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quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21557: Historiografia da presença portuguesa em África (239): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

É bem interessante a analogia usada com outros povos imperialistas que se serviram do comércio para ir ocupando posições, preparar o terreno para ocupações efetivas. Foi assim que trabalharam os alemães e os holandeses. Os franceses não escaparam à tentação de se assenhorear da costa ocidental, só tinham receio de entrar em conflito com os ingleses, presentes na Gâmbia e na Serra Leoa. Tentarão dominar o coração do continente, nessa altura o governo de Londres irá humilhá-los, obrigando-os a retirar de toda a região do Nilo. 

Max Astrié, a fazer fé neste relato, é o primeira branco a ir à Ilha de Orango. Não terá sido o primeiro, houvera pouco tempo antes um naufrágio de um navio austríaco, tudo terá acabado num certo morticínio e roubo, como se verá no próximo texto. 

É uma peça finíssima de literatura de viagens, com o maior dos interesses para as literaturas portuguesa e guineense. Peço imensa desculpa por quaisquer erros de tradução, sinto-me feliz por fazer reaparecer este belo documento que refere acontecimentos passados em 1879. 

Na década seguinte, com a Convenção Luso-Francesa, nenhum outro Max Astrié poderia voltar a escrever um relato como este, seria entendido como pura ingerência numa colónia oficialmente portuguesa.

Um abraço do
Mário



Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens (2)

Beja Santos

Confesso a minha total surpresa e satisfação em descobrir este documento digno de emparceirar no que há de melhor da literatura de viagens à Guiné. Max Astrié assina como vice-cônsul da Turquia em Bolama e Bissau e a sua insólita viagem à Ilha de Orango, carregada de peripécias e dos maiores riscos, foi publicada no Boletim da Sociedade de Geografia, 6.º Série, N.º1, 1886. 

Atenda-se que a viagem ocorreu na década anterior, a França, de modo sub-reptício, ensaiava todas as diligências para se instalar para cima do rio Nuno, estreitando o campo de manobra da presença portuguesa na Senegâmbia. 

Como se viu no texto anterior, a convite do visconde de Sanderval, e seguramente sob os auspícios do governo francês, Max Astrié é convidado a viajar até à ilha de Orango, a maior dos Bijagós, onde até então não chegara a influência dos portugueses. Desembarca e é apresentado ao rei, um verdadeiro déspota, um tirano sanguinário. Propõe-lhe um contrato comercial, o rei exige a prática de um sacrifício, degolar uma galinha e perceber da bondade desse mesmo contrato, a galinha a estrebuchar deveria cair aos pés do francês, seria uma boa sina. É neste ponto que retomamos o relato.

Enquanto se preparava o sacrifício, escreve Max Astrié:

"Trouxeram de todos os lados laranjas, ananases e vinho de palma. Reparei na presteza com que uma jovem negra depusera a meus pés dois soberbos ananases e colocou-se atrás de mim e com as pontas dos dedos procurou tocar no meu pescoço. Ela completou esta pantomima manifestando-me o desejo de me ver o peito. Cedi à sua curiosidade e abri a camisa e o colete de flanela. A multidão, atenta a todos os meus movimentos, deixou escapar um imenso clamor devido sem dúvida ao espanto que lhe causava a brancura da minha pele. Eu também não quis ficar sem resposta.

É uso e costume em algumas tribos da costa africana manifestar a galantaria diante das mulheres afagando com delicadeza os seios e a extremidade superior do fémur e o maior elogio que se poderá fazer à beleza da mulher acariciada é exprimir a admiração que causa a firmeza destas partes do corpo. 

Nós, parisienses, ficaremos certamente surpreendidos que se proceda de tal modo. Aproximei-me da negra e senti-me no dever de corresponder à sua delicadeza. Entretanto, o rei Oumpâné apareceu no limiar da porta da sua casa e lançou-me um olhar que não tinha nada de convidativo…

Tudo se aprestou para o sacrifício. A uma centena de metros do telheiro onde fôramos recebidos estendia-se uma espécie de lugar público cercado de bananeiras e laranjeiras. Tinham trazido todos os ídolos da ilha. Eram estátuas grotescas em madeira, grosseiramente esculpidas e que tinham no alto um género de cartola, que é o emblema do poder real. Quanto às divindades secundárias, tinham a representação de grandes senhoras negras que ostentavam em cima dois cornos de cabra. Como se vê, todos os povos têm uma inclinação para pôr cornos nos seres sobrenaturais.

O povo formava um imenso círculo à volta destes ídolos e esperava com impaciência a chegada do rei que devia presidir ao sacrifício. E o rei apareceu.

Colocou-se a meu lado, sempre acompanhado por dois ministros. Ao sinal do rei, o grande sacerdote, após alguns salamaleques, apresentou um galo que segurava vigorosamente pela cabeça e o ministro da justiça pelas patas. Uma faca caiu sobre o pescoço do galo, que tombou decapitado e caiu por terra nas convulsões da agonia. O rei explicou-me através do intérprete que se o corpo do animal que se debatia se aproximasse de mim o sacrifício tinha agradado aos deuses. Pelo contrário, se o animal tomasse a direcção oposta, os deuses não me seriam favoráveis. Por fatalidade, o galo afastou-se de mim, a assistência parecia ter ficado em estado de choque e o rei levantou-se e foi para sua casa, sem proferir palavra.

Os deuses tinham-me abandonado! O ministro da guerra enviado por Sua Majestade Oumpâné informou-me que eu estava detido. Ao mesmo tempo, uma centena de Bijagós dirigiu-se para a minha embarcação e em menos de uma hora desembarcaram tudo o que nela vinha.
Fiquei aterrado.

Não sabendo o que me ia acontecer, deplorei a funesta temeridade que me tinha levado a estas costas tão hostis. A ideia de resistir assaltou-me o espírito. Mas em presença de tanta população servindo às ordens deste déspota, compreendi que qualquer tentativa desse género acabaria terrivelmente mal, quer para mim quer para a minha tripulação.


O meu cozinheiro preparou a galinha com arroz tradicional. A minha refeição foi interrompida com a chegada de um grupo de nativos que traziam um touro que foi degolado na minha presença. Foi esquartejado sem ser esfolado e o ministro da guerra veio anunciar-me que o rei mandara matar o touro em minha honra e contava com a minha generosidade para lhe oferecer um quarto do animal.

Respondi prontamente que sim, e ofereci também 38 litros de aguardente. Oumpâné ficou tão satisfeito que me veio agradecer pessoalmente. Através do meu intérprete, deu-me a saber que eu era livre de percorrer toda a ilha e que em minha honra autorizara festejos públicos.

Sentia-me totalmente confuso. Um rei que me mantinha prisioneiro e que ao mesmo tempo me oferecia presentes e festejos públicos era a coisa mais incompreensível do mundo.
Floresta guineense, imagem do site Algarve Selvagem, com a devida vénia
Vista geral da Ilha de Orango

No dia seguinte, dirigi-me para o interior da ilha. Após ter atravessado muitos milheirais, campos de inhames e de batatas, entrámos numa floresta que cobria uma grande parte da ponta oeste de Orango. É-me difícil traduzir em palavras a impressão que me causou. Já tinha visto muitas florestas e lido numerosas descrições; mas em parte alguma vi algo que me desse a ideia de semelhante natureza.

