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domingo, 30 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15055: Libertando-me (Tony Borié) (32): O Sonho Americano (2)

Trigésimo segundo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 24 de Agosto de 2015.




“American Dream”

Capítulo II

Estamos a falar do Capitão Christopher Newport, corsário, vulgo “pirata”, que nós agora chamamos “Capitão Gancho”, a tal personagem que comandou a primeira frota de três navios vinda da Europa, financiada em parte pelos despojos do navio português “Madre de Deus”, capturado ao largo dos Açores, que foi considerado na altura a maior pilhagem do século, e que foi o fundador da colónia de Jamestown, no agora estado de Virginia e que, talvez sem saber, iniciou o tal “Sonho Americano”, pois foi ele que liderou a frota de colonos que estabeleceu o primeiro assentamento permanente de pessoas vindas da Europa, principalmente ingleses, no Novo Mundo.

Foi ele quem escolheu o local de Jamestown, levou a exploração inicial da pequena área, a que chamava “King James”, que foi negociada pacificamente com os índios, mas como havia poucos recursos, ele ia tirando a fome aos colonos com quatro viagens de reabastecimento, numa delas, durante um furacão, naufragou nas ilhas de Bermuda, o Capitão Christopher Newport, corsário, vulgo “pirata”, a quem chamavam o “Capitão Gancho”, como homem audaz, com mais 150 colonos, conseguem construir duas novas embarcações, mais pequenas que o normal navio usado na época, mas mais rápidas, (que mais tarde seria o tipo de embarcação que dava apoio aos seus saques e abalromentos a outros barcos, principalmente Portugueses e Espanhóis), libertando-se das ilhas, regressando de novo à colónia de Jamestown, no continente americano.

Era um navegador excelente, severo mas compreensivo, era um capitão de mar, um corsário, lendário líder de homens, que em quase 40 anos de viagens de mar fez algumas longas, comerciais para o Extremo Oriente, para a Companhia das Índias Orientais, levando os primeiros embaixadores ingleses para a Pérsia e Índia, lançando assim as bases para a evolução do Império Britânico, travando lutas ferozes, abalroando e saqueando alguns navios Portugueses e Espanhóis, onde também fugiu a muitas lutas, principalmente contra as “Carracas Portuguesas”, de que falaremos adiante, mas como corsário que era, a palavra sobrevivência era muito importante, apesar de usar meios de luta um pouco avançados para a época, mantendo sempre um ou dois segundos navios ao largo, um pouco mais pequenos, mas mais velozes, tipo plano “B”, sem participarem na luta. Vendo que não podia vencer, fugia, mas sobrevivia, desempenhando um papel importante, ajudando na evolução da Inglaterra a partir de uma ilha isolada da sociedade, para uma grande potência marítima com a expansão de colónias ultramarinas, que em última análise se tornou o Império Britânico, que durante muitos anos tomaram conta do mar do Caribe. Ele, juntamente com outros corsários ingleses, vulgo “piratas”, foram saqueando os barcos Portugueses e Espanhóis que tentavam regressar à Europa, carregados com verdadeiras fortunas, foram enriquecendo a monarquia Inglesa, fornecendo assim apoio financeiro para a futura colonização Inglesa da América do Norte.


Mas voltando à colónia de Jamestown, cumprindo ou não ordens do reino e dos comerciantes de Londres que o financiavam, ajudou sempre os colonos da colónia de Jamestown, pois pelo menos durante os primeiros cinco anos, que foram muito difíceis, ele manteve a colónia, lutando sempre pelo reabastecimento dos colonos, trazendo mesmo novos colonos para Jamestown, alguns, talvez prisioneiros dos barcos Portugueses e Espanhóis, supervisionou a construção da solução inicial de paliçada, armazém, igreja ou a doca. Com a sua capacidade de liderança, conhecimentos de navegação, marinharia, experiência e habilidade para negociar com os índios, ele, por muitas vezes, resgatou a colónia de Jamestown da extinção.

As suas viagens posteriores para as Índias Orientais, além das suas lutas, onde atacava quase todos os navios estranhos, em particular os Portugueses, confirmou a viabilidade da negociação por mar, com o Leste e os grandes lucros comerciais que a Inglaterra poderia esperar destas expedições. Nas suas viagens para a Índia, lançou as bases para o risco do mar, com a conclusão com êxito das viagens em alguns navios menores, os tais mais pequenos e velozes, que nas suas lutas de abalroamentos, saques e pilhagens, faziam parte do tal plano “B”, construídos a partir das ilhas de Bermuda, com madeira de cedro, e que levou diretamente à fundação da colónia de Bermuda, que continua a ser um protectorado britânico até hoje e um dos os últimos do Império Britânico.

Uma característica marcante da carreira de sucesso do “Capitão Gancho”, é que ele era um plebeu, com pouca educação formal. Muitos dos primeiros líderes de viagens inglesas de exploração e colonização eram filhos de famílias inglesas ricas, muitas vezes donos de grandes propriedades, vários destes líderes tiveram educações avançadas, alguns na Universidade de Cambridge, mas o Capitão Christopher Newport, corsário, vulgo “pirata”, a quem também chamavam “Capitão Gancho”, tinha alguma educação pois uma carta que escreveu ao conde de Salisbury, secretário da Companhia Virgínia de Londres, indica que ele escrevia bem, usando ornamentos e fases estilistas da época.

Temos que realçar o facto de que o “Capitão Gancho” foi escolhido para liderar uma grande expedição Inglesa, apesar de sua falta de educação formal ou vantagens de nascimento, é uma prova de sua capacidade de liderança e, ao alto nível de respeito que ele ganhou de todos os empresários de Londres, que desenvolveram a Companhia da Virgínia.

Além disso, a sua escolha para liderar as viagens para Virgínia, onde estava localizada a tal colónia de Jamestown, com base em sua experiência e capacidade, em vez do seu estado social, exemplificou a erosão gradual da estrutura social medieval e a evolução dos valores da Renascença na Inglaterra. Os homens eram cada vez mais escolhidos para posições de liderança com base nos seus atributos e experiências individuais, em vez de “canudos” e títulos, como acontecia na época, principalmente nos países do sul da Europa, em que o senhor duque, conde ou visconde, que pertencia à família real, podia ser uma pessoa com poucos recursos, tanto físicos como mentais, mas era o senhor que mandava, sacrificando, colocando numa frente de batalha um povo, onde havia pessoas com dotes de força, inteligência e audácia muito superiores à pessoa que era o seu comandante.

(continua)

Tony Borie, Agosto de 2015
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Nota do editor

Poste anterior de 23 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15030: Libertando-me (Tony Borié) (31): O Sonho Americano (1)

domingo, 16 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15010: Libertando-me (Tony Borié) (30): Queria fugir à tropa, uns dias antes de ir “às sortes”

Trigésimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 11 de Agosto de 2015.




Queria fugir à tropa, uns dias antes de ir “às sortes”

Esta é a história de um companheiro de trabalho, lá no norte, em New Jersey, que connosco conviveu por mais de vinte anos.
Tudo começou numa aldeia de fronteira, na região de Bragança, onde tal como todos os rapazes da sua idade, querendo fugir ao serviço militar e, deste modo não irem parar à guerra em África, que na altura começara, pois a soberania Portuguesa, estava a ser ameaçada pelos diversos grupos organizados e armados que lutavam pela independência daquelas que o então governo de Portugal, considerava as suas Colónias do Ultramar.

O Joaquim, foge “a salto” para França. Não era difícil, pois o seu pai, além de rachador, amanhar umas pequenas leiras de terra, donde tirava parte do sustento para a família, também era “passador”, aliás, naquela zona, todos eram “passadores”, o Joaquim incluído, portanto ajudavam a cruzar a fronteira, eram contrabandistas, pois também ajudavam a circular produtos entre a fronteira, havia por ali muitos contactos, conheciam-se uns aos outros, tanto do lado de cá, como do lado de lá da fronteira, para eles tudo era seu território.

Algumas noites em que trabalhávamos juntos, ele contava que fora desta cultura, só lhes restava a agricultura ou trabalhar na montanha, cortando árvores. Pela manhã saíam para a montanha, algumas vezes guiando pessoas para atravessarem a fronteira, onde normalmente a ementa, pela manhã, antes de saírem de casa, era, meia panela de ferro com três pernas, com vinho trazido da adega, que era uma gruta feita debaixo das grandes pedras, que existiam junto do curral dos animais, vinho esse trazido num balde, que noutras alturas também servia para levar a comida a esses animais, a que juntavam broa, sobretudo côdeas, algumas já com bolor, que eram retirados da referida panela um pouco antes do braseiro a fazer ferver, que com um pouco açúcar, também de contrabando, que retiravam com uma colher feita de madeira dum grande cartucho de papel cinzento, comiam aquilo tudo e iam caminhar algumas léguas, descalços, antes de começarem a fazer funcionar o serrote e o machado.

Uns dias antes de ir “às sortes”, como ele nos dizia, o Joaquim larga o serrote e o machado e vem incluído num grupo de alguns candidatos a emigrantes, que ele mesmo ajudou a cruzar a fronteira, atravessando o norte de Espanha a caminho de França, pois para lá dos Pirinéus havia muito trabalho e alguma liberdade. Ele era um jovem desenrascado, sabia fugir a alguns polícias de fronteira, pois outros colaboravam, como sabia de lavoura, logo ficou a trabalhar numa quinta, na região do sul da França. Rapaz novo, depressa aprendeu a falar francês, não com técnica mas para se desenrascar, conheceu uma rapariga de nacionalidade francesa, a Michele, por quem se apaixona, ela corresponde a essa paixão, namoram e casam.

O Joaquim, depois de estar a algum tempo em França, o seu pensamento era constante, aqueles filmes que via dos “cowboys”, na altura até pensava que o actor John Wayne era o presidente dos Estados Unidos, fizeram-lhe criar no seu pensamento novos horizontes e, em alguns momentos, dizia para a Michele, “do lado de lá do Atlântico é que gostava de ir contigo, tenho um fascínio pela América, não sei bem porquê”. A Michele, aprovando tudo o que vinha da boca do Joaquim, concorda, e dizia-lhe: “se esse é o teu desejo, por que não o realizamos”.

Sem darem por nada estavam em Paris, em contacto com uma agência e, como a Michele era de origem francesa, a troco de algum dinheiro, depois de algum tempo os colocou em Nova Iorque, com passaporte de turista. A Michele tinha uns parentes na cidade de Filadélfia, estado de Pennsylvania, para onde se dirigiram. Foram trabalhar “dentro”, (na linguagem emigrante diz-se trabalhar “dentro”, quando normalmente um casal habita e trabalha na casa de seus patrões), para a casa de uns senhores, antigos diplomatas, já de uma certa idade. Ela ajudando na cozinha e em outros trabalhos, ele em trabalhos de fora, conduzindo ou jardinando, por um período de aproximadamente quatro anos, onde, com a colaboração de um popular advogado entre a comunidade portuguesa, que se dedicava em especial à emigração, na cidade de Newark, no estado de Nova Jersey, receberam toda a documentação legal para poderem residir e trabalhar nos Estados Unidos.


