Mostrar mensagens com a etiqueta Mário Gaspar. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Mário Gaspar. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18528: O Cancioneiro da Nossa Guerra (6): "Os Homens não Morrem" (Recolha de Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/ 68)


Batalha > Fetal > 26 de setembro de 2015 > Convívio da CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/69) >  Em primeiro plano, à esquerda, o ex-cap mil inf, hoje advogado, Manuel Francisco Fernandes de Mansilha... No final do almoço, leu as quadras que abaixo se reproduzem, e que lhe foram enviadas por um "Zorba", em 2011 pelo Natal. Segundo o Mário Gaspar, o autor dos versos é António Luís Faria Mendes, ex-1.º Cabo Operador Cripto.


Brasão da CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68). Lema: "Os Homens Não Morrem".

Fotos (e legendas) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Os Homens Não Morrem

por António Luís Faria Mendes,
ex-1.º Cabo Operador Cripto

Bem certo que o tempo passa,
Já nos vai pesando o pé, 
Mas não há nada que faça
Esquecermos a Guiné!

Alguns em Gadamael,
Os outros em Ganturé.
Fulas, mandingas, papel,
Sobe o rio com a maré.

Tempos difíceis, claro.
Sei que se foi cimentando
A amizade, um dom raro,
Que estamos comemorando.

Caro Mendes, Cabo Cripto,
Que que decifravas a mensagem,
Magro como um eucalipto,
Sempre com fé e coragem.

Vale a pena acreditar
Que há mar e os rios correm.
O que nos fez regressar?
Foi porque “Os Homens Não Morrem”!

Versos da autoria de António Luís Faria Mendes ex-1.º Cabo Operador Cripto. Data: c. 2011. Recolha de Mário Gaspar (ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (*). Transcrição, revisão e fixação de texto: MG / LG (**)
_________


Vd,. postes anteriores:

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18261: O cancioneiro da nossa guerra (4): "o tango dos periquitos" ou o hino da revolta da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) (Silvino Oliveira / José Colaço)

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18259: O cancioneiro da nossa guerra (3): mais quatro letras, ao gosto popular alentejano, do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71)

8 de novembro de 2017> Guiné 61/74 - P17944: O cancioneiro da nossa guerra (2): três letras do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71): (i) Os Morcegos; (ii) Estou farto deles, tirem-me daqui; (iii) Fado da Metralha

30 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17811: O cancioneiro da nossa guerra (1): "Asssim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude"... 4 dezenas de quadras populares, do açoriano Eduardo Manuel Simas, ex-sold at inf, CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74

domingo, 15 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18525: Efemérides (273): No 24º aniversário da Apoiar - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra: "Ter que matar para sobreviver", texto de Mário Gaspar, originalmente publicado no jornal Apoiar, nº 2, jul / set 1996


 Cartaz com o convite  para a sessão de comemoração do 24º Aniversário da APOIAR, Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra. O evento realizar-se-á na sede da APOIAR, sito na Rua C, Lote 10, Lj. 1.10, Piso 1 – Bairro Liberdade 1070-023 Lisboa, na quarta-feira, dia 18 de abril de 2017, pelas 15:00.Aderir através do Facebook. Vd página da associação aqui.



1. Mensagem,  com data 12 de abril de 2018, do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar:

[foto atual à esquerda; ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR; tem mais de. 100 referências no nosso blogue]




Caros Camaradas

Logo no início da fundação da APOIAR – Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra, registada no dia 18 de Abril de 1994, sendo fundador, também do Jornal APOIAR  (fui primeiro Director), vi-me na necessidade de escrever muitos textos sobre o tema. Lembrar que deixara de escrever desde que terminara Comissão na Guiné.

Este foi talvez o texto que teve mais impacto no Jornal fundado em Janeiro de 1996.

Já que dentro de dias a APOIAR comemora o aniversário [, o 24º], talvez fosse bom recordar o tema escolhido para falar de um tema que temos de afirmar era tabu. Lembrar que foi escrito dirigido a Combatentes que sentiam na pele o trauma da guerra.

Cumprimentos

Mário Vitorino Gaspar


Cabeçalho do jornal Apoiar, nº 2, jul / set 1966

2. Ter que Matar para Sobreviver 

[adaptação de texto publicado no Jornal Apoiar, nº 2, julho / setembro de 1996, pp. 10/11, "Ele teve que matar para sobreviver", da autoria de Mário Gaspar]

por Mário Vitorino Gaspar


“Nos nossos livros de escola glorificam a guerra
 escondem seus horrores.
Eles incutem ódio nas veias das crianças.
Eu preferia ensinar a paz do que a guerra.
Eu preferia incutir amor do que ódio.”


Albert Einstein


(...) O assistir a mortes e ter que matar para sobreviver; estar presente em acções de violência; passar fome e sede; assistir e/ ou participar na morte de crianças e mulheres; estar presente em acções de bombardeamentos, tiroteios intensivos; rebentamentos de minas e armadilhas, fornilhos e o tão famigerado napalm e as dificuldades de ambientação ao clima e o estar longe da família, tornou aqueles jovens sorridentes, ávidos de vida, em homens precocemente envelhecidos. Farrapos humanos, remendados.

Uns já haviam constituído família, outros fizeram-no logo de imediato, os restantes ficaram solteiros. Marcham para a vida, mas diferentes. As mulheres e os filhos paridos muitas vezes de atos sexuais de violência, mulheres violadas pelo guerreiro, e não pelo amor do marido. De imediato, ou posteriormente, o ex-combatente isola-se como se a aldeia, a vila ou a cidade fosse um aquartelamento. Não fala da guerra nem aos pais, à mulher, aos filhos, a familiares e amigos, como não o fizera quando combatia. Ao fazê-lo com alguém só narra as bebedeiras. E sorria.

Na generalidade, e num período curto ou mais lasso, volta a vestir a farda, embora civil, agride, esbofeteando a mulher, os filhos, ou ambos. Não tem paciência para o diálogo e, por vezes, a família embrião é destruída como por acção de um rebentamento. Os filhos ficam a cargo da mãe violada pela guerra colonial. Ele teve que matar para sobreviver na guerra. É o funeral da família. Foi uma mina, uma armadilha ou um fornilho?

Pais, irmãos, mulheres e os filhos daqueles que haviam contraído matrimónio antes da partida, num porão ou num avião, assim como as namoradas ou noivas, familiares e amigos, traumatizados pelo seu ente querido e amigos, choraram à partida para a guerra. Os pais, em muitos casos, morrem precocemente. O Estado português ignora e deixa viúvas, por vezes mães, na miséria. Um ex-combatente suicida-se. Perguntam: porque se suicidou? E não entendem. E os vivos, os ex-combatentes, vivem (se isso é viver!) com medo do futuro. Aqueles que ainda possuem o amor das esposas, dos filhos, por vezes partem portas, armários e outros utensílios domésticos, talvez por não quererem agredi-los.

No quotidiano, aqueles dóceis seres humanos que partiram para a guerra, são despedidos no trabalho. Na rua são presos por criarem conflitos e são desconfiados. São possuidores de um forte espírito de justiça.

E isto por existir um desdobramento em duas personagens distintas: a boa, porque era um jovem alegre, e a má porque partira para a guerra, onde ele teve que matar para sobreviver.

E é por tal razão que, na maioria dos casos odeiam fardas, qualquer tipo de fardas, inclusive a dos bombeiros, embora os adorem. E porque a farda alimenta o ódio, nas suas mentes amputadas, parecendo paradoxo, andam fardados, diariamente, andam em guerra consigo e com os outros, armados, imaginariamente, de arma na mão, como se os pavimentos fossem matas, atentos aos ruídos, passos e chorando como quando uma criança chora, lembrando, nalguns casos a criança que viram matar ou mataram.

Pela noite dentro, já depois de ingerirem doses excessivas de medicamentos, sonhos, pesadelos angustiantes, sufocantes, com gritos, choros, sangue em corpos retalhados, rebentamentos, tudo numa amálgama. Restando do sono três ou quatro horas de descanso, se é descanso, isto após inúmeras dificuldades em adormecer. Ao levantarem-se pretendem iniciar um novo dia, mas tudo se repete.

Na guerra bebia-se ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. E também nos intervalos. E a bebida normalmente não faltava. Uma das principais razões de se ingerir álcool em demasia era, talvez terem que sofrer a sede nas operações, outra razão era para esquecer. Bebia-se, mas menos, nas matas quando acabava a água no cantil, o líquido dos charcos, onde por vezes se urinava. Aqueles que fumam fazem-no em excesso. Há ainda os que se tornaram toxicodependentes.

Ex-combatentes com PTSD [, sigla inglesa, Post-Traumatic Stress Disorder, em português Perturbação de Stress Pós-Traumático] de Guerra têm dificuldades de concentração, esquecem, quer se alaguem em álcool quer se droguem ou não. Têm, por vezes, tremuras, ranger de dentes e gaguejam, por vezes. A família não entende o medo que vai dentro deles, quando se deslocam a hipermercados, supermercados e outros locais de forte concentração de pessoas. Medo dos grandes espaços, não estando bem em local algum, nem no lar, se o possuem, no café, no restaurante ou noutro local público. Querem abandonar os locais onde se encontram. Não querem estar fechados. Quanto aos transportes, alguns nem sequer tiraram a carta de condução, porque sabiam que o carro na estrada podia ser um foco de conflitos com os outros; não andam, em muitos casos, de metro, não querem servir-se de elevadores e outros transportes públicos, principalmente os superlotados. Estar metido em bichas é uma afronta, uma agressão. Detestam.