Encontrávamo-nos debaixo de uma abóbada imensa, formada principalmente por árvores de bombax [procurei em vários dicionários, surfei no Google, estou em crer que Max Astrié está a falar de poilões gigantescos, é a maior de todas as árvores, na Guiné], uma das árvores gigantes da costa africana cujo tronco serve para fazer as pirogas. Lianas com as formas mais bizarras e variadas enrolavam-se à volta dos troncos vigorosos, subindo muitas vezes até às copas. Estas árvores, cuja altura ultrapassa os carvalhos, são coroladas por uma folhagem de tal modo espessa que os raios de sol não a conseguem atravessar. À sua volta reina uma sombra eterna; daí a ausência de toda a vegetação sobre o solo. Andávamos através de uma clareira que me parecia interminável e que tinha ao alto uma vasta cúpula de verdura onde ressoavam os gritos, os cantos, os miados e os uivos na mais variada fauna.

De longe em longe, numa nesga de luz, apareciam goiabeiras curvadas sob o peso dos frutos maduros [tenho sérias dúvidas que se tratava de goiabas, mas sim de mangas]. Estes frutos, da grossura de batatas, têm um gosto saboroso que dá ao vinho um perfume requintado [a frase parece-me desconexa, mas é o que Max Astrié escreveu].

Via-se a esmo o caju [impossível, o caju chegou à Guiné na década de 40 do século XX, talvez ele se refira ao amendoim], o bambu e a palmeira. Sobre esta última, observarei que não há nada de mais útil para mil usos possíveis; com as suas folhas os negros fabricam vestuário e cordoaria; do seu tronco extrai-se o vinho de palma e do seu fruto retira-se o óleo de palma e nas plantas da palmeira temos uma noz de um gosto agradável designada por palmiste. O ruído dos nossos passos e as nossas vozes punham toda aquela fauna em movimento, gritando e fugindo nas ramagens".

(continua)
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Nota do editor:

Último poste da série de 11 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21532: Historiografia da presença portuguesa em África (238): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21532: Historiografia da presença portuguesa em África (238): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

Trata-se de um curiosíssimo relato de uma viagem onde não faltam os ingredientes de um rei crudelíssimo, a surpresa da chegada de um branco, coisa nunca vista, quem o escreve é um francês de nome Max Astrié, que era vice-cônsul da Turquia em Bolama e Bissau. 

Tudo se passou em 1879, a presença portuguesa confinava-se a Bolama no que toca aos Bijagós, a França não escondia o seu apetite em espartilhar a presença portuguesa na Senegâmbia. 

Max Astrié deslocava-se a pedido de um explorador lendário que queria intensificar os negócios na região. É um relato cheio de vivacidade, com algumas pitadas de sensualidade, feitiçaria e a descoberta das belezas inconfundíveis dos Bijagós. Uma belíssima descoberta, afianço-vos.

Um abraço do
Mário



Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens (1)

Beja Santos

Folhear os primeiros anos do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa dá azo às mais deliciosas surpresas. No Boletim, 6.º Série, N.º1, de 1886, li e reli com enorme prazer a viagem à Ilha de Orango, o seu autor foi Max Astrié, Vice-Cônsul da Turquia em Bolama e Bissau. 

Sou responsável pela tradução livre, desde já me penitencio de alguma interpretação desaforada. Releva a forma clara, de pronta apreensão, deste relato surpreendente daquele que terá sido o primeiro branco a pisar o solo de Orango, a maior das ilhas do arquipélago dos Bijagós. 

É uma narrativa cativante, um texto digno de ombrear no que há de melhor de literatura de viagens do século XIX.
Primeira página do relato de Max Astrié

Vamos ao que ele escreve. 

O arquipélago dos Bijagós situa-se na costa ocidental de África, entre a Senegâmbia e a Serra Leoa, se bem que nas cartas escolares figura em face da Senegâmbia. As ilhas são mal conhecidas. Só a ilha de Bolama foi colonizada pelos portugueses, vai para dois séculos, e serviu durante muito tempo como entreposto do tráfico de escravos.

Aimé Olivier de Sanderval,
Visconde de Sanderval
Em 1878, encontrava-me em Bolama e recebi de Marselha, via Lisboa, o seguinte telegrama: ''Max Astrié aceita missão explorar arquipélago Bijagós? Caso afirmativo, vir Marselha''. 

Após uma semana de hesitações decidi-me a aceitar e um mês mais tarde embarquei para essa cidade. O telegrama que me fora enviado viera de Mr. Olivier, Visconde de Sanderval, ilustre viajante que tinha explorado, correndo os maiores perigos, grande parte do Futa Djalon. 

Era um homem de cerca de 45 anos, barba negra, olhar expressivo, másculo e enérgico. Falou-me com uma comunicação calorosa, acreditava que estas regiões eram muito auspiciosas para o futuro comercial da França. Cheio de confiança, embarquei em Bordéus em 20 de Outubro de 1878 num barco que irá naufragar, um mês mais tarde, nas costas americanas.

Contraí febre-amarela, estive dois meses em Rufisque (Senegal) e um mês ao largo de Bissau, desembarquei em Bolama em 1 de Fevereiro de 1879. Fiz os meus preparativos para começar as minhas explorações em Orango, e por dois motivos: é a mais importante do arquipélago; havia rumores que faziam tremer os mais decididos, pois dizia-se que os Bijagós das outras ilhas que se aventuravam a ir a Orango não regressavam – a ilha era governada pelo rei Oumpâné Caetano, que havia chegado ao poder pela força das armas, um déspota sempre pronto a praticar actos de crueldade. 

O navio austríaco encalhara meses antes nos bancos de areia da ilha. Toda a tripulação ficara detida e posta a ferros e só fora libertada pela intervenção do sobrinho do rei. Foi ciente destas situações que para ali embarquei em 5 de Fevereiro, era o único branco a bordo.

Na véspera, recebi do agente consular da França em Bolama a seguinte carta: “Caro Mr. Astrié – tomei conhecimento que tem intenção de se aventurar na ilha de Orango. Na minha qualidade de compatriota e amigo, creio ter o dever de o desaconselhar com toda a firmeza de tal projecto. Deve saber que o rei desta ilha se dá à prática de actos atrozes, como foi o caso de alguns marinheiros austríacos ali naufragados. Não se vá expor a perigos que lhe irão causar grandes prejuízos pessoais, que levem à necessidade da intervenção do governo francês. Os melhores cumprimentos, segue-se a assinatura”.

Esta missiva não me deteve. A minha decisão estava tomada e parti com o apoio solícito de toda a população. Quando nos aproximámos de Orango, distingui à volta uma grande fogueira uma dezena de negros que gesticulava com vivacidade e em direcção do nosso barco. 

Passámos toda a noite a questionar se estas demonstrações não escondiam quaisquer propósitos para impedir o nosso desembarque. Apesar disso, no dia seguinte, ao amanhecer, preparei o pequeno bote, distribuí armas por todos os meus acompanhantes e dirigi-me resoluto para a costa. Quando desembarcámos, chegou um grupo de negros, homens, mulheres e crianças que gritavam e nos lançavam olhares espantados. 

