Mostrar mensagens com a etiqueta Ponte de Lima. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ponte de Lima. Mostrar todas as mensagens

sábado, 19 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21373: Os nossos seres, saberes e lazeres (411): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Digamos que foi uma visita colateral, os Arcos, em rigor, não faziam parte do universo do meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo, a cuja memória estou neste peregrinar. Mas que grande surpresa, que património, que paisagens, que casario, que velhos aldeamentos, até apetecia, houvesse mais tempo, regressar ao Núcleo dos Espigueiros do Soajo, quanto gostaria de pôr os pés no Núcleo do Mosteiro de Ermelo, a lição recebida é de que é indispensável vir com mais tempo, fica sempre uma grande deceção passar como cão por vinha vindimada nestes rincões onde se fundou a nossa nacionalidade, há vestígios da Pré-História, há cultura castreja, há vestígios do início da Idade Média, ruínas de estruturas defensivas. A vila dos Arcos tem templos esplendorosos, como aqui se procura ilustrar, e o ponto alto da visita foi o que se nos deparou do Centro Interpretativo do Barroco, sediado na Igreja do Espírito Santo, uma riqueza que iremos mostrar na etapa seguinte.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (7)

Mário Beja Santos

Desta vez é de vez, vou a Arcos de Valdevez, a terra e seu concelho rarissimamente vinham à baila nas minhas conversas com o meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo, mas um amigo comum, Luís Saraiva de Meneses, era dos Arcos e tinha oferecido uma tela a óleo com a casa de família que estava no corredor da entrada da casa do Carlos Miguel, desconhecendo o local da mesma, decretei que a ida aos Arcos tinha o poder simbólico quanto baste. Antes porém, fui bater à porta em Ponte de Lima do escritório de Manuel da Silva Fernandes, um camarada da Guiné, alguém que combateu em Gadamael e resolveu passar a escrito a sua vivência. Já conhecia a sua obra, por portas e travessas, saí do seu local de trabalho com esta lembrança, nós, os camaradas da Guiné, somos mesmo assim.

Preparei-me para a visita aos Arcos, tenho sempre à mão o livro Alto Minho, de Carlos Ferreira de Almeida. No capítulo dedicado a Arcos e Soajo, vejamos a referência histórica: “Valdevez poder-se-á considerar até ao século XII como cabeça da Ribeira-Lima, tal a sua importância estratégica. Era uma região nevrálgica de apoio a uma linha desde Monção a Lindoso, a da fronteira com a Galiza tantas vezes pressionada por Leão. Era a retaguarda dos castelos de Monção, de Melgaço e de Castro Laboreiro. A refrega do Encontro de Valdevez, entre D. Afonso Henriques e D. Afonso VII de Leão, acontecida aqui, perto da Portela do Extremo, bem o elucida”. E chegamos aos Arcos, eram assim descritos como o autor os viu nesses anos de 1980: “Engloba duas freguesias, S. Salvador e S. Paio, que o rio (Minho) separa mas a ponte une. Na margem direita do Vez temos S. Salvador dos Arcos, a mais urbanizada. Tem um importante património artístico constituído por um bom conjunto de igrejas de rico recheio, sobretudo em talha, e meia dúzia de excelentes casas, dos séculos XVII, XVIII e XIX, testemunho das potencialidades das confrarias, da nobreza e da burguesia locais”. E depois enuncia a Capela da Praça ou a Capela da Conceição, arte gótica e seguidamente a Igreja da Lapa, com belíssimo altar. Nossa Senhora da Lapa é a mais esplendorosa igreja dos Arcos, atribui-se o seu traçado a André Soares, mestre bracarense. Tem planta centrada coberta por alta cúpula. No seu interior, três aparatosos altares de cuidada talha rococó. Era poderosa a confraria que encomendou estas obras, e enorme a devoção a Nossa Senhora da Lapa, de origem beirã. Não confundir a Igreja da Lapa com o Santuário de Nossa Senhora da Lapa, em Sernancelhe.


