veracidade bem patente que se prende com o facto de uma certa inexperiência evidenciada por alguns dos condutores nos seus inícios das comissões. Aliás, pressuponho que a dita e amadurecida experiência era adquirida com o decorrer das comissões onde um melhor conhecimento do terreno ganhava estatuto.

Uma coluna que transportava pessoal civil e viaturas particulares na região de Gabu

Conheci situações em que o medo se apoderou do meu então jovem corpinho. Vamos aos comentários das ditas ocorrências: uma delas aconteceu numa das visitações a tabancas localizadas na zona de Gabu. Seguia no Unimog da frente, ao lado do condutor, quando numa picada estreita o “ás” do volante deixou a “máquina de assalto” entrar pelo capim fora, sendo que a malta se viu às aranhas para ultrapassar o incidente deparado. Houve umas pequenas mazelas e restou um tremendo susto. Depois fez-se o reconhecimento que a ocasião impunha e o Unimog lá prosseguiu rumo ao seu destino.

Este curto texto visa, essencialmente, abordar o tema que enaltece a bravura comum de camaradas de uma especialidade, condução, que conheceu, em paralelo, momentos de horror.  

Não sei e nem tão-pouco vou lançar achas para uma fogueira alvitrando o número de condutores que terão perdido a vida na Guiné por via de emboscadas ou de minas rebentadas pelos rodados dos veículos por eles conduzidos. 

Eu, a comandar uma coluna na estrada entre Nova Lamego e Bafatá. Ao meu lado esquerdo, em calções, o condutor da Berliet 

Com leigo de uma matéria que não domino, deixo, porém, o repto aos camaradas para que possamos ter uma ideia desse infortúnio, sabendo nós que o número exato das mortes na guerra guineense jamais será real.

Os algarismos conhecidos são, pelos vistos, virtuais.

Um abraço, camaradas 
José Saúde 
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 
___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

4 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24620: Memórias de Gabú (José Saúde) (99): Recordando o saudoso enfermeiro Dinis (José Saúde)

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24620: Memórias de Gabú (José Saúde) (99): Recordando o saudoso enfermeiro Dinis (José Saúde)



Enfermeio Dinis, militar e amigo



O Alfredo Dinis, já falecido




Fotos (e legendas): © José Saúde (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem rebuscada nas suas memórias.



As minhas memórias de Gabu:
Recordando o saudoso enfermeiro Dinis

Camaradas,

Contemplando alguns dos momentos em que a “pica” da guerrilha guineense atormentava o mais paciente combatente, eis-nos perante uma manhã onde o calor imperava, o que aliás era normal, e um imprevisível estrépito som que impôs momentos de autêntica aflição aos camaradas que, entretanto, descansavam ou que passavam algum do seu tempo disponível no quartel, este o quartel novo construído na orla de Nova Lamego, ou seja, rente à estrada que nos levava a Bafatá, sendo o outro aquartelamento no interior da urbe.

O som, deveras enorme e que tudo fez tremer, foi, tão-só, o rebentamento de uma panela na messe de sargentos que, entretanto, já cozinhava o almoço para a rapaziada. É óbvio que alguns dos nossos camaradas cozinheiros foram apanhados de surpresa, sendo o mais fustigado o Filipe, com queimaduras no corpo.

Na verdade, o conflito armado que nos fora comum, trouxe, também, inevitáveis “chagas” em corpos de jovens que num qualquer instante se viam confrontados com alterações do seu próprio físico.

Era, no fundo, o agitar de uma guerrilha que se expandia por todo o território de uma Guiné que a todos incomodou, não obstante o lugar para qual tivéssemos sido arremessados.

Dinis na sua missão como enfermeiro a tratar das mazelas que ficaram bem patentes no corpo do camarada Filipe

De estatura física a atirar para o baixo, arrisco um metro e sessenta ou um pouco mais, franzino, mas sempre ágil na sua entrega à vida, o enfermeiro Dinis, camarada da minha companhia, era um rapaz cuja dedicação à causa que a tropa lhe concedera muito o terá notabilizado.

Lembro-me, perfeitamente, dele passar defronte às minhas instalações ao lado de um outro camarada, creio que de transmissões, e que muitas vezes apelidei como a sorte grande e a terminação.

A razão deste meu pequeno devaneio prendia-se com o facto do Dinis, pequeno em altura, mas com um coração enorme, ombrear lado a lado com um camarada alto e esguio que se mandava para mais de um metro e oitenta.