A palavra Toubaba era constante nos seus bramidos. Alguns estavam armados de azagaias. Ordenei aos meus acompanhantes que formássemos um grupo compacto e convidei o meu intérprete a parlamentar com os autóctones. Nesse momento, um negro aproximou-se de mim, saudou-me com a mão e voltando-se para o intérprete falou nestes termos: “Diz ao branco que a embarcação está assinalada deste ontem e o rei envia-me para lhe dizer que o convida a vir à tabanca” e fez sinal para o seguirmos.
Vista geral da Ilha de Orango
Pormenor do Parque Natural de Orango

A tabanca do rei ficava a cerca de quilómetro e meio. Durante o trajeto ia-se juntando mais gente. Alguns minutos depois, chegámos a um laranjal, no meio do qual estava a casa do rei, que não era mais do que uma casa circular composta de uma paliçada de bambus e com um teto de palha. O rei esperava-nos num alpendre, era uma espécie de peristilo informe onde habitualmente se praticava a justiça.

 Sua Majestade Oupâné estava sentada num escabelo em madeira. Era um homem de aproximadamente 35 anos, olhos penetrantes, nariz adunco, coberto com um pano que lhe cobria metade do corpo. Sinal característico: trazia na cabeça uma espécie de cartola, segundo o uso de todos os reis do arquipélago. Na sua coxa direita tinha uma ferida repugnante, supurando um pus esbranquiçado, indicativo de uma doença muito espalhada nos povos da costa ocidental de África. 

De vez em quando, o rei espremia esta fica asquerosa e limpava os dedos no seu ministro da justiça, que estava completamente nu. Ofereceu-nos escabelos onde nos sentámos. Muitos dos viajantes fantasistas têm o triste hábito de se apresentar dizendo que conversam directamente com os indígenas de que ignoram a língua, o que nos deixa supor que nunca tinham posto os pés no país de que falam. O meu intérprete, depois de conversar com o intérprete do rei, disse-me:

“Queira o Irã, o mais poderoso dos deuses, que tudo o que vou dizer seja a expressão da verdade. Não esquecerei que ao falar ele lê no fundo do meu coração e que ele sabe previamente se as minhas palavras estão de acordo com o meu pensamento. Queira o Irã que do teu lado não sejas mentiroso! Em breve, vou fazer um sacrifício a todos os deuses: fala, o que vens fazer a esta ilha?”. 

Todo o povo estava ávido por me ouvir, agrupara-se à nossa volta e eu via, não sem uma certa inquietação, o círculo fechar-se cada vez mais, eu sentia o odor nauseabundo que vinha daqueles corpos besuntados com óleo de palma rançoso, segundo o costume do país.

O rei provavelmente apercebeu-se, porque fez com o bastão que tinha na mão um gesto significativo e a multidão afastou-se uma dezena de metros. Fiz a Sua Majestade os presentes do uso: um lenço de fino algodão; uma faca para talhante; oito maços de tabaco em folha e um garrafão de aguardente. Depois, voltando-me para o meu intérprete, respondi nestes termos: 

“Diz ao rei que estou pronto a responder a todas as suas questões com sinceridade, porque os brancos em França não mentem nunca. Vim a Orango para fazer com ele comércio de coconote, amendoim e borracha. Trarei do meu lado, todos os produtos dos brancos, tais como a quina (planta para tingir), o tabaco e a aguardente”. 

À palavra aguardente, correu um prolongado murmúrio de aprovação na multidão. O rei ficou uns minutos sem responder; depois, voltou-se para o seu intérprete e disse com voz rouca: 

“Diz ao branco que compreendi todas as suas palavras. Iremos oferecer um sacrifício aos deuses e agiremos segundo a sua resposta”. 

E logo se retirou para sua casa após terem encarregado dois negros para cuidar de todos os pormenores da cerimónia.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21515: Historiografia da presença portuguesa em África (237): “Permanência": a última revista de propaganda imperial (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Guiné 61/74: P20226: Memória dos lugares (395): Ilha das Cobras: destacado, de abril a junho de 1968, para defender um farol...E nesse espaço de tempo recebi a visita do ten Robles e de homens da 15ª CCmds bem como do brigadeiro Spínola (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole, Bolama, Ilha das Cobras e Ilha das Galinhas, 1966/68)


Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Bolama > Ilha das Cobras > c. abril / julho de 1968 > Foto nº 1 > O farol


 Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Bolama > Ilha das Cobras > c. abril / julho de 1968 > Foto nº 2 >  Eu e os dois Cabos (um nortenho e outro guineense)  almoçando



 Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Bolama > Ilha das Cobras > c. abril / julho de 1968 > Foto nº 3 >   À sombra do poilão lendo um livrinho acabado de chegar da livraria do Café Bento (em Bissau, junto à Amura)

Foto (e legenda): © José António  Viegas (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Bolama > Ilha das Cobras > Mapa de São João (1955) > Escala de 1/50 mil > Posiçao relativa da Ilha das Cobras e do respetivo Farol, com Bolama a sul, e São João, a sudoeste, e mais abaixo, o rio Grande de Buba.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)



1. Mensagem do nosso camarada José António Viegas, um dos régulos da Tabanca do Algarve, membro da Tabanca Grande, ex-fur mil do Pel Caç Nat 54, tendo passado por vários "resorts" turisticos erm 1966/68 (Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole, Bolama, Ilha das Cobras e, o mais exótico de todos, a Ilha das Galinhas, na altura, colónia penal); vive em Faro; tem cerca de 35 referências no nosso blogue

Data: quarta, 9/10/2019 à(s) 15:52
Assunto: Ilha das Cobras

Caro Luis:

Antes que a memória se vá apagando,  aqui conto mais uma história daquelas "férias" na Guiné.

Depois de 19 meses em zona operacional, sou colocado na Ilha das Cobras, situado perto de Bolama e que tem um farol de sinalização.

Sou recebido pelo um 1º cabo nortenho de gema, de seu nome Xóreras, que me acolheu com o típico linguajar do Norte e  a dizer que logo tinha que lhe calhar um furriel algarvio...

Foi um rapaz impecável. A guarnição era composta por  pelotão de africanos, com o furriel e um cabo da metrópole e um cabo africano. A missão era fazer uns patrulhamentos e o controle do Farol. Todas as noites acho que não falhou nenhuma,  era ouvir o ribombar de fogo do outro lado do rio, Tite, Nova Sintra, Jabadá e S. João.

Os abastecimentos eram feitos a partir de Bolama,  por vezes com atraso. Organizei  então umas caçadas ao cabritos de mato e umas pescarias onde se apanhavam boas raias, fazendo as delicias do rancho, para não ser só bianda.

Uma noite veio o sentinela acordar-me a dizer que ouvia vozes junto ao Farol, preparei a secção e fui ver o que se passava, era então o barco da [Casa] Gouveia que tinha dado em seco junto ao Farol, e vinham homens caminhando para o destacamento, tendo-se identificado o comandante por tenente Robles,  da 15ª de Comandos [, Fernando Augusto Colaço Leal Robles, ten inf 'cmd0, na altura adjunto do comandante da 15ª CCmds; será promovido a capitão em maio de 1969, regressando em agosto à metrópole, e sendo colocado no CISMI, em Tavira]

Passado 2 semanas estavávamos a preparar o almoço,  cabrito com ostras, quando paira sobre o destacamento um helicóptero: era o nosso brigadeiro Spinola [,chegado ao CTIG, em 20 de maio de 1968], o capitão Bruno e um tenente coronel de que já não lembro o nome.