Altar da Igreja da Lapa

Pormenor do altar

A Capela da Praça é um edifício de grande severidade, gótico rural, deve-se ao abade João Domingues que destinou o templo para sua capela funerária, nos princípios do século XV.



Dois pormenores do interior da Capela da Praça

Houvesse tempo e percorria-se os Arcos a pente fino, como o professor Ferreira de Almeida sugere no seu livro Alto Minho: Igreja da Misericórdia, os Cruzeiros, a Igreja de S. Paio. Contempla-se uma raridade, o pelourinho, do início do século XVI, até 1700 esteve colocado no centro da Praça Municipal, andou em bolandas, aqui está desde 1998. A autoria é de João Lopes, a sua singularidade é óbvia: pilar torso e roca cónica, apresentante um fuste robusto enrolado por três colunelos, colmatado por um capitel em forma de taça. Que beleza!


Que o leitor me perdoe, encaminhei-me, depois de ter andado às voltas do Pelourinho para outro importante templo, a Igreja do Espírito Santo, onde funciona o Centro Interpretativo Barroco. Abriremos o próximo episódio com esta visita, obra de uma outra importante Confraria que pôs de pé esta igreja de tradição maneirista com exterior remodelado no século XIX. Cresce a convicção de que é imperativo retornar a estas paragens, ficam para ver as casas solarengas, percorrer o concelho e avançar para o Soajo, são as casas, são as pontes, os mosteiros, as igrejas e capelas, é um património formidável, fica para a próxima. Vou amesendar e aliviar as fraquezas do corpo, ponho-me a olhar a ponte que liga as duas margens da vila dos Arcos, uma construção de truz datada do século XIX, substituiu uma ponte medieval. É pena não restarem quaisquer elementos arquitetónicos da anterior construção, só referências: tinha quatro arcos de volta redonda e uma estrutura marcadamente românica. Já agora, vamos dar um salto até aqui perto, ao Paço de Giela.


O Paço de Giela assenta num pequeno outeiro na outra margem do rio Vez, é monumento nacional: é um exemplar único de habitação de nobre em meio rural, há à sua volta elementos construtivos que vão desde o século XIV até ao século XVIII. Trata-se de um pequeno castelo rural a quem competia a defesa da fronteira desde os inícios da Idade Média pelo menos até meados do século XI. Foi sobre estas estruturas, entretanto destruídas e abandonadas, que em meados do século XIV se construiu a atual torre, adossada à torre está um edifício habitacional de dois pisos. No final do século XX, o Paço foi adquirido pela autarquia e em 2014 deu-se início à valorização e requalificação do conjunto edificado do Paço de Giela. É indispensável visitá-lo, vir aos Arcos e não desfrutar deste rico património é como ir a Roma e não ver o Papa. Finda a visita, regressamos ao Centro Interpretativo do Barroco. É magnificente, impõe-se uma visita cuidadosa, fica para o próximo episódio.


O Paço da Giela, antes e depois

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21350: Os nossos seres, saberes e lazeres (410): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (6) (Mário Beja Santos)

sábado, 12 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21350: Os nossos seres, saberes e lazeres (410): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2020:

Queridos amigos,
A vila de Ponte de Lima preza os jardins, aliás, vem na Rota das Camélias do Alto Minho, e não só. Num lugar chamado Arcozelo, passando a ponte da vila, por onde se veem locais e peregrinos a caminho de Santiago de Compostela há um lindíssimo parque temático com mostra de vários tipos de jardins, tudo num recato a contemplar maciços florais de azáleas e rododendros viçosos, estava a despontar a primavera, dentro de dias iria anunciar-se o Covid-19, por enquanto ninguém se assusta quando vê outro a passar bem rente. E regressou-se à vila sede de concelho melhor equipado de solares barrocos, o que interessava era mirar todo este casario quase todo reparado, sólido, que se ergue de um lajeado de pedra, parece ser uma natural erupção, são construções sólidas, como as fontes, as ruas apertadas, o casario com aparência de fortim adaptado às necessidades do conforto atual. Percebe-se o orgulho que os limianos põem no tratamento deste património que singulariza a vila mais antiga de Portugal por todos estes aspetos da presença da natureza, a corrente amena do Lima, as áreas frondosas, a Avenida dos Plátanos não tem rival e a solidez das construções com uma certa reminiscência que vai do Medieval ao Barroco.

