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quinta-feira, 23 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23380: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte X: A "guerra do cimento"


1. Mensagem do nosso camarada e amigo, João Rodrigues Lobo, ex-alf mil, cmdt Pelotão de Transportes Especiais / BENG 447 (Bissau, Brá, dez1967/fev1971)

Data - terça, 10/05/2922, 18:41
Assunto -  A minha história no BENH 447
 
Boa tarde,

Caro Luís, espero que tudo bem contigo.
Com um final e principio de anos tristes, primeiro por falecimento de minha Mãe, depois de um seu irmão, meu tio aí da Lourinhã, e depois da avó da minha nora. E do covid que atacou o meu netinho. Felizmente ele recuperou.

No entanto todos os dias tenho lido o blog. Recordado bastante e, ficando mais informado e mais culto.

Hoje a "reboque" de um dos últimos posts do Ex-Capitão Magro  (*)  resolvi mandar um texto. Se achares algum interesse,  publica antes do almoço do BENG 447 de 24 de Junho (**) , senão tudo bem.

Um abraço
João Rodrigues Lobo




A minha história no BENG 447

por João Rodrigues Lobo


Na sequência do post do ex-capitão “Magro” (*), relembro que, como comandante do PTE do BENG 447 nos anos de 1969 e 1970, fui o responsável pelos transportes de e para o BENG.

De salientar que, durante estes dois anos, contei com todo o apoio do Comando do Batalhão, nomeadamente. Ten-Coronel Bernardino Pires Pombo, Major Diogo da Silva e Major/Ten-Coronel João António Lopes da Conceição (Foi por escolha de Spinola como Major e lá graduado em Ten-Coronel) e Major Santos Maia.

Fui em rendição individual em Dezembro de 1968 e saí em Janeiro de 1971, não tendo conhecido quer o meu antecessor quer o meu sucessor. Gostava de os conhecer e trocar impressões, embora não saiba sequer os seus nomes.

Encontrei no P.TE  uma “equipa” de dois Sargentos do quadro e quatro Furriéis milicianos. Bem como cerca de noventa condutores-auto, com cerca de metade guineenses e outra metade “continentais”. Todos aregaçavam as mangas e cumpriam as suas missões. Nunca deixarei de dar o mérito que merecem aos Condutores-Auto, nestes teatros de operações em que por vezes injustamente tendem a ser esquecidos.

Como já referi o P.TE recebia, conferia e transportava todo o material que se destinava ao BENG desembarcado dos navios mercantes, no cais novo, vindos do Continente, e conferia, transportava e expedia, no Pigiguiti, pelas LDM e LDG da Marinha, e por coluna auto, para a Guiné. De salientar a excelente cooperação com a Marinha.

Dito isto, cheguei, ao BENG,  aparecendo num jeep do QG que lá me levou, pois pedi boleia, casual,a um condutor que tinha ido a Bissalanca, e que me deixou á porta do QG com a mala, onde o oficial de dia após várias diligências lá descobriu o meu destino, pois quando aterrei em Bissalanca ninguém me esperava nem eu sabia qual a unidade do meu destino (nem o BENG de mim sabia). Aliás estive cerca de uma semana em Cabo Verde a aguardar avião militar, pois tinha ido para lá também de avião
militar de Angola.

Fui então recebido e colocado no PTE. Tendo então começado a aperceber-me e a tomar conta da situação, o que gradualmente, com o strees operacional de um periquito que era, fui organizando o modo de trabalhar, racionalizando o uso de recuros humanos e viaturas disponiveis para a exigência dos vários transportes a realizar, com a pressão acrescida da prioridade aos Reordenamentos dada pelo Comandante Chefe e necessidades das obras nas estradas e aquartelamentos.

Nos primeiros dias, e com os transportes em curso sem parar, solicitei a lista completa dos Homens adstritos ao Pelotão, mapeando a localização de todos os condutores-auto. (com um episódio caricato que já contei no blog). Solicitei a listagem completa de todas as viaturas existentes (de todos os tipos, desde Jeep, plataformas de Transporte de Máquinas Henschel, de carga Mercedes, autotanques, de transporte de pessoal, Unimogs,Volksvagen, Land Rover e outras, e até o monstro gigante de aço Continental que só o grande condutor Simão conduzia! 

Com a colaboração das Oficinas auto e Tenentes Geraldes e Garcia. (Com ele numa foto no blog). Conferi a distribuição das viaturas pelos condutores, que actualizei, quais as viaturas inoperacionais ou paradas por avaria, quais os condutores eventualmente sem viatura, ou no desempenho de outras funções. Isto foi feito em prazo “util”.

Depois a operacionalidade: Avaliação da distribuição das viaturas, sua redistribuição perante as necessidades, Tendo em atenção que poderiam ser insuficientes para o tranporte do cimento dos
navios, para o qual solicitávamos ao Quartel General o aluguer de viaturas civis para esse transporte sempre que se justificava. (frequentemente devido ás várias solicitações de transporte para as obras).

A redistribuição fez-se com sucesso, e a falta de viaturas passou a não se fazer muito notada. Para as obras e deslocações locais foram sempre encontradas soluções e para as descargas e transporte de cimento reduziu-se ao minimo estritamente necessário o uso de viaturas civis fornecidas pelo QG (que mesmo assim eram muitas). 

Felizmente o mais “complicado” foi a redistribuição dos Jeep, pois todos os ilustres capitães precisavam de transporte para acompanhamento de obras e deslocações várias. Mas com apenas alguns pequenos “atritos” lá se convenceram perder o Jeep exlusivo e a requisitar o Jeep quando fosse preciso. Só alguns não gostaram que um Alferes tivesse o “seu” Jeep sempre disponivel, dia e noite, mas, como era mesmo necessário que eu acompanhasse sempre os movimentos e operações nos cais e era eu que o conduzia, lá me foram aturando. Bem-hajam.

Aqui chegados, e começando pelos materiais a receber nos armazéns do porto, sabia que os volumes e caixotes de Engenharia vinham todos sinalizados com um circulo vermelho e preto, também me apercebi da falta de alguns que deveriam ter chegado e não os encontrávamos. E, de outros que esperavam por “papelada” para sair do porto e que demoravam dias parados nesses armazéns. Era impensável a falta e o atrazo.

Consegui que uma vez descarregados e estando no Armazém, com ou sem “papelada” fossem listados e imediatamente transportados para o BENG, eu próprio com os Furriéis milicianos nos encarregámos dessa tarefa. O que resultou e poucos mais se “perderam” nesse período. 

Depois o cimento ! Assitindo á primeiras descargas, (entre 60.000 e 100.000 sacos cada), fiquei estupefacto com o cimento de que perdia, pois ao ler os autos de recepção sancionados pelo QG e, os que eu tinha de conferir, davam uma quebra de cimento entre 5% e 10% conforme a descarga. (A quebra seria dos sacos que se romperiam durante a manipulação no navio, do navio para o cais, do cais para as viaturas e das viaturas para o depósito do BENG. )

10% ou mesmo 5% de quebra era uma montanha de cimento. Das duas três, ou ficava no porão do navio e voltava para o continente ou caía no cais, onde seria dificil circular,e iria parar á água e o navio encalhava.!!!

De notar que juntamente com o cimento “militar” também vinha cimento importado pelos grandes comerciantes civis, nos mesmos navios.