O Com-chefe mandou formar o pessoal e deu uma preleção aos homens, que "nós, brancos, estavámos ali para dar uma ajuda, eles é que tinham que defender o seu chão"...
O cheiro que vinha das panelas com o cabrito era tentador mas tiveram que levantar voo.

Foram 3 meses no destacamento, de abril 68 a junho 68.[O Viegas seria depois destacado para a Ilha das Galinhas, até setembro de 1968, quando sua comissão.]

Fotos

1- Farol da Ilha das Cobras
2- Eu e os dois Cabos almoçando
3- À sombra do poilão lendo um livrinho acabado de chegar da livraria do Café Bento (em Bissau, junto à Amura)



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Bolama > Ilha das Cobras > Julho de 1966 > O nosso saudoso Jorge Rosales (1939-2019),  no final da sua comissão, depois de ter passado 18 meses em Porto Gole... Recorde-se que ele, que era alf mil, pertenceu à 1ª Companhia de Caçadores Indígena, com sede em Farim. (Havia mais duas, uma Bedanda, a 4ª, CCAÇ, e outra em Nova Lamego, a 3ª CCAÇ). Ficou lá pouco tempo, em Farim, talvez uma semana. A companhia estava dispersa. Foi destacado para Porto Gole, com duas secções (da CCAÇ 556, do Enxalé) e outra secção, sua, de africanos. Tinha um guarda-costas bijagó. Ficou lá 18 meses. Passou os últimos tempos, em Bolama, no CIM, a dar recruta a soldados africanos.

Foto (e legenda): © Jorge Rosales (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20146: Memória dos lugares (393): Farim, uma cidade cristalizada no tempo (Joana Benzinho, fundadora e presidente da ONGD "Afectos com Letras")

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20121: Historiografia da presença portuguesa em África (175): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Um dia, em conversa com o nosso estimável camarada António Estácio, estava ele a escrever sobre Bolama, referiu-me a importância de se conhecer os conteúdos do Bolamense.
Chegou a hora, li na íntegra todos os números na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. A História de Bolama entre 1956 e 1963 ganha mais luminosidade, caminhava para um escombro quando, fruto da guerra subversiva, escolheu-se Bolama para centro de instrução militar. E havia o turismo, a praia do Ofir, que o jornal tece os maiores encómios. Era publicação nacionalista sem rodeios, os discursos de Salazar eram publicados na íntegra. E havia a cultura, de que neste e no próximo texto se dará notícia.
Vale mesmo muito a pena ler o Bolamense.

Um abraço do
Mário


O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1)

Beja Santos

O primeiro número deste jornal publicado em Bolama data de 1 de agosto de 1956, trazia uma consigna: “Servimos Bolama, os governos da Província e toda a família guineense”. O jornal irá desaparecer em 1963, do que se consultou os editores não deram quaisquer explicações. Era oficioso, nacionalista, teimava pela causa de Bolama, por tudo e por nada. Quando o Instituto Honório Barreto passou a liceu, reclamou-se um liceu para Bolama. Pedia-se colaboração a pessoas entendidas e conhecedoras, Teixeira da Mota foi um deles. Folheando a coleção existente, dá para perceber que havia pouca publicidade, Bolama já estava na mó de baixo, com a ascensão do nacionalismo e a chegada da tropa a Bolama, a cidade ia reagindo, falava-se em turismo, nas belezas do arquipélago, a praia de Ofir parecia rivalizar com Varela, o leitor apercebe-se que havia dificuldades em arranjar bons conteúdos, a redação socorria-se de fotografias entre outras do fotógrafo Geraldo, qualquer conferência era motivo de duas a três detalhadas páginas, o Intendente Santos Lima foi promovido a inspetor, logo uma basta notícia, o jornalista Armando de Aguiar, natural de Bolama visita a sua terra natal e fez uma opípara conferência, casa cheia. Veio a guerra subversiva, e o jornal hasteou a bandeira da sua causa: “Os nossos territórios ultramarinos são a impiedosa cobiça dos desvairados blocos mundiais que se gladiam em feroz luta e por isso reconheçamos no passado as virtudes do presente e unamo-nos sem reservas, nem críticas maldosas, para o bem comum que é o da Guiné, cônscios do dever a cumprir numa tranquilidade de espírito cheia de altos impulsos e de novos sentimentos e não de outros que só deprimem, destroem e desorientam!”.

Para se avaliar o que o leitor pode encontrar com grande interesse cultural na curta vida deste periódico vamos fazer referência a subsídios para a história da ilha de Bolama, da autoria de António Pereira Cardoso, um administrador colonial que era possuidor de raridades, um artigo de Ruy Barreto sobre o fanado Bijagó e um artigo de Teixeira da Mota intitulado “A morte de dois franciscanos setecentistas, na Guiné”, ao tempo, o Comandante Teixeira da Mota era deputado da Nação pela Guiné.

Comecemos pelo trabalho de António Pereira Cardoso, que publica algumas epístolas. A primeira data de Bolama, de 26 de agosto de 1858, assina José Carlos Rebello Cabral, comandante de Marinha Mercante e dirigida a Honório Pereira Barreto. Informa-o que chegara um vapor de guerra inglês, desembarca um 1.º Tenente, arvorara bandeiras britânicas que foram içadas com três tiros de peça a bordo, o tenente percorreu as pequenas povoações e voltou a embarcar, regressou mais tarde e levou para bordo o agricultor João Marques de Barros, preso. E a carta termina assim: “Não sei isto em que acabará, e por isso me apresso a participar a V. Ex.ª pedindo-lhe por parte do Sr. Barros o seu socorro e auxílio para ele, antes que as coisas subam a mais, quer dizer ao ponto de o levarem preso a bordo, para a Gâmbia ou Serra Leoa, por alguma injusta quimera. Nada mais se oferece dizer a V.ª Ex.ª nesta triste situação, em que tanto carecemos dos seus conselhos e incansável auxílio”. Pelo meio, ficamos a saber que o tenente falava na libertação de cativos, era uma das moedas de arremesso dos ingleses, sabiam perfeitamente que ainda praticávamos a escravatura.

A segunda carta é também assinada por José Carlos Rebello Cabral e endereçada a João Marques de Barros. Pergunta-lhe se quer que mande a sua família para Bissau, refere que não está interessado em ficar em Bolama “por causa das intrigas do Manuel Barbosa a meu respeito e que eu já há muito sabia tudo”. E assim termina: “Estimo a sua saúde e felicidade, tal como para mim, e que agora tenha a força necessária para suportar estes pequenos incidentes da vida, e adeus até à vista”.

