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quarta-feira, 12 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24472: Historiografia da presença portuguesa em África (376): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Há momentos nesta viagem presidencial em que se pressente, que mesmo discretamente na retaguarda, é o ministro do Ultramar que regozija com o legado deixado em cerca de 3 anos de governação. Onde quer que chegue a comitiva presidencial, Sarmento Rodrigues é recebido com a maior cordialidade, tanto pelos agentes coloniais, empresários, administrativos, como pelas autoridades gentílicas e o povo que desassombradamente o saúda. O que se passou em Bissau é flagrante, está tudo marcado pela gestão de Sarmento Rodrigues, dos equipamentos de saúde à educação, às infraestruturas desportivas, às melhorias da ponte do cais de Pidjiquiti. A viagem a Bolama de certo modo deixa o jornalista consternado, fala nas populações em delírio, mas não esconde a dor e a melancolia que aquela cidade ao abandono provoca, houve manifesta incapacidade de gerir com equilíbrio a transferência da capital, Sarmento Rodrigues ainda tentou um acordo com os potentados económicos para estes se manterem firmes naquela região agrícola tão exuberante, mas os negócios foram-se transferindo para Bissau, inexoravelmente Bolama caiu no esquecimento, o que assombra quando o seu património era tão interessante.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho.

Já estamos a 5 de maio, Craveiro Lopes começa o dia visitando o Dispensário do Mal de Hansen, percorreu três exposições que o jornalista (presume-se Rodrigues Matias, ele aparece como coordenador dos dois volumes a que aqui se faz referência do diário da viagem) classifica a primeira como consoladora, a segunda como banal (à primeira vista) e a terceira macabra. O ilustre visitante recebe uma lembrança, um bordado com as palavras “Seja bem-vindo”, trabalhado a linhas encarnadas sobre linho branco. Das três mulheres doentes que haviam bordado aquele pano, uma não tinha dedos nem mãos. O jornalista foi ao seu encontro e dá-nos um quadro comovente. Enquanto Craveiro Lopes se mantém no Dispensário, o jornalista visita a Cumura, povoação do posto de Prábis, escolhida em tempos pelo comandante Sarmento Rodrigues para local de isolamento dos leprosos contagiosos. E diz-nos o jornalista que ali vivem, num mundo reduzido em pouco, mais de duas centenas de infelizes de ambos os sexos.

Bor, onde Craveiro Lopes se dirigiu após a visita ao Dispensário, é um desconhecido éden da ilha de Bissau, a 6 km da cidade. Ali foi criado um Reformatório de Menores e Asilo de Infância Desvalida, a cargo das Missões Católicas. A designação foi mudada para Asilo de Infância Desvalida de Bor. O ilustre visitante distribui a cada criança um pacote de rebuçados. Craveiro Lopes foi inesperadamente visitar o posto de Prábis. No caminho passou sob um maravilhoso túnel de cajueiros, e diz-nos o jornalista que se tratava de um pormenor que iria ter ocasião de apreciar largamente pelo interior: milhões de cajueiros plantados ao longo de todas as estradas da Guiné.

Findo o programa da manhã, vamos ao da tarde. Craveiro Lopes comparece ao grande festival militar, escolar e desportivo no Estádio de Bissau. Ao centro do campo de futebol formavam a tropa, a mocidade portuguesa, uma companhia de caçadores indígenas, 60 filiados do Centro de Milícias; atrás deste contingente, estão centenas de alunos das escolas oficiais e missionárias, 200 atletas dos clubes desportivos e uma coluna de tropa de segunda linha. Depois do desfile, realizou-se a final de um torneio de futebol entre o Sport Lisboa e Bissau (o Benfica local) e o Clube Futebol Os Balantas (o Belenenses local), ganhou o primeiro. Seguidamente, foram agraciados clubes desportivos e 17 chefes indígenas do concelho de Bissau. Craveiro Lopes sai do estádio em apoteose.

É nesta circunstância que o jornalista aproveita para descrever o concelho de Bissau lembrando que da sua população de 30 mil habitantes, há 22 mil da etnia Papel e 5 mil da etnia Balanta. A 6 de maio, a ilustre comitiva parte para Bolama no aviso Bartolomeu Dias, sem, porém, o jornalista nos ter descrito ao pormenor a nova ponte do cais do Pidjiquiti. Ele trata Bolama como a capital que foi, a visita presidencial é um tanto apresentada como uma romagem de saudade, um misto de peregrinação e desagravo. Faz-se a história da ocupação da primeira capital da Guiné e subitamente surge-nos uma referência a Silva Gouveia, o homem que criou um potentado económico na Guiné: “Silva Gouveia, que chegara à Guiné tão moço como pobre, dedicava-se à pesca; depois abrira padaria e casa de comidas para as praças da guarnição, na rua Marquês d’Ávila; em seguida, arranjara-se a construir edifícios de pedra e cal e requerera licença para lançar um muro-cais em frente da sua maior instalação. Era o colosso a desferir o voo para o grande triunfo que o esperava.”

Há laivos de melancolia nas descrições que se seguem. Bissau, em crise de crescimento repentino, comprava, para cobrir mais casas, as telhas que os proprietários bolamenses arrancavam das suas moradias abandonadas. Mas o jornalista está ali para pintar a cena em cores triunfais, temos a população em massa a acompanhar a viagem de Craveiro Lopes até aos Paços do Concelho, este o edifício da mais elevada categoria arquitetónica. Seguem-se os discursos do presidente da autarquia e do representante do comércio local – todos sonham com o revigoramento de Bolama. No final da sessão, foi lida a portaria que concede escudo de armas e bandeira própria à cidade de Bolama, Craveiro Lopes entregou nas mãos do presidente de autarquia a bandeira já com brasão, entre os calorosos aplausos de toda a assistência.

Segue-se um curioso desfile regional de gentes congregadas no largo Teixeira Pinto, não vai faltar dança frenética. Depois ficamos a saber que no concelho de Bolama não predominam em número os Bijagós, mas sim os Mancanhas. Por entre os dançarinos, um velho exótico passeava despreocupadamente um crocodilo pela arreata de um cordel de juta, o bicho arrastado pela trela dava sinais evidentes de um aborrecimento quase mortal.

Depois do almoço, um trepidante programa de visitas: ao quarte da Companhia Indígena de Engenhos; ao Hospital Regional de Bolama; à Missão Católica e à Igreja de S. José. E vem um encómio do jornalista: “Deixou esta visita ao sr. general Craveiro Lopes a impressão de que a cidade de Bolama se não resigna à condição de vencida pelo facto de ter deixado de ser a capital.”

Segue-se a visita à propriedade Gã Moriá, da firma Silva Gouveia, Craveiro Lopes é recebido pelo administrador D. Diogo de Melo. A Câmara de Bolama ofereceu um Porto de Honra no salão de festas da sede dos Bombeiros Voluntários, a que estiveram presentes todas as autoridades e “a melhor sociedade de Bolama”. À noite, da varanda do Palácio, Craveiro Lopes assistiu às danças Bijagós. O jornalista esmera-se a descrever tais danças, diz que é quase um teatro, logo na intenção do bailado, o bailarino, ajudado pelo corpo de baile que o acompanha, descreve as fases do seu envolvimento com a mulher pretendida, vê-se que esteve atento e que sentiu a densidade daquele processo cultural e artístico.