O saudoso amigo por quem hoje fiz esta viagem, e que era um limiano que nada esquecera das suas origens, percebo agora, tinha carradas de razão em desvendar regularmente as saudades latentes que reprimia a tanto custo, viagens de retorno impossíveis de fazer, pois ele vivia cego, acalentado por uma memória prodigiosa. Bendita viagem que agora pude fazer, confirmo toda a legitimidade do seu orgulho limiano.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (6)

Mário Beja Santos

Inicia-se o percurso da manhã em demanda de um belo jardim de Ponte de Lima, chamado Parque Temático do Arnado. A vila resplandece de cor, num pré-aviso de primavera, há jardins no passeio ribeirinho, flores não faltam na Avenida dos Plátanos, no Jardim dos Terceiros, e quando aqui se arribou, perto do Largo Dr. António Magalhães, deu-se com o despontar floral, irá encontrar igualmente no Jardim Dr. Adelino Sampaio, quando se andou a visitar o belo e antigo edifício da autarquia. Atravessa-se a ponte, em direção de Arcozelo, dá-se de frente com a Igreja de Santo António dos Frades e ali bem perto a Capela do Anjo da Guarda. Este monumento nacional é de um gótico inusitado, lembra o vestígio de um elemento de fortim, mas é cobertura de um anjo e a vista que daqui se desfruta sobre Ponte de Lima, nesta manhã límpida e de temperatura morna é um bálsamo para os olhos.



O parque temático requer tempo para contemplar, comporta vários jardins, nesta altura é um deslumbramento de azáleas e rododendros, tudo cheio de viço, em tons fosforescentes. Deambula-se o jardim romano, segue-se para o jardim Labirinto, o Renascença e o Barroco. É um ambiente de paz, os visitantes são escassíssimos, ouve-se o trabalho dos jardineiros, à distância, a estufa está fechada bem como o Centro de Interpretação do Território, lamenta-se muito, ouviu-se dizer que é digno de menção o acervo de atividades agrícolas, festas, artesanato, mostra-se o trabalho da terra, a produção de linho. Enfim, fica para a próxima visita, não se deve deambular só ao acaso, só à espera de ser acicatado pelo imprevisto, há telefones, deles se deve fazer uso, como teria sido o caso.





Antes de regressar à vila propriamente dita, para-se diante do que já foi uma bela mansão e que merecia melhor tratamento. O concelho é possuidor de belos solares, tem delicado e valioso património em igrejas românicas, há vestígios do passado desde a cultura castreja a sepulturas medievais, há santuários e cruzeiros e diferentes pontes, mas os solares barrocos vão alçapremar Ponte de Lima numa posição única, já se referiu anteriormente, possui o maior conjunto existente em Portugal destes solares, passou-se à berma do Solar de Bertiandos, quando se foi visitar a lagoa com o mesmo nome. Outra visita que se regista para a próxima itinerância limiana.