A terceira carta datada de 30 de agosto de 1858 é dirigida novamente a Honório Pereira Barreto: “Esta só serve para agradecer quanto em mim cabe o obsequioso serviço que V. Ex.ª fizera ao Sr. Barros, em consequência da que eu lhe tinha escrito em data de 26 do corrente; o que V. Ex.ª pode ficar certo é que eu nunca me cansarei em apregoar, se bem que a minha voz é ainda débil, nesta terra esquecida dos verdadeiros patriotas, a nossa infelicidade”.

Comenta António Pereira Cardoso que a violência levada a efeito em 26 de agosto de 1958 era injustificada, porquanto em 29 de abril daquele ano, D. Pedro V declarara livres os escravos portugueses, com obrigação de prestarem serviço aos seus senhores até abril de 1878.

O artigo de Ruy Barreto é sobre o fanado Bijagós dos Kanhocãs. E escreve:
“O Kanhocã é o indivíduo de idade compreendida entre os 15 e os 22 anos, aproximadamente. As cerimónias começam com batuques que duram vários dias e realizam-se em cada uma das tabancas onde há Kanhocãs. Estes apresentam-se durante o tempo das cerimónias com os melhores trajes: ‘lopés’ de couro cuidadosamente curtido e enfeitado, contas, grande variedade de efeitos metálicos, espelhos, campainhas, e na cabeça a conhecida cabeça de vaca. Após os dias de festa, que duram cerca de uma semana, chega o dia, previamente fixado, em que se vão sujeitar ao cerimonial, têm que dar entrada no mato em lugar retirado, onde são feitas barracas para abrigo dos rapazes.
É vulgaríssimo – e parece que até de tradição – verem-se os parentes do sexo feminino, aos quais é vedada a aproximação do mato, acompanharem, em alta grita e lavados em lágrimas, o ruidoso grupo dos homens que formam o cortejo dos Kanhocãs.

A classe dos Kamabis é a dos palhaços. Só se podem vestir de sarapilheira e, quanto mais suja for, melhor. E é de ver as tropelias que fazem e as brincadeiras que inventam. A cerimónia é iniciada por volta do princípio da tarde, com os mancebos de joelhos ou assentados, trajando unicamente um pequeno lopé. Cada Kamabi aparece armado de um bom molho de chicotes feitos de ramos flexíveis e bate em cada um com as chibatas, até que estas se quebrem.
Às vítimas só é permitido defender a cara, para o que só podem elevar o antebraço. Devem mostrar-se insensíveis à dor e vê-se alguém a ser sovado valentemente enquanto, sorridente, conversa com os circunstantes, indiferente ao sangue que corre pelo seu corpo. Grande glória é para aquele, e respectiva família, que suporta com mais valentia e, inversamente, é indizível a vergonha que provoca o que demonstre sofrimento.

Durante alguns dias permanecem os mancebos no mato, assistidos e tratados pelos mais velhos. Cerca de oito dias após a entrada no mato, regressam em visita às casas que tinham percorrido. Assim termina a primeira das duas cerimónias intervaladas de alguns anos a que têm de sujeitar-se os Kanhocãs antes de passarem a Kabarós, adultos".

(continua)


Duas fotografias de Francisco Nogueira, retiradas do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

Comandante Vasco Martins Rodrigues, Governador da Guiné entre 1962 e 1964. Foi efetivamente o último Governador da Guiné, sucede-lhe Arnaldo Schulz, Governador e Comandante-Chefe, acumulação que continuará com António de Spínola e Bettencourt Rodrigues. Imagem retirada do “Bolamense”.

Imagem retirada do “Bolamense”.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20104: Historiografia da presença portuguesa em África (173): “Dicionário da Expansão Portuguesa, 1415-1600” com direção de Francisco Contente Domingues, Círculo de Leitores, 2016 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19982: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: atualização: o caso do 1º cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim, do BENG 447, afogado em 31 de julho de 1974, na ilha da Caravela e cujo corpo não foi recuperado


Foto do 1.º Cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim
In: "Os eternos esquecidos". Almada, Trafaria, Junta da Freguesia da Trafariam, 2009. p.127


Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); 
coeditor do blogue desde março de 2018



ENSAIO SOBRE AS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-1974) - ACTUALIZAÇÃO
O CASO DO 1.º CABO HENRIQUE MANUEL DA CONCEIÇÃO JOAQUIM, DO BENG 447, AFOGADO EM 31JUL1974 NA ILHA DA CARAVELA
(CORPO NÃO RECUPERADO) 



Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1969 > Militares da CCS do BCAÇ 2856, atravessando um afluente do Rio Geba, durante uma operação de reconhecimento. In: Lugar do Real , com a devida vénia.


1. INTRODUÇÃO

No âmbito do projecto de investigação titulado de "ensaio" sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974) (*), deixei expresso no primeiro fragmento – P11979 – que os resultados entretanto apurados, através da consulta a fontes oficiais, poderiam vir a ser alterados em função de outros casos particulares, "estranhos" ou "não considerados" no domínio institucional.

Cabe neste cenário a situação do 1.º Cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim, militar pertencente ao Batalhão de Engenharia [447], sedeado em Bissau, com a especialidade de Pedreiro, que viria a morrer afogado em 31 de Julho de 1974, 4.ª feira, na Ilha da Caravela, Arquipélago dos Bijagós, cujo corpo não foi recuperado. 

Como este episódio ocorreu no CTIG, ainda que depois do "25Abr74", no período de retracção das nossas Unidades no terreno, porque não consta a morte (por afogamento) do camarada Henrique Manuel Joaquim no número de baixas oficiais do Exército?
O que terá acontecido?
Entretanto, a informação que abaixo de reproduz, e que serviu para estruturar a presente narrativa, faz parte do livro editado, em Setembro de 2009, pela Junta de Freguesia da Trafaria, pertencente ao Município de Almada, no qual constam pequenas biografias de militares, nascidos ou residentes naquela Freguesia, que estiveram nos diferentes "Teatros de Operações", como é o exemplo do camarada Henrique Manuel Joaquim.


Esta colectânea nasceu, como sucedeu noutros contextos, da conversa informal entre camaradas, ex-combatentes, onde vieram à "baila" histórias vividas por cada um, nas ex-Províncias Ultramarinas onde efectuaram o respectivo serviço militar.

No caso em análise, foi eleita uma Comissão, constituída por: Alfredo Pisco (CCaç 2321; Moçambique); António Oliveira Bentes (1946-2007 - CCav (?); Guiné): Euclides Soares (BA 12; Guiné); Ezequiel Pais (CArt 2521; Guiné); Ilídio Pinheiro (CArt 698; Angola - pesquisa e análise); João Freitas (BCP 31; Moçambique - coordenação gráfica); José Manuel Martins (AgEng; Moçambique) e Manuel Fernandes (PInt 2161; Angola).

Dessa conversa inicial e informal "começou a nascer a ideia, ainda que sem consistência, de fazer algo para homenagear todos esses bravos militares, apenas lembrados por familiares e amigos, (e eternamente esquecidos por todos os governantes) alguns dos quais, infelizmente, desaparecidos nessas terras longínquas.  Ao fim de muito trabalho e muitas pesquisas, foi-nos possível reunir todos os dados para começarmos a pensar na possibilidade de compor um livro". 

