Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 27 de novembro de 2022
Guiné 61/74 - P23821: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte II - Tavira e Leiria
1. Continuação da publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.
II - tavira…
Depois de uns dias de férias na Figueira da Foz, intervalo da recruta para a especialidade, a sequência natural: Tavira.
Comboio da linha do Oeste, até ao Rossio, passar o Tejo de barco e apanhar outro comboio no Barreiro - aventura!
Cheguei ao Barreiro, final do dia, e disseram-me que só teria comboio para Tavira de manhã cedo.
Como lá estavam mais dois instruendos que também iam para Tavira, fazer a especialidade, trocámos ideias sobre como passar a noite, até à hora do comboio.
Entrámos numa ‘tasca’, jantámos umas coisas e pedimos aos donos que nos deixassem lá dormir, com sucesso, e dormimos apoiados nas mesas.
Isto fez-me lembrar os meus tempos de boleia…
De manhã, bem cedo, acordaram-nos, tomámos o pequeno-almoço e lá fomos apanhar o ‘quim’ para Tavira.
No comboio, cada um procurou o melhor lugar para descansar, até Tavira.
Fui dormitando, dormitando, até que sou acordado por um senhor revisor, dizendo-me que tinha de sair, pois era fim de linha - estava em Vila Real de Santo António!
Ainda perguntei se mais alguém tinha ficado no comboio, mas disse-me que só eu, pelo que concluí que os outros nem repararam que eu tinha ficado dentro do comboio!
Conclusão: espera mais um comboio, para voltar para trás e chegar ao destino, Tavira.
Chegado a Tavira, apresentação no CISMI (centro de instrução de sargentos milicianos de infantaria) e inserção na 1ª Companhia de Atiradores de Infantaria, cujo comandante fiquei a saber que era o célebre ‘muleta negra’, porque andava apoiado numa espécie de pingalim, resultado de ferimentos no ultramar.
Também tive oportunidade de conhecer e conviver com o célebre ex-alferes Robles, agora, capitão, com uma ‘pancada’ de alto nível, fruto de experiências de guerra colonial em Angola e Guiné.
Curioso, termos concluído que tínhamos conhecimentos comuns de Coimbra, de onde era natural.
Entretanto, a minha tia Jú telefona-me a dizer que o primo Jaime Abreu Cardoso estava à minha espera, pois eu fazia parte de uma lista dos instruendos seleccionados nas Caldas da Rainha para seguirem para Lamego.
Claro que eu disse logo à tia Jú que não ia para lá e até já estava em especialidade, em Tavira, e nem sabia que o Jaime era oficial do quadro e estava lá, pensava que tinha feito a tropa normal e mais nada.
Ela, com razão, respondeu-me que era pena, pois teria a protecção do Jaime, já capitão e com medalhas, além de poder ir com ele passar os fins de semana a Vieira do Minho.
Realmente, uma pena, pois poderia ter uma tropa melhor e, quem sabe, até retomar a vida académica, no Norte, com as facilidades, além de considerar-me nos ‘meus domínios’…
Voltando a Tavira, tive a sorte de conseguir autorização de ‘pernoita fora’, pelo que logo arranjei um quarto, do lado de lá do rio, mas bem perto do centro da cidade.
E não esqueci a rua: Dr. Augusto Silva Carvalho, 15. A dona da casa era viúva e tinha uma filha que tocava piano, interessante, naquele tempo, e tinha amigas que se juntavam a nós, nos serões, bem divertidos.
Eu estava habituado a controlar as aplicações e exercícios militares, principalmente, os nocturnos, de forma a safar-me, o mais possível, desta vez, com o sentido no meu quarto, para tirar a farda e vestir a roupa de civil.
Uma das primeiras formaturas, com revista, o capitão ‘muleta negra’ toca-me nas pernas com a bengala, ordenando que passasse pelo gabinete, dentro de uma hora, com o cabelo rapado, para grande aflição do comandante do pelotão, o alferes Soares, um porreiríssimo.
Sim, ninguém acreditava que eu andava na tropa, pelo menos, pelo tamanho do meu cabelinho.
E até evitava pôr bem a boina para não estragar o cabelinho.
E o ‘muleta negra’ ainda hoje está à minha espera para me ver com o cabelo rapado!…
Um dos companheiros de arma que lá conheci, o Pedro, de Santo Tirso, passou a ser o meu parceiro de farras, como Luz de Tavira, Faro, Vila Real de Santo António,…
Em Luz de Tavira, conhecemos umas miúdas bem engraçadas que passaram a ser a nossa companhia, sempre que podíamos, principalmente, alguns finais de dia e fins de semana - uma óptima forma de passarmos o tempo.