A 7 de maio, a ilustre comitiva reembarca de regresso às terras do continente. Antes, o jornalista refere que se avista o plano de água em que desciam as grandes aeronaves das primeiras travessias, pista maravilhosa de 6 km de comprimento e 1,8 de largura, no braço de mar chamado Gã Pessoa. Fala-se do desastre aéreo que vitimou os aviadores italianos. Estamos agora a caminho de Fulacunda.


Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Retrato oficial de Craveiro Lopes no Museu da Presidência, pintura de Eduardo Malta
Dispensário do Mal de Hansen, Guiné Portuguesa
Imagem de uma reportagem da RTP na Guiné no tempo do governador Peixoto Correia
Paços do Concelho de Bolama, já em adiantado estado de ruína
Igreja de S. José, Bolama
Uma das mais admiráveis fotografias de Bolama, publicada no livro "Bijagós: Património Arquitetónico", pelos arquitectos Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade e o fotógrafo Francisco Nogueira; Edições Tinta-da-China, 2016

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24452: Historiografia da presença portuguesa em África (375): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24452: Historiografia da presença portuguesa em África (375): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Craveiro Lopes foi o primeiro Presidente da República a visitar a Guiné, percorrerá nesse ano e no ano seguinte as parcelas africanas do nosso Império. Estamos no ano em que António Júlio Castro Fernandes, antigo ministro da Economia, administrador do BNU e figura grada do regime produzirá um documento que é uma radiografia do Estado da Guiné, advertindo nas entrelinhas os riscos e ameaças que andam no ar, e que ganharão corpo 3 anos depois, com a independência da Guiné-Conacri. Se me decidi a fazer o relatório desta viagem é porque ele permite ver com nitidez a obra do Comandante Sarmento Rodrigues, a Guiné ainda é um fim do mundo mas ganhou corpo administrativo, assomou uma componente cultural. O jornalista que acompanhou a viagem do General Craveiro Lopes dirá que naquele Porto de Honra oferecido pelas atividades económicas, a mesa primava por cristais e pratas e cravos vermelhos. Enquanto isto é dito, Castro Fernandes no seu documento deixa escrito preto no branco que toda aquela classe de gentes dos negócios primava pela mediocridade, havia que gerar um impulso regenerativo, antes que fosse tarde.

Um abraço do
Mário


O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do Presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Seja como for, quando começar a guerra, a Força Aérea Portuguesa irá investir mundos e fundos para tornar aquele aeroporto digno desse nome.

De Bissalanca até à Sé foi o carro presidencial escoltado por 40 cavaleiros Fulas e Mandingas. Haverá uma cerimónia no Alto do Crim, o presidente da edilidade entrega-lhe a chave da cidade, entre muitas ovações. A comitiva chega à Sé, são todos recebidos pelo Prefeito-Apostólico, D. Martinho da Silva Carvalhosa, haverá Te Deum. Segue-se uma sessão de boas-vindas nos Paços dos Concelho, que culmina com o discurso do Governador Melo e Alvim. Terminada a cerimónia, o Chefe de Estado segue para o Palácio acompanhado por uma multidão. Ali há um jantar oficial e depois vão para a varanda ver estralejar foguetes, vão aparecendo pela Praça do Império cavaleiros, gente curiosa.

Estamos já a 3 de maio, Craveiro Lopes vai prestar homenagem a Nuno Tristão, uma escultura de bronze da autoria de António Duarte, vai descerrar uma placa de bronze, é a primeira de uma longa série, discursa, fala da História da Guiné, da sua descoberta, muitas palmas. E daqui segue para a fortaleza de S. José de Bissau, no tempo do Governador Sarmento Rodrigues houve aqui muitas obras, reconstruiu-se o baluarte de Puana, repararam-se as muralhas e os parapeitos. Faz uma visita ciceronada pelo Comandante-Militar, Coronel Neves e Castro. Descerra-se nova lápide comemorativa. Na parada, ergue-se o monumento aos Heróis da Ocupação, realizado sobre projeto do topógrafo Raúl Lomelino. E a ilustre comitiva parte para nova inauguração, a nova Escola Paroquial das Missões Católicas D. Berta Craveiro Lopes, esta descerra uma placa de mármore e procede-se a uma visita às quatro salas de aula da escola, prontas para acolherem 400 alunos.

No cumprimento das suas obrigações, Craveiro Lopes regressa ao Palácio para receber o Governador da Gâmbia. O jornalista aproveita para dizer que o Alto-Comissário da África Ocidental Francesa fora recebido na véspera, no aeroporto, tal como o enviado especial do Presidente da República do Líbano (a colónia libanesa tem peso económico e financeiro na Guiné). Ao princípio da tarde realiza-se a visita ao Hospital Central de Bissau, a comitiva oficial é recebida pelo Diretor, Dr. Rui Roncon. É aqui que o jornalista não se contém nos epitalâmios e no endeusamento presidencial: “A alegria de ver o Presidente morfiniza a tortura dos achaques”.

À noite, nos jardins do Palácio, Melo e Alvim ofereceu um “Pôr-do-Sol”, que reuniu “a melhor sociedade da província” e a totalidade das individualidades nacionais e estrangeiras presentes da capital.
“Deram a nota elegante da festa as senhoras da sociedade local, que capricharam em apresentar-se com modelos do melhor corte, alguns diretamente recebidos dos costureiros parisienses.”

Estamos chegados a 4 de maio, Craveiro Lopes vai inaugurar a estátua de Teixeira Pinto, no Alto do Crim, obra do escultor Euclides Vaz, que representou o pacificador da Guiné fardado, segurando a pistola na mão direita caída ao longo do corpo. Há discurso do Comandante Militar e Craveiro Lopes descerra lápide. E partem todos para o Bloco Industrial da Sociedade Comercial Ultramarina, Craveiro Lopes é recebido pelo principal dirigente da empresa, António Júlio de Castro Fernandes, antigo ministro, figura política grada do regime, Administrador do BNU (nesse ano, produzirá um documento de indiscutível importância cujas páginas essenciais estão transcritas no meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba: O BNU da Guiné"). Segue-se visita à fábrica de descasque de arroz, outra de óleos vegetais, segue a itinerância pela central elétrica privativa e por uma fábrica de sabões. Não há detença, daqui ruma-se para a Escola Primária Dr. Oliveira Salazar. Mais uma lápide descerrada. A seguir, teve lugar a inauguração do Lar Santa Isabel, destinado aos sem lar.

Estamos já na parte da tarde, realiza-se uma sessão cultural no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. O Comandante Teixeira da Mota irá proferir uma conferência de dezenas de páginas, elenca a obra feita por esta entidade, refere os trabalhos de Fausto Duarte e Alexandre Barbosa, entre outros. Não deixa de relevar a colaboração da Missão Geoidrográfica da Guiné. No final, foi oferecia a Craveiro Lopes uma medalha artística de bronze da autoria de Anjos Teixeira, mandada fazer exclusivamente para comemorar esta visita. O Presidente visita o “incipiente” Museu da Guiné. Continua a não fazer pausas, as atividades económicas da Guiné oferecem ao Presidente e comitiva um Porto de Honra e o jornalista refere a atmosfera aprimorada da mesa, “semeada de cristais, pratas e cravos vermelhos”.