São estes ex-combatentes, que no dia-a-dia estão em guerra consigo – a guerra continua, dentro deles. Na grande maioria não estão amputados de membros, não estão cegos, sem cicatrizes visíveis e não possuem próteses. Foram eles que transportaram – sim porque foram eles que o fizeram – os tais amputados, os cegos e inúmeras vezes foram eles que lhes salvaram as vidas. Apanharam das bolanhas, das matas, os pedaços dos mortos, escorrendo o sangue pelos seus corpos, colocando esses restos de corpos, bocado, a bocado em sacos de plástico e outros recipientes. Transportaram os feridos e choraram de dor os mortos.

Hoje os ex-combatentes com perturbações de stress pós traumático de guerra são autênticos despojos humanos, com as vísceras sangrando-lhes os corpos, dos camaradas abatidos pelo inimigo.

Os ex-combatentes com stress de guerra são portadores de outras doenças associadas: problemas musculares, cardíacos, ósseos, de pele, sexuais, etc.. Possuem uma vida curta. Vivem com problemas que a nossa sociedade desconhece. E por culpa de quem? (...)

Contem a história da Guerra Colonial nos manuais escolares, não a façam prisioneira.

__________

Nota do editor:

Último poste da série > 6 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18494: Efemérides (272): No Centenário da Batalha de La Lys, homenagem aos Combatentes do Concelho de Barcelos (Manuel Luís Lomba)

sábado, 31 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18473: XIII Encontro Nacional da Tabanca Grande, Palace Hotel de Monte Real, 5 de Maio de 2018 (2): Quem dá boleia ao nosso camarada Mário Gaspar, que vive em Lisboa, na zona do Campo Grande?

1. Mensagem de Mário Gaspar:


[foto atual à esquerda; ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR; tem tem c. 100 referências no nosso blogue]

Data: 26 de março de 2018 às 23:41

Assunto: XIII ENCONTRO NACIONAL DA TABANCA GRANDE

Mário Vitorino Gaspar
Rua Alberto de Oliveira, 19 – 2.º Direito
1700-018 Lisboa
mariovitorinogaspar@gmail.com


Lisboa, 26 de Março de 2018

Caros Camaradas

Pretendo inscrever-me no XIII Encontro Nacional da Tabanca Grande. Palace Hotel de Monte Real no dia 5 de Maio.

Sucede que tenho dificuldades no transporte. Se existir um lugar vago num carro de um camarada, agradeço. Moro junto à Praça de Alvalade, Lisboa, mas posso deslocar-me para um local a combinar.

Um abraço para a Tabanca Grande.

Mário Vitorino Gaspar
_____________

Nota do editor:

quarta-feira, 14 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18414: Ser solidário (211): Concentração cívica (hoje, 4ª feira, às 18h00, no antigo Hospital Militar Principal, Estrela, Lisboa) e petição pública a favor do apoio social e clínico aos militares e seus agregados familiares, incluindo os antigos combatentes da Guerra em África


Lisboa > Estrela > Hospital Militar Principal, numa fotografia de Augusto Xavier Moreira (c. 1865). Imagem do domínio público.

Fonte: Wikimedia Commons.


1. Chegou-nos, pela  mão do nosso grã-tabanqueiro, Mário Gaspar, a notícia deste evento:

CONCENTRAÇÃO CÍVICA 

Quarta-Feira – 14/3/2018 às 18hOO

Ex- Hospital Militar Principal – Estrela, Lisboa

Petição Pública com mais de 4750 assinaturas

Considera-se importante chegada 15 minutos antes das 18h00, para cumprir horários e compromissos.

Presença da ADFA e de Militares Grandes Deficientes

Intervenções:

1. MGen Bargão dos Santos
2. TCor Cmd António Neves
3. Cor Cmd Carlos de Matos Gomes
4. Intervenções Livres (15’)

2. Petição Pública [assinar a petição aqui]

Apoio Social e Clínico aos Militares e seus agregados familiares

Para: Excelentíssimo Senhor Presidente da Assembleia da República
Excelentíssimo Senhor Presidente da Assembleia da República

Excelência

O que se expõe não corresponde a uma situação exclusiva dos militares e das suas famílias , uma vez que diz respeito e de algum modo, a parte igualmente significativa da nossa população.

É apenas dada ênfase aos militares e seus agregados familiares por admitir tratar-se de uma realidade que tem tanto de particular, se atentarmos sobretudo ao que se encontra legislado na Lei de Bases do Estatuto da Condição Militar ( LBGECM), como injusto e preocupante e neste sentido, trazer ao conhecimento de V. Exa, para os devidos efeitos, o seguinte:

Concretamente, a urgente necessidade do apoio a largas centenas de doentes, beneficiários do IASFA, I.P. (Instituto de Acção Social das Forças Armadas) que necessitam de acompanhamento de natureza hospitalar, fundamentalmente por doenças crónicas prolongadas ou situações resultantes de demências ou de acidentes cerebro-vasculares e que hoje se denominam de Unidades de Cuidados Continuados e Paliativos.

De facto, confrontamo-nos hoje com um envelhecimento muito alargado da população militar, com um quantitativo ainda muito significativo de combatentes da Guerra em África , com todas as suas sequelas, seja a nível físico ou psíquico.

Para que se possa ter uma ideia da complexidade e gravidade da actual situação e a título de mero exemplo, refere- se que em termos de Oficiais e Sargentos, apenas do Exército e na situação de reforma (Lista de Antiguidades, Set 2016), existem com mais de 80 anos, cerca de 3500 e com mais de 70 anos, perto de 6000, por sua vez, perante uma realidade de mais de 39.000 beneficiários com mais de 65 anos de idade.

Explicando melhor, a actual lista de espera de doentes beneficiários para internamento nas instalações de acolhimento do IASFA,I.P. para cuidados desta natureza ou afim, ronda os 1500 , sendo a capacidade deste Instituto no âmbito da denominada Acção Social Complementar (ASC), naturalmente diminuta e muito insuficiente para as reais necessidades.

Se recuarmos um pouco recordamos que a criação de um Hospital único para as Forças Armadas (HFAR), sempre desejada ao longo de décadas, como forma de racionalizar recursos materiais, equipamentos e efectivos, então dispersos por três Hospitais, dois do Exército ( Hospital Militar Principal e Hospital Militar de Belém ) e o Hospital da Marinha, levou à decisão política da cedência dos mesmos a outras Instituições, na circunstância à CVP [Cruz Vermelha Portuguesa] e à SCML [Santa Casa da  Misericórdia de Lisboa].

Com esta atitude, as Forças Armadas perderam cerca de 400 camas de internamento hospitalar, correspondente aos três Hospitais e foi desperdiçada de algum modo, uma considerável reserva estratégica nacional de apoio sanitário, perante eventuais situações de calamidade ou catástrofe.

Por sua vez os referidos Hospitais tinham uma taxa de ocupação da ordem de pouco mais de 90%, o que dá para avaliar e fazer-nos hoje reflectir, por onde andarão e em que condicões estarão a ser seguidos esses doentes.

Entretanto, o Hospital Militar de Belém que foi cedido à Instituição da Cruz Vermelha Portuguesa, por um período de vinte e cinco anos, para instalação de uma unidade de Cuidados Continuados e uma Residência Sénior (DR 189/2015 de 28/9/15), continua inactivo.

O Hospital Militar Principal, com capacidade para mais de 200 camas, fechou entretanto as suas portas em Dezembro de 2013 (há mais de três anos) e mantém -se igualmente encerrado, quando seria por inerência a solução mais económica , mais justa e racional para ser a retaguarda indispensável ao actual HFAR (Hospital das Forças Armadas).

Em 30/7/2015, este mesmo HMP, viu então ser formalizada a sua cedência (Pavilhão da Família Militar) à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, através de um protocolo firmado entre o seu Provedor, Sr Dr Santana Lopes e o Sr Dr Aguiar Branco, Ministro da Defesa Nacional.

Visava-se então criar a maior Unidade de Cuidados Continuados e Paliativos, do País, entre outras valências.

Não obstante o esforço da sua pronta divulgação local, em chamativo cartaz e placas identificativas, não chegou a abrir e desconhece- se inclusivamente uma data para a sua inauguração.

O Hospital da Marinha desafectado do Dominio Público Militar, para ser vendido em hasta pública (17/3/2016).

Em síntese, solicita-se:

1. Uma definição do Ministério da Defesa Nacional relativamente a uma previsão para a abertura das Unidades Hospitalares cedidas pelo Exército respectivamente à CVP e SCML, sendo de admitir como hipótese , perante a gravidade do exposto, a sua reconversão para a administração do Exército, caso se prolongue por mais tempo, a entrada em funcionamento dos mesmos.

2. Que sejam facultados ao IASFA,I.P. os recursos humanos e materiais indispensáveis que lhe permitam, seja por realização de protocolos de assistência médica e social ou por seus próprios meios, dar resposta adequada às necessidades de tratamento ou internamento dos seus beneficiários, em Unidades de Cuidados Continuados ou Paliativos ou de qualquer outra natureza médica e social, servindo em todo o País os seus Deficientes, militares e seus agregados familiares que o necessitem.
3. Que possa finalmente e em definitivo, ser dado o devido reconhecimento de integrar sempre que possível em Unidades de Cuidados desta natureza, os cidadãos hoje civis, mas ex- combatentes da Guerra em África, que delas tenham necessidade e que estão hoje bem identificados pelas diferentes Instituições( Liga dos Combatentes ou outras , que lhes são afins e representativas).