No entanto, sempre éramos avisados do risco de termos de casar em plena parada do quartel…
E o Pedro ficou ‘maluquinho’ com uma daquelas miúdas, lamentando-se, pois tinha a namorada em Santo Tirso.
Não posso deixar de lembrar o esquema que montei, sempre que tinha exercício nocturno, normalmente, na serra.
Formávamos na parada do quartel e saíamos pelo portão sul, que dava para a Atalaia, um espaço livre que ficava nas traseiras do quartel, onde fazíamos exercícios, de dia.
Quando chegava ao portão sul, já eu tinha a G3 quase desmanchada e metida dentro da farda, após o que virava à esquerda, enquanto o resto do grupo virava à direita.
Com passo rápido, atravessava a Atalaia e seguia em direcção ao outro lado do rio, onde tinha o quarto!
No dia seguinte, um esquema parecido, com a G3 desmanchada dentro da farda e reentrada no quartel, para mais um dia jeitoso…
Um dia, chegados ao quartel, depois de exercícios no exterior, um cheiro horrível inundava o quartel!
Toca para o almoço e a malta entra no refeitório, onde o ar era irrespirável, tal a intensidade do cheiro, o que nos levou a rejeitar a refeição, logo, levantamento de rancho!
Como era a segunda vez, o quartel seria fechado, pelas informações que nos chegaram.
Acto imediato, a população de Tavira à porta do quartel, suplicando que não avançássemos com o processo.
O oficial de dia, em pânico, pede-nos para ficarmos por ali, sujando os pratos, sinal de que não haveria levantamento de rancho, mas reconhecendo o erro da cozinha.
Afinal, ele também era responsável, pois era obrigado a provar e aprovar a refeição, logo, conivente.
O que tinha acontecido: o almoço era peixe, mas tinha chegado atrasado e sem a quantidade adequada, pelo que foram arranjar dobrada, à pressa, metida nas panelas, sem a operação de lavagem completa - dobrada com feijão branco, com condimento especial…
Tirando este episódio, posso afirmar que foi o meu melhor tempo do serviço militar, sem qualquer dúvida.
Terminada a especialidade, apresento as minhas opções de colocação, para dar instrução, por ordem de preferência, Figueira da Foz, Coimbra, Leiria.
"Pelo menos, Adolfo, aproveitou bem esse tempo no Algarve.
Se tivesse ido para o Norte, mesmo sabendo que lá tinha o seu primo, talvez não tivesse sido tão bom."
Sim, Daniel, aproveitei bem aquele tempinho, no Algarve!
Mas, se eu adivinhasse o que me estava destinado, acredite que nunca teria deixado de fazer a especialidade em Lamego, independente do facto de lá ter o meu primo…
leiria…
Colocado em Leiria, no RI 7 (regimento de infantaria), apresento-me uns dias depois e sou inserido na 1ª companhia de instrução, cujo capitão era um ‘gajo’ aceitável.
Naturalmente, procuro um quarto na cidade, muito importante, para mim, apesar de ficar distante do quartel, sete quilómetros, mas havia muitos táxis…
E os trabalhos militares começaram, já com tudo organizado, sempre atento a todos os momentos que eu pudesse aproveitar fora do quartel, pois o ambiente era propício a aventuras e distrações…
Entretanto, surge o sinal de uma amizade, não só pelas circunstâncias de estarmos no mesmo barco, mas pelo facto de constatar que era uma pessoa educada e digna de confiança, o Vilas Boas Soares, do Porto.
Como mostrou interesse em ter um quarto na cidade, dei-lhe a indicação da minha casa e lá foi, tendo conseguido.
Passámos a parceiros de aventuras, nomeadamente, frequentando a pastelaria Soraya, no centro, junto ao cinema, local de encontro de malta jovem, principalmente, das meninas do lar que ficava junto ao outro quartel, o RAL 4 (regimento de artilharia ligeira).
Sempre que em dias de folga ou que conseguíamos ‘desenfiar-nos’, o ponto de encontro era na Soraya, de onde partíamos para as festinhas particulares.
Eu continuava sem grande jeito para cumprimento de normas e regras militares, o que se traduzia em algumas inconveniências, principalmente, para o comandante da companhia, um capitão do quadro.
Mas os homens a quem eu dava instrução eram tratados como homens que eram, não como bichos, pois os meus princípios e valores reinavam, sempre atento a uma ligação saudável, respeitadora.
O mesmo não se passava com alguns outros instrutores, com necessidade de afirmação, com recalcamentos ou complexos, que usavam as divisas ou galões para satisfazerem as suas necessidades de afirmação.
Por isso, todos aqueles a quem dei instrução me tratavam com carinho e respeito, o que nos enchia o ego, naturalmente.