Com a minha cabeça a trabalhar, e andando permanentemente no meu Jeep durante as descargas, percorrendo Bissau e os trajetos para o Batalhão descobri “coisas” interessantes. Algumas vou contar: Razão das quebras reais; O manuseamento dos sacos de papel do cimento. No porão colocavam-se os sacos nas lingadas que eram descarregadas no cais, os sacos eram transportados para zona própria e aqui manuseadas para um empilhamento, sendo depois manuseados para carregar as viaturas.
Perdia-se mesmo muito cimento, mas 10% ???.

Primeira acção: Escala de serviço com a permanência nos cais, em todas as descargas e algumas cargas ,de um Furriel Miliciano e um condutor-auto com Jeep. Estes Furriéis Mil, por quase imposição minha, foram dispensados pelo Comandante de prestar serviços de sargento de dia e de prevenção do Batalhão enquanto as descargas ou cargas durassem. Como os movimentos eram práticamente continuos, alguns Furriéis Mil poucos serviços fizeram, o que deu algum “atrito” com os Sargentos do Quadro, mas sem hipóteses para estes, pois os resultados da acção começaram a ser evidentes.

As viaturas encostavam ao navio e as lingadas iam directamente para estas. Que grande diferença. E então o tempo poupado logo na carga das viaturas foi notório. Mesmo assim a quebra continuava grande e, a vinda do cimento ainda demorava, bom, como o calor era muito, nas minhas voltas encontrei viaturas civis, que trabalhavam á hora, encostadas a descansar á sombra em percursos alternativos. Também me chegou ás orelhas que algumas paravam para “conversar” nalgumas obras civis em curso. 

Como também havia descarga de cimento para firmas civis, por vezes simultaneamente, foi dificil perceber se essas viaturas eram dessas firmas ou nossas. (tendo acabado com uma dessas conversas, ainda um “sacana” da Pide que era empregado num restaurante local, me tentou demover com um falso facto por ele criado para me chantagear, mas teve azar e ficou bem caladinho depois). 

Acção: Mandei comprar cartolina amarela e recortámos castelos de Engenharia, com cerca de 40 cms de altura que colávamos no lado direito do parabrisas. Tiro certeiro, não mais as encontrei a descansar.

Acção: as viaturas eram registadas com a hora de saída do cais e registada a hora da sua entrada no Batalhão na porta de armas (o que nunca tinha sido feito antes).

Acção: Verifiquei também que era dificil ir acompanhando o volume da descarga, quanto tinha
sido desembarcado e quanto faltava, pois a quantidade de sacos variava por viatura,.

Acção: Cada viatura, independentemente da capacidade apenas transportava 100 sacos. (Aqui ainda me “chatearam” porque perdia capacidade de carga de algumas maiores).

Quando por necessidade e possibilidade utilizámos as plataformas estas só traziam 400 sacos. Assim o controle bastava ser por viatura e já não era preciso contar os sacos á chegada ao depósito.

Controlo total. Muitas horas de aluguer poupadas. Menos viaturas civis contratadas. As viaturas eram contratadas pelo QG mas havia uma muito interessante, que fazia sempre um bom serviço e era sempre contratada. ( De quem seria?, mas tudo legal, e não não era minha, um abraço para Tondela). Maior rapidez na descarga e recepção no depósito do Batalhão.

E, imprevisto: Os autos de recepção deixaram de mencionar quebras!

Mais ainda, O BENG 447 começou a ter mais cimento do que lhe era destinado ! Porquê?
Eis o segredo, com a devida vénia e, se algum dos intervenientes estiver a ver, as minhas desculpas.
Realmente ainda ficava bastante cimento no porão do navio dos sacos que se rompiam(e já não no cais devido á descarga direta).

Pedi, no que fui atendido, na carpintaria do Batalhão, que me fizessem umas caixas de madeira com 1 m3  de capacidade com 4 mosquetões na parte de cima aberta. E, no fim da descarga dos sacos, os “estivadores” enchiam, à pazada, as caixas que eram enviadas para o nosso depósito. Ora como as firmas civis que também importavam cimento não se podiam dar a esse luxo... Sem nossa intenção, o cimento dos sacos deles que se tinham rompido misturava-se com o nosso...

No fim de uma dessas maravilhosas descargas ainda tive a visita no Batalhão de um senhor importante do comércio local que me acusou de trazer cimento dele. Educadamente o acompanhei ao depósito onde lhe disse que todos os sacos com a sua marca que eventualmente encontrasse os poderia levar, assumindo eu a culpa de os ter indevidamnete trazido. É óbvio que não encontrou nenhum, o cimento a granel não tinha marca... E, já não muito educadamente, o acompanhei á saída do Batalhão.

Não posso esquecer como todos colocámos o grande espaço do PTE o seu parque de viaturas e suas instalações bem limpas e arranjadas, até com alguma sinalização!

Este poste já vai longo e, em breve, tentarei enviar outro a relatar mais episódios que agora relembrados possam ter algum interesse nostálgico após mais de 50 anos.

E, camaradas daqueles tempos no BENG 447, apareçam no próximo almoço, para trocarmos impressões sobre o que esrevi acima e mais que nos ainda lembramos. (***)
__________

Notas do editior:

(*) Vd. poste de 10 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23252: 18º aniversário do nosso blogue (14): até meados de 1971, o Serviço de Reordenamentos do BENG 447, com o apoio das unidades militares e as populações locais, construiram 8 mil casas cobertas a colmo e 3880 cobertas a zinco

(**) Vd. postes  de:

6 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23147: Convívios (922): XXXVII Encontro Nacional dos Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 - Brá/Bissau/Guiné, a ter lugar no dia 25 de Junho de 2022 na Tornada/Caldas da Rainha (Lima Ferreira, ex-Fur Mil)

(***) Último poste da série > 8 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22790: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte IX: Qual a razão da minha ida da RMA para o CTIG ? Duas histórias... A autorização, anual, passada pela PIDE para poder entrar a bordo dos navios no porto de Bissau, e o "motorista" protegido do capitão da Polícia Militar......

segunda-feira, 21 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23097: Notas de leitura (1430): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a um conjunto de súmulas referentes às intervenções de Amílcar Cabral num seminário de quadros que foi um facto importante na história do PAIGC. A Direção do Partido entendera chegar a hora de convocar os quadros mais antigos e mais novos, fazer notificar a história da luta armada, fazer o seu balanço, proceder a críticas, rever processos organizacionais, discutir a ideologia, a democracia revolucionária, traçar as perspetivas para a luta que esperava o Partido tanto na Guiné como em Cabo Verde. É um documento único, várias centenas de páginas em que o líder de forma esquematizada fala com todos os seus quadros e responde às suas questões. Como nota curiosa, observe-se que os livros que hoje se podem comprar de Amílcar Cabral em alfarrabistas são coletâneas de discursos e documentos avulsos, neste livro está a prova comprovada da organização mental de Amílcar Cabral, da sua lucidez, o peso das suas convicções. Dou este livro como obra de leitura obrigatória para quem quer aprofundar o papel de Cabral na vida do PAIGC.