Deste modo, o Joaquim e a Michele procuraram finalmente começar a formar um lar, onde pudessem ter filhos e educá-los, pois era essa a sua “América”, ter, criar e educar alguns filhos. Com algum dinheiro que tinham amealhado, vieram para o estado de Nova Jersey, onde arranjaram trabalho e compraram uma casa. O Joaquim vai trabalhar na Multinacional onde nós mais tarde viemos a exercer a nossa actividade profissional, a Michele vai trabalhar numa fábrica de fazer utensílios domésticos, a que a comunidade portuguesa chamava a “fábrica das cafeteiras”.

Tiveram quatro filhos, o mais velho, o Zeca, é doutor, formou-se com uma bolsa de estudo por ser um atleta, jogava o futebol americano, correndo com uma velocidade bastante fora do normal. A Lizete é advogada, formou-se também com uma bolsa de estudo, porque era fora da média em matemática. A Michele, nome da mãe, é também advogada, os pais pagaram alguns estudos e com um financiamento do banco, que depois de se formar e começar a exercer a sua profissão, acabou de pagar a sua formatura. O mais novo, o Joca, é professor na universidade onde estudou, com a ajuda de uma bolsa de estudo, por ser, como a irmã Lizete, superior à media em matemática. Esta foi a fortuna deste casal.

Mais tarde a Michele, mãe, morreu da doença de câncer, depois de algum tempo sofrendo, o Joaquim, viúvo, já depois de requerer a sua aposentação, não quis ir para casa de nenhum filho e dizia-nos: “só vou incomodar, vou vender a casita e vou comprar perto da comunidade portuguesa, que vive naquela cidade, ao sul do rio Passaic, lá, ao menos nas ruas vou ver e falar com portugueses, vou ouvir o sino da igreja de Nossa Senhora de Fátima, vou lembrar a minha aldeia em Bragança, é aí que desejo morrer”.

Só mais um pequeno pormenor que nos faz lembrar esta simpática personagem, raramente ficava zangado, mas quando estava de mau humor falava-nos em francês, com alguns gestos de compreensão universal, o seu calçado, que ele dizia que era o seu “luxo”, era um par de botas altas, tipo “cowboy”, que usava até ficarem completamente gastas, comprando depois, outras iguais.

O Joaquim viveu mais alguns anos no meio dessa comunidade portuguesa, até que a morte o levou.

Paz à sua alma.

Tony Borie, 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14988: Libertando-me (Tony Borié) (29): Talvez seja o "nosso aspirante"

domingo, 9 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14988: Libertando-me (Tony Borié) (29): Talvez seja o "nosso aspirante"

Vigésimo nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 3 de Agosto de 2015.




Os amigos, companheiros de guerra, estiveram num tempo da nossa vida, onde eram quase a nossa família. Depois da guerra, alguns de nós, começámos uma família, isso mudou um pouco o nosso comportamento, criámos novos grupos, não é que não nos lembrássemos mais daqueles companheiros, mas as novas responsabilidades, dificuldades e a sobrevivência, mudou-nos, mas colocar esses amigos, companheiros de guerra, de novo juntos, pelo menos fisicamente, pois os que por lá ficaram atravessados por estilhaços ou balas inimigas, naquelas savanas, tarrafo e rios de lama, esses seguem juntos, mas no nosso pensamento, mas para colocá-los de volta, agora, quando não há muito tempo nas nossas vidas, quando aparece um, ficamos de algum modo contentes, pelo menos vendo a sua fotografia e, mesmo que qualquer desses companheiros não esteja entre nós, não há nenhuma razão para um momento menos feliz, é um momento sobre o tempo, sobre as nossas relações de quando éramos jovens.

Passando os olhos pelo nosso blogue, no post P14957, o nosso companheiro, João Sacôto, que foi alferes miliciano, fazendo parte da CCAÇ 617/BCAÇ 619, que andou lá por Catió, Ilha do Como e Cachil, precisamente nos mesmos anos que também por lá andámos, mostra umas fotos em que se pode ver uma simpática personagem, cujo nome não nos lembramos, mas deve de ser ele, estou mesmo em dizer que é ele, pois a foto que temos do nosso tempo de convivência, são muito idênticas. Temos alguns amigos, mas “amigos especiais”, daqueles que sempre lembramos, são os da guerra, aqueles que estavam na mesma situação de angústia e aflição, aqueles que estando no interior de África, olhavam o mapa e viam a cidade de Bissau, não como alguma civilização, mas como o caminho da Europa, são esses amigos, daquele tempo de juventude, daquele tempo de aprendizagem, onde a convivência nos fazia copiar os maus e bons costumes.

Nessa altura éramos um normal soldado recruta, vulgo instruendo, que estava no seu dever de cidadão, seguindo os princípios para que foi educado, tanto no seu lar, como na escola primária da vila de Águeda, onde sempre lhe disseram que a sua Pátria, estando em guerra, devia ser defendida, sem quaisquer restrições, mesmo usando o sangue dos seus cidadãos. Neste contexto, o instruendo que nós éramos, veio a sua casa, com licença de fim de semana, retornando ao seu quartel, o tal lugar onde o estavam a preparar para defender a, tal sua Pátria.

Era aquele normal fim de semana para, entre outras coisas, saborear a comida da mãe Joana, todavia, quando saímos da nossa aldeia, o sol ainda não cobria a marca, na base da porta do curral das ovelhas, dizendo-nos que era meio dia, aquilo era fácil, eram vinte e poucos quilómetros, sacola ao ombro, com alguma roupa lavada, assim como o farnel que a mãe Joana nos preparava. Seguíamos quase sempre a corta-mato, ou seja encurtando caminho, percorremos quase todo o trajecto da vila de Águeda à cidade de Aveiro, tirando um pequeno percurso, em que viajámos à boleia no carro do “homem do berbigão”, oriundo de Mourica do Vouga, que encontrámos numa taverna próximo da povoação de Eixo, naquele momento, comia ele, “umas sopas de cavalo cansado”, vulgo “sopas de vinho”, que seguia direito à lota de Aveiro, comprar o berbigão, sardinha e carapau, para vender pela madrugada na nossa zona, cujo carro era puxado por um “macho”, cujo “acelerador” era um valente cajado com que batia no lombo do desgraçado animal, quando este começava a dar sinais de fraqueza, pois não tinha partilhado com o seu dono das tais “sopas de cavalo cansado”.


Era domingo, um dia antes, pois no papel da licença estava escrito segunda-feira, o céu já estava colorido com aquelas cores estranhas, pois lá para o lado das praias já se podia observar o começo da noite, a tal noite que se prolongou por África e nos acompanhou nos próximos três anos.

Com ele nos cruzámos em plena Avenida Lourenço Peixinho, já na cidade de Aveiro, fazendo-lhe uma tremenda saudação, mesmo daquelas em que nos colocamos na posição de sentido, só com a diferença, em que ambos trajávamos civilmente. Ele riu-se, com aquele sorriso maroto, sempre mantendo uma certa compostura, eu fiquei a olhá-lo, talvez espantado. Esta simpática personagem era o nosso aspirante, instrutor que nos ensinou algumas normas militares, como marcar passo, manusear a espingarda “Mauser”, desencavilhar uma granada, que nós nunca aprendemos pois ficávamos nervosos, quase a tremer, alguns exercícios físicos, enfim, aquelas coisas que se aprendem na recruta. Na primeira instrução do nosso pelotão, ele, a tal personagem, muito sério, explicou que trajando civilmente não era necessário “bater a pala” a nenhum superior, nunca mencionou o nosso nome, mas claro, olhando para nós com o tal sorriso maroto. Voltamos a falar sozinhos, já em Lisboa, à saída do comboio especial que nos trouxe para a capital, onde fomos distribuídos por diversos quartéis, aí dizendo-nos que mais cedo ou tarde, o nosso destino era a guerra do ultramar.

Tomando a liberdade de mostrar as fotos do companheiro João Sacôto, para ver a comparação, oxalá que esta simpática personagem esteja viva, se estiver que apareça com saúde e alegria em viver, pois se não houver outra razão, a sua atitude para connosco, tornou-nos cúmplices, podemos mesmo dizer que tivemos o nosso “secreto”, o que nos torna de algum modo felizes por o termos conhecido, neste mundo selvagem, onde os oceanos já não têm aquele azul de outrora, os ventos já não trazem a brisa de orvalho, mas sim, varrem destroços da catástrofe que é o modo de vida e procedimento dos “vindouros”, que não têm nenhuma contemplação ou respeito por quem deu a vida pela sua bandeira, pela tal sua Pátria.

Tony Borie, Agosto de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14960: Libertando-me (Tony Borié) (28): Pôr a carta no Correio, na guerra

domingo, 2 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14960: Libertando-me (Tony Borié) (28): Pôr a carta no Correio, na guerra

Vigésimo oitavo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 27 de Julho de 2015.


Pôr a carta no correio... na guerra!

Os CTT’s em Mansoa estavam localizados na rua onde, ao fundo, existiam aqueles riachos enlameados que despertavam as canoas do nosso amigo Iafane, que andavam à deriva por altura da maré cheia, talvez querendo fugir, libertando-se dos sonhos do seu dono que estavam interligados num fluxo sinuoso, pois a sua Guiné era um refúgio seguro, onde podia ter relações legalmente, quase como se fosse um casamento, com três, quatro ou cinco mulheres, onde, como já dissemos em textos anteriores, a sua acção era ignorada, fazia parte da história colonial, daquele braço português de opressão racial e subjugação dos civis guinéus, longe da velha Europa, do resto do mundo, na altura, em algumas zonas, profundamente racista, mas felizmente, a simpática funcionária dos CTT’s em Mansoa era uma senhora africana que usava permanente, pintava os lábios, arranjava as unhas, usando roupas estilo quase europeu, mostrando, pelo menos para nós, um sorriso no atendimento e, cremos que não andaremos longe da verdade, se dissermos que devia de ser só ela a esposa do seu marido, pois ele acompanhava-a sempre quando iam à missa, pelo menos ao domingo, onde também iam as filhas do Libanês que inundavam a igreja com aquele perfume exótico.

Falar dos CTT’s de Mansoa é falar de jornadas de história do movimento que passou a ter com o nascimento da guerra colonial, com a presença dos militares, principalmente os vindos da Europa, os canteiros das ruas e os troncos de algumas árvores estavam pintados de branco, havia alguma ordem e arrumação pública, talvez fosse o lado menos mau da guerra, podemos dizer que era o outro lado da moeda, mas o aumento do seu movimento, tal como por aqui nos USA, quando surgiu o Pony Express, que foi estimulado pela ameaça da Guerra Civil e havia necessidade de uma comunicação mais rápida com o Ocidente.