Batemos na mesma tecla, sucedem-se as mostras de património dentro da vila, e quem não se limita a vir só de passagem e tem vários dias para ir pondo o pé noutros lugares do Alto Minho, passear dentro da vila e depois torcer para a margem direita e calcorrear os caminhos, saborear este rio Lima de águas serenas, sem a mínima convulsão, traz uma grande paz de espírito. Esta visita foi programada para homenagear um amigo do coração, o mais indefetível dos limianos que, sempre em Lisboa, nunca descurou as suas origens e a cultura do berço. Falava regularmente da Casa da Feitosa, foi lamentável ter desenhado este roteiro sem no mínimo cuidar sobre a existência desta casa. Mais um elemento a adicionar para a próxima visita. Vejam-se os pormenores escultóricos nas janelas, os brasões, a harmonia daquela escadaria que leva à Capela das Pereiras, casas que nos lembram autênticas fortificações e outras que estão harmoniosamente adossadas aos restos da muralha. Prossegue-se o passeio até à Casa de Nossa Senhora d’Aurora, o meu saudoso amigo tinha um grande afeto por Manuel Aurora e conhecia praticamente de cor os livros do 3.º Conde.







Leio numa brochura que me foi oferecida no Turismo: “Na Rua do Arrabalde, contemplamos a Casa de Nossa Senhora d’Aurora, a residência mais imponente e majestosa da vila brasonada, construída na primeira metade do século XVIII pelo engenheiro e arquiteto Manuel Pinto de Vila Lobos. A capela da casa, consagrada a S. João Baptista, alberga um gracioso retábulo barroco com representações escultóricas de Santo Elesbão e Santa Ifigénia da Núbia, santos negros de figuração rara”.

Chegou o tempo de amesendar, cresce água na boca por um bom caldo verde e uma posta de bacalhau, talvez assado, depois esmoer esta fartura um pouco à beira Lima, a tarde será destinada a Arcos de Valdevez.



(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21327: Os nossos seres, saberes e lazeres (409): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (5) (Mário Beja Santos)

sábado, 5 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21327: Os nossos seres, saberes e lazeres (409): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Vamos dar o merecido destaque ao Conde d'Aurora, um aristocrata limiano que andou em sedições monárquicas, andou pelo exílio, regressou, deixou prosa diversa, mas o seu principal fervor foi a Ribeira Lima e toda a envolvente minhota. O meu saudoso amigos Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo venerava constantemente a sua memória, contando pilhérias em que ele participara, logo a recordação de um julgamento no Porto. O Conde era Juiz, salvo erro num Tribunal do Trabalho, o Carlos Miguel ao tempo trabalhava numa caixa de providência, competia-lhe ir testemunhar. O meirinho tratou-o por Sr. Dr. Carlos de Araújo, e interpelado pelo juiz, observou-lhe que não era licenciado. Resposta pronta do Conde d'Aurora: "Não é, mas tem muito tempo para vir a ser".
Hoje é aqui festejado, parece-me que bem merecidamente. Eu ganhei o dia, ir a Ponte de Lima e sair daqui com este texto e estas fotografias é como trazer um relicário. A feira descrita pelo Conde d'Aurora é hoje outra coisa, noutro espaço. Termino o dia percorrendo a Avenida dos Plátanos, imaginando tendas, pregões, loiças, bancas cheias de ouro, latoaria profusa, mungido dos animais, poeira, cor, a vibração do acento minhoto, aquela indumentária ilustre, lojas com socas e tairocas, e saúdo quem já partiu e tanto amou Ponte de Lima.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (5)

Mário Beja Santos

Lembro-me como se fosse hoje. Aí por volta de 2013, numa tarde em que fui fazer leituras ao meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo, limiano inquebrantável, depois de nos sentarmos, ele no seu sofá, eu num cadeirão, a escasso metro e meio dele, naquele belo ambiente de paredes forradas com preciosidades de Carlos Botelho, Moniz Pereira, Lurdes Castro, Mário Cesariny, Noronha da Costa, tendo diante dos meus olhos o retrato que lhe fez um amigo comum, Vasco de Castro, ele pediu-me para abrir um pacote que chegara de Ponte de Lima. Abri e disse-lhe que se tratava de A feira da Ponte, do Conde d’Aurora. Agitou-se no sofá, os seus olhos vazos pareciam ter ganho uma luminosidade, Deus me perdoe, estava eu com o livro na mão e a fotografar imagens que me pareceram da década de 1950, ou talvez do início da década de 1960, e Carlos Miguel parecia falar para uma assembleia entusiasmada, foram convocados ilustríssimos e sonantes nomes de limianos como o poeta e Embaixador António Feijó, o Cardeal Saraiva, que foi Patriarca em Lisboa, veio à baila o foral de D. Teresa, naquela sala foram referenciadas casas, o Natal na Casa da Feitosa, e já cansado, disse-me na sua voz abaritonada: “Por gentileza, recorde-me o que o Conde d’Aurora escreveu, sei muito bem que é um documento literário incomparável”.