Um abraço do
Mário



Um guia prático para conhecer o pensamento do revolucionário Amílcar Cabral (5/5)

Beja Santos

A obra intitula-se “Pensar para Melhor Agir”, comporta o teor integral das intervenções de Amílcar Cabral no Seminário de Quadros do PAIGC, que se realizou em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969. A edição é da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014, e tem organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins. De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. As intervenções do líder do PAIGC foram revistas a partir das bobinas que então recolheram integralmente a sua comunicação, mais uma razão para encarar este trabalho como uma boa oportunidade de revisitar a essência do seu pensamento.

Amílcar Cabral manterá sempre uma narrativa ambígua sobre o que entende por socialismo, a luta anti-imperialista, o quadro fixo dos seus aliados. Reconheça-se no entanto que sempre exprimiu a vontade de que o partido-Estado contemplasse as suas obrigações de solidariedade com as outras colónias portuguesas e neste seminário, em que fala do futuro, lembra aos quadros do PAIGC que há que estreitar as alianças no continente africano. Falando das forças armadas, volta à tónica da crítica, aqui não há ambiguidades: 

“Não devemos esquecer que há erros, faltas e atrasos nas nossas Forças Armadas: muitas emboscadas mal feitas, muito atraso em chegar ao ponto onde se deve chegar, muita falta de vigilância nos rios, apesar de terem boas armas nas mãos para atirar contra os barcos, falta de coragem para atirar contra os aviões, apesar de sabermos que quantos mais tiros der contra os aviões mais medo têm os aviadores. Não temos feito reconhecimento como deve ser, antes dos ataques. O resultado é que muitas vezes vamos fazer ataques e caímos nas minas. Não temos sabido fazer planos corretos, na prática concreta de um ataque, porque o dirigente pode fazer um plano geral para um ataque, mas na situação real de colocar os homens no terreno, no momento do ataque, alguns comandantes não o têm sabido fazer. Devemos, por exemplo, reconhecer que, até hoje, só em dois ataques a quartéis inimigos é que prendemos tugas, em Catancunda e em Bissássema. Ora isso é muito pouco com tantos ataques a quartéis”

E desvia o raciocínio para as melhorias que são necessárias introduzir na logística, e volta a falar em erros: 

“Há pouco tempo, por causa de um erro do nosso camarada José da Silva, na frente norte, mas erro também de todos os camaradas que lá estavam, os tugas apanharam-nos uma quantidade importante de material. O José da Silva e outros cometeram erros tão grandes que os tugas vieram apanhar esse material e talvez tenha havido conluio entre eles. Não podemos permitir que, com tanta canseira para levar material de guerra da fronteira para o norte da nossa terra, venham os tugas apanhar material em Faquina, Biambi, Bula, no chão dos Manjacos, etc. Isso não pode ser”.

 As observações seguintes são sobre a disciplina, o trabalho político nos centros urbanos, insiste que as forças armadas devem dar golpes mais duros e decisivos aos colonialistas.

Agora a conversa muda de azimute, é preciso elevar a consciência política dos estudantes do Partido, levanta a questão delicada de relações familiares com elementos de outros países e não se escusa a afrontar a questão dos quadros técnicos ao nível da meritocracia: 

“Numa terra pobre como a Guiné e Cabo Verde, os quadros técnicos, científicos, etc., por mais que não queiramos, vão viver melhor que a maioria do povo em geral, porque não é possível que um doutor de leis faça devidamente o seu trabalho morando numa palhota cheia de mosquitos, com lama no chão, etc. Não faz sentido um arquiteto, um engenheiro, um médico, ou mesmo um especialista de mecânica ou eletricidade ter, de manhã, de encher a boca de água para borrifar o chão da sua palhota para este ficar duro, como faz normalmente o nosso povo. Queiramos ou não, no começo da nossa vida, os quadros que se estão a formar vão ter algumas vantagens em relação ao povo em geral”.

Finda esta sucessão de intervenções que se prolongaram de 19 a 24 de novembro, o último dia foi reservado a debate e a conclusões. Como seria de prever, Cabral respondeu a questões muito dispersas como a situação da luta na região de Nhacra e nos centros urbanos, focou a situação dos camponeses na Guiné e em Cabo Verde, procurou clarificar o que era uma direção coletiva e o centralismo democrático, como se estava a processar a justiça militar e como funciona a democracia revolucionária; puseram-se questões como o uso de algemas, o tratamento a dar aos ladrões de vacas, o abastecimento dos internatos, como agir se os colonialistas vierem a dar independência à Guiné sem Cabo Verde, como responderá o PAIGC. Aqui é categórico: 

“Não paramos enquanto não libertarmos os dois. Isto tem de ser, esse é o nosso caminho e o nosso juramento. Podemos usar todas as táticas que quisermos com o inimigo, mas não deixemos o inimigo desviar-nos para questões que nos lança apenas como diversão, para afastar a nossa atenção das coisas importantes. Importante é o seguinte: lutar cada dia com mais força na Guiné, com mais tiros contra a tropa tuga; em Cabo Verde, fazer o máximo para o mais depressa possível começarmos a dar tiros. Entretanto, faça-se barulho político por todo o lado, mesmo que vá muita gente para a prisão”.

Não se escusa de abordar questões delicadas como a posição do PAIGC face às declarações de Rafael Barbosa, desvia a conversa para a assistência sanitária à população e ao funcionamento dos tribunais populares, como receber as populações que vêm às áreas libertadas, como e porque se deve fazer a cobrança de impostos, o que constitui a crítica e a autocrítica e alertou os presentes para os falsos amigos e as infiltrações, exemplificando: 

“Há camaradas da segurança do Partido que passam a vida com um indivíduo de origem libanesa que reside em Zinguinchor. Os camaradas apresentaram-me esse libanês como sendo um grande amigo do Partido. Cheguei a realizar uma reunião em Zinguinchor com os camaradas e convidei-o a sentar-se ao meu lado, acreditando que era um amigo do Partido. Pois, certo dia, agentes nossos informaram-nos de que o tal libanês trabalhava para os portugueses e alertei o Luís Cabral. O Luís nunca o visitou, mas havia elementos da nossa segurança que passavam a vida em casa dele. Certo dia, fomos informados da chegada de uma pessoa com correspondência da PIDE para esse libanês. Como não o podíamos deter no Senegal, os nossos camaradas fizeram um bom trabalho, combinando com a polícia para parar e revistar o carro. Mandaram parar o automóvel, revistaram o passageiro e encontraram a correspondência destinada ao libanês, provando que ele é, efetivamente, um agente dos colonialistas”.

Nas conclusões, ele recorda: 

“Elogiei a nossa luta como jamais alguém poderá elogiá-la, mostrei as nossas vitórias com a maior clareza possível, as vantagens, a coragem da nossa gente. Mas também vos falei com toda a franqueza das nossas misérias, das muitas sujidades que ainda temos no nosso seio e temos de limpar depressa, se queremos de facto estar à altura do nosso valor”

E despede-se assim: 

“Durante seis dias, como vosso dirigente, trabalhei, cumpri o meu dever como tenho cumprido chefiando a luta no plano militar, no plano político e em todos os planos. Estas são as minhas palavras, com um grande agradecimento pelo triunfo que representou este nosso seminário. Tenho a certeza de que, se cada filho da nossa terra, homem ou mulher, mantiver esse interesse em saber sempre mais e em pôr em prática, concretamente, aquilo que sabe, nada nos pode parar no caminho certo da vitória na nossa luta, no caminho do progresso, da paz e da felicidade da nossa gente”.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23089: Notas de leitura (1429): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (4) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22951: Antologia (83): O Cativeiro dos Bichos, conto de Artur Augusto Silva (Cabo Verde, 1912 - Guiné-Bissau, 1983), escrito na Prisão de Caxias, em 1966, e que era uma fabulosa fábula que tinha também uma contundente crítica, implícita, à hipócrita política colonial do Governo Português da época


Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko (já falecido) e Carlos (1949-2014). Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anos... Esta casa será durante alguns anos, até à morte do Pepito, a sede da Tabanca de São Martinho do Porto...

Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos  (edição de autor, Bissau, 2006 ).  Na realidade, tratou-se de uma edição dos três filhos do autor (Henrique, João e Carlos Schwarz, em homenagem à memória, ao talento e ao exmplo cívico do seu pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), que viveu na Guiné-Bissau, de 1949 a 1966, e depois, de 1976 até à data da sua morte.
 

1. Porque muitos dos nossos leitores mais recentes, nunca ouviram falar sequer do seu nome, aqui vai um pequeno apontamento biográfico sobre o autor deste livro de contos, Artur Augusto Silva (1912-1983) (, que tem 32 referências no nosso blogue). 

Para quem quiser ter uma informação mais detalhada e contextualizada, ver aqui a sua biografia, profusamente ilustrada, da autoria do seu filho João Schwarz da Silva, na sua página, Des Gents Intéressants" (em francês e em português).

Artur Augusto Silva


(i) Nasceu a 14 de Outubro de 1912, em Cabo Verde, na Ilha da Brava, "a ilha dos poetas, das flores e das mulheres bonitas", a ilha que foi também po berço do grande poeta Eugénio Tavares (1867-1930);

(ii) ainda estudante, foi director da revista Momento, revista que pretendia ser a réplica lisboeta da Presença, de Coimbra, e onde se propunha abrir uma Tribuna Livre com outros jovens escritores e intelectuais, "em que livremente se discutisse e todos pudessem falar";

(iii) na Metrópole (como então se dizia), "publicou vários artigos, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal";

(iv) licenciou-se em Direito em 1938, pela Universidade de Lisboa;

(v) em 1939, partiu para Angola onde trabalhou como Secretário do Governador Geral;

(vi) de 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós, na região da Estremadura: dessa experiência, humana e profissional, colheu o autor matéria-prima para alguns dos seus contos, publicados no livro "O Cativeiro dos Bichos", como o Zé Faneca, pescador da Nazaré;

(vii) em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República;

(viii) foi também Membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com António Carneiro mas também com  Amílcar Cabral (de quem era grande amigo e com quem viajou várias vezes);

(ix) participou, em 1949, na criação do Colégio-Liceu de Bissau, onde a sua esposa, dra. Clara Schwarz da Silva, foi professora;

(x) visitou vários países africanos, recolhendo elementos que mais tarde lhe serviriam para escrever, entre outros livros, Os Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas, tendo-se tornado um especialista em direito consuetudinário;

(xi) cidadão empenhado, africano nacionalista, jurista corajoso, fez questão de defender presos políticos guineenses, muitos deles seus amigos "ou que passaram a sê-lo, acusados de sedição pela potência colonial"; mais concretamente, "foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações";

(xii) em 26 de agosto de 1966,  foi preso pela PIDE, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, situção violenta e arbitrária que ele recordará sempre  "com dor e revolta";

(xiii) esteve preso em Caxias, durante 4 meses, sem culpa formada;

(xiii) em 23 de dezembro de 1966, "por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que embora discordassem das suas ideias políticas o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa";

(xiv) em 1967, "Marcelo Caetano, convidou-o para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convidou para leccionar no Instituto de Ciências Ultramarinas, o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com Africa".

(xv) em 1976, de visita à nova República da Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça;

(xvi) foi professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau;

(xvii) faleceu em Bissau, a 11 de Julho de 1983, com 70 anos.


2. Em homenagem ao autor, à sua esposa, Clara Schwarz (1915-2016) (que foi durante anos a decana da Tabanca Grande), e aos filhos de ambos,  Iko, já falecido, João Schwarz da Silva (que vive em Paris, e é também nosso grã-tabanqueiro) e  Carlos Schwarz da Silva, Bissau, 1949 - Lisboa, 2012), o nosso querido e saudoso Pepito (cofundador e histórico líder da AD - Acção para o Desenvolvimento), republicamos aquele que é um dos contos que mais gostamos deste livro de contos, e que deu o título à obra, "o Cativeiro dos Bichos" (pp. 57/63).

Trata-se uma fabulosa fábula (, se nos é permitido  o pleonasmo) do tempo em que os animais falavam, e que, escrito em 1966, na Prisão de Caxias, tinha também uma contundente crítica,  implícita,   ao sistema colonial, à sua política e à sua justiça; recorde-se que na época era governador (e comandante-chefe) da Guiné o General Arnaldo Schulz, o mesmo que o expulsou da sua tão amada terra de adopção,  e que o mandou prender, à chegada a Lisboa, através do longo braço armado da PIDE, e que se depois se opôs ao seu regresso à Guiné: em ofício da subedelegação da PIDE de Bissau, de 19/12/1966, é transmitida ao Diretor-Geral da PIDE a opinião do Governador de que "aquele Senhor não deve voltar à Guiné, pelo menos enquanto se mantiver o terrorismo" (sic).

A propósito das "fábulas guineenses", veja-se também a série que temos estado a reproduzir, a partir do livro  "Lendas e contos da Guiné-Bissau", da autoria de J. Carlos M. Fortunato ("Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.],  s/l, Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017,  102 pp,  ISBN 978-989-8661-68-5 (*`*)

Recorde-se que na cultura dos mais diversos povos as fábulas  (, contos populares,) são também uma forma, indireta, de denunciar e criticar  os abusos do poder dos mais fortes.   Muitas delas, incluindo as  fábulas guineenses,  encerram lições segundo  as quais os animais mais fortes, como o leão ou o "lobo" (hiena), podem ser  vencidos pela "audácia", "coragem",  "inteligência" e "cooperação" dos mais fracos. 



O Cativeiro dos Bichos (pp. 57-63)

por Artur Augusto Silva  (*)


A história que ides ler foi-me contada na tabanca de Quebo, no sertão da terra dos fulas, por um homem chamado Umarú Só, velho para além de toda a idade e que por ser velho e sábio conhecia os segredos do mundo e as suas maravilhas.

Vou narrá-la por palavras minhas, porque sei que não me perdoariam o uso daquele estilo floreado, exuberante, por vezes difuso mas sempre poético que os fulas usam para contar uma história.

Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.

Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair !

As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se raínha das aves, logo engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.

Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora praticada sobre um ser vivente.

Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares, 
desde a águia-real, de peito branco e palavra e bico adunco, até ao colibri que é mais pequeno que a pequena flor. Vieram os papagaios vestidos de cinzento e peitilho vermelho, vieram todos os patos, desde o marreco ao ferrão, vieram as galinhas, incluindo as perdizes e as galinhas da Guiné todas louçãs na sua vestimenta preta de bolas brancas, vieram os mergulhões de longo bico plumagem verde, azul, preta e branca, veio toda a casta de pardalada que enxameia os céus, vieram as abetardas no seu voo lento e majestoso e, por fim, chegaram as borboletas no seu voo saltitante e colorido.