Lisboa, 17 de Março de 2017
João Gabriel Bargão dos Santos 
CC - 01080439
NIF- 108149536

[Fixação de texto, para efeitos de edição neste blogue, incluindo negritos e realce a amarelo: LG]
_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 24 de fevereiro de 2018  > Guiné 61/74 - P18351: Ser solidário (210): A ONGD Resgatar Sorrisos apresenta-se à Tabanca Grande e agradece desde já quaisquer apoios para poder construir a escola de Candamã (, no antigo subsetor de Masambo) (Luís Granquinho Crespo)

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18285: Um conto de Natal (24): Zé, o soldado de barro (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

1. Mensagem do nosso camarada e grã-tabanqueiro Mário Gaspar, com data de 31 de janeiro último:

[foto atual à esquerda; ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR; tem tem c. 100 referências no nosso blogue]

Caros Camaradas:

Depois de me reiniciar na escrita, escrevi muitos textos, todos publicados. Encontrei este “Soldado de Barro” que provocou críticas em alguns combatentes.

Inicialmente pensei escrever um texto para crianças, mas em cima da hora surgiu a dificuldade de publicar no jornal APOIAR no fim de ano, um texto de Natal, estando com o “Soldado de Barro” entre os dedos dei uma volta de 360% e saiu este conto de Natal.

Tenho andado às voltas no computador e vou encontrando imensos textos, alguns nem foram publicados.

Tive conhecimento que o Grande Soldado da minha Companhia (CART 1659),  António Pais Cabral n.º 06653066 e Apontador de Metralhadora.  faleceu. Estivemos muitas vezes em Operações, nunca quis ajuda de ninguém, era um jovem com menos de 40 quilos, transportava não só a MG como fitas para a mesma e pelo menos duas granadas de morteiro. No Almoço de Confraternização compareceu, tinha 110/120 quilos e o ano passado faltou, estava num Lar.

Em 2010 este “Soldado de Barro” saiu no jornal da ADFA: – “ELO”. Assinado: Mário Vitorino Gaspar, associado nº 15159.

Podem publicar no Blogue. A minha saúde é péssima.

Um abraço para o Blogue

Mário Vitorino Gaspar



2. Um conto de Natal (23) > Zé, o Soldado de Barro 

por Mário Vitorino Gaspar, associado nº 15159


Era uma vez um velhinho, muito velhinho, de nome Pinheiro. Morava naquela olaria, também ela muito velha, herdada de seu pai, feita de pedra já carcomida pelos anos. Situava­‑se numa zona muito isolada, onde só se ouvia o chilrear dos passarinhos e o sussurro do vento, murmurando nas paredes da casa, também ela velha, longe da povoação mais próxima.

O velhinho Pinheiro vivia muito só. Perdera a mulher há uns anos. Para ele, uma eternidade. Não tinha ninguém. A sua fortuna era as mãos queimadas pelo barro quente. Fazia com elas uns pífaros, muitos bonecos e outras peças que serviam para ornamentar os presépios – jumentos, o Menino Jesus nas palhinhas, José e Maria. Vendia pouco, porque só há um Natal no ano. Assim ele vivia também de alguma coisa que retirava da terra. Pois o amigo de toda a gente boa da terra principiou a sua obra, talvez a mais grandiosa: um soldado em barro.

Os traços do rosto eram belos e os olhos grandes, saltavam daquela imponente imagem de barro. Terminada a obra, depois de noites consecutivas sem se deitar, o velhinho oleiro sentou­‑se junto daquele monumento em barro. Teria por volta de um metro e oitenta. Era um grande homem, mas estava nu.
– Ti Pinheiro, que faz? – perguntou o seu vizinho e amigo Manel, que o visitava com frequência. O sonhador Pinheiro, porque a vida também é um sonho, com ar altivo, retorquiu:
– Mane! Este é o meu soldado!
– Mas ele não está fardado, Ó Ti Pinheiro! – respondeu prontamente, com uma certa angústia no olhar.

Mirava de alto a baixo a grandiosa está­tua, que mais parecia sorrir­‑lhes com um ar inocente. O velhinho Pinheiro algo comovido, respondeu, depois de passar a sua mão direita, acostumada a moldar o barro, pela cabeça do recém­‑nascido Zezinho:
– O Chico, o filho do João da Burra, regressou há bem pouco dessa guerra em África. Quero pedir­‑lhe que me dê uma daquelas fardas manchadas de verde que eles vestem.
– Não percebo para que servem as guerras!

Apontando para o telhado com o indicador direito, baixou o braço repentinamente:
– As guerras só servem para matar os nossos rapazitos, porque aquela terra não é nossa. Olha que quem te fala sabe bem o que diz. Sou muito velho, já passei as passas do Algarve. Foram também a 1.ª e 2.ª Guerra Mundial. Nem sei às vezes quantos anos tenho. A nossa terra é aqui, esta é que é a nossa terra. O filho do João da Burra parece que vem inteiro. Agora os outros!?  Vê bem quantos desta terriola vieram na madeira dos caixões? Olha que o filho do Ti Jaquim da Ponte desapareceu lá em Angola. Coitada da mãe. Parece que morreu com o filho. E o nosso João da Burra?  Como ele andava!
– Mas se pensa desse modo, porque fez isto que diz que é um sol­dado?
– O pacato do boneco até parece ter vida – respondeu o Ti Manel algo confuso.

Sentindo­‑se questionado, sabendo ser extremamente difícil com­preender as razões que ele próprio não percebia, o oleiro levantou­‑se com certa dificuldade do banco de madeira e abraçou o imenso monte de barro moldado pelas suas mãos, também enormes:
– Sei que ninguém nesta terra me compreende. Vão saber desta minha criação, mas eu nunca tive um filho. 

Após um momento de reflexão, continuou:
– Pois este é o meu filho, é o José...

Via­‑se no olhar daquele velho oleiro uma alegria mágica, algo de inexplicável, parecendo ter retornado aos seus vinte, trinta anos. Era um homem novo e com sonhos.  A verdade era que aquele grandalhão boneco, como por artes mági­cas, começou a andar e sorriu. O sorriso ainda gaiato. Ti Manel, assustado, dirigiu­‑se para a porta daquela casa de pedra já muito velha.

Olhando para trás já sem medo, disse:
– O seu filho, o Zezinho, já anda e tem movimentos como gente.

O velho Pinheiro agarrou­‑se ao seu filho chorando. Era a sua criação, com a ajuda divina, transformado num ser humano.  Ninguém por momentos falou. Instalou­‑se um silêncio, interrompido por uma voz desconhecida, uma voz forte de quem sabe o que quer da vida:
– Ó pai! – deslocando­‑se junto do espelho velho, continuou: – mas eu estou nu, sou um soldado sem farda! 

Envergonhado, tapou o sexo com as suas mãos enormes cruzadas. A vida renascia daquele barro esculpido. Era o Zé, o Zezinho que falava. 

Aquele barro falava. Com uma incontida emoção o pai Pinheiro, não deixando de abraçar o filho que continuava com as duas mãos sobre o sexo, diz:
– Dá­‑nos essa manta que está sobre a arca!

Depois de receber aquela manta de retalhos das mãos do Manel, cobriu as costas do filho, aquela sua criação feita verdade.  O tempo foi passando e o Zé já era soldado, nascera soldado. É que ninguém deveria negá­‑lo, era um soldado de corpo e alma, e ainda por cima. Toda a gente da povoação sabia serem os moços da terra e vizinhança, na grande maioria, analfabetos.

Naquele momento era um português, igualzinho a qualquer outro só com uma pequena diferença: – fora moldado pelas mãos de artista do Ti Pinheiro e transformado em ser humano, mas soldado. Não o soldadinho de chumbo ou o Pinóquio das histórias de encantar, mas o soldado de barro do oleiro. Era de tal modo igual a um soldado, que conhecia tudo sobre os mili­tares. Marchava, tinha uma ótima preparação física, não se notando sequer o cansaço quando fazia quilómetros, e bastantes, em volta do povoado.  Falava de armas, deixando as pessoas à sua volta admiradas. É que nascera soldado. Até tinha um camuflado. 

 Gostava muito do pai e falava da mãe que não tinha. A mãe Gertrudes, esposa já falecida do oleiro Pinheiro. O velhinho Pinheiro sentia­‑se alegre e mais novo, mas por vezes punha­‑se a pensar com os seus botões:
– O meu Zé é militar, vai deixar de ser meu. Vou ter de o registar, dar­‑lhe um nome.  Tem que ir “às sortes” porque nasceu soldado. E ainda para tristeza minha, os moços daqui ficam todos apurados para o serviço militar. Quando lhe toco é realmente um ser humano. Mas há qualquer coisa que não com­preendo. Ao mesmo tempo ele é de barro. Não é como nós e, ainda por cima, nasceu soldado.

Um dia, há sempre um dia, o Zé partiu para a tropa. Fez a recruta, a espe­cialidade. Era o melhor soldado entre os soldados. Mas sempre soldado.  Só que, semelhante a outro qualquer ser vivo, não se cansava, não chorava e era disciplinado. O velhinho Pinheiro quando o via em casa, nas dispensas de fins-de-semana, questionava­‑se:
– Terei sido castigado por desejar ter um filho? Queria um filho, que a minha Gertrudes, Deus tenha a sua alma em descanso, nunca me deu. Tenho um filho que nasceu militar. Tenho um filho que é soldado.

O velhote, por um instante ficou como que paralisado.  O Zé é mobilizado para a Guiné. O velhinho Pinheiro chorou. As lágrimas caiam pelo rosto gretado, para cima do barro que amassava. Não tinha interesse pelo trabalho. O momento era péssimo, porque se aproximava o Natal e tinha muitas encomendas.

Estando em casa de licença, o Zé acompanhava o pai e tentava convencê­‑lo que tudo correria bem. Mas o velho oleiro não se conformava. Aquele rapaz não era como os outros. Era de barro, o seu amado filho. Corria o risco de se quebrar.