Já estamos a 5 de maio, Craveiro Lopes começa o dia visitando o “Dispensário do Mal de Hansen”. Está à sua espera o Dr. Rui Roncon e o médico leprólogo Mário Veiga. Será um dia muito movimentado, como iremos ver.

General Craveiro Lopes e a Sr.ª D. Berta, 1952
Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Ponte Craveiro Lopes sobre o Corubal
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24436: Historiografia da presença portuguesa em África (374): Antes da literatura da guerra da Guiné, o quê? (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24338: Historiografia da presença portuguesa em África (369): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Sendo inviável fazer uma pesquisa com uma certa diacronia entre António da Silva Gouveia e Alfredo da Silva/Sociedade Geral, socorro-me do que vem na literatura sobre esta empresa em obras centradas nas atividades daquele que foi um dos mais ousados industriais portugueses, Alfredo da Silva. Não há nenhuma literatura sobre a Casa Gouveia, no entanto ela teve um papel preponderante e impôs-se dentro da lógica da exploração agrícola, do comércio, indústria e transportes, estava praticamente disseminada pela Guiné, havia armazéns nas principais povoações e mesmo lojas. Recordo que nos relatos enviados pelo responsável do BNU da Guiné a partir de 1962 a subversão irá também incidir sobre a apreensão de matérias-primas no Sul pertencentes à Casa Gouveia, serão capturadas embarcações, os negócios da Casa Gouveia ficarão seriamente afetados nesta região. Vamos agora saber um pouco mais dos papéis existentes sobre António da Silva Gouveia nos primórdios da I República, tentar-se-á seguidamente ver nos arquivos da Assembleia da República como usou da palavra como deputado.

Um abraço do
Mário


Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF:
Uma viagem interminável (2)

Mário Beja Santos

Sempre questionei onde parava o acervo da Casa Gouveia, a principal empresa da Guiné, envolvida em explorações agrícolas, compras sobretudo de oleaginosas, algum tratamento industrial e transporte para a metrópole. Começam agora a aparecer papéis sobre António da Silva Gouveia, comerciante na Guiné e deputado, a este assunto voltaremos.

Batendo à porta da Fundação Amélia de Mello, encontrei acolhimento por parte do seu secretário-geral, dr. Jorge Quintas, que esteve profundamente ligado ao processo terminal dos Armazéns do Povo (que, como se sabe, integrava os Armazéns do Povo criados durante a luta armada e o acervo da Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina e Barbosa e Comandita), cedeu-me um conjunto de publicações donde extraio hoje elementos que poderão ser úteis para entender como Alfredo da Silva, através da Sociedade Geral de Comércio Indústria e Transportes, incluiu no seu património a Casa Gouveia. O professor Miguel Figueira de Faria é o responsável por 3 livros editados por Publicações Dom Quixote em 2021 com os respetivos títulos: "Alfredo da Silva Biografia", "Alfredo da Silva e Salazar" e "Alfredo da Silva e a I República". É dessas publicações que procuraremos extrair algumas informações sobre a Sociedade Geral e como esta se veio articular com a Casa Gouveia.

Inesperadamente, dei com o livro de apologia de defesa da Guerra do Ultramar saído do punho do jornalista do Diário de Notícias Martinho Simões, "Nas Três Frentes Durante Três Meses", artigos publicados no DN em 1965 e editados pela Empresa Nacional de Publicidade no ano seguinte. Visita a Guiné e elogia o portuguesismo dos seus comerciantes. Começa por um comentário que não corresponde à verdade dizendo que Barbosas & Comandita foi a primeira firma a hastear a bandeira nacional em território guineense, isto em 1920. Refere as três casas grandes que dominam o vasto complexo mercantil: a Casa Gouveia, a Sociedade Comercial Ultramarina e a Barbosas & Comandita. “As duas primeiras, alargando o âmbito das suas atividades, detêm e orientam importantes setores industriais, essencialmente constituídos por centros de transformação das matérias-primas, os mais representativos dos quais se ocupam do descasque do amendoim e do arroz, dos óleos vegetais e dos sabões; a última, mantendo-se, essencialmente, no campo comercial, dispõe de um conjunto de estabelecimentos, cujo primordial objetivo é a compra de amendoim.”

E dá-nos conta das obras sociais dessas empresas, destaco o que diz sobre a Casa Gouveia:
“A par de constantes gastos na ampliação das suas instalações, concede maiores regalias aos seus empregados: bolsas de estudo a naturais da província, para frequentarem cursos universitários na metrópole; assistência médica e cirúrgica, frequentes vezes prestada na metrópole, quando os recursos locais são insuficientes; pensões de reforma por velhice ou invalidez, orçadas em 550 contos anuais; visitas à metrópole dos empregados naturais da Guiné com certo número de anos de casa, a fim de lhe proporcionar melhor conhecimento da comunidade portuguesa; cursos práticos para formação, entre os naturais da Província, de técnicos de mecânica, metalomecânica, eletricidade, química orgânica, marcenaria e outros, abrangendo preparação complementar em organizações industriais da metrópole.”

E visita com satisfação um centro industrial modelar, no Ilhéu do Rei, como escreve:
“Visitei o centro industrial da Casa Gouveia servido por ponte-cais privativa, devidamente equipada para cargas e descargas e cujas ligações são asseguradas por transportes fluviais próprios. Perfeitamente montado, dispõe de centrais diesel-elétrica e de vapor; de fábrica de descasque de mancarra com capacidade para setenta toneladas em oito horas de laboração; de fábrica de extração, por expellers, de óleo de amendoim, com capacidade de laboração de vinte e duas toneladas diárias de matéria-prima e de refinação, com controlo laboratorial; de instalações automáticas de lavagem, enchimento e pesagem e um grupo fixo de armazenagem para quatrocentas toneladas, bem como para farinação de bagaços; de um estaleiro, com plano inclinado, para recondicionamento de embarcações; e de um sistema de captação de água potável a grande profundidade.”

Em texto anterior, aludimos a duas obras de Miguel Figueira de Faria [foto à direita] sobre Alfredo da Silva, volumes dedicados à biografia e à sua atividade na I República. No volume dedicado a Alfredo da Silva e Salazar, volta-se a mencionar a Sociedade Geral e o seu avanço para a carreira de África. Alfredo da Silva, refere o autor, geria a Sociedade Geral, a sua frota era responsável pelo transporte de matérias-primas importadas que alimentavam as fábricas da CUF, frota fundamental na exportação dos produtos prontos a comercializar. E teve duras batalhas durante os anos 1930, a Sociedade Geral era temida pela concorrência e em 1932, embora a crise mundial desse sinais de abrandar houvera diminuição do comércio internacional e os preços dos serviços caíam a pique, a Sociedade Geral acumulava prejuízo nas suas carreiras.