Curioso é que o Dinis, um militar simpático e afável, nunca impunha restrições para uma espontânea cavaqueira na missão que escrupulosamente cumpriu como antigo combatente na Guiné. De um outro modo, recordo as minhas idas à enfermaria e ser atendido, com pompa e circunstância, pelo meu amigo Alfredo Dinis que se predispunha a uma ajuda momentânea caso a necessidade assim o determinasse.

Por uma questão de ética olvidemos o Alfredo e falemos simplesmente do enfermeiro Dinis, como era hábito a malta tratá-lo no interior do aquartelamento. Na minha memória subsiste a imagem de um jovem, cara de menino, cuja pronuncia era tendencialmente marcada pela dicção de uma Invicta que todos conhecemos como a maravilhosa cidade do Porto.

Numa intromissão às temáticas de Gabu em memórias, revejo a irreverente ação militar do enfermeiro Dinis. Foram muitas as idas para o mato em que este nosso amigo acompanhava o grupo e vincava presunçosamente a sua próspera especialidade numa população onde o valor das carências impunha óbvias restrições humanitárias.

Recordo, por exemplo, as visitas às tabancas de Gabu em que o Dinis, munido com sua mochila entolhada em mesinhos, distribuía remédios santos para gentes nativas que viam nele um deus caído do céu. A patologia constatada implicava uma receita urgente. E o Dinis já conhecia os males e as suas curas. Tanto mais que naqueles lugares ermos nem o sol quase penetrava pela orla do denso mato que rodeava a tabanca e as queixas eram as rotineiras.

As minhas recordações guardam, igualmente, outras circunstâncias em que afabilidade do Dinis denotava uma mensurável devoção à causa que mui dignamente serviu.

Lembro, uma ocasião em que um gerador, adstrito à messe de sargentos, rebentou. O estrondo no quartel foi enorme e a manhã foi de autêntico sobressalto para toda a rapaziada. Uns ainda dormiam e outros matavam o tempo com premeditados afazeres. Uma carta para a namorada escrita sob um cenário de guerra, ou uma missiva, quiçá faustosa, para uns pais sempre carentes de notícias da peleja de além-mar e sobretudo do estado físico do seu querido descendente.

Estava eu sentado num confortável cadeirão, feito à maneira de um homem grande, situado à frente dos aquartelamentos dos sargentos, ao lado da messe, meditando num horizonte onde a guerra não perspetiva melhorias e eis-me a ouvir o tamanho estrondo.

Confesso que o estampido me pareceu que vinha das traseiras da messe de sargentos. Não hesitei e lá fui para saber o que acontecera. Viveram-se então momentos de pânico, sendo o infeliz contemplado da desgraça o camarada Filipe, um rapaz que trabalhava na copa da nossa messe.

O corpo do militar Filipe registava fartas queimaduras e a dor sentida pelo camarada era grande. Havia partes do seu corpo em que a pele queimada dera lugar a uma mancha vermelha que deixava antever preocupação. O rosto e os braços, em particular, indiciavam dor.

Perante o sucedido o Filipe ficou entregue aos cuidados do pessoal de enfermagem da nossa companhia. O furriel enfermeiro Navas e o Dinis prestaram-lhe os primeiros socorros, seguindo-se os cuidados diários do nosso saudoso homem do Norte. Sei que o enfermeiro Dinis foi incansável nos seus préstimos, sei também que este meu velho camarada portuense já partiu para a tal famigerada viagem sem regresso, que descanse em paz, restando, porém, alvíssaras ao nosso amigo Filipe que nunca mais soube da sua presença territorial.

Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 24 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24585: Memórias de Gabú (José Saúde) (98): Histórias e explanações sobre a existência de Gabu (José Saúde)

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Guiné 61/74 – P24585: Memórias de Gabú (José Saúde) (98): Histórias e explanações sobre a existência de Gabu (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem rebuscada nas suas memórias.

As minhas memórias de Gabu

Histórias e explanações sobre a existência de Gabu

Camaradas,

As zonas da Guiné pelas quais passámos têm obviamente as suas histórias, as suas origens e, como é lógico, a sua respetiva evolução ao longo dos tempos. Sabe-se que naquela antiga Província Ultramarina, hoje País, se registam cerca de 40 etnias que se espalham pelas suas diversas regiões e as explanações sobre a existência de Gabu atrai o mais singelo camarada que por lá andou na procura de conhecimentos acerca dos seus conteúdos, sendo o meu caso um exemplo acabado na procura dessas compreensíveis ilustrações.