Foram uns dias amargos, bem amargos. O pai ficou mais ligado ao filho do que nunca. Era o seu filho, não carne da sua carne, mas também da sua carne.  Chegou o dia do embarque e o velho oleiro lá partiu para o cais de Alcântara, em Lisboa.  Esteve uns breves momentos com o seu Zé, soldado de barro. O seu filho afastou­‑se lentamente, olhando­‑o profundamente. Não chorava. Come­çaram a formar­‑se os Batalhões e as Companhias. Alinhados. Lá estava o seu Zé na formatura. Era o mais belo dos soldados, pensou o velho oleiro.

Apetecia­‑lhe gritar:
– Este é o meu filho!

Depois de algum tempo todos começam a embarcar. O barulho, um imenso barulho, instala­‑se no cais, pequeno para tanta gente:
– Meu filho!? – diz alguém repleto de angústia.

Foi o toque mágico. Os gritos não chegavam para sarar as feridas. Era um quadro difícil de explicar. Os lenços seguros nas mãos e içados nos braços, pareciam exigir misericórdia. Uma nuvem trágica de cores pintava aquele cais de medo. O velho oleiro parava no tempo olhando o barco que começava a progredir nas águas sujas, tentando ver ainda o seu Zé.

Aquela amálgama de barulho ensurdecedor partia­‑se. Ouvia­‑se dis­tintamente o grito do cais e do barco que desaparecia quase na linha do mar, bem ao fundo. O tempo passou. A ligação era o aerograma. Mas o Zé não escrevia, não sabia ler nem escrever. Era um outro soldado, também José de seu nome, quem escrevia as letras para o velhinho muito velhinho:
– Estou bem, meu pai!

Aproximava­‑se o Natal e nem uma carta. Nem sequer um aerograma. Véspera de Natal, Natal, e o José não dava notícias.

Um dia o velho oleiro, enquanto trabalhava, vê pela janela aproximar­‑se o carteiro da terra. Vinha de bicicleta na mão:
– É um telegrama! – diz o homem do correio daquela terriola:
– Dá cá! – responde o velho Pinheiro, limpando as mãos às calças sujas e segurando de imediato aquele papel branco com ambas as mãos:
– O meu Zé morreu! – diz chorando.

O muito velho oleiro morreu passados dias. Não tivera Natal. O Zé morrera na noite de Natal.

O Zé era de barro, como os outros Zés soldados, e partiu­‑se, nem os cacos se aproveitaram. O soldado de barro é sempre de barro. E o barro parte­‑se.  Por tal motivo é que existem por esse mundo fora ruas com os nomes de soldados de barro, feitos heróis esquecidos.  É de barro o soldado. Os soldados de barro dessa guerra, que ainda sobrevivem. Andam por aí feitos em cacos. Fisicamente e psiquicamente.
__________________

Nota do editor:

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18248: Efemérides (268): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte II



Brasão da CART 1659 (Gadamael, 1967/68), "Zorba". Lema: "Os Homens Não Morrem"


Guiné > Região de Tombali > CART 1659 (1967/69 > Ganturé em 1967

Foto (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


Passaram 51 Anos: Chegada ao Largo de Bissau, 17 de janeiro de 1967 - Parte II (*)

por Mário Vitorino Gaspar



“… Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca…”

Álvaro de Campos
Gadamael Porto, 19 de Janeiro de 1967
(continuação)

“Não sou eu nem o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro”.

Mário de Sá-Carneiro

(...) Árvores de alguma altura abundavam, a população civil aproximava­‑se, querendo conhecer os novos vizinhos, enquanto um alferes se apre­sentava. Tinha ido em rendição individual e ficaria ainda com a nossa companhia, segundo afirmado pelo próprio. Um militar, praticamente sem farda, que também ficaria connosco, aproximou­‑se de mim:
– Meu furriel,  quer comer uns borrachos fritos?

Olhei­‑o admirado. Afinal aquilo não era assim tão mau. Até existiam uns pombinhos para comer!
– Onde estão eles?
– Ó furriel, venha comigo!

Olhei por cima dos meus ombros e vi as divisas camufladas. Retirei­ as mesmas e coloquei-as no bolso do camuflado. Enquanto reparava que aquele 1.º cabo que se tornara meu amigo,  não vestia nenhuma roupa do exército. Estava com uns calções de banho e uns chinelos de enfiar nos dedos.

Fritou os borrachos e umas batatas, Iniciei a minha primeira refeição em terras de África. Que pitéu! Não sabia a razão da escolha ter recaído sobre mim. Admirado para o tamanho das cervejas. Ouvi da sua boca:
– Essas são de seis decilitros.

O 1.º cabo confortava­‑me:
– Os borrachos não che­gavam para todos.

Estavam a tratar de fazer o jantar: – bacalhau com grão. Fora um milagre, uma bênção. Após a fome, a primeira fartura, porque estava disponível para trincar a bacalhoada, logo que estivesse pronta.

Começámos a instalar­‑nos e o alferes miliciano que ficara connosco – era de rendição individual – ia esclarecendo-nos. Fiquei numa barraca encostada ao abrigo onde ficou a minha secção, coberta com chapa zincada. Era decerto um forno. Havia uma cama e um caixote de munições que funcionaria como mesa-de-cabeceira, sobre a qual via uma garrafa de cerveja cheia de gasolina com um pavio enfiado no buraco da carica. Era a iluminação da minha nova moradia.

O furriel miliciano que eu substituía,  deixara ficar dois isqueiros Zipp  avariados com a inscrição “Movimento Nacional Feminino”. Nenhum dos isqueiros funcionava. Abri a mala e coloquei sobre o caixote que serviria de mesa-de-cabeceira, quatro livros:

“Os Cavalos Também se Abatem”, de Horace McCoy;
“Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes;
“A Fanga”, de Alves Redol; e
"Zorba o Grego”, de Nikos Kazantzákis.

Este último tinha muito a ver com a sigla da CART 1659: “ZORBA” – “Os Homens não Morrem”.

Começava a sentir cada vez mais o calor naquele clima doentio. Mesmo os atletas, não o eram. Não se respirava. Também era verdade que o fumo dos cigarros fumados tinha criado um autêntico nevoeiro naquele que era o meu quarto. O alferes Póvoa, o sargento Dores, eu e os furriéis miilicianos Jorge e Alves tínhamos ficado espalhados pelo aquartelamento, cada um com determinada missão defensiva.

Dei uma volta ao pequeno aquartelamento depois de despir o camu­flado e vestir uns calções, fiquei em tronco nu. Comido o bacalhau, prato do dia, fomos até ao bar, se é que aquilo era algum bar. Bebi e conversei com todos aqueles soldados­‑amigos­‑irmãos.

A população civil, por não nos conhecer, estava talvez indecisa, o que era normal, olhando-nos com um ponto de interrogação estampado no rosto. Tive o primeiro sorriso da bajuda que passava. O Alferes Miliciano Santarém ia-nos informando. Estávamos portanto no Setor S2, ficando a CART 1659 ligada para efeitos operacionais ao BCAÇ 1821, com sede em Buba.

Há uma via norte-sul ligando Aldeia Formosa com Cacine. Depois do Cruzamento de Ganturé – na mesma via – estão os aquartelamentos de Sangonhá, Cacoca e Cameconde, seguindo-se Cacine. No chamado Cruzamento de Guileje, há uma bifurcação para Mejo e Guileje. O terreno é plano, com cursos de água, sendo alguns deles de grande caudal.

A população insta­lada nas tabancas de Gadamael Porto, cerca de 400.  e em Ganturé (sede do Regulado), cerca de 200 indivíduos são beafadas. Existem ainda fulas, tandas, mandingas, landumas, bagas, nalús, sossos etc. Dedicam-se principalmente ao cultivo do amendoim, arroz e à caça e pesca principalmente para o abastecimento da tropa. As Praças “U” [, recrutamento local], pertencentes à Companhia, eram 31, existindo ainda 45 Caçadores Nativos.

Ficámos portanto junto da fronteira com a República da Guiné, Guiné ex-Francesa. Não estávamos preparados para aquele clima e éramos desconhecedores da cultura e língua daquelas gentes. Repetia-se a situação, era raríssimo ouvir­mos uma frase em português. Palavrões, sim.

Enquanto todos jantávamos, o dito bacalhau, ouviu-se o arrancar do motor e acenderam-se as luzes. Estávamos já instalados, e de serviço a tempo inteiro – 24 horas por dia – em terras da Guiné. A partir daquele momento tínhamos que estar preparados para tudo, até para termos que ouvir alguém gritar:
– Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda!

Era bem verdade que a grande casa guiada por Salazar queria e ordenava.

Cansados, dormimos, os que não foram destacados para os primeiros serviços. De manhã seria um outro dia. Logo tivemos o primeiro grande problema: – não tínhamos um Padeiro na Companhia. Fui eu que solucionei essa enorme falha. Era filho e neto de Padeiro, tinha trabalhado desde muito pequeno, depois de deixar de estudar fora Padeiro, tinha inclusive a Carteira Profissional de Ajudante de Padeiro. Acompanhei o fabrico do primeiro pão de Gadamael Porto e Ganturé. Não era complicado fazer bom pão, a farinha era de boa qualidade e oriunda de França. Aliás toda a população civil fazia propaganda diária da moagem francesa, muita da roupa que vestiam era feita do pano de sacas de farinha.

Começámos a conhecer os hábitos daquelas gentes, acordando diariamente com o troar do pilão que desfazia miolos e as ideias. Verdade que, por vezes, escutasse o toque do clarim, mas por pouco tempo. Fiquei cativo, o único pensamento, mesmo cativo. Agrilhoado. Tinha de libertar dessa ideia.