E eu comecei: “Oh! Se puderes, forasteiro, vem a Ponte de Lima num dia de mercado. É às segundas, de quinze em quinze dias (às outras, chama-lhes o povo solteiras)”. Mais para a frente voltarei ao texto, foi uma tarde magnífica, o Carlos Miguel parecia recolhido, como em oração, só raramente interrompia, houve mesmo uma chamada telefónica, pretextou que estava lá a sua médica de família, ligaria mais tarde, e eu recomecei a leitura, aquela viagem empolgante dentro de uma feira, sentia-se que o aristocrata discorria esfusiante, eram notas amoráveis de alguém que olhava com o coração a palpitar naquele mar de gente, a sua gente.

Hoje começo o dia por ir ao arquivo de Ponte de Lima, pergunto por obras do Conde d’Aurora, logo que vejo este livro da feira não perco mais tempo, a senhora que me atende está assim um pouco atarantada, trouxe-me uma carrada de títulos, e agora o cliente quer pagar imediatamente aquele livro, diz que tem pressa, coisas urgentes a fazer. Urgência havia, queria pôr-me à beira-rio a sonhar com aquela feira, caminhar com a vibração do escritor que deixou imagens ímpares desta feira legendária.



Na Rua do Souto, parei diante de um portão e avistei este átrio, o belo arco e a escadaria. Deu-me para imaginar que Camilo Castelo Branco podia muito bem ter passado por ali…


Uma capela para além da ponte, cheia de história, chama-se do Anjo da Guarda, tem lá dentro a imagem de São Miguel, século XIII, monumento nacional

Imagem do Arquivo de Ponte de Lima


Já me sentei à beira-rio, estou a inventar um mar de gente, tendas de bordados, vendedores de ouro, um extenso mercado de gado. Pego no livro, dou a palavra a José António Maria Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho: “Foi sempre muito concorrida dos povos da região – e, segundo rezam documentos antigos do arquivo camarário, em velhas épocas passadas eram muito frequentadas pelos galegos. Ainda há muito quem hoje venha de Caminha, pela serra. De Coura, Viana, Barca e Arcos chega muito gado. Não faltam a ela os ourives de Braga e as burriqueiras do Prado, dos linhos, e tantas gentes mais. Mas vou tentar descrever-ta.
Primeiro, de cima da ponte, um circo de montes de beleza única, solares acastelados nos altos, ermidas alvejando, como um chamamento de graça e de fé, pelo meio da verdura. Capelas, igrejas, casais de povo por todos os lados, dobra do rio envolta em verdura, traçando a larga curva a jusante – e verdes milheirais por ali abaixo. Depois a vila com o seu pastel de prédios e pano de fundo, de mata secular, a circuitar o casario: granito amontoado em fundo verde, heraldicamente emplumado”.