É nesta atmosfera que Alfredo da Silva se dirige a Salazar, recém-chegado à Presidência do Conselho, dá-lhe a saber que recorrera a um empréstimo pessoal que se não pudesse solver prontamente teria de hipotecar a própria casa de habitação, pede apoio ao Governo. Acresce que a ida dos navios da Sociedade Geral para a exploração do comércio colonial só era praticável com autorização do chefe do Governo. Alfredo da Silva tenta uma vez mais adquirir a Companhia Nacional de Navegação, segue-se uma assembleia-geral desta empresa em grande agitação, acaba em tumulto, continua no dia seguinte, e no dia depois, e por aí fora, Alfredo da Silva afasta-se, deu como falhada a segunda tentativa de aquisição da CNN. E lança-se na carreira de África, faz requerimentos ao ministro da Marinha, procura rentabilizar alguns dos seus barcos. A 6 de abril de 1933, a Sociedade Geral transmitiu ao diretor da marinha mercante que o vapor Maria Amélia sairia a 21 do corrente até a Angola, a notícia deixa alarmados os administrados da Companhia Colonial, Alfredo da Silva verá as suas pretensões aprovadas, a Sociedade Geral pôde alargar as suas carreiras até Angola, limitadas até então à Guiné.

A CUF vai recuperando do pior período da sua história, a Sociedade Geral obtém permissão para continuar com os seus quatro navios na carreira de Angola, Alfredo da Silva estava autorizado a fazer o tráfego sem restrições entre a Guiné e a metrópole. Vão começar os diferendos entre Alfredo da Silva e Salazar. Este envia um convite ao industrial para integrar a Câmara Corporativa. Entrara-se numa nova era, vem a guerra civil de Espanha, haverá a conceção de estaleiros navais do porto de Lisboa à CUF. Em 1942, Alfredo da Silva falece em Sintra, a CUF entrará numa nova era sobre a égide do seu genro Manuel de Mello.

Como não disponho nesta altura mais nada sobre a Casa Gouveia vou ver o que se pode encontrar em António da Silva Gouveia, membro do Partido Republicano na Guiné.


(continua)
Navio Silva Gouveia, no porto de Lisboa, em 1941
Ilhéu do Rei, vista parcial do complexo da Casa Gouveia, fotografia de Francisco Nogueira, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24322: Historiografia da presença portuguesa em África (368): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24128: S(C)em Comentários (6): Penso que Salazar sabia que não era com homens e armas que ganhávamos aquela guerra (António Rosinha)


Angola > 1961 > Desfile de tropas > O Rosinha, furriel miliciano aparece aqui em primeiro plano, assinalado com um X. Repare-se no tipo de armamento, obsoleto, das NT: pistola-metralhadora FBP, para os graduados; espingarda Mauser, para as praças, capacete de aço para todos; farda: caqui amarelo e polainas, como na Flandres...

Foto (e legenda): © António Rosinha (2006). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Comentário do António Rosinha ao poste P24119 (*):

Antº Rosinha foi fur mil em Angola, 
1961/62; e depois topógrafo da TECNIL, 
na Guiné-Bissau,  em 1979/93...
Aqui, em Pombal, em 2007,
 no II Encontro Nacional da
Tabanca Grande. 
Foto: LG (2007)
Se começou tudo numa desordem total (1961), e sabemos que o fim foi um-deus-dará, como é que não devia ser um eterno improviso durante toda a guerra?

Nunca ninguém viu uma secção abandonada, sem Companhia, quer militarmente quer administrativamente?

Num posto isolado durante alguns meses, 
onde havia apenas dois pequenos comerciantes daqueles do mato, nem chefe de posto havia?!... Era e será hoje, esse lugar um autêntico cu de judas.

Após alguns meses abandonados, ou 
esquecidos, será este o melhor termo, esses oito ou nove rapazes, uns brancos outros mulatos, outros assim assim, em finais de 1961 em Angola no Quanza Norte, já não tinham farda nem botas ou sapatos militares em condições, remediavam-se com alguma roupa civil, sem qualquer transporte nem rádio, incomunicáveis portanto.

Tinham mausers, uma metralhadora e um morteiro e respectivas munições, estas com relativa fartura.

A alimentação, o furriel e um dos cabos (havia mais que um cabo) assinavam uns vales aos dois comerciantes que ali havia, e lá se resolveria um dia, esses vales era uma tradição angolana antes da guerra, não era muito estranho.

O ambiente psicológico é que já era explosivo, ao ponto de o furriel apanhar uma boleia de um camionista e foi bater à porta da companhia que os abandonou, mais de 40 Km,  e requerer um médico.

Conheço esta história porque fui eu substituir esse furriel que, de facto, esse rapaz estava mesmo a "bater válvulas" como se dizia a quem precisava de psiquiatra.

Tive sorte de não ter de pegar em armas, ao contrário do que aqueles rapazes tinham sofrido nos meses anteriores, antes de serem esquecidos naquele lugar, e passados uns 3 meses por meios que seria um excesso relatar aqui, fomos passar o Natal a Luanda com tudo resolvido e mais ou menos prontos para esquecer.

Um daqueles cabos ainda antes do Covid reuníamos em almoço anual do Regimento de Luanda e nos lembramos do barril de 100 litros que deixámos em duas asnas, já meio vazio no hall de entrada da casa abandonada de comerciante, que nos servia de quartel.

Tive sorte nesta guerra, sem tiros, só na caça e só por obrigação, que detesto caçar.

Por mim ainda havia dinossauros e não se tinha colonizado ninguém, nem os romanos nos tinham colonizado.

Penso que Salazar sabia que não era com homens e armas que ganhávamos aquela guerra.(**)

5 de março de 2023 às 23:57 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24055: Notas de leitura (1552): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
O que há de verdadeiramente relevante nesta brochura, com pensamento de "companheiros de estrada" de inteletuais conservadores britânicos, no início da década de 1960? Era uma política pragmática, já não havia Império das Índias, tudo convergia para a Commonwealth, saber tirar partido do inglês, da educação, do sistema administrativo colonial reconvertido, da ajuda e cooperação. Ter os olhos bem abertos à presença sino-soviética, a grande divisão no bloco comunista estava já anunciada mas ainda não confirmada. Reconhecia-se o papel fulcral das Nações Unidas, como igualmente se reconhecia a existência de problemas momentosos como os da Rodésia e da África do Sul, não havia transigências para o Apartheid e temia-se que os governos de minoria branca incendiassem a África Austral. O império colonial português era considerado pelos conservadores como caduco e a intransigência de Salazar levaria o país para um beco sem saída, já que não existem soluções militares para as lutas de libertação, e o Bow Group propunha ao governo de Londres que ajudasse Portugal a negociar e não lhe vendesse armas com apoio técnico.

Um abraço do
Mário



Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (2)

Mário Beja Santos

É de questionar, antes de mais, qual o grau de utilidade de pôr em cima da mesa uma publicação produzida em 1961 por um think tank de nome Bow Group, que funciona na órbita do Partido Conservador Britânico, ainda hoje afirmando-se com elevado grau de independência, se bem que dirigido pelo antigo primeiro-ministro John Major, para se fazer uma reflexão sobre o que os conservadores britânicos pensavam da nova África independente, no tempo em que já germinava a inclusão das antigas colónias africanas na Commonwealth fundada muitos anos antes. A validade deste exercício é permitir-nos avaliar o realismo britânico que abandonara as fanfarronadas imperiais e que procurava um novo papel junto das suas antigas colónias independentes, ciente de que a África entrara na Guerra Fria, de que se punha com muita agudeza o problema das sociedades multirraciais, havendo que discernir sobre a contribuição britânica nos terrenos da educação, da administração, do desenvolvimento e da segurança interna.