Este livro, publicado em Setembro de 2009 [, imagem da capa a seguir], "é uma homenagem a todos os militares falecidos em combate, e os que felizmente ainda vivem, nascidos ou a habitar na Trafaria há mais de dez anos" [na data em que a ideia foi aprovada].
Quem tiver conhecimento deste triste episódio, faça o favor de comunicar. Obrigado!


Capa do livro, editado em  Setembro de 2009, pela Junta de Freguesia da Trafaria, pertencente ao Município de Almada. Referência bibliográfica na PorBase: Os eternos esquecidos / comis. Alfredo Pisco... [et al.] ; colab. Câmara Municipal de Almada... [et al.]. - [Trafaria : s.n.], 2009 ([Charneca da Caparica] : Jorge Fernandes). - 173, [3] p. : il. ; 30 cm


Imagem de satélite do Arquipélago dos Bijagós, com a situação geográfica da Ilha da Caravela e Bissau, e da sua relação entre si.


2. OS DADOS DO "ENSAIO" ACTUALIZADOS (*)

- QUADROS ESTATÍSTICOS

Em função da alteração dos resultados anteriormente divulgados, organizados em quadros de distribuição de frequências, simples e acumuladas, tomei a iniciativa de os corrigir, apresentando, de imediato, a respectiva actualização [gráficos e quadros], levando em consideração os objectivos que cada contexto encerra.



Quadro 1 e Gráfico 1 – Da análise supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974), e que constituíram a população deste estudo, é de 145. Verifica-se, ainda, que desse total, 113 (77.9%) eram soldados; 23 (15.9%) 1.ºs cabos; 7 (4.8%) furriéis; 1 (0.7%) 2.º sargento e 1 (0.7%) major. 




Quadro 2 e Gráfico 2 – Da análise supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974) cujos corpos não foram recuperados é de 64 (44.1%). Verifica-se, também, que desse total, 48 (75.0%) eram soldados; 11 (17.2%) 1.ºs cabos; 4 (6.2%) furriéis e 1 (1.6%) 2.º sargento. 




Quadro 3 e Gráfico 3 – Da análise supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974) cujos corpos não foram recuperados é de 64 (44.1% do total). Quanto aos corpos não recuperados, verifica-se que a CCaç 1790, com 26 (40.6%) casos, e a CCaç 2405, com 19 (29.7%) casos, foram as Unidades Militares que contabilizaram maior número, sendo estes consequência do acidente da «Jangada de Ché-Che» em que elementos das duas Companhias de Caçadores estiveram envolvidos. Segue-se o Pel Mort 980, com 3 corpos não recuperados, no Rio Cacheu, na «Operação Panóplia", e a CArt 3494, com dois, no Rio Geba (Xime), durante uma missão, não cumprida, a Mato Cão, situado na margem direita desse rio. Das 17 Unidades Militares que não conseguiram recuperar os corpos dos seus naufragados, 12 (18.8%) tiveram apenas um caso.



Quadro 4 e Gráfico 4 – Distribuição de frequências segundo a relação entre as variáveis "ano das mortes por afogamento", "corpos não recuperados" e "corpos recuperados". O estudo mostra que durante o período em análise (1963-1974) em todos os anos ocorreram mortes por afogamento. No final foram contabilizados cento e quarenta e cinco náufragos. Durante os doze anos em que decorreu o conflito, por quatro vezes (1/3) o número de mortes ultrapassou a dezena de casos, com destaque para o ano de 1969, onde os números ultrapassaram a meia centena, em consequência do «desastre da Jangada do Ché-Ché». Para esses valores globais muito contribuíram os "acidentes" nos rios da Guiné - Cacheu, Corubal e Geba.

Nota:

Para efeitos de comparação estatística devem ser consultados os P19679; P19710; P19788 e P19822 (*).

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.
05Jul2019.
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Nota do editor:

Vd. postes anteriores:

15 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19788: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (Parte III)

segunda-feira, 18 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19599: Notas de leitura (1160): “Bijagós, Património Arquitetónico", por Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade, Fotografia de Francisco Nogueira (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,

O livro é irresistível, pelo rigor do conteúdo e pela preciosidade das imagens. Os Bijagós sempre provocaram um grande fascínio tanto pelos dons naturais, pela cultura, pela identidade do povo que durante séculos viveu em contenda com o continente, nomeadamente com os Beafadas, os vizinhos mais próximos.

Não se pode ficar indiferente com estes cadastros do legado colonial, impressiona o que se construiu e o que ainda está a tempo de ser conservado. Felizmente que alguma cooperação garante restauros e trava o aniquilamento de edifícios emblemáticos do que fora concebido com capital com contornos imperais.

Quem perdura o seu amor pela Guiné não pode deixar de olhar esta obra primorosa sem orgulho e indignação.

Um abraço
do Mário



Bijagós e o seu património arquitetónico: que beleza de livro!

Beja Santos

O património arquitetónico dos Bijagós é uma edição da Tinta-da-China, tem por autores Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade e fotografias de altíssima qualidade de Francisco Nogueira. Tem história, enquadramento urbanístico, análise do espaço tradicional Bijagó e do espaço colonial e desvela os mais significativos edifícios coloniais. 

Na base do empreendimento está o projeto “Bijagós, Bemba di Vida! Ação cívica para o resgate e valorização de um património da humanidade”, uma parceria do Instituto Marquês de Valle Flôr e da organização não-governamental Tiniguena. Trata-se de um estudo que se insere no projeto de conservação dos recursos naturais e de desenvolvimento socioeconómico numa das zonas centrais da Reserva da Biosfera do Arquipélago de Bolama-Bijagós: as ilhas Urok.

Os autores preparam-se bem e o resultado está à vista, nesta edição cuidada, edição para guardar pelo cuidado posto no grafismo e na riqueza das imagens, fala-se dos Bijagós e de um património colonial que ameaça ruína, as imagens são tão impressivas que ninguém pode deixar de indignar-se com o descalabro que por ali vai.

A herança arquitetónica bijagó compreende o passado, através da compreensão dos textos, dos enquadramentos e das suas influências em comparação com outros patrimónios guineenses e coloniais; está o registo fotográfico do património existente e indaga-se o futuro, alguém tem que responder pela salvaguarda de um património comum de uma região com 88 ilhas e ilhéus, num total de 10 mil quilómetros quadrados. 

Há menção dos Bijagós em documentos dos descobridores a partir de 1457, são da maior importância as narrativas do navegador veneziano Luís de Cadamosto e do navegador genovês Uso de Mare. Os primeiros registos cartográficos surgiram em 1468 quando o navegador alemão Valentim Fernandes terá chegado às imediações de Canhabaque.

O processo de crescimento de Bolama está relacionado com a história e a cultural mercantil na região de Quínara e no rio Grande de Buba. O povo Bijagó vivia em permanente tensão com os Beafadas que se espraiavam entre Tombali e Fulacunda. A presença portuguesa era episódica e a hostilidade Bijagó indisfarçável aos colonos. Bolama foi fundada em 1752, muito depois de outras vilas e cidades da Guiné, quando o governo português ordenou ao Coronel Francisco Roque de Sotto-Mayor, Governador de Bissau, que tomasse posse da ilha, erguendo um padrão esculpido com as armas dos reis de Portugal. Recorde-se que a ilha de Bolama só pertenceu oficialmente a Portugal em 1870, após a arbitragem pelo presidente norte-americano Ulysses Grant do conflito luso-britânico.