Além da instrução militar e dos serviços de escala ao quartel, outras tarefas me eram atribuídas, como comandar um pelotão de piquete, para promoção e defesa da ordem militar, fora do quartel, assim como para a protecção do património nacional, nomeadamente, Mosteiro da Batalha.
Claro que viria o dia em que estas tarefas me seriam confiadas, que remédio…
Para aquele segundo caso, chega a minha vez e toca a formar o pelotão e sair do quartel, pelas oito da manhã, com chegada ao Mosteiro da Batalha e organização imediata da operação, com distribuição dos homens pelos pontos estratégicos.
Era um dia inteiro nestas circunstâncias, o que causava algum mal-estar aos homens, pois não tinham possibilidade de se ausentarem do seu posto, por muito tempo.
A meio da tarde, um dos homens, aflito da barriga, resolve fazer uma necessidade num canto do interior do Mosteiro, supondo-se livre de ser descoberto.
Uma denúncia, talvez de alguém em visita ao Mosteiro, acaba por fazer com que eu seja solicitado pelo presidente da câmara, para registo e responsabilização pelo acto.
Depois de algum tempo de conversa e mais conversa, a coisa ficou por ali, entre nós, pessoas bem-intencionadas, tolerantes e compreensivas.
Não deixei de notar a satisfação do presidente da câmara pela forma como lhe apresentei o pedido de desculpas, reacção que me deixou sensibilizado.
O homem em questão, confrontado por mim, não sabia onde se meter, coitado.
Chegados ao quartel, antes de entrarmos, tive uma conversa com ele, sosseguei-o e recomendei-lhe mais atenção e cuidado, a partir daquele momento, quer na vida militar, quer na etapa seguinte, a vida civil.
Mais um dia de rotina se iniciava, as companhias formadas, na parada, o meu grupo sozinho, pois eu tinha-me atrasado, o que obrigou o capitão como que a apresentá-lo a ele mesmo.
Mas a coisa foi notada pelo major de instrução, um militarista em toda a linha, temido por todos, desde a família até aos seus superiores.
Chamou o capitão e perguntou-lhe por que razão o grupo estava sem o graduado e ele próprio formou o grupo, ao que respondeu que o graduado tinha ido à caserna tratar de qualquer coisa…
Vá ao meu gabinete, após o destroçar das companhias.
E o capitão levou uma ‘piçada’, como dizíamos, um raspanete, uma chamada de atenção, nem sei se registada!
Mandou chamar-me e só me disse que eu pagaria caro o que acabara de acontecer.
dez dias de detenção…
Alguns dias passaram e eu sou escalado como comandante de piquete, logo, vinte e quatro horas de serviço, retido no quartel, sempre pronto para qualquer emergência.
Tinha uma festa na cidade e saí do quartel, a seguir ao jantar.
Estava muito bem na Soraya, com a malta, preparados para a festinha, cerca das dez da noite, toca o telefone e chamam pelo meu nome.
Eu nem queria acreditar que havia, por ali, alguém com um nome igual ao meu!
Repetem o meu nome, mas referem o RI 7.
Dei um salto e fui ao telefone: era do quartel, realmente, e logo me dizem que tinha tocado a piquete, que não saiu, pois faltava o comandante…
Desculpei-me e lá tive de ir ao quarto mudar de roupa.
Cheguei ao quartel, por volta da meia-noite e, quando me preparava para entrar, sou recebido pelo oficial de dia, que era, nem mais nem menos, o capitão da minha companhia:
- Eu não lhe disse que iria pagar caro?
Limitei-me a pedir desculpa pela infracção, mas não respondeu, claro.
Entrei e fui direitinho às instalações onde estava a equipa de piquete e logo alguém me disse que tinha havia desordem na cidade e, por isso, o piquete tinha sido requisitado, mas não saiu, pois eu não aparecia…
No dia seguinte, sou chamado ao segundo comandante do quartel que me dá conhecimento dos dez dias de detenção, com manobras militares fora do quartel, mas com um processo que daria despromoção e, até, possibilidade de imediata mobilização para o ultramar.
Falei com um sargento-ajudante da secretaria-geral que me aconselhou a falar com o capelão, pois poderia dar uma palavrinha ao primeiro comandante do quartel, a última palavra no veredicto.
Tudo correu bem, pois o primeiro comandante não permitiu a despromoção, limitando-se a confirmar a detenção.
E lá fui fazer os dez dias de manobras, em que executei diversas tarefas, dentro de algumas especialidades, incluindo saltos livres de helicóptero alouette, carregado de material de campanha, parte dos exercícios, na zona do pinhal de Leiria.
E não podia recusar nada!