Os britânicos receberam muito bem a mensagem do seu primeiro-ministro Harold Macmillan quando ele anunciou em 1960 os novos ventos da mudança, isto em pleno parlamento da África do Sul, estava dado o mote para repensar o novo enquadramento da cooperação e da ajuda ao desenvolvimento, havia inclusivamente, e isso diz-se sem rebuço na reflexão deste documento, que pugnar pela estabilização dos preços das matérias-primas. A previsão do think tank aparece claramente descrita para um novo desempenho britânico na assistência técnica, na consagração dos novos países na Commonwealth, no incremento dos investimentos, deixando bem claro os problemas concorrenciais com a presença sino-soviética e as transformações que se estavam a operar no bloco francês, sobretudo com a criação de uma comunidade francesa da África Ocidental. É nesse contexto que os membros do think tank são levados a sugerir encorajamento às federações entre países, era uma moda, como hoje se sabe, praticamente todas as federações sugeridas nas Áfricas Ocidental, Central e Oriental acabaram no charco.

A presença comunista é dissecada, fala-se das estações radiofónicas de Moscovo e Pequim, as agências noticiosas, a distribuição de publicações, os convites para viagens e bolsas de estudo. Moscovo tinha transformado a Universidade da Amizade em Universidade Patrice Lumumba, a ela acorriam milhares de estudantes da África, Ásia e América Latina, mas logo ser observa que se bem que três mil ganeses tivessem a estudar em Moscovo, mil e quinhentos ganeses estudavam no Reino Unido. Estes analistas minimizavam os cursos de sindicalismo a africanos dados em Moscovo e Pequim, no contexto internacional o sindicalismo sob a égide do comunismo estava claramente demarcado do sindicalismo dito do “mundo livre”. Havia igualmente que ponderar o apoio britânico ao trabalho das igrejas cristãs e referia-se em concreto o bom trabalho que acontecia graças às atividades dos missionários da Igreja da Escócia na Niassalândia, da Igreja Católica na Rodésia do Sul e dos Missionários Baptistas em Angola. Avançava-se com propostas de trabalho para a nova diplomacia em África: formação da administração colonial, com o intuito de criar administrações locais democráticas, apoiar as diferentes modalidades de voluntariado sobretudo nas áreas da Educação, da Saúde e da Administração Pública.

Devia transformar-se num objetivo predominante que a África Ocidental de língua inglesa se inserisse na Commonwealth, apostar no apoio à construção de economias diversificadas e seguras, e refere-se concretamente a Federação do Tanganica, o Quénia e o Uganda, e admitia-se a possibilidade do Zanzibar, a Niassalândia e a Rodésia do Norte preferirem aderir a uma federação da África Central. E são passados em revista os diferentes problemas políticos: Jomo Kenyatta e o Quénia, a existência de uma base militar britânica em Kahawa (nos arredores de Nairobi), e todos os problemas da agricultura queniana deviam ser cuidadosamente apoiados na ajuda técnica. Do mesmo modo, a brochura analisa a Federação da Rodésia e Niassalândia, não escondem os estudiosos que se avizinham problemas altamente delicados.

A análise da África Ocidental, dizem estes investigadores, que havia de agir numa boa relação diplomática com a França, na medida em que a Mauritânia, Senegal, Guiné, Mali, Togo, Chade, República Centro-Africana, o Gabão, o Congo Brazzaville e os aliados Costa do Marfim, Alto Volta, Daomé e Níger eram países declaradamente francófilos, tirando a Guiné de Sékou Touré, todos os outros aceitavam uma forma de entendimento com a França. O Reino Unido tinha um problema sensível com o Gana, na medida em que Nkrumah não escondia simpatias por Moscovo e tinha um programa pan-africano que estava pronto a pôr em marcha, Nkrumah estabelecera relações com a República Árabe Unida, estava ao lado dos sublevados argelinos, enfim Nasser, Nkrumah e Sékou Touré estavam prontos a receber apoio soviético. Em capítulo separado é apreciada a importância da Nigéria e a necessidade de manter as diferentes etnias coesas no mesmo Estado.

Ao tempo, o governo britânico já tinha imensas dores de cabeça com o Aparteid sul-africano, completamente desaprovado por Londres, em sintonia com as Nações Unidas, o que estes autores propõem é que se continue a criticar o Aparteid mas distinguido entre o governo e o povo da África do Sul. Em capítulo à parte aborda-se Espanha e Portugal em África e o subtítulo é claro: colonialismo fora de moda. Desde que De Gaulle apoiava uma Argélia independente, se bem com forte oposição, as possessões espanholas preparavam-se para alcançar a independência, nesta altura ainda ninguém sobrelevava o problema do Sara Ocidental, Marrocos ainda não lhe tinha lançado a garra, curiosamente não é hoje assunto relevante na cena internacional, o que dá que pensar como as grandes potências se resignam à tirania marroquina.

O Bow Group não tem ilusões de que Salazar, contrariando os ventos de mudança, se iria preparar para uma guerra interminável, e adiantam que não há solução militar para qualquer problema colonial, competia ao governo de Sua Majestade não vender armas, nem dar apoio técnico ou tecnológico às Forças Armadas portuguesas e recusar o uso de armamento da NATO nos territórios africanos portugueses. Concluia-se mesmo este capítulo advogando que a diplomacia britânica devia estar preparada para usar os seus bons ofícios a ajudar as ocupações pacíficas entre Portugal e os movimentos de libertação. E por último, o think tank discreteia sobre o papel das Nações Unidas em África, nomeadamente quanto ao que se estava a passar no Congo e nos territórios portugueses, havendo ainda a questão sul-africana no contexto da África Austral.

O Reino Unido não podia iludir a questão colonial, se necessidade houvesse havia que apelar às Nações Unidas para intervir em Angola. A nova Commonwealth e a nova África tinham-se transformado num assunto político de primeira grandeza, competia ao governo não discurar a tempo e horas a ajuda a África e ganhar a competição aos comunistas.

Mapa político de África em 30 de junho de 1961: a cinzento os Estados independentes
John Kennedy e Harold Macmillan, Bermudas, 21 de dezembro de 1961
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Notas do editor

Poste anterior de 6 DE FEVEREIRO DE 2023 > lGuiné 61/74 - P24041: Notas de leitura (1550): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24044: Notas de leitura (1551): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - Parte I - Talvez o maior mistério da "absurda e inútil" guerra colonial (Luís Graça)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23925: Historiografia da presença portuguesa em África (349): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Há que procurar entender o salto que se operou com a chegada de Sarmento Rodrigues em 1945 à Guiné, por isso me socorri de valiosos parágrafos retirados de 2 artigos assinados pelo investigador António Duarte Silva acerca do que representou a política deste Governador no contexto de uma nova era colonial, tal como Marcello Caetano a visionou. Destas atas aqui referenciadas se pode ver com clareza os apoios que o Governante pode obter para um trabalho novo e para o inculcamento de um novo espírito civilizacional, daí a categorização com maior amplitude de indígena, assimilado e civilizado, categorização essa que será radicalmente alterada quando explodirem as lutas de libertação.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (3)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que tinha sido o seu mandato. Vimos, no texto anterior, como o novo Governador, o Capitão Tenente Manuel Sarmento Rodrigues apresentou na sessão extraordinária de 3 de julho de 1945 o seu plano de ação, lendo-o à distância destas quase oito centúrias, ficamos cientes que sabia muito bem ao que vinha, tinha o conhecimento profundo dos dossiês e uma visão para o desenvolvimento da colónia.