Reunidos todos, a garça Macute declarou que era necessário escolher um presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.

A águia-real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.

Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:
– Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que elas não são aves. Com efeito, desde que que o mundo é mundo, não há notícia de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.

Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um certo burburinho, prontamente reprimido pelo presidente que declarou ir pôr po caso à votação.

A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:
– O problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão. Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre os bichos que andam e não entre os que voam.

Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora foi decidido que as avestruzes não eram aves, mas sim bichos que andam.

Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião, e Macute começou:
– As aves são neste mundo em que vivemos, os animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a todos os bichos que andam.

Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.

Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que mostras de grande contentamento e ainda disse:
– O que vocês querem é que haja guerra para poderem comer a carne dos que morrem.

Logo o jagudi, gritando traidor, deu-lhe uma sapatada em três tempos o engoliu.
- Calma! Calma! - gritava a águia-real, receosa de não ter mão na assembleia.

Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois, uma comissão de inquérito.

O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o comportamento dos bichos que andavam para com os bichos que voam demosntrava crueldade e propôs que o caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que possui discernimento mais do que suficiente para resolver o conflito.

As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem. Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem, dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.

O papagaio, como falador de grandes conhecimentos, presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho homem para fazer as suas lamúrias.

Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.

A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça surgira um plano.

Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante.

Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia parte o seu melhor conselheiro, o macaco.

Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento do bicho homem que tudo sabe.
– Na verdade, na verdade – retorquiu o homem. 
– Mas há uma queixa e é necessário saber quem tem razão. Parece-me que seria melhor que os bichos que andam nomeassem um delegado e os que voam, outro, para trazerem a minha presença, as alegações de cada parte e as provas a produzir...

Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias e se realizaria o julgamento do caso.

Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a grande assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um e a esquerda a outro, propõs que o representantre de cada parte ocupasse a direita durante meia hora e que a primeira posição fosse tirada à sorte.

Constituído o Tribunal, entraram o macaco como advogado, dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e cinco testemunhas.

Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua justiça.

Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza, citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens, o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam. 

Empertigou-se o macaco, abriu os braços como já vira em comícios do bicho homem e analisou, um por um, os argumentos do papagaio e a sua queixa. Falou no amor, na justiça piedade, em todos os sentimentos nobres e a tal ponto comoveu a bicharada que voa, fez chorar um pardal estouvado e brincalhão como todos os pardais.

Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam nada saber do assunto.

Concedida novamente a palavra aos advogados, estes excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram chorar a assembleia e, logo a seguir fizeram-na rir desabridamente e foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara intuição científica, classificou o homem de seu primo. O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos menores detalhes, comentou em à parte: primo, mas degenerado.

Depois desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é ponto assente a existência de tal parentesco.

O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça de considerandos e que começava por afirmar que "em virtude de se não ter provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça, profiro a seguinte sentença: Julgo a acusação improcedente mas, tendo em atençao que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e para poder reservá-la, determino que me sejam entregues como reféns e para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam que andam".

Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta pobreza das partes.

Todos animais, tanto os que voam como os que andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que "começara a escravatura".

Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso (recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados por sua indústria.

A verdade é que com o correr dos anos as palavras do macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais apetite.

Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada, mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha justiça proverbial.

É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção social que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para, então, lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.

Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa.

(Prisão de Caxias, 1966) (***)

 [Revisão / fixação de texto, incluindo negritos,  para efeitos de publicação deste poste: LG, com a devida vénia ]



Arbitrariamente detido pelo PIDE em 26 de agosto de 1966, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, acusado de "exercer actividades contra a segurança do Estado" (sic),  esteve preso em Caxias 4 meses, sem culpa fomada. Foi solto em 26 de dezembro, sem julgamento, por ordem do subdiretor da PIDE, José Barreto Sacchetti.  Repare-se no primeiro documento acima, a assinatura, perfeitamente legível, do agente da PIDE que deteve o advogado Artur Augusto Silva: Benedito Pereira André (que em 1974 era chefe de brigada; terá morrido recentemente, aos 89 anos).


___________

Notas do edtor:

(*) Vd. poste de 20 de maio de  2006 > Guiné 63/74 - P775: Antologia (38): O cativeiro dos bichos de Artur Augusto Silva (Luís Graça)


quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22790: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte IX: Qual a razão da minha ida da RMA para o CTIG ? Duas histórias... A autorização, anual, passada pela PIDE para poder entrar a bordo dos navios no porto de Bissau, e o "motorista" protegido do capitão da Polícia Militar......



Autorização, com data de Bissau, 2 de dezembro de 1969, dada pela PIDE - Polícia Internacional e de Defesa do Estado, ao alf mil João José Lourenço Rodrigues Lobo,  para poder entrar "a bordo de paquetes e navios de carga, nacinais e estrangeiros, fora das horas de embarque e desembarque de passageiros".


Fotos (e legenda): © João Rodrigues Lobo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de João Rodrigues Lobo


 [ (i) ex-alf mil, cmdt Pelotão de Transportes Especiais / BENG 447 (Bissau, Brá, dez1967/fev1971); 

(ii) fez o 1º COM, no último trimestre de 1967, em Angola, na EAMA, Nova Lisboa, Angola, onde viveu na sua juventude;  

(iii) natural de Óbidos, vive em Torres Vedras onde trabalhou durante mais de 3 décadas como chefe dos serviços de aprovisionamento do respetivo hospital distrital; 

(iv) é membro nº 841 da Tabanca Grande.]
 

Data - Segunda, 1/11, 15:14
Assunto - Apontamentos da "tropa"



Boa tarde,
Caro Luis e demais editores do Blog,

Cá vai mais uma achega da minha passagem pelo Exército Português:

Tenho lido alguns comentários e outras publicações no Blog com algumas interrogações,
assim talvez ajude a esclarecer ou a complicar mais. E após mais de 50 anos não devem ser segredos militares nem tabus.

Para a razão da minha ida da RMA (Região Militar deAngola) para o CTIG (Guiné) foi-me dito: "intercâmbio entre Províncias Ultramarinas". Aceitei a "informação" verbal. 
Mas teria sido só? 

Especulando bastante quando se não percebe bem a razão apontada:

(i) Podia eu ter sido colega de "turras" que andaram comigo no Liceu Nacional Salvador Correia. (aliás como o Luís dá a entender num seu comentário).( Pura especulação). Mas realmente desse tempo tenho uma recordação que me foi dada por um colega. (imagem anexa,  à esquerda, um pin do MPLA) .

(ii) Fui em rendição individual para render um camarada da Metrópole que não cheguei a conhecer e, no fim da comissão, fui rendido por um camarada da metrópole que também não cheguei a conhecer. Como já li em vários comentários no blog, teria sido porque, àquela data, estaria o filho de alguém "importante" em vias de ir e se baldou com alguma cunha? (Pura especulação). 
A seguir, e no final, um "pequeno" episódio...