Não queremos, mais uma vez, lembrar o furriel Honório que rasava, com a sua avioneta do correio, a árvore grande que existia no aquartelamento, que foi baptizada por “a mangueira do Setúbal”, que tinha na sua base muitas gaiolas de macacos e periquitos, que faziam um barulho estrondoso, anunciando a chegada do correio, pois isto era lembrar cenário de guerra, mas podemos dizer que quase todas as semanas íamos aos CTT’s de Mansoa comprar selos para enviar cartas com fotografias para familiares e amigos, não só para nosso uso como para companheiros que estavam nas suas tarefas e nos pediam. Cremos que os aerogramas que eram entregues no aquartelamento, com a ajuda do furriel Honório, viajavam mais rápidos que as cartas que se entregavam nos CTT’s e, mesmo assim, deviam demorar muito menos tempo do que o serviço do Pony Express, que consistia em homens montados a cavalo transportando alforjes de correio, através de um trilho de mais de 2000 milhas, serviço que abriu oficialmente em Abril de 1860, que começou a ter carreiras simultaneamente a partir de St. Joseph, no estado de Missouri, e Sacramento, no estado da Califórnia. A primeira viagem no sentido oeste foi feita em 9 dias e 23 horas e a viagem em sentido contrário, em 11 dias e 12 horas.

Na altura, eram as colunas militares que levavam as cartas e encomendas para Bissau, daí não devia haver muito perigo para irem de barco ou avião para a Europa, não como o Pony Express, que naquele percurso, tinha mais de 100 estações, cerca de 90 homens treinados para andarem a cavalo, assim como entre 400 e 500 cavalos, cuja via expressa era extremamente perigosa, todavia nunca foi perdida uma entrega, mas este serviço durou apenas 19 meses, até Outubro de 1861, quando a conclusão da linha Pacific Telegraph terminou com a necessidade da sua existência. Era uma novidade, todos invocavam as notícias do Pony Express, principalmente durante os primeiros dias da Guerra Civil e, esta linha a cavalo, nunca foi um sucesso financeiro, levando os seus fundadores à falência, no entanto, o drama romântico em torno do Pony Express tornou-se uma parte da lenda do Oeste Americano.

Telefonar dos CTT’s de Mansoa talvez fosse possível, a nós nunca nos passou pela cabeça tal aventura, pois na nossa aldeia, na vertente da montanha do Caramulo, onde a crosta terrestre, lentamente começava a ser plana, flutuando por perto as zonas ribeirinhas do rio Águeda, onde pela noite, não havendo luz eléctrica, se a terra tremesse, nascendo dos céus uma pequena luz, que seria uma qualquer estrela, mas talvez uma estrela nova, daquelas que fazem oscilar um continente, ninguém dava por isso, talvez na reunião da capela, na missa do próximo domingo, o senhor padre, com ar muito responsável, vestindo um traje preto, nos dissesse que o “Nosso Deus”, lá nas alturas, não gostava do nosso procedimento, estava zangado e teríamos que rezar, fazer mais sacrifícios, contribuir com mais donativos, baixar a cabeça, render homenagem aos senhores da aldeia e da vila, que eram os bons, os melhores, que só tinham intenção de nos fazer bem, pois todos os habitantes da aldeia não sabiam que o resto do mundo existia, pois não havia telefone.

Tony Borie, Julho de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14933: Libertando-me (Tony Borié) (27): Todos temos um rio, eu tenho quatro: o Águeda, em Portugal; o Mansoa, na Guiné e os Passaic e o Yukon, nos Estados Unidos

domingo, 26 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14933: Libertando-me (Tony Borié) (27): Todos temos um rio, eu tenho quatro: o Águeda, em Portugal; o Mansoa, na Guiné e os Passaic e o Yukon, nos Estados Unidos

Vigésimo sétimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Os meus quatro rios

Todos temos um rio e, em alguns momentos dizemos, olha, preciso de ar fresco, vou até ao rio, referindo-nos ao rio, como se fosse nosso, nossa propriedade.

Quase em todas as grandes cidades passa um rio. Por quê? Porque essas cidades, outrora pequenas povoações, nasceram junto ao rio, que já lá existia, porque os povos, nas suas migrações, normalmente paravam e estabeleciam-se onde houvesse água, que ainda hoje continua a ser essencial para a vida, para a nossa sobrevivência.

Quase todos nós lembramos o “nosso rio”, temos cá dentro o “nosso rio”, mesmo os que nasceram na montanha têm o seu rio, que era aquele riacho, entre pedras de granito, onde levavam as ovelhas ou as cabras a beber, onde tomavam banho, onde tiravam a água pura e cristalina para beberem, era o “nosso rio”, embora hoje, com as alterações climáticas, a maior parte desses rios tenham sacado.

Nós temos quatro rios que nos marcaram. Foi o rio na localidade onde nascemos, o rio Águeda, onde havia um grande areal no verão, uma grande nora, instalada numa rudimentar represa, que lhe roubava alguma água, que ia fazer crescer uns campos de milho em seu redor. Foi aí que aprendemos a nadar, onde, junto com os rapazes da nossa idade, empoleirados nas velhas árvores, às vezes nos alcatruzes da própria nora, nos atirávamos à água, sabendo ou não nadar. Este rio nasce na Serra do Caramulo, tem cerca de 40 quilómetros de extensão, passa entre outras localidades, na hoje, cidade de Águeda e junta-se ao rio Vouga na localidade de Eirol, que leva a sua água e talvez alguma poluição para a ria de Aveiro, que por sua vez desagua no oceano Atlântico.

O “nosso outro rio” foi, o rio Mansoa, lá na Guiné e, não querendo ser deselegantes, parecia-nos que o oceano estava longe do mar, o sol tórrido espelhava naquela água lamacenta, ficava ali, horas e horas, na ponte velha, que era por onde passavam as “bajudas”, e outro pessoal, para irem trabalhar nas bolanhas, a sua lama até se tornava brilhante, talvez fosse da nossa idade jovem, era aí, onde normalmente líamos e relíamos as cartas e aerogramas da família e amigos, sonhávamos, às vezes acordados por uma pequena brisa, onde a mágoa da lama dos nossos antepassados, aventureiros descobridores, nos enviaram para ali, onde naquele momento, o frio e o gelo da nossa aldeia da Serra do Caramulo, seria bem vindo, tornando aquela bolanha lamacenta, onde se agitava no ar aquele pato preto, que nos parecia que ia chorando lágrimas de orvalho, lágrimas frescas, que iam secando as nossas, verdadeiras, que juntávamos às do cisne cor de rosa que deslizava sobre aquela água, procurando algo que não encontrava.


Aquele cenário, visto da ponte, algumas vezes era um grande lago, outras uma bolanha, pois sobressaiam pequenas árvores e arbustos à superfície, outras um pequenino riacho, perigoso, com lama a circundar esse pequeno riacho, assistindo à sua corrente forte, quando desaguava, levava restos de arbustos e lama para não sabemos onde, em que em alguns momentos, saltavam peixes, fazia alguma turbulência, querendo passar a toda a pressa, fugindo daquela área, em direcção ao oceano Atlântico, tal como nós, no nosso pensamento e, ainda hoje, não sabemos se era um rio ou um canal, se era de água fresca ou salgada, onde começava ou onde acabava, sabemos que era o “nosso rio”, onde, todavia, ao fim de algum tempo, aquela água lamacenta, para nós, significava silêncio e alguma paz.

O “nosso outro rio”, que nos marcou, é o rio Passaic, em Nova Jersey, que tem uma extensão de aproximadamente 130 quilómetros, que desde a sua origem, nas montanhas de Mendham, no sul do condado de Morris, onde havia “glacieres”, 13.000 anos atrás, durante o seu percurso, forma diversos lagos e mesmo terras alagadiças, passando por diversas cidades até chegar ao local onde nos marcou, que foi a cidade de Newark, pois dormimos algumas vezes junto ao seu leito, em algumas noites de neve e frio de rachar, junto de outros “desafortunados”, a que chamavam “descamisados”, dormíamos juntos, encostados uns aos outros, para nos aquecermos.

Este rio, hoje tem outro aspecto, pois a Agência do Governo, que trata da poluição ambiental, tem gasto milhões de dólares limpando o seu leito, onde a água já corre, em alguns locais algumas vezes cristalina.

Bem, ainda temos outro “nosso rio”, que é o rio Yukon, cuja palavra, significa grande rio no idioma athabaskan, uma língua aborígene, que na forma portuguesa significa mais ou menos Lucão, é um rio que corre na América do Norte, nas províncias da Colúmbia Britânica e do Yukon, em território do Canadá e no estado Norte Americano do Alaska, desembocando no mar de Bering, no Oceano Pacífico. Tem uma extensão de aproximadamente 3645 quilómetros, fazendo dele o 20.º maior do mundo, em comprimento. Supõe-se que sua nascente está localizada nos “glacieres” de Llewellyn, ao sul do Lago Atlin, na Colúmbia Britânica, território do Canadá, mas o rio Yukon propriamente dito, começa no lago Marsh, logo ao sul da cidade de Whitehorse, na província de Yukon, onde nos marcou, pelo menos nas povoações de Carmacks ou Dawson City e, talvez em outras mais pequenas na sua dimensão, pela sua grandiosidade, passando por entre montanhas, vales, planícies, formando grandes lagos, onde podemos ainda ver animais e aves selvagens, onde existem poucas pontes, a sua travessia continua a ser por jangadas, os seus afluentes, como o rio Tanana, Porcupine, Pelly ou Koyukuk, são paraísos terrestes, tantos para humanos com para aves e animais, onde ainda existem grandes cardumes de peixes, em especial salmão, tornando o dia-a-dia dos habitantes em seu redor, numa vida difícil, privados de algumas soluções modernas, mas sadia e agradável.

Aqui, onde vivemos, tudo é “nosso rio”, mas de água salgada.

Tony Borie, Julho de 2015.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14900: Libertando-me (Tony Borié) (26): Não é fácil

domingo, 19 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14900: Libertando-me (Tony Borié) (26): Não é fácil

Vigésimo sexto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.