Um profundo conhecedor e analista deste período, o investigador António Duarte Silva, deixou-nos parágrafos bem elucidativos do que movia o distinto oficial da Marinha:
“Com o termo da II Guerra Mundial à vista, aguardava-se uma remodelação ministerial e Salazar decidiu convidar Marcello Caetano para uma pasta, tanto mais que este começara a interessar-se por uma carreira política e revelava pretensões reformistas. Rejeitada uma primeira proposta quanto ao Ministério da Justiça, Salazar decidiu oferecer-lhe o Ministério das Colónias, cargo que enalteceu como «vastíssimo campo de ação, envolvendo todas as matérias da administração em relação a uma área enorme». Sugeriu mesmo que no Ultramar estava «o futuro da Nação, o seu grande destino histórico», concordando «ter chegado a altura de começar a mudar de rumo» e adotar uma política favorável à autonomia das colónias. Acrescenta Marcello que aceitou estas condições e, de facto, no exercício de funções como Ministro das Colónias, entre 6 de setembro de 1944 e 4 de fevereiro de 1947, destacar-se-á quer como defensor da renovação política do Estado Novo, quer como convicto africanista. Tinha um programa próprio, embora reconhecesse que a política colonial portuguesa deveria continuar assente nos dois pilares consignados desde 1930 no artigo 2.º do Ato Colonial: por um lado, a missão de colonizar mediante a expansão da “raça branca” e, por outro, a missão de civilizar as populações indígenas. Todavia, entendia que, na conjuntura do final da II Guerra Mundial, esta política de colonizar e de civilizar tinha de evoluir, não só para promover a progressiva autonomia administrativa e o desenvolvimento económico e social das colónias, como também para se acautelar perante a ascensão das forças anticolonialistas, especialmente norte-americanas.

Marcello conhecia a Guiné Portuguesa desde 1935, quando a visitara na qualidade de diretor cultural de um cruzeiro de férias para estudantes, organizado pela Agência Geral das Colónias. A Guiné deixara-lhe «uma recordação muito viva e agradável». Recorda que, ao tentar preparar-se para aquela viagem, não encontrara fontes fidedignas de informação sobre a sua geografia, história, economia, etnografia ou administração, pois era praticamente desconhecida: «daí o espanto com que eu e os meus companheiros de viagem de 1935 vimos o que era e o que podia ser, afinal, a nossa Guiné ao desembarcarmos em Bissau primeiro e depois em Bolama». Por isso, muitos anos depois, em abril de 1969, no início da longa visita que realizou ao Ultramar como Presidente do Conselho, não deixou de recordar aqueles seus primeiros contactos: quer a «imperecível recordação da beleza da terra e da dignidade da gente», quer as tradições combativas de Portugal na Guiné.

A colónia da Guiné iria, pois, ser o primeiro campo de ensaio dos rumos autonomistas e desenvolvimentistas da política portuguesa. Efetivamente, além da referida intenção de a tornar mais conhecida e um território modelar, outras motivações levaram à escolha da Guiné para esse rumo novo na política colonial. Por um lado, vários indícios apontavam para que Bissau e Bolama pudessem ocupar nas redes de transportes marítimos e aéreos após a II Guerra Mundial uma posição destacada de escala internacional e de cruzamento de uma “carreira aérea imperial” ou, ao menos, de ponto de escala dos paquetes que serviam Angola e Moçambique. Por outro lado, pesava um fator de ordem internacional: a circunstância de a Guiné estar rodeada de colónias francesas e inglesas e de se encontrar numa área onde se verificava uma assinalável presença diplomática norte-americana. Eis por que Marcello pretendia apostar na possibilidade de uma «crónica nova da conquista da Guiné para a civilização e para a ciência sempre dentro das conceções tradicionais da política colonial que soube casar a fé e o império: – a necessidade do mando com a fraternidade cristã».

Além da mudança de capital para Bissau, conseguida em 1941, também era necessário remodelar o governo da Guiné, pois o Governador em funções, Capitão de Artilharia Ricardo Vaz Monteiro, empossado a 16 de março de 1941, tinha «14 anos de governo tropical e [estava] já na fase das asneiras frequentes». Marcello Caetano pretendia uma equipa que saneasse a Guiné «do ambiente de depressão e intriga em que constantemente se debatia», e cujos trabalhos, elaborados com uma visão otimista e uma postura construtiva, haveriam de começar «por um exaustivo conhecimento científico das possibilidades da terra e da gente» e prosseguir através de uma «completa ocupação sanitária, educacional e política». Portanto, o perfil desejável apontava para «um oficial da Marinha de Guerra, corporação com tradições tão ligadas à colónia». Esse oficial seria o capitão- -tenente Sarmento Rodrigues. Começava a formar-se, aqui e agora, «uma nova escola de política ultramarina»”.

Parágrafos extraídos do artigo intitulado “Sarmento Rodrigues, a Guiné e o luso-tropicalismo”, publicado na Cultura, Revista de História e Teoria das Ideias, Vol. 25, 2008.

“Nos cerca de três anos e três meses de exercício efetivo, de 1945 a 1948, o governo de Sarmento Rodrigues vai reforçar a administração colonial, tentar associar os guineenses à governação e construir a rede de infraestruturas indispensáveis à política de desenvolvimento. Apesar de, na época, a orientação ter causado «alguma controvérsia», esse triénio, resume Peixoto Correia, produziu «obra de alcance e profundidade, porque a política praticada atendeu às características sociais e étnicas locais e ainda por as realizações haverem afetado todos os setores». Segundo o Vice-Almirante Silva Horta, Sarmento Rodrigues acreditou «sinceramente na doutrina oficial de então», contactou toda a população, proibiu os castigos corporais, promoveu a agricultura, a investigação científica e inúmeras obras, tornando «a Guiné melhor» e pondo-a «no mapa».

A sua política prosseguiu a estratégia (iniciada, antes do «28 de maio» de 1926, pelo Governador Vellez Caroço) de privilegiar as alianças com os muçulmanos (sobretudo fulas) e, por outro lado, expandiu o aparelho administrativo, mediante o preenchimento do quadro de dirigentes com uma elite metropolitana e a entrega da administração intermédia a cabo-verdianos e mestiços (que também dominavam o sector comercial), envolvendo, progressivamente, «alguns guineenses de cor escura».

De facto, Sarmento Rodrigues restringiu os poderes dos régulos e manifestou-se «intransigentemente» contra o uso das violências em relação ao trabalho dos indígenas, atitude que terá provocado diversas «lamentações, de que os indígenas agora faziam o que queriam». Numa perspetiva de economia política, terá adotado um «populismo agrário», algo romântico, e olhado para a Guiné como se fora «um pomar tropical».