(iii) Teria o meu trabalho no QGA da RMA " colidido" com os interesses económicos de "alguém" pois no pouco tempo que lá estive, além de ir comandar MVL , era eu o responsável por controlar todos os quilómetros, horas e facturas de todas as viatura civis contratadas para transportes militares (centenas) e, tendo arranjado métodos de conferência que teriam poupado bastante aos cofres do Exército? E os camionistas andavam fulos comigo? (Pura especulação).

(iv) Teria algum elemento da PIDE/DGS, por motivos pessoais, ou outros, tido alguma influência ? (Pura especulação).

A PIDE metia-se em tudo e, na Guiné, para ir a bordo dos navios onde, como alferes, ia receber toda a carga e materiais para o BENG , tive que, mesmo assim, ser entrevistado e de me passarem o cartão, anual (o de 1968 tive de entregar) na recordação em anexo (1969), senão pasme-se, era preso !!!

(v) Ainda penso noutras possíveis especulações ou num conjunto de várias acima. Lanço o repto aos camaradas que me estão a ler para fazerem os seus comentários. Só se passaram 53 anos, talvez se recordem de outros possíveis motivos ...
.
A propósito do ponto 2 acima tenho um "episódio" que me parece irreal e se passou comigo. Sem inventar. 

Uma das minhas primeiras "acções" quando me colocaram a Comandar o PTE - Pelotão de Trabsportes Especiais, do BENG 447,  foi pedir ao Comando uma lista exaustiva e completa das viaturas e homens que pertenciam ao PTE  e em que trabalhos estariam deslocados.

 Eramos muitos. Após a conferência, o incrível, faltava um soldado condutor auto rodas que "ninguém" sabia onde estava, mas diziam estar em Bissau (tendo um Mercedes próprio no qual se deslocava). Mandei recados, sem levantar ainda quaisquer problemas, dando-lhe 3 dias para se apresentar no PTE e no Batalhão. 

O recado chegou ao destino e, um dia depois, fui convidado a ir a uma residência na cidade para ir jantar com um oficial da PM. Mesmo estranhando e sem saber porque cargas de água me tinha sido feito o convite, resolvi aceitar e fui.

Era um jantar a 3 onde estava o soldado "desaparecido" e onde me tentaram convencer em não levantar ondas pois ele nunca se iria apresentar no Batalhão. Foi uma "conversa" muito interessante e insinuante. Não cedi e mantive o prazo dado. 

Ao sair, disseram-me que ele não se iria apresentar, ao que eu respondi que iria fazer a respectiva participação ao comando do BENG e logo se veria. E, não é que ele não se apresentou e, foi logo "evacuado" para a metrópole ! 

Ainda me lembro do seu apelido, embora com a dúvida se a segunda letra do apelido é um E ou um A. Era realmente de uma família muito "importante".

Se eu ainda aqui estou, poderá ser muito provável, ou não, que os outros 2 intervenientes, que devem ser da mesma idade que eu, se lerem o Blog, se recordem e digam fui eu, ou alguém os conheça. Seria interessante, e só passaram 52 anos...

Abraço, João
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 31 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22675: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte VIII: O meu percurso militar (II): Depois da RMA, o CTIG: ao todo, 3 anos e 4 meses ao serviço da tropa

domingo, 10 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22617: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte IV: Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965):


Capa da edição original da "Praça da Canção", de Manuel Alegre (Coimbra, Vértice, 1965, 143 pp., Col. Cancioneiro) que o Cristóvão de Aguiar ainda foi a tempo de adquirir e ler na véspera de Natal, passado em Coimbra, quando já era aspirante miliciano no RI 15, em Tomar. O livro de poemas, que marcou a estreia literária de ;Manuel Alegria, foi de imediato apreendido e proibido pela PIDE. Imagem: cortesia de Manuseado


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada terça feira, dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote. 

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).

Citado pela agência Lusa, no passado dia 5,  o presidente do Governo Regional dos Açores, José Manuel Bolieiro, lamentou a morte do escritor açoriano,, dizendo que "a literatura portuguesa, a lusofonia e sobretudo os Açores perdem muito hoje com o seu falecimento".



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar

(Continuação)

 
Julho, 13, 1964 - Como os instrutores nunca ministraram um curso tão comprido, não sabem que mais hão-de dar.

Andamos a re­petir o que fizemos na re­cruta. Aplicação militar, ordem unida, crosses, obstáculos, rastejar, percursos fan­tas­mas, in­s­trução nocturna, o raio.

A grande novidade é darem os instruen­dos al­gumas aulas de ginástica para irem treinando as vozes de co­mando. Hoje coube-me a mim dar a minha, na parada. O meu vozeirão chegou ao convento. Al­guns amanu­enses vieram às janelas para ver o que estava acon­te­cendo. No final da aula, o comandante de pelo­tão chamou-me e disse-me que tinha uma voz invejável. Prometeu-me que me da­ria uma boa classi­fica­ção nessa alínea.

Julho, 18 - O que são as coisas! Nunca gostei de melão

Quando estava na Ilha 
[, de São Miguel, ], nem o cheiro dele podia suportar. Meu Avô Anselmo (que hoje faria anos se fosse vivo) bem que in­sistia co­migo para que experimentasse. Dizia-me que devia começar pela meloa, que era me­nos cus­toso. Qual quê! Dava-me vontade de lançar tudo quanto tinha e não tinha no estô­mago. 

Aqui, no refeitório da unidade, têm dado todos os dias me­lão à sobre­mesa. Ao princípio, e julgando que não insistissem muito, dava a minha parte ao camarada que se sentava ao pé de mim. Ficava sem so­bremesa, o que me deixava um buraquinho no estômago. E pus-me a pensar na minha fobia. Até que hoje re­solvi experimentar. Que tivesse o meu camarada de armas santa paciência. Provei a medo. E gostei tanto, que, em meia tarde, quando saí do quartel, fui com outros comprar melões a um lugar de fruta. Fo­mos depois comê-los para o quintal de uma tasca. Foi um fartote. E ve­nham-me cá dizer que na tropa não se aprende nada!

Agosto, 28 - Terminei o meu primeiro curso.

Amanhã é a entrega das armas e ala bote para Coimbra passar umas férias até ser colocado numa Unidade para dar instrução. Durante este longo curso apanhei chuva, árvores em flor, sol de estorricar os miolos, Agosto sem cheiro sequer a mar.

Sofrimento, suor, medo, espe­ranças logo abortadas. E com umas seguras noções de como se engraxa o calçado, e se muda de farda várias vezes ao dia, e alguns conhecimentos sobre a Pátria, virtudes militares, granadas, inimigo, armas automáticas – obtive a minha carta de curso...

No fim, os homens que entraram já não eram os mesmos. Nas conversas, em casa, no café com os camaradas, saía-nos da boca uma virtude militar com o mesmo à vontade com que toda a gente se peidava na caserna. Esta foi para alguns mais aplicados, ou com o cérebro mais bem lavado, um verdadeiro campo de treino, depois da instrução do dia: passos à frente e à retaguarda, meia volta volver, continências como mandam as re­gras, vozes de comando...

Terminou hoje a primeira fase da escola de virtudes. Bebe­deiras de fictícia alegria, com a tristeza ferindo, subtil, certos gestos e sentidos, ga­lões ensopados em whisky, como manda a praxe militar... E fica a EPI de Mafra, a casa-mãe da Infantaria (Entrada para o Inferno), aguardando, na sua adiposa arquitec­tura conventual, mais magotes de jovens cadetes para tentar fa­zer deles máquinas com o pensamento estrangulado no fundo opaco do crânio. Mas muitos resistem e conti­nuam sendo jovens, embora tristes e abstractos.