Companheiros, isto não é fácil, pelo menos na nossa idade, por quê? Porque quase todos nós, quatro, cinco horas da manhã, já estamos acordados, lá vem a guerra, no nosso caso o aquartelamento de Mansoa, e aí, já a coisa se torna mais fácil, já acordados, bebemos um pouco de sumo de laranja, mas por poucos minutos, pois o nosso pensamento volta a adormecer, o sonho continua, não sabemos se a dormir ou despertos, mas, o cenário repete-se centenas de vezes, estamos sentados, quase nus, numa cadeira feita da metade de um barril de vinho, temos uma cerveja quente, na mão, o sol, que foi tórrido durante o dia, está a pôr-se, para o lado do rio, até podemos ver aquele reflexo amarelo avermelhado, um pouco acima da água da bolanha, os mosquitos zumbem à nossa volta mas não mordem, pois a pele já está “africana”. O Curvas, alto e refilão, não pára de dizer asneiras, tu, companheiro, estás agarrado à leitura da metade da terceira página, enrugada e um pouco rota, de um jornal com data de há um mês, estás encostado à esquina da porta, sem porta, da entrada daquele maldito dormitório, onde estão uns tantos camuflados a secar, por cima dos mosquiteiros, sujos de suor e lama, entre outras coisas, por ali cheira a tudo menos a “esperança”. O “Mister Hóstia”, que era aquele militar muito disciplinado, educado e religioso, vem recomendar-te, com um ar muito delicado, para leres aquele capítulo da Bíblia, onde recomendam qualquer coisa que nós não ouvimos bem, mas ao sair do dormitório, talvez sem dar por isso, dá-te um encontrão, que tu não gostaste, pois com o movimento rasgaste mais um pouco da metade da folha do jornal e, logo lhe respondeste, com um, “oh cara..., já não vês bem”.


Nós, com um sorriso maroto, começámos a contar a história, naquela linguagem de combatente, sem aquelas palavras e frases modernas, que ninguém entende, história esta, que lemos não sabemos onde, mas muitos companheiros, como o Setúbal, o Marafado, o Pastilhas, o Trinta e Seis, mesmo o Mister Hóstia, que veio muito sorrateiramente colocar-se ao nosso lado, claro, com a bíblia na mão, a mostrá-la, e também o Arroz com Pão, que era o dedicado cabo do rancho, também veterano, que sempre lhes arranjava algo para comerem, quando saíam para combate, para irem entretendo o estômago, que não fosse ração de combate, que alguns diziam lhe dava a volta aos intestinos, que na linguagem local era, “panga bariga”, logo se vieram colocar ao nosso lado, para a ouvir, portanto, começámos a falar.
Cá vai:
- Ouçam bem, nada há a fazer, pois a nossa fama já vem de longe, talvez por volta do ano de 1617, está-nos no sangue, éramos e, talvez ainda hoje sejamos assim, queremos ser os melhores, os primeiros, os inovadores, ir lá à frente, sem quase nunca prever as consequências.

Neste momento, o Curvas, alto e refilão, manda-nos calar, com uma linguagem universal, rude, que quase todos nós conhecemos, mas nós continuámos a falar, cá vai.

- Vejam lá que um tal português, nosso antepassado, de nome Luís Mendes de Vasconcelos, fazia, não sabemos a mando de quem, aquelas incursões na África Austral e, de uma dessas vezes, já uns anos depois, (pois aquilo por ali, naquele tempo, era só escolher os que tinham aspecto mais saudável e melhores condições físicas e, carregar para bordo), talvez acompanhado pelos homens ao seu mando, também não sabemos se eram marinheiros ou piratas, invadiu a aldeia de N’dongo, em Luanda, Angola, carregando 60 cativos a bordo do navio negreiro São João Baptista, presos a ferros, homens e mulheres, foram enviados para o porto de Vera Cruz, no México. Os ingleses, holandeses, dinamarqueses e franceses, que por aquela altura se consideravam os donos do mar e das ilhas de uma região a que chamavam e ainda chamam “West Indies”, que quer dizer mais ou menos Índias Ocidentais, mas que não têm nada a ver com a Índia, que fica noutro continente, pois esta, é uma região da Bacia do Caribe e Oceano Atlântico Norte, que inclui as muitas ilhas e nações insulares das Antilhas e do arquipélago Lucayan, dizem até, que a culpa foi de um tal Cristóvão Colombo, que na sua primeira viagem às Américas, andando por ali a navegar, pensando que tinha chegado à Índia, lhe começou a chamar esse nome, e daí, os europeus de então, começaram a chamar-lhe Índias Ocidentais, para as diferenciar das ilhas que existem na verdadeira Índia, que são na região do sul e sudeste da Ásia...

Interrompo, só para dizer que o Curvas, alto e refilão, já me está a olhar de lado e a fazer gestos com a garrafa da cerveja vazia, vamos mas é continuar, cá vai a continuação.

- Esses tais Ingleses, holandeses, dinamarqueses e franceses, andavam por ali “à pesca”, principalmente dos navios portugueses ou espanhóis, pois sabiam que para cá traziam cativos africanos e, para lá levavam ouro, prata ou especiarias e, quando o marinheiro ou pirata, também não sabemos ao certo, que lá ia em cima, na vigia do navio, White Lion, (Leão Branco), a que também chamavam “The Flying Dutchman”, que quer dizer mais ou menos, “o holandês voador”, gritou com quanta força tinha nos seus já cansados e doentes pulmões, (pois a água potável, já estava racionada a bordo, já ia para duas semanas), para o seu capitão, um tal John Jope, e disse, “Portuguese ship to port, should bring slaves”, que quer dizer mais ou menos, “navio português a bombordo, deve trazer escravos”!

O “Setúbal”, que por sinal era nosso companheiro e amigo, que usou o equipamento camuflado que nos foi distribuído e, ia para as matas e bolanhas, naquele camuflado, já coçado, com as mangas cortadas, levava sempre um “lenço tabaqueiro”, que comprou na loja do Libanês, pendurado no cinto, dizia-nos ele, que era para lhe dar sorte, onde também ia o máximo de carregadores possível assim como uma granada, às vezes duas, que lhe eram distribuídas antes de sair, alguns também levavam uma faca bastante afiada, com uma protecção de cabedal, colocavam os restos das meias, que lhes saíam das botas, algumas rotas, por fora das pernas das calças, interrompeu-nos, para dizer, para não darmos mais “música”, mas continuámos a falar, cá vai.

- Não foi preciso mais nada, junto com seu assistente, o piloto Inglês Marmaduke Rayner, organizaram um ataque, unindo forças, também não sabemos se era um ataque de marinheiros ou um ataque de piratas, mas o certo é que quando se depararam com o navio português, São João Baptista, nessas águas do “West Indies”, atacaram-no e roubaram-lhe toda a sua carga, incluindo os africanos, colocando-os sobre o tal navio Leão Branco, que chegou a Old Point Comfort, que é hoje um lugar histórico na península do estado da Virginia, nos USA, em 20 de agosto de 1619, deixando ali, só 20 dos 60 cativos.

Tivemos outra interrupção, desta vez era o “Trinta e Seis”, o tal soldado que era baixo e forte na estatura, parecia de facto uma “bola”, passe o termo e, quando chamavam por ele, diziam, Trinta e Seis, rola para aqui, ou, o Trinta e Seis, não caminha, rola, o que ele nesse momento mostrava aquele dedo da mão esquerda, muito direito para cima, denunciando um gesto erótico, dizendo-nos, para “cantarmos” e, não falarmos, mas nós continuámos a falar, cá vai.

- E por quê só 20 cativos? Porque os outros 40, quando o tesoureiro do navio Leão Branco, que chegou cerca de quatro dias depois os tentou negociar como troca, para o abastecimento do navio, as negociações não foram aceites, houve mesmo tentativa de luta, então, o capitão ou pirata, também não sabemos ao certo, do navio Leão Branco, talvez zangado, levou toda a sua carga humana, condenando os cativos, não às praias ensolaradas de Bermuda, mas para suas plantações infernais, onde nunca mais se ouviu falar deles. Sabem qual era o preço para a troca destes seres humanos? Era única e simplesmente, água e milho. Falando agora dos outros 20 angolanos, que ficaram em Old Point Comfort, onde dois deles, ou seja, Antonio e Isabella, que receberam nomes cristãos, (nomes que lhe foram dados, como chamamos aos nossos animais de estimação), foram negociados com o capitão William Tucker, para trabalhar na sua plantação e, talvez para mais qualquer coisa, onde, quatro anos mais tarde, Antonio e Isabella se tornaram os pais do primeiro filho preto, escravo, cujo nascimento foi oficialmente documentado na América Colonial. O nome que lhe foi imposto era William Tucker, também o nome do homem que escravizou seus pais e, uma terceira pessoa identificada, a quem foi dado o nome de Pedro. Os restantes 17 não tiveram nome, foram trocados por produtos adicionais para o governador George Yeardley e Abraham Piersey, que os obrigou a trabalho em plantações ao longo do rio James, próximo de onde é hoje a cidade de Charles City, no mesmo estado.

Neste momento, aparece o “Furriel Miliciano”, que adorava um cigarro feito à mão, e diz, “amanhã, às cinco, normal equipamento, só a primeira secção, não esqueçam de levantar as granadas ainda hoje”.

Ainda bem que a nossa esposa e companheira nos deu um abanão e acordou, não fazendo muita diferença, pois a história tinha chegado ao fim. E era verdadeira.

Tony Borie, Julho de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14867: Libertando-me (Tony Borié) (25): Depois da guerra

domingo, 12 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14867: Libertando-me (Tony Borié) (25): Depois da guerra

Vigésimo quinto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.



Depois da guerra, por algum tempo, ainda fui bravo, algumas vezes rude para as outras pessoas, ainda fumei e bebi álcool, ainda tive as minhas lutas, ainda fui selvagem, ainda tive experiências sexuais com raparigas estranhas, ainda mantive aquela raiva surda contra não sei quem, talvez contra a guerra, contra a morte de jovens companheiros, contra a polícia que me interrogou e perseguiu, coisas que não tinham explicações, mas que alguma audiência censurava, mas na altura, tinha a força da juventude, talvez “saúde a jorros”, nunca precisei, (nem havia naquele tempo, disponível, ali à mão, era preciso ir à cidade mais próxima), ir todas as semanas, ou cada outra semana ver o psiquiatra, para uma ajuda extra, do trauma que a maldita guerra em África me fez passar, nunca fui para a televisão, rádio ou outros meios de comunicação dizer que não tinha casa, emprego, comida ou roupa para vestir e o governo tinha que me dar todas essas coisas, continuei a ser eu, o aldeão, com aspirações a criar uma família que andava vestido conforme ganhava, como tal, andava sempre muito mal vestido.