Iniciou-se uma nova fase das nossas vidas depois de todos instalados. Ficaria connosco o alferes miliciano que deixara de fazer parte da Companhia que havíamos rendido, e que esperava nova colocação. Continuavam as desigualdades. Uma Messe com 2 alferes mili­cianos (o tal que entretanto esperava colocação,  o alferes Póvoa, comandante das tropas destacadas), 1 sargento e 3 furriéis milicianos.

Começam a surgir inúmeros boatos, postos a circular pelo PAIGC, focando ataques e destruições nas nossas tropas, criando-nos não só a nós como às populações uma certa insegurança. Queria acreditar que sofrer seria natural, as bonitas flores também sofrem. O meu grande problema era não gostar de arroz.

Como se tinham refugiado na República da Guiné muita população desde 1963, a nossa Companhia começou a exercer, quando estes visitavam a família, ações tendentes a persuadi-los a regressarem a Ganturé e Gadamael Porto, iniciando-se logo um aumento da população. A diminuta população existente dedicava-se ao cultivo de mancarra e à caça e pesca. O peixe denominado por nós da bolanha servia para o abastecimento próprio e para venda à nossa tropa. Portanto íamos começando a conhecer aquelas gentes, adaptámo-nos, melhorando progressivamente o espaço, que seria a nossa terra.

Na Messe tínhamos um gira-discos, que ali ficara e somente um disco. Este era – «Sony and Cher» – “I got you Babe”. Parecia mais estarmos nos "rangers", em Lamego, massacrados com as músicas “O sambinha chato” e “Et maitenant”.

Havia um refeitório para as praças, com mesas feitas de caixotes de munições e bancos improvisados.  As primeiras avionetas começaram a aterrar em Gadamael Porto, visto em Ganturé não existir uma pista, e a ansiedade do correio começou por ser natural. Tínhamos que ir à sede da Companhia buscar o correio: a carta e o aerograma com a notícia da família. Também o contacto com a namorada, noiva e madrinha de guerra. Quando avistávamos a avioneta, inventávamos desculpas para ir buscar o correio.

Como especialista de minas e armadilhas, após ordens do capitão que nos visitou [,em Ganturé,] comecei a rebentar, com petardos de trotil, aqueles monumentos enormes, construídos pelas formigas, chamados de bagabagas, que eu nunca tinha visto. As formigas construtoras de betão armado eram o exemplo vivo da unidade, a mesma união que pretendíamos no futuro para nós militares. Eram potenciais abrigos para o PAIGC em futuros ataques ao aquar­telamento, não muito longe da fronteira.

Mais tarde concluímos que não era bem verdade esta opinião, porque os bagabagas serviam também para nossa defesa. Começava a ambientar-me, e o trotil que inicialmente utilizara, depois de umas tantas mordidelas das formigas que assistiam não pacifi­camente à invasão das suas casas, foi substituído pelas granadas, colocadas nas fendas, e com uma corda não esticada, puxava junto da paliçada.

Esse trabalho, depois de milhares de mordidelas daquelas formigas que depois de arrancadas à pele, e amputadas das cabeças, continuavam a morder, foi a primeira grande experiência. Começara já a fazer o estrangulamento do cordão lento com o detonador, com os dentes (em lugar de utilizar o alicate estrangulador), como era ensinado no Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, em Tancos. Havia aprendido a fazer o estrangulamento, nome dado ao acto de ligar o detonador ao cordão lento, na direção das costas. Isto para não sermos atingidos no rosto, e principalmente nos olhos.

Lembrei as pragas bíblicas: – As águas convertidas em sangue; as rãs; os mosquitos; as moscas venenosas; a peste nos animais; as úlceras; o granizo; os gafanhotos; as trevas e o anúncio da 10.ª praga. Eram as primeiríssimas pragas que anunciavam outras. Cortou-se o capim (capinar) em toda a zona entre a paliçada construída com chapas de bidões e terra batida no meio, e o arame farpado. Começámos por limpar a zona mais à frente, cortando a vegetação e queimando-a. Já tínhamos uma visão mais ampla de toda a zona circundante do aquartelamento.

Os abrigos foram melhorados, consoante aquilo que os militares consideravam ser mais cómodo, e aqui e acolá iam surgindo uns pequenos luxos para o local. Tudo obra executada nos intervalos das primeiras patrulhas, estas bem perto dos aquartelamentos. Existiam furriéis milicianos em Guileje e Mejo, que tinham estado comigo noutras unidades na metrópole. Quando se abasteciam em Gadamael, passavam por Ganturé. Sempre que os encontrava bebíamos umas cervejolas. A cerveja era também camarada.

Todos os dias eram nomeadas equipas para trazerem água, sempre necessária, havia de ser transportada para o aquartelamento, puxada com um motor para bidões. Era utilizada para alimentação e a higiene de cada um. Não havendo casas de banho apropriadas, o banho era com um púcaro improvisado, feito de uma qualquer lata com uma asa de arame, que derra­mava aquele líquido precioso sobre o corpo. Outra equipa ia à lenha.

Os copos eram feitos de garrafas partidas com óleo queimado com um ferro em brasa. Depois de golpes na boca, concluímos ser importante raspar as arestas nas pedras ferrosas, visto a zona ser rica em minério de ferro. A água para beber  tinha que ser tratada com pastilhas e, mesmo assim,  sabia mal. Ao fim de poucos dias em terras da Guiné fizemos uma patrulha até à fronteira da República da Guiné, num dia de altíssimas temperaturas. Não estando preparados, após termos bebido toda a água, enchemos de novo os cantis num charco existente e colocámos pastilhas. A sede era demais e bebemos este líquido sem que as pastilhas fizessem efeito.

Logo de seguida Tropas “U” e Caçadores Nativos mijavam para o charco. Perdi o controlo, senti vontade de esmurrá-los. Bebera mijo, ou para ser mais claro, todos bebemos mijo. Prometi nunca mais beber água na Guiné, nem a filtrada. Esta experiência ajudou-me a saber como lidar com aquelas gentes.

Ouvíamos constantemente os rebentamentos na área, e nos intervalos o matraquear do pilão vivia também ali e depressa ficou a fazer parte das nossas vidas. Enquanto a grande parte das mulheres com as mamas escor­rendo até à cintura batiam com o pilão com um toque cadenciado a quem se juntavam as bajudas, algumas com a mama firme, nós aproximávamo-nos sorrateiramente destas últimas, procurando uma pequena oportunidade para lhes tocar no corpo. Éramos jovens.
– Mim cá nega! – respondiam após o primeiro toque nos corpos nus.

Habituámo-nos a respeitar esta vontade, que por vezes não era a delas. Visto Ganturé ser a Sede do Regulado, onde o Abibo Injassó era o régulo, também rei, que não permitia que as mulheres e bajudas tives­sem qualquer tipo de relações sexuais com os militares, muito embora se tentasse sempre que existisse uma oportunidade, principalmente com as lavadeiras. As operações sucediam-se, principalmente as patrulhas de apoio às companhias de Mejo, Guileje e Sangonhá, o abastecimento era descarregado em Gadamael Porto.

O régulo era o elo de ligação entre a nossa unidade e os informadores. Criou-se uma rede de Informação. O informador era um pau de dois bicos, para nós positi­vamente, muito embora algumas vezes se colocasse em causa a informação. Tínhamos assim conhecimento da movimentação do PAIGC na zona. O informa­dor era pago pela informação, e se ela fosse verdadeira, recebiam mais.

A nossa tropa ajudava a população civil, facultando por exemplo a utilização das viaturas para o transporte de cargas pesadas. Também existia algum emprego para os naturais, nomeadamente nas obras dos aquartelamentos e com o contributo das lavadeiras na lavagem da roupa. Fomentou-se o cultivo do arroz, mandioca, batata-doce, milho, árvores de fruto.

De Gadamael tivemos conhecimento que os reabastecimentos para a zona far-se-iam pelo dito cais do aquartelamento, que continuava a ser uma caixa de uma GMC. Tarefa ingrata essa visto que corria a CART 1659, o risco de passar a comissão a descarregar toneladas e toneladas de mercadoria, que caiam na água e se enterrava no lodo. Cada barco para descarregar era um problema, e a nossa tropa tinha que inventar para não se afundar na lama com um saco às costas ou uma caixa de cerveja. Muitas caixas ficavam perdidas no rio. Íamos a Gadamael Porto, principalmente para falarmos com os amigos. Tirávamos fotografias, algumas demonstrativas das más condições que possuíamos. De várias viaturas conseguíamos montar uma.

Fizemos a primeira Operação ao famoso “Corredor da Morte”, também denominado “Corredor de Guileje”.

_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18247: Efemérides (267): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte I

Guiné 61/74 - P18247: Efemérides (267): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte I



Brasão da CART 1659 (Gadamael, 1967/68), "Zorba". Lema: "Os Homens Não Morrem"


Guiné > Região de Tombali > CART 1659 (1967/69 > Ganturé em 1967


Foto (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] (****)


Efemérides > Passaram 51 Anos: Chegada ao largo de Bissau, 17 de janeiro de 1967

por Mário Vitorino Gaspar






“… Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca…”

Álvaro de Campos


Bissau, 17 Janeiro de 1967


Chegámos à barra do porto de Bissau, na noite de 17 de janeiro de 1967. O paquete Uíge estagnou. Silêncio geral. Rapidamente surgem negros de tanga. Descalços. Começaram por carregar aos ombros, mas vagarosamente, alguma bagagem. Mais parecia que o cais de Bissau se desmoronava quanto ouvi as primeiras palavras dum nativo, bem perto do local onde me encontrava. Dei com os pés na minha mala de viagem. Não entendi o que diziam, simplesmente palavrões, que nem ficavam mal como fundo daquele palco. Nunca fui “menino-bem”. Mas f­oi o primeiro choque.