Atenda-se que todo este relato tem muito mais de meio século, quase tudo mudou, mas há descrições do Conde d’Aurora possuídas de um fulgor, é prosa limiana sacramental, a convicção é minha, consigo lembrar-me neste momento do recolhimento do meu amigo Carlos Miguel quando lhe estou a falar do formigueiro de povo que entra na feira, lavradeiras, ciganos, mulheres de saias muito compridas, de muitos folhos e pregas, passam carros de bácaros, muitos cestos, sacas, feixes. A narrativa é meticulosa, como se o autor fosse detentor de um olhar reticulado e pontilhista. Do lado norte é a feira do gado. Ao fundo, na parte do areal que toca na água, andam soltas as vacas leiteiras, cingidas na testa com fitas de mastro. “Neste extenso quadrilátero não entra um carro, um cesto, uma barraca – apenas as juntas de bois, quase todos Barrosões, dessa linda sub-raça vianesa de focinho preto luzidio”. Marcado este teatro de ação, passa a outra panorâmica: “Do outro lado da ponte: areal do sul, ainda mais extenso, formando quase um círculo, oval imensa que vai fechar-se ao fundo, lá muito ao longe, quando o rio vai de tangente beijar a capelinha da Guia, no topo da Avenida dos plátanos. O resto da feira, tudo o que não é gado bovino, aqui se desenrola”. Que melhor cicerone, aedo, porta-estandarte, podia ter a feira da Ponte, senão este iluminado?

Conde d’Aurora


O escritor segue entusiasmado, anda entre as tendas das barraqueiras da feira, avista linho, atoalhados com ponto aberto, parece que o sangue lhe ferve a falar dos barros, aqueles barros que emergem da capa do livro: “É a feira dos barros, esses barros de Alvarães e de Barcelos; panelinhas assadeiras de forma bizarra e tradicional, travessas de formato e desenho herdado do século XVIII, pratos coloridos como no Império, granadeiros napoleónicos e assobio dos pés para os garotos brincarem, e tantos assobios mais e panelinhas e cornetas de barro, esses temíveis clarins que o garotame estridula toda a tarde da feira (e felizmente se quebram ao fim do dia)”.

Fotografia do Conde d’Aurora


Eu sei que o Carlos Miguel quer falar de algumas das ousadias e brejeirices do Conde d’Aurora, ainda continua recolhido, estou agora na última página deste livro plenamente limiano, comprado ao princípio da manhã e destinado a ficar perto de mim, no meu escritório, tal a magnificência das imagens. Carlos Miguel, vamos acabar este fabuloso texto, antes da sua memória, das mais rigorosas que conheci, trazer à tona aspetos facetos deste escritor. Assim termina a viagem pela feira:
“Pela meia tarde, sol alto ainda, começa tudo a debandar, os de mais longe em carros acogulados de gente, camionetas incómodas de ingénuas pinturas menineiras, camionetas que vieram substituir os velhos carros de cavalos, essas catitas de funda caixa e alta boleia tripla onde se encarrapitavam trinta caceteiros de varapau em riste”. Deixa-nos saudades das carripanas e despede-se com ufania: “Poeira, alegria, cor, som, algazarra – e tudo é beleza em redor e a bênção de Deus enche de alegria os corações e os lares”. Bendito reencontro com a prosa e as imagens do Conde d’Aurora, insuperáveis, e que bom recordar aquela tarde de 2013, chegara um livro do Conde d’Aurora a casa do Carlos Miguel, tivemos os dois uma tarde de paraninfo, graças a um senhor ilustre que sabia mergulhar entre a seiva do seu povo.

Imagens recentes de feiras de Ponte de Lima

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21303: Os nossos seres, saberes e lazeres (408): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (4) (Mário Beja Santos)

sábado, 29 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21303: Os nossos seres, saberes e lazeres (408): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Ponte da Barca fora a minha fronteira em duas deambulações anteriores, partindo do Gerês e passando pelo Soajo. Fiquei maravilhado com a ponte e com o tratamento paisagístico derredor.
Agora era diferente, tratava-se de uma peregrinação limiana em homenagem a um querido amigo que mesmo cego queria saber com a maior regularidade possível o que se passava na terra-berço e concelhos limítrofes. Catorze anos consecutivos de leituras de jornais como Aurora do Lima, Cardeal Saraiva, Notícias da Barca ou Notícias dos Arcos, leituras onde se chegava mesmo a esmiuçar toda a necrologia, tinham forçosamente consequências em desenhar a peregrinação a redondezas limianas.
O meu saudoso amigo tinha várias obras sobre o românico minhoto, indiscutivelmente apegado ao que se fazia em Oviedo e terras da Galiza, mas que, como ele sublinhava atroador e abaritonado, era ali que estava o bilhete de identidade do nosso perdurável sentimento religioso. Por isso se foi a Bravães e no dia de hoje passeei por Ponte de Lima acenando-lhe entre o céu enevoado.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (4)