Embora antes tivesse assinado um cheque em branco ao governo de Portugal, no montante de..., incluindo a minha própria vida, nunca esperei um subsídio do então governo, ou ser assistido por um daqueles programas que agora existem, procurei trabalho, qualquer trabalho, não queria saber quanto pagavam ou quais os benefícios, ou quantos dias de férias, o que queria era trabalhar, trazer ao fim do dia, ou ao fim da semana, algum dinheiro, fruto do meu trabalho e, para mim cinco tostões eram cinco tostões, que davam para comprar um “papo seco”, não como agora neste ano de 2015, pelo menos pelas notícias que vou tendo conhecimento pela comunicação social e por alguns companheiros combatentes, em que, este novo Portugal, país acolhedor, onde a nova geração tem muitos anos de escola, portanto tem formação superior, abriu as suas fronteiras, pelo menos na União Europeia, recebendo amavelmente qualquer estrangeiro, dos quais muitos vêm para ficar definitivamente, claro, sempre haverá excepções, mas eu entendo de que, se o tal candidato a emigrante, um dia desembarcar em Lisboa, ao encontrar a primeira pessoa na rua, que provavelmente não será um verdadeiro português, será uma pessoa oriunda da África, América, Oceania ou da Europa do Leste, mas deve dizer, depois de ter beijado o chão de Portugal:

- Obrigado senhor português, por me deixar entrar no seu País, dar-me casa, comida, ajuda médica e educação para os meus filhos.

Nós, antigos combatentes, fomos uma boa e trabalhadora geração e, neste caso, depois da guerra, vieram os outros.

Tony Borie, Julho de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14837: Libertando-me (Tony Borié) (24): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (5)

domingo, 5 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14837: Libertando-me (Tony Borié) (24): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (5)

Vigésimo quarto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.



Glória, Lola, a Ruça (5)

Hoje fomos à praia só para caminhar na areia, dizem que faz massagens nos pés, o que na nossa idade é muito bom para a saúde, não vimos a Glória, mas vamos continuar com a sua história.
Cá vai.

A Glória e o Jorge, já com algum dinheiro economizado, decidiram comprar uma oficina de gradeamentos em ferro, que estava à venda, portanto, acertaram o preço e compraram.

Passado um tempo, a Glória encarregava-se do trabalho de fora, o Jorge, da contabilidade, contacto com os clientes e da oficina, às vezes ajudava e orientava a Glória, que entretanto frequentou uma escola de vocação, onde aprendeu a usar o maçarico a gás de cortar ferro, a soldar com diferentes máquinas e diversos materiais, com alguma segurança, carregava com os portões e gradeamentos, com a ajuda de alguém que entretanto contratara, instalava esses portões e gradeamentos. Os clientes gostavam, era uma coisa nova, portões e gradeamentos em ferro forjado, com feitios lindos. O negócio, num abrir e fechar de olhos, estava a progredir, era uma região de muitas casas grandes, tipo mansões.


Entretanto a Glória fica grávida e nasce um rapaz. Só tirou tempo fora do trabalho, praticamente para ir ao hospital por altura do parto, continuava com a mesma vontade no trabalho, o bebé cresceu, começou a andar e a falar na oficina, primeiro num berço, num compartimento ao lado, a que chamavam escritório, depois por tudo o que era espaço, acompanhando o pai e a mãe. Fica grávida de novo, segue o mesmo regime do primeiro, nasce uma menina, que tal como o menino é criada praticamente no trabalho.

Todo o trabalho que executavam na oficina era apreciado, pois era uma novidade, as pessoas para quem executavam esse trabalho, foram falando, algumas eram importantes e com alguma influência, cada vez tinham mais encomendas. Foram crescendoe o espaço tornou-se pequeno, nos arrabaldes de outra cidade, mais para norte, nuns terrenos que lhe foram cedidos com um contrato de 99 anos, onde se comprometeram a não modificar o ambiente, respeitando os cursos de água e algumas árvores, fizeram uma grande oficina, com parque para estaleiro de materiais, onde os camiões podiam carregar e descarregar.

Os filhos foram estudar. O rapaz, engenheiro, com a experiência que adquiriu ao longo dos anos, principalmente com a mãe, começou a trabalhar lá fora, dirigindo pessoal, fazendo projectos, na instalação dos portões e gradeamentos. A filha, contabilista, trabalha com o pai na oficina. Todas as novas urbanizações, que se faziam nas cidades próximas, já obedeciam à nova configuração dos seus portões e gradeamentos, que entretanto tinham formas representando figuras de palmeiras, animais ou outros motivos, alguns importados do México. Estavam na moda. O negócio continuava a crescer, já tinham encomendas de fora do estado, tinham algumas dezenas de colaboradores, os dois brasileiros, companheiros de viagem, eram encarregados na nova oficina. E ela dizia:
- Isto também é vosso, bendita a hora em que nos encontrámos!

O Jorge faleceu antes dos cinquenta anos de vida, teve uma doença que na época não tinha cura. A Glória ficou viúva, dedicou-se aos filhos que entretanto tomaram conta do negócio. Casaram, o filho deu-lhe dois netos e a filha deu-lhe um.

Como em criança, não teve oportunidade de brincar, agora cuida e brinca com os netos, na sua casa na praia, próximo de onde vivemos. Os filhos, sabendo a mãe que têm, confiam-lhe as crianças por bastante tempo e a Glória, a “Lola”, a que alguns chamavam “Ruça”, anda feliz pela praia com o mais novo ao colo, os outros pela mão um do outro e, sempre que passa um cão, ou algo de estranho, vêm a fugir, esconder-se e encostarem-se às pernas da avó, tal como faziam os seus irmãos quando vivia na aldeia em Portugal.

Que viva por longos anos.

Tony Borie, Julho de 2015. 
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Nota do editor

Postes anteriores de:

7 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14710: Libertando-me (Tony Borié) (20): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (1)

14 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14744: Libertando-me (Tony Borié) (21): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (2)

21 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14776: Libertando-me (Tony Borié) (22): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (3)
e
28 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14804: Libertando-me (Tony Borié) (23): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (4)

domingo, 28 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14804: Libertando-me (Tony Borié) (23): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (4)

Vigésimo terceiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Glória, Lola, a Ruça (4)

Hoje, fomos à pesca na praia, uma cadeira, duas canas de pesca e uns calções já um pouco usados, mesmo quase rotos, mas são os nossos preferidos. Estava um pouco de nevoeiro, não havia peixe, ou se havia andava farto, não pegava na isca, era quase como se as canas de pesca estivessem no nosso quintal, já havia dificuldade em ver a ponta das canas de de tanto olhar. Tirámos a t-shirt para apanhar algum sol no corpo, quando o nevoeiro desaparecia por algum tempo. Começámos por ler um livrito, só para entreter, a Glória aparece, cedemos- lhe a cadeira, sentando-nos num pequeno balde que sempre nos acompanha quando vamos à pesca, que virámos ao contrário. Ela, com aqueles cabelos já grisalhos, mantendo aquele sorriso jovem, apesar de já andar há umas dezenas de anos os tais “entas”, continua a contar-nos a sua história. Cá vai.

Se ainda estão lembrados, o Jorge e a Glória iam a caminho da fronteira com os USA, para a atravessarem clandestinamente, os mensageiros que os acompanhavam, no local que entendiam que era o certo, pararam, explicaram as últimas instruções, a porta da pequena camioneta, abriu-se, já era noite, saíram todos ao mesmo tempo, com a ordem de correrem o mais que podiam naquela direcção, pois do lado de lá daquelas pequenas montanhas era os Estados Unidos, onde alguém os ia contactar. Boa sorte.

A Glória e o Jorge correram abaixados, o Jorge tropeçou numa pedra e caiu, a Glória parou, vem para trás, ajuda o marido a levantar-se, pega-lhe na mão e arrasta-o atrás de si, como fazia aos irmãos em pequenos, e diz-lhe:
- Anda Jorge, esta é a oportunidade da nossa vida.

Dando-lhe coragem, correram e caminharam por mais de uma hora, com os jovens brasileiros sempre atrás, os outros companheiros deixaram de se ver, não sabem se tomaram outra direcção, ou se foram parados pela polícia de fronteira. Contavam truques de passarem a fronteira, em que alguns eram as “cobaias”. Essas “cobaias” iam só para manterem a polícia de fronteira ocupada, enquanto outros passavam livres. Eram “cobaias” profissionais, eram pagos para isso, sabiam que depois de uns dias presos eram mandados para o seu país, sem nada lhes acontecer.

De súbito, dois homens surgem na sua frente e lhes comunicam numa linguagem entre o espanhol e o português, mas com sotaque brasileiro:
- Ok, já estão nos Estados Unidos, venham atrás de nós.

Tanto a Glória como o Jorge, assim como os jovens brasileiros, ficaram assustados, a Glória, apertou mesmo a faca, que trazia embrulhada num lenço na mão, quase que se cortava a si mesmo, tal era o medo. Viram a cara dos homens, traziam duas espingardas caçadeiras de canos serrados, usavam calções, pareciam mesmo “passadores”. Seguiram-nos.

Tinham uma carrinha aberta atrás, escondida alguns metros à frente, onde seguiram, os dois homens na frente, a Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, atrás. Andaram umas horas em direcção ao norte, por estradas de terra, levantando muito pó. Abriram as sacas, puseram qualquer coisa a encobrir a boca e o nariz, para puderem respirar por causa do pó. Era quase madrugada quando pararam. Os dois homens pedem cinquenta dólares a cada um e que sigam naquela direcção onde alguém os espera, terminando com os desejos de boa sorte.


A Glória pensou logo que esta atitude dos cinquenta dólares era um roubo, pois já tinham pago à organização do “passador” o exigido no contrato. Depois de andarem alguns quilómetros, muito próximo da estrada rápida número 10, que atravessa todo o continente desde Los Angeles, no estado da Califórnia, até Jacksonville, no estado da Flórida, surge um riacho, seguido de uma povoação, onde aproveitam para se lavarem do pó, bebendo alguma água, entrando de novo em contacto nessa povoação, com alguém que os esperava e encaminhou.

Aqui, com a ajuda desse alguém, compram nova roupa, já com outro aspecto, telefonam a amigos dos pais dos jovens brasileiros, pois eles vinham com a recomendação de se dirigirem à Florida, onde essas pessoas lhe deram todas as indicações de como deviam de proceder.

Seguem tudo à risca, sempre orientados pelo instinto da Glória, algumas vezes por estradas secundárias, andam de táxi, de camioneta e tomam o comboio. Passados cinco dias, aparecem, não duas mas sim quatro pessoas, em Miami. A Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, cansados, com um aspecto terrível, vão bater à porta dos amigos brasileiros.

A colónia brasileira, naquela região da Florida, é muito grande, os amigos tinham muitos contactos, a Glória, passados uns dias, vai trabalhar com uma senhora também brasileira, nas limpezas de casas de famílias com algumas posses financeiras, que vivem nas praias. Uma dessas famílias tinha filhos pequenos e precisava de alguém que os cuidasse em casa. Depois de verem a maneira como a Glória lidava com crianças, decidem contratá-la para trabalhar lá em casa e, deste modo, a legalizariam assim como ao Jorge, se este aceitasse ser algumas vezes o motorista, limpar e cuidar do enorme barco, trabalhar nos jardins, além de outras ocupações no exterior da casa.