Agosto, 29 - Fui promovido a aspirante a ofi­cial mil­i­ciano (isto é, trouxe os galões comigo e enfiei-os, já fora de Mafra, nas platinas do dól­men), mas já sei que fui colocado no Regimento de Infantaria 15, em Tomar.

Te­nho de me apre­sen­tar em meados de Setembro, numa segunda-feira, e só então po­derei usar os ga­lões, mas hoje quis entrar em Coimbra já promovido e de facto apa­nhei algumas conti­nências pela rua. Tinha pedido para ir para o Batalhão Inde­pen­dente 18, acanto­nado na freguesia dos Arrifes, na Ilha. Não calhou.

Talvez por­que vou ser mobili­zado muito em breve. Até à minha apresenta­ção em Tomar, vou go­zar umas fé­rias nesta Coimbra de­serta. Na República não há quase nin­guém. Al­guns de férias, nas Ilhas, outros já na guerra, como o José Bretão e o Viri­ato Ma­deira, ambos na Guiné e ou­tros como eu, quase a partir. O calor é muito. De dia não se pode sair de casa. À noite, dou grandes passeios pela fresca, jun­tamente com um rapaz da Terceira, o Helder Gomes, que está a preparar-se para o exame de aptidão à Uni­versidade. É interessante conver­sar com ele. Noto que me tem muito respeito, não sei se por ser oficial do exército, se por ser terceiranista da Universi­dade e ele simples para­quedista, isto é, nem bicho nem ca­loiro, segundo a praxe académica.

Tomar, Setembro, 14 - Apresentei-me ao coman­dante da uni­dade.


Den­tro de dias, vou principiar a dar uma recruta em substituição de um aspi­rante, perten­cente a um Batalhão de Caçadores com des­tino a An­gola, que se encontra de baixa. O comandante desse contingente, um tenente-coronel muito aprumado e de pinguelim, tem um ar de lunático e parece de uma tropa de outro tempo.

Encontrei dois açoria­nos na unidade. O capitão Moniz e um cabo mil­ici­ano, o Pedro Jácome Correia. Três ilho­tas neste mar de terra e oliveiras. Não há ainda instalações para oficiais no quartel novo, que ainda se não acabou de construir. E no velho estão já lotadas. Tive de ar­rendar um quarto, que fica na rua da sinagoga.

Setembro, 30 - O comandante do regimento mandou-me cha­mar ao gabi­nete.

Fiquei assustado. Depois de lhe ter pedido licença para en­trar, ele, depois de desfazer a continência, disse-me com bons modo:
- Soube que o nosso aspi­rante acamarada com um cabo mili­ciano e até se tratam por tu; quero infor­má-lo que tal atitude é contra o Regulamento Militar.

Nem justificando-me que se tratava de um con­ter­râ­neo e colega de Liceu, o homem se demoveu. Vem no regu­la­mento!

Dezembro, 15 - A minha companhia tem o número oito­cen­tos e destina-se a Cabo Verde, Ilha do Sal.

Acho que é muita sorte para um homem só.

Coimbra, Dezembro, 22 - Cheguei de Tomar em meia tarde, ainda a tempo de comprar a "Praça da Canção", que saiu ontem ou anteontem, mas que já os­ten­ta, na capa, a data de 1965.

Foi o Antero Dias quem me deu a novidade. Fui com ele jantar ao Texas da baixinha e a seguir viemos para a República, onde es­tive até al­tas horas a ouvi-lo ler em voz alta o livro do Manuel Alegre do primeiro ao úl­timo verso. Ele declama tão bem e com tamanha força expres­siva, que fiquei arre­piado por dentro e por fora. Como não houvesse mais poe­mas, principiámos de novo.

Ficámos com a sensação de que nos encontráva­mos perante uma poesia tão diferente daquela que estávamos habitua­dos, revolucionária e lírica ao mesmo tempo, com uma lingua­gem poética tão encan­tatória, que nos encheu o íntimo não sei de que energia e entu­siasmo. Dava vontade de sair por aí tocando os sinos que cada homem tem no cora­ção. É livro para ser proibido pela PIDE. Felizmente, está a edição prestes a esgo­tar-se, se­gundo me disse o livreiro. É natural que os esbirros não cheguem a tempo.

Coimbra, Dezembro, 24 - Natal passado com a família cor­sária, com vinho abundante para afogar não sei que saudade im­pertinente.

Não consigo arrancá-la do pensamento. E nestes dias lem­brados ainda pior. Não sei que nome hei-de dar a este ardume que me corrói as vísceras como um ácido forte. Não, não quero sequer pensar que seja o que neste instante estou pen­sando!

1965

Hospital Militar de Coimbra, Fevereiro, 26, 1965 - Dei entrada de urgência neste hospital.

Apendicite aguda. Fui operado ontem de manhã. Anestesia só da cin­tura para baixo. Dei conta de tudo. Depois de uma aula de aplicação mili­tar, em que pus o meu pelotão de língua de fora e completamente enlameado, como eu, que era sempre o primeiro a demonstrar o que queria que os homens fizessem, sobre­veio-me o castigo, dores de barriga insuportáveis. Vim de am­bulância de Tomar para Coimbra e aqui estou numa cama de hospital. Há pouco veio-me ver o Antero Dias.

Março, 4 - Cabo enfermeiro

Como não me permitiram que saísse do hospi­tal para ir dar uma volta, chamei o cabo enfermeiro, dei-lhe uma nota de vinte escudos e disse-lhe que ia guindar o muro das traseiras. Nem esperei pela reacção dele. No fim e ao cabo, era ou não era seu superior hierárquico? E, com a breca, a ginástica de apli­ca­ção militar sempre havia de servir para alguma coisa de préstimo.

Abril, 6 - Afinal, a minha companhia vai para a Guiné.

O co­man­dante recebeu hoje um rádio urgente a anunciar a mu­dança. Olhámos uns para os ou­tros como condenados à morte. Só o capitão é que aparentemente se não des­caiu. É a vida que escolheu. E eu que já tinha comprado sabonetes es­peci­ais para a água salo­bra da Ilha do Sal!

(Continua)
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Nota dos editores VB/LG:

(*) Vd. postes anteriores:

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22444: Notas de leitura (1369): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,

A dissertação de doutoramento de Ângela Benoliel Coutinho visou colmatar conhecidas e reconhecidas lacunas sobre os dirigentes do PAIGC: extração, profissões, famílias, aferir diferenças entre a primeira e a segunda geração de combatentes. A autora não esconde um móbil principal que é procurar desfazer o que ela chama um mito da hegemonia cabo-verdiana no PAIGC. Como se verá, bem procura mas não alcança. A História tem destas vicissitudes que é comprovar a veracidade dos factos pelos comportamentos políticos posteriores. 

Os combatentes guineenses tinham duas razões de tomo para desconfiarem da sigla da unidade Guiné Cabo-Verde: tiveram séculos de patrões cabo-verdianos e não gostaram; e foram fundamentalmente dirigidos até 1980 de acordo com uma lógica que davam por inaceitável. Trabalho com bastantes méritos, mas surpreende como é que se edita a seco uma tese defendida em 2005 quando, no entretanto, surgiu muita outra documentação de elevada pertinência. Não teria sido útil publicar a tese de 2005 com comentários a investigações posteriores que trouxeram, iniludivelmente, apreciações distintas à que a autora defendeu, então?