Mário Beja Santos

Saí do arraial minhoto de Ponte da Barca, o fito é a Igreja de S. Salvador de Bravães, fundada entre 1080 e 1125, terá sido templo de um pequeno mosteiro rural beneditino, e mais tarde dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, que terão construído o edifício atual. Não esqueço a importância que lhe conferia o professor de História de Arte em Portugal, Jorge Heitor Pais da Silva, um comunicador espantoso, naqueles anos em que se mostravam slides. Ele explicava acessivelmente o Primeiro Românico, a partir do século IX, associado à Reconquista Cristã, a disseminação dos templos pelas terras portucalenses, a arquitetura da Reconquista, a singeleza da pedra, a escultura e a tumulária, a importância dos monges cavaleiros, como, na rudeza das tomas e retomas de território se impunha uma arquitetura onde o modelo básico da igreja era o basilical. E no caso português, este saudoso mestre ia direito ao Alto Minho, à bacia do Lima, e à importância estratégica de ligar Braga a Compostela. E a sua voz abaritonada subia de volume e entusiasmo quando nos mostrava Bravães.





Agora socorro-me do que se pode ler no primeiro volume da sua História de Arte Portuguesa, Círculo de Leitores, 1995, coordenado pelo historiador Paulo Pereira: “Com uma estrutura arquitetónica de grande simplicidade, é composta por uma só nave e capela-mor rectangulares, sendo de maiores dimensões a primeira, ambas cobertas por teto de madeira. A escultura ornamental encontra-se concentrada na porta principal, inserido num corpo avançado, constituindo um dos mais importantes programas iconográficos do românico português. Nos colunelos, o destaque vai para a representação da cena da Anunciação, com duas grandes estátuas-colunas figurando a Virgem e o Arcanjo S. Gabriel. As restantes colunas são preenchidas com motivos geométricos e zoomórficos, sendo particularmente interessantes os chacais e, sobretudo, o curioso entrançado formado pelas serpentes”.



Porta lateral

Porta lateral

O historiador Paulo Pereira analisa cuidadosamente os conteúdos escultóricos românicos, o Cordeiro de Deus, figuração simbólica do Cristo imolado, os leões, as serpentes (estas representam as forças primordiais/vitais existentes na natureza e que o homem tanto teme); mas também os leões-atlantes, o sol e a lua, a expressão do ser humano, a simbologia dos vícios e virtudes, o uso de pássaros afrontados e de todas as remissões que conduzam à devoção. Contempla-se Bravães, sente-se o berço da nacionalidade, a crença no divino nesta entrada fulgurante do românico português, marcador da nossa identidade. Debruço-me sobre uma inscrição indecifrável, a ver se encontro obra que me diga alguma coisa, regresso ao epicentro desta viagem que teve a sua razão de ser na homenagem que pretendo prestar a um limiano orgulhoso das suas origens, Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo. À chegada, apeteceu passar pela ponte até Arcozelo, houve mesmo vontade de voltar ao carro para visitar as igrejas românicas de Ponte de Lima, Santo Abdão, na Correlhã, Espírito Santo, em Moreira e Santa Eulália em Refoios, talvez fique para mais tarde quando se organizar a visita ao património religioso da vila e da Além da Ponte. Mas não, vou até ao pelourinho de Ponte de Lima.