Outra medida significativa foi a aprovação do Diploma dos Cidadãos, como ficou conhecido o Diploma Legislativo n.º 1364, de 7 de outubro de 1946, que reformava o chamado «Diploma dos Assimilados» (Diploma Legislativo n.º 535, de 8 de novembro de 1930), o qual, por sua vez, estabelecera as condições em que os natu¬rais das colónias podiam passar à condição de «assimilados a europeus», definindo, desse modo, um estatuto pessoal, étnico e hereditário, no caso aplicável aos guineenses de origem mas não aos cabo-verdianos (que nunca estiveram sujeitos ao regime de indigenato). Na Guiné, a partir de 1946, passaram, portanto, a distinguir-se relativamente aos «indivíduos de raça negra, ou dela descendentes» apenas duas categorias - os indígenas e os cidadãos (ou «civilizados») -, abolindo aquela terceira categoria de «assimilado». Eram considerados indígenas os indivíduos de raça negra ou dela descendentes que não preenchessem conjuntamente as seguintes quatro condições: a) falar, ler e escrever português; b) dispor de rendimentos suficientes ao sustento familiar; c) ter bom comportamento; d) ter cumprido os deveres militares. As condições de passagem à condição de cidadão português (ou seja, de «civilizado») eram enunciadas pelos artigos 2.º e 3.º, sendo o bilhete de identidade o «o único documento comprovativo da qualidade adquirida de não indígena» (artigo 4.º). A verdade é que este regime só em 1954 seria aplicado em Angola e Moçambique pelo novo «Estatuto dos Indígenas», desenvolvendo a filosofia de assimilação que enformara a revisão constitucional de 1951 e sendo o próprio Sarmento Rodrigues Ministro do Ultramar. O referido Diploma dos Cidadãos, disse-se então, era «o mais importante no género do Império Colonial Português».
Parágrafos retirados do artigo Guiné-Bissau: A causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC, publicado nos Cadernos de Estudos Africanos, setembro/outubro de 2006.

Estamos agora em 20 de setembro de 1946, o Conselho de Governo tem na ordem de dia a apreciação da legislação que estabelece as condições que devem caracterizar os indivíduos naturais da colónia para serem considerados assimilados a europeus. Consta do preâmbulo:
“Sendo da essência orgânica da Nação Portuguesa civilizar as populações indígenas dos domínios ultramarinos, deve encarar-se com verdadeiro júbilo e reconhecimento de todos os progressos verificados neste campo. Por cada novo cidadão responsável que se desprenda do indigenato, é mais um esforço civilizador que se consagra e uma ambição que se preenche. Fiel ao espírito das leis basilares, este diploma garante a conceção de direitos a todos aqueles que os merecem”.
E tipificava-se a condição: são considerados indígenas todos os indivíduos de raça negra (que não estejam abrangidos pelo que dispõe o artigo seguinte para a definição de cidadãos portugueses), não falam, não leem nem escrevem a língua portuguesa, praticam os usos e os costumes do comum da sua raça; são cidadãos portugueses os indivíduos de raça negra que exerçam ou tenham exercido cargo público a que corresponda vencimento de categoria com as habilitações literárias mínimas, faça ou tenha feito parte de órgãos diretivos, de corpos ou corporações administrativas, ser comerciante matriculado, ser proprietário de estabelecimento industrial, possuir como habilitações literárias mínimas o primeiro ciclo dos liceus, ser natural de outra colónia ou território português onde não haja indigenato (era o caso de Cabo Verde). E a lei depois estabelecia as condições em que se podia requerer a qualidade de cidadão.
Sarmento Rodrigues expôs ao Conselho o espírito do diploma:
“Aqui não se trata de agradar, mas sim de educar. E nessas condições não se procura o aplauso de opiniões que não existam, nem se receiam as censuras de quem não sabe criticar. Com a consciência perfeita dos seus deveres, o Governante, o chefe, o civilizado, tem de dar exemplos e indicar os caminhos que devem ser seguidos sem curar de saber se as massas lhe dão um aplauso”. Interveio Mário Lima Wahnon, exaltando a iniciativa, estava convencido de interpretar o sentir de todos os presentes, o Conselho sentia-se honrado dando o incondicional apoio à iniciativa.

Em 8 de fevereiro de 1947, estando reunido o Conselho de Governo, Sarmento Rodrigues recorda a visita do Subsecretário de Estado das Colónias à Guiné. Julgava-se que o Marechal Carmona viria à Guiné, fizera-se representar, a colónia sentia-se agradecida. Mas o Governador entendeu expender um ponto de vista político:
“É tradicional das gentes das colónias quando são, como agora, benévolas para o seu Governador, desculparem-no, atribuindo todas as deficiências às dificuldades e empecilhos postos pelo Terreiro do Paço. É o que tem sucedido comigo. Mas hoje peço-lhes, meus senhores, que atentem na verdade. Tudo o que tem sido feito é devido ao apoio, ao auxílio, aos incitamentos que tenho recebido da metrópole. Tudo o que não está feito ou saiu mal é, sem dúvida, alguma, culpa, insuficiência minha. Quando no fim de 1945 estive na metrópole, obtive tudo, vim cheio de dádivas para a Guiné. O Ministério da Guerra ofereceu-nos um avião Tiger e os 2.000 contos do Fundo de Defesa Militar do Império. O Ministério da Marinha deu-nos todo o material de guerra para armar a Polícia de Segurança Pública, um batelão, boias, e ainda outro material. O Gabinete de Urbanização Colonial esteve durante um longo período a trabalhar quase exclusivamente para a Guiné, elaborando projetos que nos têm permitido desenvolver as obras que todos conhecem”.

E refere levantamentos topográficos, planos de urbanização, projetos para enfermarias, postos sanitários, escolas, moradias, igrejas, postos administrativos, mercados. Tinham sido melhorados os preços para o amendoim, coconote e óleo de palma. “Mas há mais. A ponte de Ensalmá e o porto de Bissau, as suas velhas e quase imaginárias aspirações tradicionais da Guiné, vão ser realizadas”. Tinha chegado dinheiro para a construção de obras de sanidade e escolas para os indígenas. “Senhores vogais: reunimo-nos hoje aqui para agradecermos, não somos mais do que reconhecidos. E, por isso, sem mais palavras, eu proponho que aprovemos, de pé, uma saudação ao ilustre representante do Governo da Metrópole para que transmita ao Governo Central a que pertence, a certeza da nossa inquebrantável dedicação e lealdade e o nosso grande reconhecimento por todos os benefícios materiais e morais que nos está concedendo”.

(continua)


Sarmento Rodrigues, foto oficial do Ministro do Ultramar
Projeto de adaptação do Palácio do Governo, Guiné-Bissau
Hospital de Cumura, a leprosaria da Guiné
Imagem da vida quotidiana em Bissau, nos dias de hoje
Edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23902: Historiografia da presença portuguesa em África (348): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 27 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23820: Notas de leitura (1523): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte IV “Devo à Providência a graça de ser pobre” (Salazar, Braga, 1936)

1. Jornalista e escritor, com formação em história, João Céu e Silva não escreveu propriamemte uma biografia de Vasco Pulido Valente (VPV) (1941-2020), mas fez com ele uma interessantíssima, para não dizer apaixonante,  viagem pela história de Portugal, desde 1807 (início das invasões francesas e saída da corte para o Brasil) até à atualidade, valendo-se da sua centena de horas de entrevistas gravadas, ao longo de quase dois anos, e da vastíssima cultura histórica do VPV.