Foram sempre dedicados, passados três anos e pouco, já legalizados, com toda a documentação para poderem residir e trabalhar nos Estados Unidos, decidem continuar ao serviço destes senhores, mas vivendo numa sua casa, que entretanto alugaram no meio da comunidade brasileira. Iam economizando algum dinheiro, principalmente nos primeiros anos, em que trabalhando dentro da enorme casa de seus patrões, não tinham qualquer despesa. Quando entenderam que já podiam olhar novos horizontes, decidiram comprar uma oficina onde se faziam gradeamentos em ferro, que estava à venda, propriedade de umas pessoas já idosas, oriundas do Chile, que se queriam reformar e regressar ao país de origem.

Tony Borie, Julho de 2015

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14776: Libertando-me (Tony Borié) (22): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (3)

domingo, 21 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14776: Libertando-me (Tony Borié) (22): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (3)

Vigésimo segundo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.



Glória, Lola, a Ruça (3)

Hoje fomos à praia, estava um dia de céu limpo, encostámos as sandálias, caminhámos por algum tempo, parámos em frente ao mar, que na altura fazia pequenas ondas, levantámos os olhos e fixámos o horizonte, começámos a sonhar com a Península Ibérica, com Portugal, a Glória, a quem também chamavam “Lola” e, às vezes “Ruça”, tocou-nos no ombro, acordou-nos, continuando com a sua história, cá vai.

Se o senhor Silvestre, pai do Jorge, assim o pensou, também o fez, a Glória, a quem também chamavam “Lola” e, às vezes “Ruça”, casou com o seu amor Jorge, houve festa na casa do senhor Silvestre, pois era a pessoa com mais haveres, os seus contactos resultaram, arranjaram passaporte para o Jorge e para a Glória, que passados uns dias  se meteram num avião, rumo ao México.

Já no México, o Jorge e a Glória, (a partir de agora só se chama Glória, pois já ninguém a conhece por “Lola” ou “Ruça”, excepto o seu marido Jorge), ao saírem do aeroporto, o calor, o trânsito, um pouco de receio das pessoas, com alguma dificuldade em compreenderem o idioma, depois de algumas asneiras, conseguiram entrar em contacto com a pessoa que fazia a ligação aos “passadores”, que falavam uma linguagem que na gíria classificam de “portunhol”, que era uma espécie de português abrasileirado e espanhol, misturado. Tudo arranjado, a hora e o dia e, a ordem era:
- Vamos sair ao anoitecer, numa camioneta de carga, pequena, pois só vamos oito pessoas. A camioneta vai fechada, levam estes baldes para fazerem as vossas necessidades, este lanche, uma garrafa de água para cada um, mas não comam nem bebam, só se não aguentarem, pois se comerem ou beberem têm que o largar por baixo, isso vai dificultar ainda mais a vossa vida. Possivelmente, teremos que andar toda a noite e amanhã todo o dia, só amanhã pela noite estaremos na fronteira perto da cidade de Tucson, no estado do Arizona. Levem roupas leves, de preferência calças, sapatos para caminhar muitos quilómetros, uma saca com alguma roupa simples, pois essa saca também servirá de almofada, assim como os vossos documentos de identificação, dos vossos países. Com vocês vão dois homens armados, se forem parados pela polícia, se abrirem a camioneta, ninguém abre a boca, pois estes homens irão disparar a matar. Chegados à fronteira, eles serão os mensageiros, que vos darão ordem de sair no momento exacto e, qual a direcção que devem tomar. Passam a fronteira, alguém estará do outro lado para vos continuar a guiar, depois, cada um continuará a viagem por sua conta e risco. Têm aqui um pequeno mapa da área. Boa sorte, para todos. Ah, não se esqueçam de levar dólares, nós mesmos os trocamos, um pouco abaixo do câmbio.


Estas ordens, foram dadas pela manhã, não perguntaram se compreendiam ou não toda esta conversação. A Glória, aos poucos foi tomando conta de tudo, ouviu com atenção, compreendeu algumas coisas, outras não. O grupo era formado pelo Jorge e a Glória; dois rapazes, um pouco escuros de pele, que tinham vindo das Honduras; um casal ainda novo, que tinha vindo de São Salvador, viajando, pendurados na “besta”, que é assim como designam o comboio, que vindo do sul, atravessa parte do território do México e, dois jovens brasileiros, também novos, mesmo muito novos, não deviam ter mais do que catorze ou quinze anos, que diziam que não perceberem nada.

Os jovens brasileiros começaram logo por perguntar à Glória:
- Não percebi nada. Levar um saco? E então esta mala que a minha mãe me arrumou?

A Glória pensou logo nos irmãos:
- Querem ver que também tenho que tomar conta destes!

Desfizeram-se de alguns haveres, compraram uma simples saca, onde meterem tudo o que entendiam que deviam levar, sapatilhas para ambos e umas calças leves, iguais para os dois, tudo roupas folgadas, a Glória parecia um rapaz novo. Os jovens brasileiros, fizeram tudo o que viram a Glória fazer.

As pessoas que atendiam na loja, onde compraram tudo isto, já experientes nestas andanças, ficaram com alguns dos seus haveres, explicaram tudo o que haviam de fazer, deram-lhe algumas recomendações importantes, tais como:
- Principalmente a senhora, tem que ser forte no carácter, para com os outros em algumas situações. Não deixe que ninguém lhe toque, sem sua autorização. Deve mesmo, levar uma pequena faca, bem afiada, escondida nessa saca, não tenha receio de a usar em caso de não se sentir confortável, em alguma situação em que a sua dignidade, possa vir a correr risco. Vai passar por situações perigosas, principalmente para mulheres.

A Glória ouviu tudo isto com atenção, comprou uma faca para si e outra para o Jorge, os jovens brasileiros fizeram o mesmo, pelo menos parecia que tinham dois aliados.

Na hora combinada saíram, durante todo o percurso, tirando a sede e o calor, resistiram ao resto. Tiveram uma ou duas paragens, talvez para encher o tanque de gasolina, numa dessas paragens, alguém, depois de dar uns toques em código, levantou um bocadinho a porta traseira, perguntando se iam todos vivos, introduzindo umas garrafas de água.

Tony Borie, Junho de 2015

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14744: Libertando-me (Tony Borié) (21): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (2)

domingo, 14 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14744: Libertando-me (Tony Borié) (21): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (2)

Vigésimo primeiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Glória, Lola, a Ruça (2)

Hoje andamos de bicicleta, passámos pela praia, não vimos a Glória, a quem também chamavam “Lola” e, às vezes, “Ruça”, mas vamos continuar com a sua história, cá vai.

Os anos foram passando, a Glória, que também era a “Lola” e às vezes a “Ruça”, frequentou a escola primária de Castanheira do Vouga, vindo fazer o exame de segundo grau na escola de Águeda, onde obteve a classificação de quinze valores, já estava crescida, começou a ficar com uns peitos saídos, umas ancas largas, as pernas altas, as feições da cara modificaram-se, os lábios carnudos e rosados, o cabelo comprido com as tais madeixas louras, os vestidos já lhe eram curtos, quase toda a sua roupa lhe era curta, estava uma rapariga bonita.

Os rapazes na aldeia diziam:
- A “Ruça”, está boa como milho!

O pai Aniceto, quando ouvia isto, corria com um pau atrás dos rapazes, dizendo:
- “Ruça”, é a burra da tua mãe!

Quase todos os rapazes andavam de olho nela, ela não prestava atenção a nenhum, excepto ao Jorge, filho do ferreiro. O Jorge era mais velho do que ela uns meses, era um rapaz franzino, um pouco envergonhado, não convivia muito com os outros rapazes, pois ajudava o pai, o senhor Silvestre, na forja e, mais tarde, era ele que fazia as contas da oficina de ferreiro, eram só dois filhos, ele e uma irmã mais nova que tinha vindo mais tarde. Andou na escola com a Glória, ficava triste e, às vezes, até se envolvia com os outros rapazes, quando estes lhe chamavam “Ruça”. Não se importava muito que lhe chamassem “Lola”, até gostava, mas “Ruça”, isso não, ficava com alguma fúria e, quando se envolvia com alguém, perdia sempre, acabava por andar sempre com marcas na cara e no corpo, era por isso que não convivia com muitos dos rapazes da sua idade.

Quando se aproximava da Glória, ficava um pouco embaraçado, mas assim que começasse a falar com ela, todo o receio desaparecia, sentia-se muito bem na companhia dela, e ele percebia que a Glória também largava tudo para estar com ele. Iam-se vendo um ao outro, até que certo dia, ela lhe disse:
- Oh Jorge, nós gostamos tanto um do outro, temos que começar a namorar.

Ele, nem a deixou acabar de falar, disse, com o ar mais feliz do mundo:
- Oh Glória, pois tu, já és a minha namorada há muitos anos, não sei se já percebeste, pois eu sinto muitos ciúmes quando algum rapaz olha para ti.

Ela, com ar também feliz, dá-lhe um beijo na face, o que o fez corar. Passaram a ser namorados, a partir dessa altura, aprenderam um com o outro todos os segredos do amor. Tanto o pai Aniceto, como o senhor Silvestre, viram este namoro com bons olhos, só a mãe Madalena, é que ficou um pouco furiosa, pois via que ia perder a “mãe” dos seus filhos. Não perdia oportunidade para a repreender, e às vezes até a ameaçava com pancada se ela perdia tempo a falar com o Jorge e, deste modo, alguma tarefa ficava para trás, noutras palavras, fazia-lhe a vida negra.

Os irmãos, alguns já tinham saído da escola, continuavam a ver na Glória, a sua mãe, chamavam-lhe “Lola”, portanto ajudavam-na, e diziam-lhe:
- Oh “Lola”, vai namorar, que nós fazemos todas as tuas tarefas.

A Glória ficava algumas horas na conversa com o Jorge, o Aniceto e a Madalena, talvez preocupados, com a lida da lavoura, em arranjar o dinheiro para todas as despesas, mais o compromisso do pagamento aos senhores donos das terras que eles cultivavam, não reparavam que a Glória, já crescida, precisava de roupa nova e melhor. Como era a única rapariga na família, pois o último irmão também nasceu rapaz, era a que vestia diferente, alguma roupa que crescia da mãe, uns vestiditos de chita, umas camisolitas e uns sapatitos de lona, comprados na feira, que ao sábado se realizava na vila de Águeda, lá ia andando, ninguém reparava, que como a roupa lhe ia ficando mais curta, mais sobressaíam as virtudes que o criador lhe tinha dado, em outras palavras, quanto menos roupa tinha, mais jeitosa era à vista de todos.