O pelourinho existia no areal do Rio Lima, símbolo do poder absolutista, estava fora das muralhas. Ganharam os liberais, foi transferido para a Praça da Rainha, seguiu-se um certo caos, houve dispersão dos elementos, a base e as pedras da plataforma foram utilizadas no passeio, o fuste numa hospedaria, o capitel no pátio interior do Asilo D. Maria Pia, o escudo na Fonte do Largo de S. João e a esfera armilar perdeu-se, só em 1936 se fabricou a atual estrutura. Independentemente de todas estas peripécias, há que reconhecer que é muito belo nas suas feições oitocentistas, destacando-se na parte frontal o “corpo de cantaria com escada de dois braços, de acesso ao segundo piso, rasgado inferiormente por vão em arco de volta perfeita”.


Regresso ao meu alojamento para arrumar tarecos, chuviscou e parece que a luminosidade nos transporta ao tempo medieval, não é verdade mas marca os contornos, vinca as linhas dos edifícios, o lajedo rebrilha, é uma consolação para o olhar, escolhem-se dois ângulos possíveis, para mim são impressíveis imagens que não gostaria de esquecer desta peregrinação, olho para aquele enevoado tão típico da terra minhota, e comovo-me.



Ponte de Lima tem lugar ímpar no conjunto dos solares de Portugal. Consegui um mapa que vai de Melgaço às Calhetas de S. Miguel. A parte de leão está na vila mais antiga de Portugal, a saber: Casa da Várzea, Casa do Barreiro, Casa do Crasto, Paço de Calheiros, Quinta da Aldeia, Casa de S. Gonçalo, Casa do Outeiro, Casa do Anquião, Quinta da Roseira, Quinta da Agra, Casa das Torres, Quinta de Santa Baía, Quinta do Casal do Condado, Quinta do Rei, Casa da Lage. Estamos a falar de solares que permitem alojamento, outras casas há que estão abertas ao público, e são solarengas, mas só se pode visitar o interior e os jardins. É o que se passa com a Casa de Nossa Senhora de Aurora, que mais tarde irei visitar. É esta profusão de solares, alguns deles palácios na verdadeira acessão da palavra, convocam o ouro e o açúcar vindos do Brasil, sobretudo nos séculos XVII e XVIII. E daí a espantosa profusão de brasões, não deve haver vila portuguesa com tanta presença fidalga.


O General Norton de Matos (1867-1955) era limiano, aqui nado e falecido. O seu pai era fidalgo da Casa Real e cônsul da Grã-Bretanha e Irlanda em Viana do Castelo. Militar com uma invejável folha de serviços, ministro e governador de Angola, onde passou a figurar na História, membro proeminente da Maçonaria e candidato presidencial pela oposição nas eleições de 1949, desistiu perante a patente falta de condições democrática. Não esquecer que também vinha aqui na mira de encontrar camélias floridas, deu gosto ver o destemido militar perto de uma cameleira simultaneamente viçosa e fenecente.


Ali perto do busto do General Norton de Matos está uma mansão que é um verdadeiro compósito de castelo e murada, seguramente que o proprietário gostava do neogótico, de merlões e seteiras e despendeu bom dinheiro pondo granito a toda a altura num edifício neorromântico e com pozinhos de Arte Nova. Era irresistível não ficar fascinado pela bizarria.


Quem diz solares barrocos não deve esquecer as capelas e outros templos religiosos, é caso da chamada Capela das Pereiras que se ergueu junto das muralhas, sofreu muito com o terramoto e ali está, no alto da escadaria, a falar forte e feio de traça barroco. Havia a sugestão de visitar o seu interior, no restauro foi encontrada pintura primitiva, encontrei sempre a capela fechada, mas fiquei muito satisfeito com esta imponência e a tocante discrição dos elementos escultóricos. Por hoje basta, estou ansioso por um bom caldo verde e um pãozinho com presunto, e acabar o dia despegado a ver correr as águas do Lima entre os focos de luz. Amanhã também é dia, vou passarinhar por aqui, ver se encontro um antigo combatente da Guiné e passear-me entre camélias.


(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21281: Os nossos seres, saberes e lazeres (407): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (3) (Mário Beja Santos)