É um trabalho, não propriamente para eruditos mas para o grande público, incluindo os leitores daquele que foi um dos maiores (e mais polémicos) cronistas do seu tempo. Inevitavelmente, a vida do entrevistado vem ao de cima, desde a sua origem familiar às suas múltiplas atividades, como académico, historiador, investigador, jornalista, cronista e até político (cuja carreira terá sido cortada ao meio com a morte de Sá Carneiro). O único tabu que impôs (e muito bem) ao entrevistador foi a sua vida privada.

Não devendo, pelas nossas regras editoriais, entrarmos pela análise da atualidade política (o mesmo é  dizer, das últimas quatro décadas) vamo-nos centrar na apeciação que o VPV faz, no livro, da fase final do Estado Novo, do 25 de Abril, da descolonização e do 25 de novembro, terminando aqui, nas duas próximas  notas, a nossa leitura deste livro.(*)

Para todos os  efeitos, é um livro escrito a quatro mãos, baeado na resposta do VPM a um vastíssimo e exaustivo guião  de perguntas, mesmo que o entrevistado já não tenha tido oportunidade de rever o essencial das suas declarações. (A  obra saiu um ano depois da sua morte.)

Homem de ego elevado, estrangeirado como Eça de Queiroz (seu autor de cabeceira), tão  inteligente e lúcido quanto sarcástico e amargurado no fim da sua vida (morre, precocemente,  aos 78 anos, de doença crónica degenerativa), aceitou o desafio (e agarrou a oportunidade) de ditar, de algum modo, para a posteridade o seu "testamento" através do seu quase biógrafo João Céu e Silva.  

O livro tem tido, ao que parece,  boa aceitação, e inscreve-se numa série que o autor criou, "Uma longa viagem com..." (Antes de VPV, foram entrevistados outros escritores como, por exemplo,  José Saramago ou António Lobo Antunes, dois autores que, diga-se de passagem, o VPV estava longe de admirar; e o Saramago, esse,  destestava-o mesmo, talvez por pescar am águas que os historiadores consideram como suas, caso, por exemplo, do Memorial do Convento ou o Ano da Morte de Ricardo Reis; aliás, criticava o seu "realismo mágico",  deslocado aqui e agora, num Portugal por fim obrigado a confinar-se ao continente europeu e à sua cultura, "perdido" o império e as suas ilusões de grandeza; e quanto à atribuição do prémio Nobel da Literatura,  era qualquer coisa que não impressionava o implacável e iconoclasta VPV, um colecionador de "ódios de estimação").

Mas deixemos aqui, para uso e eventual proveito dos nossos leitores,  dois apontamentos do pensamento do VPV sobre o fim do Estado Novo, regime de que ele era particularmente crítico, de resto como outros historiadores devido ao bloqueio que representou à modernização da sociedade e da economia portuguesas. (No fundo, é uma ideia quase de "senso comum", da parte daqueles que fazem "história espontânea", mesmo sendo "anti-salazaristas": cumprida a sua missão (saneamento financeiro e neutralidade político-militar de Portgal na II Guerra Mundial), Salazar devia ter voltado a Coimbra, e deixado o país apanhar o comboio das democracias ocidentais que triunfaram sobre as"potências do Eixo"... Mas na realidade, não foi isso que aconteceu, infelizmente para todos nós: o homem sentia que tinha uma missão divina a cumprir na terra...

A seguir, excertos de João Céu e Silva . "Uma longa viagem com Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.), com a devida vénia ao autor e à editora;



(i) Estado Novo
e desenvolvimento económico


(…) Nas décadas de 1950 e 1960 houve boas condições para Portugal crescer e obter mais riqueza (…) (pág 129).

(…) Pode não se acreditar, mas nos anos  50 o PIB português  cresceu à volta de  quatro a cinco por cento ao ano e  nos anos 60 conseguiu chegar aos seis e sete  por cento ao ano.. 

Portanto, o regime salazarista  teve muito sucesso económico, uma situação que Salazar não gostava, daí a célebre frase dele (…) quando fala aos ministros sobre o desenvolvimento económico do país, com o qual estavam todos de acordo: “Se quereis enriquecer, então está bem, cedo às vossas pretensões”. (…).

Isto é que era o verdadeiro Salazar, o que dissera “Devo à Providência a graça de ser pobre” (#), era ao mesmo tempo dizer que não era corrupto e, fundamentalmente, a afirmação de que a pobreza era uma virtude. Essa é uma premissa que nunca se tem percebido na interpretação de Salazar (pág. 130)

(#) Discurso em Braga, em 1936, dez anos de regime, “o grande discurso de Salazar” (pág. 164).

(ii) Fim do regime


P – Nos últimos anos do regime, os portugueses não se levantam porquê ? (pág. 174)

 Porque têm medo e porque a política deixou de ser a ocupação fundamental.  A grande libertação moral dos anso 60, os grandes movimentos idealistas dos hippies e do Paz e Amor é que preocupava as pessoas. Não eram coisas diretamente políticas, antes uma imposição americana, que nem se prestava muito às adaptações portuguesas.  

Bastava ver o que ser passava nos cafés da Avenida de Roma. No Vá-Vá ou no Roma, que eram o retrato de uma nova mentalidade. Eram modas e conversas que levavam a que as pesssoas andassem preocupadas com outras coisas e ficassem desligadas da realidade política – não queriam saber dela para nada. Formalmente, eram todos contra, mas isso já não queria  dizer nada porque não as preocupava. O único problema que existia era a guerra colonial, de maneira que essa gente  era contra os militares porque lhes cheirava a  colónias. Quanto ao resto, não aquecia nem arrefecia. (pag. 174/175)

(…) Os meninos emigravam voluntariamente, não só para fugirem à tropa mas para terem experiência no estrangeiro. Isto estava tudo dissolvido e a chegada de Marceloo Caetano não resolve, piora. Porque havia menos medo de Marcello do que de Salazar. (…) 

Estavam até às tantas da manhã em festas, as pessoas fumavam drogas leves e iam para a cama com A e com B,  um estilo de vida contra o qual não havia nada a fazer

E então veio o 25 de Abril, que era uma consequência  disto e também um movimento irresistível. (pág. 175).

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos  / Links, para efeitos de publicação deste poste:  LG]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 25 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23815: Notas de leitura (1522): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (5) (Mário Beja Santos)

Vd. postes anteriores:

24 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23811: Notas de leitura (1521): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte III: Salazar, Caetano e as Forças Armadas... (Considerar os capitães milicianos como "voluntários" e "mercenários", raia o insulto, não?!..)

18 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23793: Notas de leitura (1518): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte II: A guerra de África não foi nada parecido como o trauma da I Grande Guerra...

17 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23791: Notas de leitura (1517): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte I . As colónias não valiam o preço...