Esperava, no mínimo de entender uma única palavra em Português. Escutava uma língua que desconhecia. Era do meu conhecimento, não era novidade, sabia perfeitamente o País onde vivia. Tinha plena consciência do papel de Portugal nos ditos territórios Portugueses de África. Aquelas gentes viviam num mundo bem distante da civilização. A imagem que assistia transportava-me a 500 anos atrás. Recuara nos tempos. Quando um descarregador nativo estendia as mãos, não só cigarros que fumava como procurando que lhe desse dinheiro, tentei falar com ele. Ficou parado e sorriu. De repente saiu da sua boca uma rajada de palavrões em Português. Comecei por rir.

Avistava­‑se a iluminação de Bissau. Toda a minha Companhia – CART 1659, encontrava­‑se bem unida, quase mão na mão, quem sabe se para se proteger. Recebi ordens para levar a minha Secção mais para a frente, também que não desembarcaríamos em terras da Guiné. Outros militares seguiram connosco e entrámos numa LDM e Batelão BM­‑1. Tive de escutar alguns desabafos de homens da minha Companhia.

Ficámos espantados, visto julgarmos desembarcar na capital. Sem explicação, deram-nos uma maçã, um quarto de pão, uma laranja e um ovo. O destino? Bem tentei saber, sem resultados. O destino? Incerto? Depois de encaixotados avançávamos por via fluvial estreita, o mato quase que nos tocava. Afinal o destino era o mato. O Capitão ia encolhendo os ombros. Se frustrado estava mais fiquei, por outra, enganado. Como tinham a coragem de nos colocarem naquela ridícula situação? As horas passavam, no romper do novo dia, fui verificando estarmos encurralados de mato por todo o lado. Um ou outro riso, mas era mais o silêncio que inundava as nossas almas. O sol queimava.

Rapidamente se esgota a míngua do menu dado à saída do Uíge. Os militares começaram a abrir as malas. Comi uns nacos de presunto e de salpicão que cada um trouxera da terra-natal. Aqueles pitéus salgados acabaram por nos criarem problemas. Sede. O calor ia aumentando e alguns ainda dormitavam aos solavancos. Os Oficiais e Sargentos tiveram alguma informação oriunda do Capitão Miliciano de Infantaria Manuel Mansilha. Nada de novo. Eu não parava, embora No pouco espaço que existia, ia conversando com militares da Companhia, também com Furriéis que conhecia, mas de outra Companhia e de um Pelotão Fox. Soubemos qual o destino: – Gadamael Porto.

A fome e a sede apoderaram­‑se de nós. O pessoal começava já a sen­tir a mudança do clima. Havia quem comesse as cascas das laranjas, rindo talvez para disfar­çar. Vómitos! Muitos despejaram para as águas do rio tudo aquilo que haviam digerido. Para além da comida, era a falta de água.

No Uíge existiam passageiros de Luxo, de 1.ª, de Porão. Rica vida passada a bordo do Uíge. Começaríamos por ser mais iguais? Tinha a certeza que a desigualdade ia continuar. Era um dos privilegiados. Sempre responsável. Assumira, desse para onde desse!

Não sabia muito bem se no futuro as coisas se passariam do mesmo modo. Avistámos uma povoação, na margem direita do rio, tendo o coman­dante de companhia talvez, através dos fuzileiros que nos acompanhavam, dito tratar­‑se de Cacine. Era uma “avenida” de palmeiras, e cá bem à frente, militares gritavam:
– Salta que é periquito!

Com um pequeno barco os fuzileiros chegaram a terra, trazendo sacas. Verificámos serem laranjas, bem sumarentas, mas mais pareciam vinagre. Segundo diziam, tínhamos que nos apressar devido à maré. A mata nas margens era densa e nós éramos não só uns intrusos, mas também periquitos – termo utilizado para designar todos os militares que estavam no início da comissão. Muito embora as azedas das laranjas não matassem a fome, de algum modo ajudavam a enganar o estômago. O Capitão, falando com os Oficiais e Sargentos informou que se juntaria a um pelotão uma secção, ficando destacados num local de nome Ganturé. Fizemos um sorteio e ao meu Pelotão tocou-lhe o destacamento ao qual se juntou uma outra Secção.


Gadamael Porto, 19 de Janeiro de 1967

“Não sou eu nem o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro”.

Mário de Sá-Carneiro


Desembarcámos em Gadamael Porto, e o termo “porto” não tinha significado, visto não existir porto algum. Nem sequer um simples cais.
– Salta, salta periquito! – ouvíamos, enquanto um aglomerado de militares pulava de contente.

Entendia aquela alegria, mas a verdade é que se éramos os periquitos, e a CCAÇ 798 é que saltava. Juntava­‑se a popu­lação civil que nos olhava­, não expressando alegria. De imediato tivemos que carregar as malas e saltarmos para cima de uma caixa de uma GMC, que substituía o cais que não existia. Houve quem escorregasse e caísse no lodo.

Os gritos continuavam, e as viaturas militares preparadas para trans­portarem o meu Pelotão e a
Secção para Ganturé, começaram a andar. Não houve tempo para analisar aquele local isolado no mato, e enquanto uns recebiam instruções e continuava a descarga, nós avançávamos, também para local incerto. Alguém avisou não ser necessário picar­‑se visto ter existido movimento de viaturas durante todo o dia.

A Companhia de Caçadores 798 [, a que pertencia o nosso camarada, grã-tabanqueiro, Manuel Vaz,] começava a embarcar na LDM e no Batelão. Para eles era a alegria do fim da comissão.

Depois de passado o casarão à esquerda, onde funcionava o comando, ultrapassámos o abrigo, que funcionava como porta­‑de­‑armas e mais ou menos percorridos três quilómetros, cortámos à esquerda e eis à nossa vista a “colónia de férias”. Saíam já outras viaturas com os militares da companhia rendida, que grita­vam sorridentes em altíssimos berros:
– Salta, periquito, salta,periquito...

(Continua)

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 11 de janeiro de 2018  > Guiné 61/74 - P18202: Efemérides (266): Dia Internacional do Obrigado... uma seleção de 12 manifestações, no nosso blogue, de agradecimento e de gratidão, que são dois dos sentimentos mais genuinamente humanos... Um Oscar Bravo (OBrigado) à nossa Tabanca Grande, aos membros do nosso blogue, aos nossos leitores, a todos os que nos visitam, lêem e escrevem, aos nossos editores, aos nossos colaboradores permanentes, a todos os que nos apoiam, direta ou indiretamente (Luís Graça)

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18137: O meu Natal no mato (45): Um Natal antecipado: 23 de dezembro de 1967 em Gadamael Porto (Mário Gaspar), ex-fur mil art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART  1659 (Gadamael  e Ganturé, 1967/68) > O Natal antecipado de 1967. Eu a fumar, à esquerda o furriel enfermeiro Durães, atrás o furriel mecânico Justo.

Fotos (e legendas): © Mário Vitorino Gaspar (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Mário Gaspar [foto atual à esquerda; ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR; tem tem c. 100 referências no nosso blogue]

Caros Camaradas

Só hoje me lembrei do Natal passado na Guiné, passaram 50 Anos. Um dia que não esqueço.
Bebi 7 garrafas de Vermute Cinzano, ainda hoje não sei como consegui sobreviver. Depois fui fazer uma Patrulha. O PAIGC não apareceu.

Gostaria de saber o que cada um pensava no momento.

Um Bom Natal e um Ano Novo de 2018 com Saúde para toda a Tabanca.
Mário Vitorino Gaspar

PS - Ando de bengala.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1967 > CART 1613 (1967/68) > Ao centro, o Francesinho, alcunha do sold at António de Sousa Oliveira, transbordando de energia e de alegria, uns meses antes de morrer, no "corredor da morte", em 28/12/1967, no decurso da Op Relance. Era natural de Celorico de Basto (, tal como o seu infortunado camarada, o António Lopes) e emigrante em França. É a única foto que temos dele.

Foto: © José Neto (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ]


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613  (1967/68) > O Nuno Tavares da Costa Machado, alf mil art (aqui ainda aspirante miliciano, ainda na metrópole), morto no decurso da Op Relance, em 28/12/1967, no corredor de Guileje. Foi a  agraciado a título póstumo com a Cruz de Guerra de 3.ª classe. 

.Foto: © Aníbal Teixeira (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


[Op Relance: Em 27/12/1967:

Missão – Emboscada no “corredor” de Guileje.
Forca executante: CART 1613 (incompleta);  1 Gr Comp da CART 1659;  1 Gr Comb da CCAÇ 1622; Pel Caç Nat 51;  Pelotão de Milícias 138

Resultados obtidos: Causados ao IN 4 mortos prováveis e feridos vários não controlados; as NT sofreram 3 mortos, 4 feridos graves (3 milícias) e 3 feridos ligeiros (2 milícias). Os mortos foram o alf mil art Nuno da Costa Tavares Machado, o sold at António Lopes e António de Sousa Oliveira, todos da CART 1613]


2. O meu Natal no mato (45): 23 de Dezembro de 1967 em Gadamael Porto, um Natal antecipado

por Mário Gaspar


Passaram 50 Anos!

Fomos informados pelo Comandante da Companhia (CART 1659) que se festejaria o Natal no dia 23 de Dezembro. O intermediário deste “serviço informativo” era o régulo Abibo Injasso. Razão: visto ter recebido a informação que seríamos atacados na noite de Natal. Acostumados a tudo, não deixámos de considerar esta situação inacreditável. Era a guerra e naquela guerra inclusive o Natal fora antecipado.