Um abraço do
Mário



Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura,
por Ângela Benoliel Coutinho (1)


Beja Santos

Este livro resulta da tese de doutoramento em História da África Negra Contemporânea, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne. A sua tradução para português, nos dias de hoje, obriga-nos a questionar se não devia ser objeto de um texto complementar decorrente da importante bibliografia publicada nos últimos treze anos. Logo Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa, António Tomás, Daniel Santos e Tomás Medeiros. Mas também Piero Gleijeses que estudou a presença cubana na luta armada; a entrevista de José Vicente Lopes a Aristides Pereira, com data de 2012, A Criação e Invenção da Guiné-Bissau por António Duarte Silva, mas há mais. 

Um olhar sobre a História é por definição sempre datado, mas publicar treze anos depois um documento destes sem um comentário acerca de investigações posteriores que podem pesar nas conclusões então produzidas, parece-nos um tanto bizarro.

A que se afoitou Ângela Benoliel Coutinho? Ela responde: 

“O presente estudo debruça-se sobre as trajetórias dos fundadores do PAIGC e dos membros do seu Comité Executivo de Luta. Interrogar-nos-emos acerca do recrutamento destes dirigentes, mais precisamente o recrutamento geracional, geográfico, de género, social, procurando também saber que formação tiveram, tendo em vista as suas atividades de direção política”

Mostra-se entusiasta pelo cruzamento de diferentes disciplinas, tendo como núcleo central a Sociologia Política e organiza o seu trabalho sondando a primeira geração dos dirigentes do PAIGC, a longa e progressiva tomada do poder pela segunda geração dos dirigentes do PAIGC, discreteia sobre heróis ideólogos após a independência, o que aconteceu aos revolucionários no poder e elabora as conclusões.

É de lamentar que ao referir a organização política do PAIGC traçada no Congresso de Cassacá não extraia a mais devida das considerações: o poder militar ficou, a partir desse momento, custodiado, totalmente dependente do decisor político. Durante anos, o cérebro da estratégia, tanto militar, como organizacional, política e diplomática, foi Amílcar Cabral; Aristides Pereira era o pontífice da logística e Luís Cabral o dirigente que funcionava como uma antena no Senegal. Há que tirar ilações desta cúspide, eles foram os verdadeiros dirigentes e interlocutores dos comandos militares.

Quanto à fundação do PAIGC, sabe-se que há dados obscuros, e de há muito. Quem esteve presente em 19 de setembro de 1956 é uma verdadeira incógnita; Julião Soares Sousa avança mesmo que era fisicamente impossível Amílcar Cabral ter assistido àquela reunião; e quanto à existência do PAI continua a pertinência da pergunta porque é que Amílcar Cabral nunca falou dele em sessões públicas ou na sua correspondência até 1960.

Para a investigadora, temos um conjunto de fundadores, nascidos entre 1923 e 1930, Aristides Pereira, Amílcar Cabral, Júlio Almeida, Fernando Fortes, Luís Cabral e Elysée Turpin. Eles podem ter sido todos fundadores mas para a história do PAIGC o que conta são os irmãos Cabral e Aristides Pereira, três homens extraídos da cultura cabo-verdiana, e a autora desenvolve mesmo as respetivas genealogias, releva a importância do Liceu Gil Eanes no Mindelo, o papel de Baltazar Lopes da Silva e da revista Claridade e interroga-se mesmo de quem influenciou quem no meio universitário lisboeta, Dalila Mateus ouviu Marcelino Santos sobre leituras e intercâmbios ideológicos, não parece haver dúvida que a grande plataforma de encontro foi o Centro de Estudos Africanos, funcionava na Rua Ator Vale, em pleno Bairro dos Atores, em Lisboa.

A autora aborda as fugas e as partidas para o exílio, não há uma palavra para Rafael Barbosa e o seu determinante papel dirigente nesse período decisivo de 1960 a 1962.

Estamos agora na segunda geração dos dirigentes do PAIGC, os combatentes. Oiçamos a autora a propósito do recrutamento dos militantes no mundo obscuro da clandestinidade:

“Considerámos que existiram duas fases cruciais de recrutamento deste grupo de dirigentes. A primeira diz respeito ao início da sua militância no PAIGC, enquanto a segunda ocorreu no interior do próprio partido, tratando-se do seu recrutamento na qualidade de dirigente deste. A fim de compreender a primeira fase em causa, visto a falta de estudos sobre o PAIGC e a indisponibilidade de fontes do partido, apoiámo-nos em vários outras fontes: processos da PIDE / DGS, entrevistas, relatos de vida publicados e obras ou estudos publicados”.

Concluiu que o recrutamento dos dirigentes ocorreu durante um período muito curto, primeiro em Conacri e depois no Senegal. Esclarece que os militantes do PAIGC que agiram no espaço político sob domínio português e que não fugiram durante este período, não fizeram carreira até ao topo da direção política do PAIGC. 

A maioria dos militantes que chegaram à direção política do movimento entre 1963 e 1967 já se encontravam na cena política africana e já tinham sido recrutados pelo PAIGC pelo menos até 1962. Luís Cabral, em entrevista à autora, enumera-os: Rafael Barbosa, Victor Saúde Maria, Carlos Correia, Francisco Mendes, Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira, Nino Vieira, Abdulai Bari, Pascoal Correia Alves, Tiago Aleluia Lopes, Otto Schacht, Vasco Cabral, todos guineenses, e Abílio Duarte, Silvino da Luz, Pedro Pires, José Araújo e Osvaldo Lopes da Silva, todos cabo-verdianos. 

A autora dá pormenores sobre o seu recrutamento, as suas trajetórias, profissões e atividades antes de entrarem na luta armada e as conclusões são de há muito conhecidas: os cabo-verdianos eram estudantes universitários; com estudos universitários só o guineense Vasco Cabral, todos os outros guineenses eram pequenos funcionários, em casas comerciais ou organismos do Estado.

A autora não esconde a intenção em pretender demolir a tese da hegemonia cabo-verdiana, como se esta se revelasse em percentagens, e o equilíbrio fosse patente. A questão de fundo é tratada veladamente: a decisão ideológica e política, a orientação militar estava a cargo de três líderes políticos, competindo a Amílcar Cabral todas as grandes decisões: os combatentes na fase de arranque eram todos guineenses. 

Com o evoluir da luta armada e a deslocação dos cabo-verdianos para o interior da Guiné deram-se substanciais alterações. Refere-se igualmente a quase ausência de mulheres da direção, a exceção mais relevante era Carmen Pereira, havendo figuras de prestígio como Titina Silá, Dulce Almada, Francisca Pereira e Ana Maria Gomes, isto quanto a uma primeira geração. Há também uma exposição sobre as fugas dos militantes cabo-verdianos, vamos ficar a conhecer a sua genealogia.

A obra “Os Dirigentes do PAIGC” é uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, novembro de 2017.

(Continua)

Carlos Correia, imagem retirada do Arquivo Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22425: Notas de leitura (1368): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (2) (Mário Beja Santos)