Mas os pais tinham mais com que se preocupar, a Glória estava em casa para trabalhar e tomar conta dos irmãos, era como se fosse um objecto da casa, daquele sistema implantado desde sempre. O senhor Silvestre, preocupado com o futuro do seu filho Jorge, certo dia vem à fala com o Aniceto e diz-lhe: 

Oh Aniceto, temos que casar os garotos. O meu Jorge já está próximo da idade de ir “às sortes”, queria ver se o livrava da tropa, pois se for militar vai acabar na guerra do ultramar, e isso nunca vai acontecer, pelo menos enquanto eu for vivo.

Toda a gente no lugar sabia que o senhor Silvestre era “do contra”, não gostava do regime, uma certa vez até foi interrogado pela polícia do estado. Ele, como sabia as dificuldades do filho Jorge, franzino, pouco corajoso, mas com alguma inteligência, pois sabia de números, até lhe tratava das contas da oficina, na companhia da Glória iria ser outro homem.

A Glória era trabalhadeira, habituada a sacrifícios, criou os irmãos, vestia qualquer roupa, respondia aos rapazes da aldeia, quando lhe atiravam algum piropo mais atrevido, dizia:
- Vai dizer isso à tua irmã, cabrão!

A Glória era assim, desenvolta, activa e habituada a andar descalça, a acudir aos pedidos e choros dos irmãos, enfim habituada a sofrer. Tinha sido criada no meio de dificuldades, ela nem sabia o outro lado bom da vida, tudo isto era normal para ela. Na aldeia dizia-se:
- A “Ruça” vai ser uma mulher de armas!

O senhor Silvestre, pai do Jorge, também era um homem de trabalho, tinha algumas economias, tinha na ideia casar o filho e mandá-lo para fora do país, para fugir ao serviço militar, tinha alguns contactos e conhecimentos na vila, dos “amigos do contra”. A ideia era casar o filho, e com a desculpa da “lua de mel”, metê-los num avião para o México, mais propriamente para a colónia de férias de Acapulco. Daí, com os seus contactos, iriam atravessar a fronteira, clandestinos, para o outro lado, ou seja para os Estados Unidos. Este plano já tinha funcionado com algumas famílias “do contra”, portanto também iria funcionar com o seu filho Jorge e a sua futura esposa Glória, a quem também chamavam “Lola” e, às vezes, “Ruça”.

(Continua)

Tony Borie, Junho de 2015.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14710: Libertando-me (Tony Borié) (20): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (1)

domingo, 7 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14710: Libertando-me (Tony Borié) (20): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (1)

Vigésimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.


Glória, Lola, a Ruça (1) 

Companheiros, hoje vamos iniciar a história da “Lola”, é um exemplo da emigração para os USA, terá que ser em duas ou três partes, pois é um pouco longa e não queremos abusar do espaço que o nosso blogue nos dispensa, mas vale a pena ler, pois também lhe chamavam “Ruça”, hoje vive aqui no estado da Flórida, anda por aí na praia, quase todos os dias a vemos, sempre com um sorriso. Vai-nos contando a sua história de vida de mulher emigrante, colocando para trás todas as amarguras e sacrifícios, mas também algumas coisas menos más, com que a sua já longa vida a contemplou.

Quando criança, na sua aldeia, o seu nome era Glória, mas chamavam-lhe “Lola” e, às vezes “Ruça”, porque tinha umas madeixas no cabelo, que eram um pouco louras, era a filha mais velha de um casal de agricultores que cultivavam umas terras, à renda, de uns senhores que viviam na cidade de Aveiro, que as tinham herdado, próximo da vila de Águeda, na base da montanha do Caramulo, nunca sabendo com quem faziam fronteira, sabiam, única e simplesmente que todos os anos, por altura de Novembro, princípio de Dezembro, o senhor Aniceto, pai da Glória, lá lhes ia levar um almude de azeite, meio saco de castanhas, uns tantos garrafões de vinho, que quase sempre eram entregues ao mês e, cinco contos de réis, em notas de quinhentos escudos, assim como durante o ano, lhes levava legumes e fruta da época. Por altura da Páscoa, levava a melhor galinha, um coelho ou dois, e às vezes até um galo, tudo isto já amanhado e limpo. Pelo Natal, levava alguma carne de porco, salgada e alguns rojões, numa panela cheia de unto.

O ano podia ser seco ou de chuva, não interessava, a renda e os produtos tinham que ser entregues na data combinada. Não era raro o mês que os senhores patrões pediam ao Aniceto para cortar umas árvores no pinhal, que fazia fronteira com o rio Alfusqueiro, vendê-las e levar lá o dinheiro, pois o menino Joãozinho já andava a estudar e precisava de algum dinheiro, lá por Coimbra. O senhor Aniceto, até fazia isto com gosto, bendizendo a sua sorte por o menino Joãozinho estar em Coimbra, pois nos anos anteriores passava às semanas, até meses, lá na aldeia, na sua casa, comendo e bebendo todo o seu governo, que às vezes era tirado da boca dos seus filhos, tudo isto sem contar, quando vinham trazê-lo e buscá-lo, porque nessa altura, os pais, ficavam pelo menos dois dias e, quando se iam embora, diziam:
- Oh Aniceto, vê a cor do menino Joãozinho, parece outro, o ar do campo sempre lhe fez bem. Vê se arranjas aquele quarto onde dormimos, as paredes estão um nojo e aquela janela bateu toda a noite. Olha, leva-me lá um cesto com alguns pêssegos e outra fruta, que possas apanhar. Há, já me esquecia, leva-me também uns limões e uma ceira com alfaces e cenouras. Que raio, pagas uma miséria de renda! Temos mas é de fazer um contrato, assinado.

E lá iam embora, conduzindo o seu carro a toda a força, fazendo uma poeira que ninguém se via. O senhor Aniceto cumpria rigorosamente as ordens do senhor seu patrão, dono das terras que ele e a sua família cultivavam e, quando era necessário levar todos aqueles bens alimentares para a cidade de Aveiro, fazia o trajecto para a vila de Águeda a pé, viajando depois no comboio da CP, que na altura se chamava, “Ramal de Aveiro”.

A Madalena era a dedicada esposa do senhor Aniceto, mesmo muito dedicada, pois já lhe tinha dado quatro filhos, os três últimos vieram a seguir uns aos outros, agora andavam com a impressão que a Madalena, estava outra vez grávida, mas não tinham ainda a certeza. A Glória, que também era a “Lola”, e para alguns era a “Ruça”, era a mais velha, tomava conta dos irmãos, praticamente era a mãe, só não lhes dava de mamar. Todavia, era ela que os vestia, lhes dava de comer, os lavava e os ia deitar, a Madalena, sua mãe, só os deitava ao mundo. O sistema em casa estava assim ordenado, Madalena trabalha com o Aniceto nas lides da lavoura, a Glória toma conta e zela pelos irmãos.


Os vizinhos viam a Glória descalça, com um vestido de chita, às vezes roto, com o irmão mais novo ao colo e os outros dois de mão dada, agarrados ao vestido da Glória. Se choravam, quem os atendia era a Glória, se tinham fome, quem lhes dava o comer era a Glória, se passava um cão na rua e ladrava, os irmãos iam logo meter-se debaixo do vestido da Glória.

Em casa, ninguém dava pela Glória, era como se fizesse parte da mobília, todas as suas tarefas em cuidar dos irmãos era normal. Chegados à noite, a mãe dizia:
- Oh Glória, vai mudar o farrapo ao teu irmão que está todo borrado, pois está aqui um cheiro esquisito.

O pai, dizia:
- Que raio, deixa de dar ordens à Glória, coitada da rapariga, que anda farta de trabalhar.

E continuava:
- Oh Glória, dá-me aquele avental da tua mãe para eu limpar os pés.

Entretanto, o irmão chorava com dores de barriga, pois tinha comido nêsperas, ainda verdes e sem querer saber de mais nada, ia encostar-se à Glória.

A Glória, era quase sempre a última a ir deitar-se, pois tinha que lavar a bacia de barro vermelho onde comiam à noite que era também usada para lavar os pés aos irmãos, dar uma papa de leite de cabra com farinha de milho ao mais novo que era depois  levado para a cama, porque dormia com ela, pois a mãe Madalena andava enjoada, devendo de estar grávida outra vez.

(continua)

Tony Borie, Junho de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14683: Libertando-me (Tony Borié) (19): ...É o destino

domingo, 31 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14683: Libertando-me (Tony Borié) (19): ...É o destino

Décimo nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




As pessoas mais ou menos da nossa idade, quando as coisas não correm em conformidade com os seus desejos, normalmente dizem: “É o destino”.

Neste caso, ”O Destino” foi termos nascido nesse “cantinho à beira-mar plantado”, foi termos idade adulta naqueles anos para sermos militares, participando na “Guerra do Ultramar”, que Portugal manteve “orgulhosamente só”, foi sermos perseguidos pela então “Polícia do Estado”, foi vermos alguma oportunidade de vida, de liberdade, podendo criar uma família, na emigração, no outro lado do Atlântico, muito longe desse sol radiante, onde às vezes fazia geada pela manhã, a que os nossos vizinhos chamavam “orvalho”, foi ter havido uma greve, na companhia aérea que viaja pelo mundo com a bandeira de Portugal, houve atrasos, ainda os há, mas nós, não pedíamos mais nada, só adquirir dois normais bilhetes para ter lugar nos aviões, daqui de New Jersey para onde nos queríamos deslocar, mais exactamente para atravessar o Atlântico, usando como destino a cidade de Lisboa.

Não era nossa intenção ir para uma aventura em qualquer floresta no Bali, numa perspectiva diferente desta incrível ilha, onde os arrozais podem cobrir cerca de vinte por cento de toda a ilha, com densas florestas do interior, mas nas áreas mais secas, podemos esperar um matagal, com algumas savanas, onde os cones vulcânicos nos surpreendem com paisagens estéreis.

Não era nossa intenção ir para as “Cataratas de Iguaçu”, na fronteira do Brasil com a Argentina, onde chamam “Cataratas del Iguazú”, onde existe um conjunto de cerca de 275 quedas de água, localizado na bacia hidrográfica do rio Paraná, com cerca de 250 mil hectares de floresta subtropical, que já é considerada Património Natural de Humanidade.

Não era nossa intenção ir conhecer uma qualquer Igreja perdida na Ilha de Lewis, no mar da Escócia, ou ver a cidade arqueológica Maya, de “Chichén Itzá” cujo nome tem raiz Maya, que significa "pessoas que vivem na beira da água", no norte no México, localizada no estado de Lucatã, que funcionou como centro político e económico da civilização Maya, onde ainda hoje se encontram várias estruturas como a Pirâmide de Kukulkán, o Templo de Chac Mool, a Praça das Mil Colunas ou o Campo de Jogos dos Prisioneiros, que podem ainda ser admiradas e são demonstrativas de um extraordinário compromisso para com a composição e espaço arquitetónico, e claro, também foi declarada Património Mundial da Unesco.