Assim sendo, viajo pela interioridade histórica de Gabu, uma área que tive, em parte, a possibilidade em conhecer, retirando dela reflexíveis opiniões, onde conheci alguns dos seus usos e costumes, mormente na antiga cidade de Nova Lamego, onde visualizei alguns dos seus segredos que levavam a elite militar ao êxtase, mormente aquando o momento era, por exemplo, as noites do batuque ou outras festas locais, onde a fantasia das suas gentes com as vestes garridas, ou o traje dos homens que vestiam vestes brancas até aos pés, de entre outros momentos de enlevo que deliciavam o pessoal que fora para ali levado, mas sem dó nem piedade.  

Gabu é uma região onde proliferam as etnias fula, esta em larga maioria, e a mandiga. Por razões normais, assim o entendo, vamos hoje jornadear pelo seu interior.

Cherno Baldé, um homem estudioso da sua Guiné, onde a terra vermelha ou o seu capim pintavam, com certeza, uma sumptuosa aguarela do conhecido pintor Pablo Picasso, sendo tu guineense e conhecedor profundo das origens do teu país, assim o entendo com merecida justiça dado que costumo ler o que escreves aqui no nosso blogue, solicitava-te uma opinião sobre o tema que abaixo exponho.

Lembro que este texto está inserido no meu nono livro (11 já editados) e cujo título é “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/1974 – MEMÓRIAS DE GABU”, uma obra lançada pelas Edições Colibri, Lisboa, e que tem como editor Fernando Mão de Ferro.  

 

Antiga Nova Lamego. Habitações palacianas de Gabu.  

Denominada como cidade de Nova Lamego, sobretudo ao longo da guerra Colonial, Gabu é uma região cujas fronteiras confinam a Norte com o Senegal, a Leste e a Sul com as regiões de Tombali e a Oeste com Bafatá.

Recorrendo a dados históricos contemplados na Wikipédia, enciclopédia livre, Gabu foi a capital do Império Kaabu, um reino Mandinga que existiu entre os anos de 1537 e 1867 e que se chamava Senegâmbia. Antes, tinha sido uma província do Império Mali. No século XIX a etnia fula impôs a sua supremacia na região e colocou ponto final no domínio de Kaabu.

Gabu é, igualmente, a pátria do chão fula (79,6%), existindo ainda a etnia mandiga (14,2%) que se espalha por toda a zona, mas numa menor escala. Foi-me dado a oportunidade em conhecer alguns dos princípios éticos de uma população que prima pela honra de uma herança que assumem como um indeclinável direito.

No plano territorial Gabu possui uma área de 9.150 km2 e tinha no ano de 2004 uma população que se estimava em 178.318 almas, sendo, por isso, considerada uma das maiores, senão a maior, das regiões do país.  

Introduzo como credível uma nota de rodapé que após a independência do país, Gabu recuperou o seu nome tradicional existindo, atualmente, um pequeno núcleo urbano de inspiração colonial.  

 

 A população em movimento

Detentora de clima tropical, quente e húmido, a região de Gabu é composta por uma população em que a doutrina praticada aponta como alvo principal a religião muçulmana (77,1%).

As temperaturas rondam, normalmente, os 30/33 graus durante o dia e os 18/23 à noite. As estações anuais definem-se como as das chuvas que vai de maio a novembro e a de seca de dezembro a abril. Dezembro e janeiro são considerados os mais frescos. Por outro lado, a economia assenta no comércio, agricultura e pecuária.

Os usos e costumes das gentes de Gabu derrapam para primórdios éticos, onde é visível uma hierarquia humana que não abdica do erário transmitido de gerações para gerações.

Redijo este tema sobre um “estágio” obrigatório nessa zona e na qual me foi proporcionado observar algo mais ao longo da minha comissão em solo guineense, embora encurtada devido à Revolução de Abril de 1974, uma vez que fui um dos cerca de 45 mil militares dos três ramos das Forças Armadas – Exército, Força Aérea e Marinha – quando por lá prestava serviço. Conheci, portanto, a guerra e a paz e um pouco das vivências tradicionais das suas gentes.

 

Uma rua

Aliás, num trivial conhecimento com os nativos que muito me estimulou, pessoas simples que viviam no interior de um adensado mato e entre as duas frentes da guerra, usufrui da possibilidade em conhecer alguns dos seus expeditos hábitos, assim como as memórias que nós antigos combatentes incessantemente recordaremos para sempre.

Um abraço, camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 25 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24340: Memórias de Gabú (José Saúde) (97): Jovens da tabanca Rostos de inocência. Pedaços de vida de uma Guiné que conhecemos. Crianças. (José Saúde)