Desloquei-me ao abrigo onde estavam quase todos os militares da minha Secção para lhes dar a novidade. Verdade! Estávamos 24 horas de Serviço sem licenças de fins-de-semana e dispensas de recolher. Não foi publicado nem numa Ordem de Serviço e muito menos no Diário do Governo. De tronco nu, chinelos e calção mudei de vestimenta e vesti-me à civil.
– Ó pessoal! – disse em voz alta – O Natal este ano é a 24 de dezem­bro.
– O quê? Meu furriel está a brincar, não está? – disse em voz alta um soldado.
– A brincar eu? Já receberam as prendas da família e das senhoras do Movimento Nacional Feminino. Não sabem o que é o movimento femi­nino? – disse rindo, calando-me de imediato.
– Diga nacional... Tão bom que é montar e cobrir. Já nem sei o que isso é. A última vez foi na minha aldeia, com uma puta, quando estivemos de licença. Foi uma foda tão boa. – disse o soldado deitando-se no chão de terra do abrigo, fazendo flexões. – Foi assim!

O soldado não parava de fazer flexões, num sobe e desce e ria-se.
– Tu és virgem, meu cabrão, ainda tens os três... – respondeu um camarada.
– Tenho é as tuas três primas quando formos embora daqui! – res­pondeu levantando-se, batendo com a cabeça na G3 pendurada na cama.
– Foi castigo porra! – riu.
– É verdade que dizem que o Natal é todos os dias. Dizem, mas é uma grande treta. O Natal deveria ser todos os dias, o que é totalmente diferente. 

Os soldados entretanto lá continuaram o diálogo.
– Já me disseram, o Natal aqui é diferente. Lá na minha parvónia e, eu só vi o mar quando assentei praça, o Natal é a 25 de Dezembro, aqui é a 24. Não há mulheres brancas estamos longe dos nossos pais, namoradas, noivas, dos familiares e amigos. O correio vem quando vem, não temos dinheiro, comemos mal.

Estou farto e ainda não chegámos ao fim do ano. Prometeram-nos ano e meio de comissão. Bastava que construíssemos o cais. O ano terá também 365 dias?

Sei que o nosso capitão não tem culpa. Faz tudo isto para nós termos o nosso Natal. Possivelmente os tipos vão atacar a malta. O furriel Pestana e o Costa lá morreram naquela trampa da armadilha.

A tristeza apossou-se daqueles homens que em janeiro haviam desembarcado na caixa de uma GMC, enterrada no lodo em Gadamael, no sul da Guiné. Chegados no Uíge a Bissau, nem colocámos o pé em terra. Destino uma LDM e Batelão BM-1 e mato. Ao largo de Bissau os carregadores indígenas, falando dialetos que não compreendíamos, vestindo roupas rotas e sujas pediam-nos dinheiro, patacas ou patacões. Era a instrução que não havíamos recebido. A ambien­tação ao clima e os costumes daquelas gentes não constava da instrução.
– Pois é... Referi com a dor no corpo e na alma. Tocara-se na ferida: o Pestana e o Costa não chegaram a este Natal. Haja o que houver, não podemos permitir que outros Pestanas e outros Costas, não passem o próximo Natal com a família.
– Logo vamos ter rancho melhorado?

Era a hora do jantar da noite de Natal antecipada. Todos seguiram. Chegou outro soldado. Trazia uma cerveja nas mãos.
– Vocês nunca mais apareciam e tive que beber qualquer coisa antes do jantar.
– Hoje é melhorado. – ouviu-se.
– Bacalhau com batatas!
– É daquele com cal, mas também não há outro. É melhor que comer o peixe da bolanha.
– Vamos a ver se os cabrões não nos estragam o nosso Natal.

Afastei-me do abrigo. Noite bonita e sem nuvens, não se vislum­brando sequer uma. O sol lá se acomodava, austero.

O pôr-do-sol daquelas paragens era um espetáculo. O Furriel Vagomestre, Casimiro, veio ao meu encontro e caminhámos juntos até à messe de Sargentos. O que denominávamos com messe era um acrescento do casarão onde funcionava a secre­taria da Companhia, feita com cobertura de chapa zincada. Estavam os três Sargentos e uns dez Furriéis Milicianos. A ceia daquele Natal prematuro, era bacalhau com batatas.

Havia luz. Do local onde me sentara, já avistava o cais que prometia o regresso antecipado. Isso porque tinha sido prometido pelo Comandante de Sector. Seria verdade? A verdade por vezes é mentira. Mas que o havia prometido, era verdade. Na hora das refeições sucediam os ataques do PAIGC.

O que pensaria naquele momento a família do Pestana e do Costa? O que estariam a dizer, naquele momento, os familiares de mais de cento e sessenta militares, que ali se encontravam desterrados? Como seria o Natal com a mesa incompleta? Deveríamos estar todos juntos, e não era verdade.

Não havia razões absolutamente algumas para a existência de duas messes e o rancho. Não só naquele dia mas sempre, deveríamos comer todos juntos já que a comida é sempre a mesma. Não era a Companhia uma família? As pausas eram todas elas de meditação.

O bacalhau fora servido. Todos se calaram. Coloquei o azeite sobre o bacalhau e as batatas. Pensava, talvez na morte da bezerra. Descuidei-me com o azeite. O bacalhau nadava.
– É Natal, é Natal... – quebrou a monotonia o furriel Nicolau,  de São Miguel, dos Açores.
– Bacalhau? Não quero bacalhau, que raio de merda.
– Não és português, meu sacana... – disseram dois, o  furriel enfermeiro, Durães e o furriel mecânico, Justo, algarvio.
– Olha quem fala... – respondeu o enfermeiro, de garfo e faca, des­toando da grande maioria, retirando habilmente as espinhas para a ponta do prato com a faca.
– És algarvio, e na História de Portugal lá consta, sempre após refe­rir-se ao rei: “Rei de Portugal e dos Algarves”. Se um é açoriano, outro é algarvio... – disse o furriel enfermeiro.
– Fala o rei de Lisboa, o senhor todo-poderoso do nosso império. Vai mas é às urtigas. – respondeu o algarvio.
– Ouvi dizer que comeste um sonho de Natal feito de algodão. Os teus homens já te conhecem tão bem, sabem que és um grande guloso e arranjaram um tão grande sonho de Natal, foi logo esse que agarraste. Era a esticar a esticar o algodão... – disse o 1.º Sargento Barreira enquanto se ria.
– Comi mais, eram tão bons. Mas a malta também lá foi. Não sei muito bem como fizeram os sonhos, e de onde vieram os ovos.
– Se calhar os pretos ficaram a arder.

Não se falou sobre o Natal antecipado. Uma cafeteira de café é colo­cada sobre aquilo a que chamavam mesa.
– Não se bebe nada? – perguntei com ar zangado.
– O meu irmão enviou-me uma caixa de bolos sortidos... – diz o furriel de transmissões, o Campos – Vamos comer uns bolinhos e compra-se uma garrafa qualquer.
– Ó cozinheiro, vai buscar duas garrafas à cantina, de uma trampa qualquer...

Rapidamente duas garrafas de cinzano, chegaram à mesa. O cozinheiro começou a retirar os pratos da comida.
– Um bolinho à saúde do dono dos bolos –  ouviu-se, numa só voz
– Vai uma saúde a todos.

Estendemos os copos e bebemos. Todo o líquido daqueles copos de dois decilitros mergulhou pelas goelas – como se o tivéssemos combinado anteriormente. Só de uma golada.

Instalou-se o silêncio. Mordia-me o cérebro não se ouvir ninguém. Não seria eu a quebrar o silêncio.
– O meu irmão é um tipo porreiro. – referiu o Campos:
– Lembrou-se e enviou-me uma caixa de bolos. Eu sou uma merda de homem, não valho nada. Ele é um bom tipo. Não presto, nem nunca prestei. A minha família é boa, mas eu sou, mau filho e mau irmão, uma autêntica merda...
– Ena, pá, deixa-te disso – confortou-o alguém, notando-lhe as lágrimas a escorrer pela cara.
– Não presto nem nunca prestei. Vocês são uns gajos porreiros, mas eu não valho nada. Natal? Que Natal é este?
– Nós cá todos bem!...
– Cambada de mentirosos, dizer às famílias tremenda mentira.

Ele não estava habituado a beber, e já eram quase duas dúzias de garrafas de vermute de litro. O que se estava a passar era uma paragem no tempo e na guerra para reflexão. Todos parámos. Só queríamos que o PAIGC fizesse a mesma paragem.

Surdos e mudos. Seres humanos. Pensei na minha mãe, no meu pai, nos meus irmãos, nos sobrinhos, tios, primos, namoradas, amigos e madrinhas de guerra e bebi mais um copo. Dois, três copos.

O 1.º sargento que era 2.º sargento (fazendo na Companhia o serviço de 1.º sargento) cantava o fado. Ele era o mais velho. Subia na vida, cantava sobre um banco, feito de um barril de vinho.

Todos o acompanhávamos, excluindo aqueles que mais bêbedos tinham ido para a cama. Foi nesse momento que fui atingido como – se fosse um rebentamento – por uma voz num tom que me rebentaram os tímpanos. Era o enfermeiro:
– Cozinheiro mais umas garrafas. O cantineiro tem mais.
– É chato, é chato, é sambinha chato..., É muito chato... – cantava o amigo açoriano, que não gostava de bacalhau – uma das canções dos Rangers em Lamego, curso que ele fez e que eu tão bem conhecia, pela curta estadia no mesmo. Não fiquei lá.
– Chatos tens mas é na cabeça... – disse-lhe rindo, enquanto bebia mais um copo. Não eram goles, mas um copo cheio de cada vez.
 Cantemos a outra...
– Et maintenant, que vais je faire…
– … É chato, é muito chato, é sambinha chato... – Continuava o açoriano muito sério batendo com a ponta dos dedos sobre as tábuas acom­panhando um ritmo que eu não percebia muito bem qual a canção que se tratava. A letra era a famosa dos “ranger’s”.
– Ó maestro vai outra música.
– A Guarda Republicana, Republicana, republicana!
 – Vamos a esta  – gritou o sargento.