Não era nossa intenção ir visitar o “Monte Merapi” na Indonésia, (Merapi, em indonésio significa “Gunung Merapi”), que por sua vez significa Montanha do Fogo, que é um vulcão localizado na ilha indonésia de Jawa, que atinge os 2968 metros de altitude, e que tem a particularidade de ser o vulcão mais activo da Indonésia, país que tem a maior densidade de vulcões do mundo.

Não era nossa intenção ir de visita à cidade perdida “Machu Picchu” também chamada "cidade perdida dos Incas”, que é uma cidade pré-colombiana, bem conservada, localizada no topo de uma montanha, a cerca de 2400 metros de altitude, no vale do rio Urabamba, no actual País, chamado Peru, que é provavelmente o símbolo mais típico do Império Inca, quer devido à sua original localização e características geológicas, quer devido à sua descoberta tardia, somente no ano de 1911, onde apenas cerca de 30% da cidade é de construção original, o restante foi reconstruído. As áreas reconstruídas são facilmente reconhecidas pelo encaixe entre as pedras, mas a construção original é formada por pedras maiores, com encaixes com pouco espaço entre as rochas, dividindo-se em duas grandes áreas, a agrícola, formada principalmente por terraços e recintos de armazenagem de alimentos, e a outra, a urbana, na qual se destaca a zona sagrada, com templos, praças e mausoléus reais.

Estava longe do nosso pensamento ir até às dunas de areia, no deserto da Austrália, que por lá chamam “Kurnell Dunas”, está estimado em cerca de 15.000 anos de idade, sendo formadas quando o mar atingiu o seu nível actual, começando por se estabilizar onde uns rios que por lá existiam fluíram para o sul-leste sob o actual sistema de dunas e, se juntou ao oceano, claro, isto resultou no isolamento de Kurnell, que era uma ilha do continente, e os rios, eventualmente, ficaram bloqueados com o acumular da areia e sedimentos, e é fácil compreender, com os rios assoreados gradualmente, foram forçados a mudar seu curso.

Também não era nossa intenção ir ao “Palácio de Jaipur”, na Índia, que inclui os palácios Chandra Mahal e Mubarak Mahal e outros edifícios que formam o complexo do Palácio em Jaipur, a capital do Estado de Rajasthan, que foi residência do marajá de Jaipur, o chefe do clã Kachwaha Rajput, onde hoje se abriga um museu, mas a maior parte deste complexo ainda é uma residência real, onde se incorpora um conjunto impressionante de pátios, jardins e edifícios, onde os seus arquitetos conseguiram uma fusão do Shilpa Shastra da arquitetura indiana com Rajput, Mughal e, alguns estilos europeus de arquitectura.

Longe do nosso pensamento estava ver as “Cataratas Vitória” a que também chamam “Quedas Vitória”, que são das mais espectaculares do mundo, situando-se no Rio Zambeze, mais propriamente na fronteira entre a Zâmbia e o Zimbabwé, que têm cerca de 1,5 km de largura e uma altura máxima de 128 metros, vistas em 1855 por um explorador escocês, que foi o primeiro ocidental a vê-las, e que lhes deu o nome em honra da rainha Vitória, mas o nome do local é Mosi-oa-Tunya, que quer dizer "fumo que troveja". Diz-se que o explorador português Serpa Pinto também contribuiu para que aquela zona ficasse mais acessível o que ocorreu por volta do ano de 1905, com a construção de uma linha do caminho de ferro.

Não queríamos ir ao Curral das Freiras na nossa Ilha da Madeira, onde no princípio da colonização possuía apenas a designação de Curral, ou Curral da Serra, derivando esta do facto de ser este local um centro de pastagens, mas a passagem da denominação de Curral ou Curral da Serra para a de Curral das Freiras terá acontecido segundo uns autores entre 1492 e 1497, aquando da passagem da propriedade dos terrenos para a posse das freiras do convento de Santa Clara, segundo outros, dizem, só se tenha verificado mais tarde, em 1566 aquando do saque da cidade do Funchal por corsários franceses, o que fez com que as religiosas do convento de Santa Clara se refugiassem ali, nas suas propriedades, talvez para não serem violadas.

Não vamos dizer que não queríamos ir à Ilha de Kiribati na Micronésia, que é o primeiro país do mundo a mudar de ano, na ilha de Kiritimati, devido ao fuso horário, pois Kiribati é o país mais adiantado em questão de horário e, como consequência das mudanças climáticas em curso no planeta, especula-se que a existência do país esteja ameaçada, estando as ilhas de Kiribati condenadas a desaparecer.





Porque o texto já vai longo, não vamos dizer que não queríamos ir até à Patagónia, onde existe uma grande concentração de “pinguins”, pois na verdade o queríamos era que todos chegassem a um acordo, não houvesse greves, não houvesse atrasos, era podermos adquirir dois bilhetes normais, numa data normal, num dos aviões que descolam de New Jersey, atravessam o Atlântico, aterrando pela madrugada nesse País distante, na Península Ibérica, era ir ver as nossas raízes, ir cumprir uma “promessa” da esposa e companheira, conhecer pessoalmente alguns companheiros combatentes que já considero a minha segunda família, ver aquela mulher descendo a montanha, a caminho da sua aldeia rural, com uns restos da planta de milho às costas, desviando-se dos arbustos que lhe tocam constantemente nas pernas, ferindo-a, mas não se queixa, vem descalça, não usa, ou talvez nunca usou sapatos e, quando lhe falam, podemos capturar na sua face um sorriso inocente de bondade, fazendo com que nós, a viver por aqui, viajantes do mundo, nos sintamos portugueses, mas a viver e a adquirir os costumes duma terra estrangeira.


Seja qual for a razão, estas são as histórias que transformam o emigrante, viajante do mundo, não importando os anos de ausência do seu País, nunca perdeu as suas raízes, sendo talvez um verdadeiro “Indiana Jones”.

Tony Borie,Maio de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14655: Libertando-me (Tony Borié) (18): Os carapaus em molho de escabeche da Ti'Glória

domingo, 24 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14655: Libertando-me (Tony Borié) (18): Os carapaus em molho de escabeche da Ti'Glória

Décimo oitavo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Os carapaus em molho de escabeche, da Ti’Glória!

Estavam lá num “mosqueiro”, que era um pequeno armário, com duas portas com rede na frente, para se manterem livres dos insectos, principalmente moscas, num canto da taberna, um pouco acima da “cartola de cinco almudes”, que era uma pipa pequena, a quem a Ti’Glória pedia muitas vezes ao nosso pai Tónio, dizendo: ...vê se arranjas um tempo para vir aqui “encanteirar a cartola.” - que era mudar a pequena pipa, o que a mãe Joana, “torcia o nariz”, e não gostava, pois na sua mente, pensava que o pai Tónio, não ia só lá “encanteirar a cartola".

Bem, vamos em frente, os carapaus que estavam no referido “mosqueiro”, às vezes dias, quanto mais tempo melhor, eram fritos em azeite verde, temperados com vinagre, sal e pimenta, umas folhas de árvore de louro, cebola, e às vezes até com pimentos verdes, tudo frutos da quinta do pai da Ti’Glória, a quem nós, entre outras coisas, tínhamos por tarefa verificar e ir avisá-la, quando o seu pai, que era o maior lavrador da aldeia, deixava a samarra, com pele de raposa na gola, pendurada em alguma árvore, ou no muro do poço, que por lá existia, porque nesse momento a Ti’Glória, lá ia muito sorrateiramente aliviar a grossa carteira de algumas notas do banco de Portugal.

Os carapaus deviam de vir da lota da cidade de Aveiro, ou talvez de Matosinhos, mas quem os lá vinha trazer era um peixeiro de Mourisca do Vouga, numa carroça puxada por um “macho”, que devia de ser um cavalo arraçado de burro, ou vice-versa.

A Ti”Glória era para nós uma segunda mãe Joana, nós andávamos por ali, limpávamos a frente da taverna de qualquer lixo, como cápsulas das garrafas de laranjada, latas vazias das sardinhas de conserva, até garrafas vazias de pirolitos, e claro, restos de “piriscas” de cigarros, não deixávamos encostar as bicicletas à porta da taverna, às vezes os clientes mais rudes ofereciam logo uma “lambada”, mas tudo passava, porque sabíamos que ao fim do dia a Ti’Glória nos dava um maravilhoso pitéu, que era um papo-seco com cinco ou seis figos secos dentro.

Bons tempos e, talvez esses figos, ou esses “carapaus fritos em molho de escabeche nos tivessem dado vitaminas para vivermos até aos dias de hoje, neste mundo moderno, onde não existem mais tavernas.

O que é isso tavernas?

Hoje são restaurantes típicos, tudo confeccionado de acordo com as novas leis de consumo, um prato de carapaus deve de ter lá tudo, menos carapaus.

Vamos a um desses mercados modernos, que chamam muito pomposamente “Shopping Center”, depois das pessoas andarem de loja em loja, a verem, a gastarem o que têm e que não têm, já um pouco cansados, deparam com uma área muito grande, para as pessoas comerem e, o que existe lá, a começar pelos equipamentos dos empregados, feitos com material reciclado, de cores berrantes, feitas à base chumbo, a comida é, Tacos e Enxiladas, do México; Pizza, da Italia; Hamburgueres, não sei de que país; Souvlaki ou Gyros, da Grécia; Kung Pao Chicken, que é uma espécie de galinha frita com mel, da China, e mais um sem número de comida, nada feito na altura, tudo vem da arca frigorífica, feita de acordo com as tais novas regras, com químicas e conservantes, onde as batatas fritas, se espera dois minutos, ficam rijas, parecendo pequenas peças de plástico.

Que saudades temos dos “carapaus fritos em molho de escabeche” da Ti’Glória, da “cartola de cinco almudes” de onde tirava o vinho, por meio de uma torneira de madeira, que por sinal “chiava”, ou seja, fazia um pequeno ruído ao abrir e fechar, servindo os clientes por uma “picheira” de barro vermelho, que nunca tinha sido lavada, era “enchaugalhada” ou seja balançada com uma pequena porção de vinho, que era única e simplesmente jogado no chão, num canto da taverna.

A nossa esposa e companheira, quer ir a Portugal, mais propriamente ao Santuário de Fátima, “cumprir uma promessa”, nós, não sabemos de que é a “promessa”, já a mãe Joana, cinquenta anos atrás, tinha feito também uma promessa de ir ao Santuário de Fátima agradecer a dádiva de o filho ter regressado vivo da guerra do Ultramar, é uma fé e, principalmente nós, os emigrantes, ainda vivemos um pouco da fé, talvez a vamos acompanhar, temos saudades entre outras coisas, dos “carapaus fritos em molho de escabeche”, iguais aos que a saudosa Ti’Glória fazia.

Tony Borie, Maio de 2015.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14624: Libertando-me (Tony Borié) (17): Fisherman’s Wharf, o Cais dos Pescadores de S. Francisco