A estrutura urbana baseia-se em modelos europeus: grelha ortogonal, reticulada, implantada a nordeste da ilha, e em contracto direto com o mar. Impuseram-se inicialmente os edifícios da Alfândega, o Palácio do Governador e Casa Comercial Gouveia. Surgiram depois outros edifícios-chave: o Banco Nacional Ultramarino, a Escola, o Arsenal e o Hospital, a Câmara Municipal e os Paços de Concelho. A escala da cidade de Bolama, observam os autores, é definida por um grande número de edificações térreas, pontualmente marcada por construções com dois ou mais pisos. Nos anos 20 do século XX, surgem planos da autoria do engenheiro Guedes Quinhones inspirados nos modelos humanos ingleses do final do século XIX, da Garden City, de Sir Ebenezer Howard e dos ideais norte-americanos da City Beatiful Movement.

Quando Bolama deixou de ser capital, em 1941, tentou-se torná-la um destino turístico muito apetecível, daí as piscinas municipais, o cineteatro e o complexo balnear da praia de Ofir. Hoje, os seus largos e praças perderam grande parte do caráter, em virtude do abandono dos serviços públicos. Era tal a beleza e a graciosidade da cidade que muitos a tratavam por Nova Mindelo e nos meios intelectuais dizia-se que aqui se tinha radicado o berço do crioulo.

Folheia-se o álbum fotográfico e sentimos o coração pequenino com as ruínas do antigo Palácio do Governador, as ruínas de Bubaque, estão entregues às ervas a casa de férias de Luís Cabral e as casas inacabadas para generais. De premeio, os autores mostram-nos a organização das tabancas Bijagós, construídas em clareiras, têm um ar delicado na envolvente paisagística.

Uma imagem muito bela pode potenciar no leitor um cruel sofrimento, ele tem que perguntar porquê a decomposição daquele edifício da central elétrica, como ainda guarda majestade a Câmara Municipal em ruínas, como é grotesco o belo exótico das ruínas do Hospital Militar e Civil, e como ainda resiste o Palácio do Governador e o Quartel Militar. Há uma Bolama que nasce e renasce. Por exemplo, o edifício da Alfândega foi totalmente recuperado pela cooperação espanhola, AICCID. O cineteatro de Bolama resiste, é um assombro de Arte Deco já tardio. A Escola Superior de Educação é um dos equipamentos de maior interesse da Bolama atual. Ficamos sem fôlego a ver a notável Imprensa Nacional, os autores advertem para o seu enorme potencial turístico e museológico.

A análise patrimonial não se circunscreve à ilha de Bolama, já se falou de Bubaque, Canhabaque tem património em decadência, aqui se mantém de pé o monumento comemorativo das operações de pacificação de 1935-1936.

Os autores concluem que é muito grande a qualidade patrimonial deste arquipélago e que é iniludível a importância do legado patrimonial do colonialismo português, ainda há muita recuperação, conservação e restauro que podiam tornar esta região muitíssimo apetecível pelos dons que a natureza que lhe ofereceu.

Enquanto lia com sentimentos contraditórios este álbum de indiscutível interesse, procurando conhecer as linhas da presença colonial, tanto na fase de consolidação de Bolama como capital da província da Guiné e o período posterior, até ao momento da independência, sempre de coração contrito com o património em ruínas, lembrava da visita que aqui fiz em 1991, a embarcação a chegar ao cais de onde se avista aquele espantoso monumento em pedra que Mussolini ofereceu à cidade de Bolama em homenagem aos aviadores italianos mortos, procurava as placas esmaltadas com os nomes insignes dos políticos da I República que aqui ficaram consagrados, passeara-me neste mar de ruínas perplexo como era possível dois povos espezinharem esta esplendorosa memória de uma vida em comum.

Pescadores bijagós
Imagem retirada do blogue LusONDA, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19588: Notas de leitura (1159): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (77) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Guiné 61//74 - P17873: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (2): Os meus passeios pelos Bijagós: ilha de Caravela


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4



Foto nº 5

Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2017) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso querido amigo e camarada Patrício Ribeiro, o "pai dos tugas" (como é conhecido na Guiné-Bissau):



Data - 14/10/2017

Assunto - Os meus passeios  - Parte

Luís:

Os meus passeios nos Bijagós… que agora estão na moda…

Como dizia no anterior post P16818 (*),  por lá ando a passar férias, para festejar os 70 anos. Sou de 1947. Grandes e bons passeios de 7h para cada lado, com muito conforto… como podem ver nas 9 fotos e no filme, tiradas no final de julho deste ano. Aqui vão as cinco primeiras fotos, as restantes seguem nputro mail.


Patrício Ribeiro, Orango, 2008
[O Patrício Ribeiro  nasceu em Águeda, em 1947; viveu desde tenra idade em Nova Lisboa / Huambo, Angola, vivido, onde casou e fez o serviço militar, como fuzileiro naval;: retornou ao "Puto" depois da descolonização, fixando-se entretanto na Guiné-Bissau, há 3 décadas, país onde fundou a empresa Impar Lda, líder na área das energias alternativas; trabalha com o filho,; passa agora mais algum tempo em Portugal, na época do verão]

Legendas (das cinco primeiras imagens):

Foto nº  1- Viagem de Bissau, para a Ilha da Caravela, na canoa de carreira semanal, 7 horas;

Foto nº 2- Nossos trabalhos; radar, rádios e energia solar, na ilha da Caravela em Betelhe, junto ao antigo aeroporto;

Foto nº 3- Porto de Betelhe, na Caravela, a preparar a saída para o Ilhéu de Caió [, a sudoeste da Ilha de Jeta, região de Cacheu];

Fotos nºs 4,5 - Viagem entre a Caravela e Ilhéu de Caió, 7 horas, muito agradável (não é só nas Caraíbas)-

[...] Para quem gosta de passar férias nos Bijagós, é ótimo em outras épocas do ano…

Aqui perto existe um pequeno hotel no ilhéu de Queré, que recomendo. É muito agradável e com muito qualidade, é gerido pela Sónia, uma Portuguesa, agora quase Bijagó. Podem ver a página na Net , Keré - 00245 966943547-  

Vd. aqui o sitío Keré, Bijagós.