Assim íamos festejando o Natal antecipado de 1967. A festa ainda não parara, e já não havia tempo para meditações. Todos se foram deitar, uns pelos seus próprios pés, outros com ajuda. Todo o mundo embriagado. Fiquei eu e o Furriel Jorge, que vendia banha da cobra. Acabara a bebida.
– Vamos à cantina? – perguntei-lhe.
– O cantineiro já fechou aquela merda. Vamos acordá-lo... – respon­deu-me levantando-se.
– Vamos embora, toca a acordá-lo, hoje é Natal.

Caminhámos juntos, passando pela tabanca. Muitos negros estavam ainda acordados. O abrigo do cantineiro era do lado de cima do aquartela­mento de Gadamael. Aproximámo-nos do abrigo, esse de terra batida e bidão repleto de terra, com palmeiras a cobrir e, junto do cantineiro, em voz baixa, murmu­rou o meu amigo:
– Cantineiro! Estamos com sede... – disse tocando-lhe nos braços – Este tipo está mesmo a dormir:
– Cantineiro vão umas garrafinhas?
– Porra nem se pode dormir. Vá lá, mas só há duas garrafas. Levan­tou‑se, enfiando os chinelos nos pés, vestindo os calções de banho. – res­pondeu o cantineiro.

Não passámos pela tabanca e fomos diretamente à cantina. Não se via ninguém. Só os que se encontravam de serviço. Avistei no abrigo da minha secção, estava o soldado de serviço.

Tínhamos cada um a sua garrafa. Duas de litro. Estavam quentes.
– Cantineiro, então esta merda está quente? Parece mijo...
– Furriéis! Acabaram‑­se, são as últimas. Até amanhã…

Segurando cada um a sua garrafa, descemos na direção da messe de sargentos. Messe improvisada, como tudo o que existia naquelas paragens. Bebia em tragos grandes, como se o mundo acabasse e sentámo‑­nos debaixo da chapa ondulada de zinco.
 – Bebe, e cala-te ... – disse o meu amigo, com os olhos já muito peque­nos.

Só se ouvia o motor da turbina do posto elétrico.

Já tínhamos ingerido o líquido das garrafas. Pela primeira vez, naque­las paragens, estava mais que embriagado. Pelo álcool, era a primeira vez que tal sucedia. Ficara bêbedo desde que chegara ao largo de Bissau, na noite de dezassete de janeiro, se é que não me anestesiara antes, sim porque todos nós estávamos completamente anestesiados.
– Podias muito bem, estar na tua casa com a família, e eu na minha. A verdade é que não nos teríamos conhecido. Gostava de ir ao cinema, ir ao teatro. Ao Parque Mayer, ao Monumental. Ir às putas. Tanto que adorava ir ao Café Lisboa, na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Entrava por uma porta e saía por outra. Nem que fosse para ver as já caducas das putas, sentadas, bebendo o seu café, olhando para a porta na esperança de ganharem uns cobres. O Café Martinho? Império? Paladium? Vává? Para inte­lectuais e pseudointelectuais. De Sartre debaixo do braço, que embora não o lessem. Mas era fino. Também era moda andar de botins calçados, e sujos de lama, para imitar os estudantes da Escola Agrícola de Santarém, o que não deixava de ter a sua graça. Um dia fui ver um filme com Alberto Sordi. O filme era “Uma vida difícil”, do realizador italiano Dino Risi. Há uma cena, que nem sequer é traduzida, que o personagem que o ator encarna, diz mais ou menos o seguinte:
– Vão‑­se embora daqui que isto é uma merda.

É mais ou menos isto que diz para os tipos, os turistas junto à estrada.
– Por que carga de água estamos aqui desterrados?
– Sou soldador e aqui o que faço? Ando com a G3 nas unhas. Parecemos todos nós, uns burros de carga quando vamos para o mato.
– No mato já nós estamos.
– Os mortos que já houve. É matar e morrer. Foram as mulheres e crianças em Ganturé no batuque. Foi o Vítor e o Costa.

O meu amigo quando falava em Vítor referia‑­se ao nosso grande amigo o Pestana.
– Nós estávamos de licença, lembras‑­te?

Levantou‑­se e sentou‑­se de imediato.
– E o “corredor da morte”. Foi o chavalo que se perdeu. Faço ideia o que ele não sofreu.
– Andou onze dias perdido, e nós sem termos hipóteses de o ajudar.
– É andar, é andar, sempre a andar. Vai mais uma voltinha para aquela menina de amarelo. É como na Feira de Outubro em Vila Franca de Xira, onde nós estivemos.
– E quando aquela merda dos estalinhos rebentavam e nós deitados no chão. O que aquela gente ria.

Falávamos da nossa visita à feira quando estivemos de férias, e mal sabíamos que os nossos camaradas haviam morrido, e ao mais pequeno barulho, era como se estivéssemos no mato.

Roquetadas, morteiradas, tiros, canhoada, minas a estoirar. Era o que tínhamos naquela terra.
– Fornilhos que lindos que são...
– As tripas de fora, sempre a andar. Porrada para cima. Sempre a andar.
– É picar, é picar.
– Ataques quando um tipo come, quando dorme, mas sempre a andar. Mais uma voltinha para aquela menina de amarelo. Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda. Não paga cinquenta escudos, nem vinte tão pouco. Por dez escudos leva esta caneta com aparo de ouro flexível, esta esferográfica e este pincel para a barba.

O meu amigo estava mesmo embriagado. Não parava. Já nos habituara àquelas cenas de vendedor de “banha da cobra”.
– Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda. Não paga cinquenta escudos, nem vinte tão pouco. Por quinze escudos leva esta caneta com aparo de ouro flexível, esta esfe­rográfica e este pincel para a barba.
– Um bom pincel, és tu... – respondi‑­lhe
– Não estamos aqui para enganar ninguém. Nós somos os únicos que saímos daqui enganados.
– Era a grande casa do Salazar, mas triste casa que mandava. Mandava, éramos carne para canhão. Somos uns imbecis, uns autênticos imbecis
– Eh, pá! Estou com sede. Já falei demais e tenho a garganta seca.

Em Gadamael, naquele momento, para além de nós, estariam acor­dados o pessoal de serviço, e um ou outro negro. O vendedor da banha da cobra olhava‑­me nitidamente, como se fosse um autómato.
– Vamos pedir de beber ao Capitão. – disse o meu amigo.

Quando falo no “meu amigo”, não é menosprezo para todos os outros, mas é que nos ligava uma forte amizade.
– Não estou aqui para enganar ninguém...

Logo à entrada daquele arruamento de tabancas, um negro da popu­lação civil sentado num pequeno banco, olhou‑­nos.
– Eh, pessoal, corpo?

Vestia uma túnica branca, de orar a Alá. A cabeça estava coberta com um gorro de lã, com desenhos ligeiros.
– Manga de chatice, pessoal... – respondeu o meu amigo.
– Pessoal... – continuou... Empresta aqui ao pessoal duas coisas dessas (apontava, referindo‑­se à túnica) e dois gorros?

O negro dirige‑­se para o interior da habitação, fazendo com a mão direita um sinal indicativo para esperarmos. Dá‑­nos aquilo que havíamos pedido, entregando‑­nos. Nós respondemos com um sorriso.

O Jorge vestiu uma das túnicas muçulmanas, dando‑­me a outra. Vestia‑­a e, não sei se me ficava bem. Colocámos ambos os gorros. O negro ria. Muito sérios, abandonámos o negro muçulmano, não sabendo bem se havíamos interrompido a sua oração. Deixámos para trás a tabanca, seguindo para o “comando”. Fomos em direção à cama do comandante da Companhia, Capitão de Infantaria Mansilha. O meu amigo faz‑­me um sinal com as mãos, para ter calma, não escondendo um sorriso.
– Alá, Alá, vinho para cá..., Alá, Alá, vinho para cá...

Repetimos a operação por duas ou três vezes, enquanto o capitão na cama nos olhava sorrindo. Parecia quase mentira mas sorria.
– Naquele caixote está a bebida.

Estávamos ajoelhados, batendo com a cabeça no chão.
– Alá, Alá, vinho para cá...

Levantámo‑­nos. No caixote existiam só copos vazios e água Perrier, água francesa, tipo água castelo.
– Só cá tem água? – disse‑­lhe com ar chateado.
– Bebam que faz bem... – respondeu o capitão.

Eram talvez quatro horas. No dia seguinte fomos ambos chamados ao comando para entrarmos numa patrulha. Eu quase morri, tal foi a bebedeira. Senti‑­me tão mal, e só na hipótese maior, a do PAIGC apare­cer. Fomos castigados, mas que castigo.

Em 27 e 28 de dezembro, a nossa CART participa na operação Relance, montar emboscada no “corredor da morte”, Famora, tendo sido utilizadas as seguintes forças: 1 Grupo de Combate da CART 1659, 1 Grupo de Combate da CCAÇ 1622 e 2 Grupos de Combate da CART 1613.

Fomos emboscados por duas vezes tendo a nossa tropa reagido bem ao fogo e à manobra do PAIGC, que sofreu 4 mortos prováveis e vários feridos não controlados.
_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 24 de dezembro de 2017 >  Guiné 61/74 - P18133: O meu Natal no mato (44): Naquele Natal de 1972, aprendi que os homens não são iguais, apenas porque uma toalha e um guardanapo os separam... (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)