Abraço
Patrício Ribeiro (**)

www.imparbissau.com
impar_bissau@hotmail.com



Mapa da região de Bolama / Bijagós. Cortesia da Wikipédia. Orango é a mais distante das ilhas, a 100 km de Bissau, 7 h de viagem.  A ilha Caravela, por sua vez, fica a 37 km da costa continental e  tem 128 km². É a a ilha mais a norte do  arquipélago: tem densas florestas, vastos mangais e praias de areia branca.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 9 de dezembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16818: Memória dos lugares (352): Ilhéu de Caió, a sudoeste da Ilha de Jeta, região do Cacheu: um local muito bonito onde, para o ano, quero vir passar umas férias (Patrício Ribeiro, Bissau)


sexta-feira, 17 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17150: Notas de leitura (937): "Portugal Afrique Pacifique", por René Pélissier, edição de autor, 2015 (2) (Mário Beja Santos)


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
Não conheço historiador mais atento a tudo quanto se publica sobre África Lusófona do que René Pélissier. É bem possível que ele todo os dias ande a vasculhar em blogues como o nosso e em todas as casas editoriais europeias. O certo é que ele lê e comenta o que se publica e ajuda-nos a conhecer o pouco que se vai editando sobre a Guiné. Ele pede aos antigos combatentes que façam as suas edições de autor que não se esqueçam de lhe enviar os seus trabalhos para: Editions Pélissier, 20 Rue des Alluets, 78630 Orgeval, França.
Temos depois, o autor terá a grata surpresa de ver os seus comentários publicados numa imprensa especializada já que, como é do domínio público, os grandes gigantes da edição permanecem indiferentes a todo o tipo de literatura e estudos científicos sobre a guerra colonial, aquele espaço de martírio e onde houve tanta esperança revolucionária deixou de estar na moda.

Um abraço do
Mário


As leituras de René Pélissier acerca da Guiné (2)

Beja Santos

René Pélissier tem o dom de escavar e encontrar pepitas de ouro, e no que tange à Guiné a sua voracidade bibliográfica surpreende sempre. Continuamos a respigar o que ele sobre a Guiné plasma em "Portugal Afrique Pacifique", edição de autor, 2015 (para os interessados: Editions Pélissier, 20 Rue des Alluets, 78630 Orgeval, França; email do autor viapelbooks@wanadoo.fr).
Já aqui se falou no precioso álbum organizado por Mário Matos e Lemos sobre “O primeiro fotógrafo de guerra português José Henriques de Mello. Guiné: Campanhas de 1907-1908”. Obra que me provocou emoção, referia-se a território que percorri palmo, o Cuor. Quando o régulo Infali Soncó decidiu fechar o trânsito do Geba, os políticos de Lisboa aperceberam-se que a questão era mesmo grave, aquela rebelião podia levar ao colapso do comércio da colónia. Por isso o governo deliberou enviar tropa europeia e macuas de Moçambique. José Henriques de Mello fotografou as tropas em Bissau e depois no Cuor, onde houve combates e o régulo fugiu. São imagens impressionantes. É pena este álbum editado em 2009 pela Imprensa da Universidade de Coimbra estar completamente esgotado.

Outra preciosidade é um guia turístico espanhol, “Rumo à Guiné-Bissau” de José Luis Aznar Ferrández, Barcelona, 2010. Pélissier comenta que consagrar mais de 200 páginas a um país que não acolherá muitos visitantes hispanófobos por ano é uma intenção louvável de editor e de autor, por aqui pululam traficantes colombianos que mais não leem que banda desenhada e livros de contabilidade com droga transacionada. Pélissier considera este autor imbatível nas suas descrições minuciosas dos principais locais merecedores de visita. É um autor que não deixa de elogiar a hospitalidade, a xenofilia dos guineenses. E na mesma recensão, o autor fala-nos de uma obra merecedora da nossa atenção, “Mami Wata, Mãe das Águas, Natureza e Comunidades do Litoral Oeste-Africano”, por Pierre Campredon, França, 2010. O autor é um ecologista naturalista fascinado pelas zonas costeiras oeste-africanas e das populações que vivem na Mauritânia, no Senegal e na Guiné-Bissau. Disserta sobre a vida económica do arquipélago dos Bijagós e chama a atenção para a necessidade de preservar as espécies faunísticas do arquipélago, ameaçadas pela pesca industrial. Pélissier espera que a criação da reserva de biosfera do arquipélago Bolama-Bijagós não chegue demasiado tarde.

Recorda Gérard Chaliand e o seu La pointe du coteau, Robert Laffont, 2011, de já se fez aqui recensão. Em Maio de 1966, Chaliand entrou no território da Guiné através do Casamansa, fez-se prontamente amigo e admirador de Cabral. Pélissier passa de Chaliand para um livro de Rui Jorge Semedo, ponto de vista, Pedro e João Editores, Brasil, 2009, e pergunta o que é que diria Cabral se lesse este livro. Rui Semedo faz uma verificação desesperada da situação da sua pátria, a Guiné-Bissau, cerca de 40 anos depois da morte de Cabral. E cita-o: “As principais atividades económicas da Guiné são: tornar-se ministro, traficante de droga, entrar em revoltas militares ou na corrupção, no peculato e no desvio de bens públicos”. Um geólogo à procura de diamantes, pôs-se ao caminho em países africanos como a Costa do Marfim, o Gabão, o Mali e entrou na Guiné-Bissau em 1978. Essas memórias parecem publicadas com o título Reflets de Brousse, por Jean-Louis Marroncle, Editions Edilivre, Paris, 2010. Outra surpresa: as memórias do padre Abel Gonçalves, missionário na Guiné cerca de 20 anos, o título da obra é Catarse (Ordem da Trindade, Rua da Trindade, 115, Porto, 2007. Descreve o seu ministério religioso primeiro como padre capelão junto de tropas do Exército, entre Maio de 1967 e Maio de 1969, e depois no Hospital Militar de Bissau.

Tem agora a precedência um livro de Lourenço da Silva intitulado Les Héros de la Guinée-Bissau, L’Harmattan, Paris, 2012, cidadão da Guiné, alto funcionário. O seu livro não é nem de história nem de ciência política, é uma espécie de biografia apologética e ditirâmbica de Nino Vieira. Pélissier leu atentamente o relato de Idálio Reis a CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné. Gandembel/Ponto Balana, uma revisitação a um pesadelo para o qual nunca ninguém deu uma explicação: montar um quartel longe da população e no corredor da morte, é de facto um dos documentos mais arrasadores da estratégia montada pelo Estado-Maior de Schulz. O pesadelo acabou em 28 de Janeiro de 1969 com a evacuação de Gandembel, uma posição fustigada centenas de vezes, em que a reação, pela força das coisas teria sempre que ser meramente defensiva. Uma palavra para Guinée, 22 Novembre, 1970. Opération Mar Verde, de Bilguissa Diallo, L’Harttman, 2014, um livro que Pélissier considera útil para completar tudo o que tem sido publicado em Portugal sobre o assunto. A autora é filha de um antigo oficial guineense que esteve envolvido na tentativa de golpe de Estado. Na obra procura-se reabilitar muitas figuras do FLNG – Frente de Libertação Nacional da Guiné.

Um comentário final para este maratonismo de René Pélissier que abarca toda a África Lusófona, é um esforço incansável para repertoriar tudo o que se publica pelo mundo fora. Bem entendido, há obras que aqui não se referem escritas em línguas não acessíveis ao leitor comum, caso de Branco Pelele, publicado por um finlandês na Alemanha, mas inteiramente redigido em Finlandês e consagrado às experiências e à vida quotidiana de uma voluntária humanitária na Guiné-Bissau. Enfim, quem quiser estar atualizado sobre este vasto caleidoscópio de edições tem mesmo que ter na mão estas mais de 500 páginas de Portugal Afrique Pacifique.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de março de 2017 Guiné 61/74 - P17131: Notas de leitura (936): "Portugal Afrique Pacifique", por René Pélissier, edição de autor, 2015 (1) (Mário Beja Santos)