Último dia, regresso ao quartel, pelas cinco horas da manhã, saturado e cansado, barba de dez dias, farda número três cheia de lama e pó, com o resto do grupo nas mesmas circunstâncias, sou recebido por um 1.º cabo, que estava de serviço, com um papel na mão:
- Desculpe, mas tenho aqui uma nota para si.
- Não estou com cabeça para notas!
- Pois, mas isto é importante…
Sim, ‘importante’: mobilizado para a província da Guiné!...
Dei instruções para que tratassem do espólio, entregassem as viaturas e recolhessem às casernas.
Não quis saber de mais nada, nem tomei banho e saí do quartel, com destino ao meu quarto, na cidade, após o que zarpei para a Figueira.
Lá fiquei duas semanas, alta recriação, sem nada dizer.
E as duas semanas passaram depressa…
Regresso a Leiria e, quando entro no quartel, logo na porta de armas, disseram-me que andavam à minha procura há muito tempo, com avisos constantes pelos altifalantes.
Dirijo-me à secretaria-geral e logo o sargento-ajudante me vem falar:
- Afinal, o que pretende da vida?! Vai continuar com essa postura pelo resto do seu tempo militar?! Acabou de apanhar um castigo, safou-se da despromoção e desaparece de cena?! A sua companhia está à sua espera, há muito tempo, em Abrantes!
- Tem razão, mas fiquei tão decepcionado com aquela nota que me deram: mobilizado para a Guiné.
- Eu vou tentar limpar as ‘nódoas’ que tem registadas, mas tem de me prometer que guardará só para si. E sabe porque o faço? Porque tenho um filho da sua idade e gostaria que fizessem o mesmo por ele! Veja se encontra o seu caminho certo e não se distraia, durante a comissão, na Guiné, pois aquilo é sério… E, quando voltar, não retome a sua vida civil com este comportamento, pois pode sofrer desgostos…’
Manifestei o meu agradecimento e lá fui direito a Abrantes.
"Realmente, Adolfo, vejo uma mistura de desleixo, de ingenuidade, para não dizer imaturidade! Desculpe a minha franqueza…"
- Sim, reconheço um pouco de tudo isso…
(Continua)
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Nota do editor
Poste anterior de 24 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23814: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte I - "e toma lá com o edital!"
quinta-feira, 24 de novembro de 2022
Guiné 61/74 - P23814: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte I - "e toma lá com o edital!" e Caldas da Rainha
(extracto do meu livro ‘um olhar retrospectivo’ 2018 - adolfo cruz da pág 407 à 483)
I - "e toma lá com o edital!"
E Daniel, esta foi forte!...
Sábado, dia 4 de Outubro, perto da hora do jantar, o meu pai resolve massacrar-me com a história do resultado negativo da matemática e com a vida que eu continuava a ‘cultivar’, embora eu defendesse que estava feito e não podia voltar atrás - resposta fácil…
E aproveito para lembrar que poderia vir a ser chamado para o serviço militar, em virtude do chumbo que impedia um eventual pedido de adiamento.
O meu pai logo explode dizendo que tinha muito tempo para pensar em serviço militar, que era muito cedo para isso.
Acaba de dizer isto e tocam à campainha.
Vou abrir e vejo o Zé Luís da Deusa, de Arcos de Valdevez, que me diz:
- Até que enfim encontro a casa! Procurei, procurei, até conseguir que alguém me dissesse onde morava o Dr. Cruz!
- Gosto em vê-lo, Zé Luís, mas o que faz por aqui?!
- Fui colocado aqui no CICA 2, para fazer a especialidade, e trago uma notícia para si, de um edital que colaram numa das montras lá do nosso café.
Passa-me o papel e lá está o meu nome, para me apresentar no RI 5 (regimento de infantaria), nas Caldas da Rainha, no dia 6 de Outubro!
Mostro o papel ao meu pai e continuo a conversa com o Zé Luís, pois tinha curiosidade em saber notícias sobre malta dos Arcos de Valdevez, em geral, sem esquecer o Atlético, claro, onde ambos tínhamos jogado.
Perguntou-me quando tencionava lá ir, pois tinha pessoas a perguntarem por mim, o que era natural, pois tinha lá vivido, embora pouco tempo, mas o suficiente para criar amizades e com algumas histórias.
Depois disto, preparar as coisinhas para uma nova etapa, esta, sem interesse nenhum!
Tinha o dia seguinte, domingo, para tratar de tudo.
Nesse mesmo dia, após o jantar, a esposa de um croupier do casino, em conversa com a minha mãe, sobre o serviço militar e possibilidades de eu ir parar ao ultramar, o que era um susto para as famílias, sugere que eu aproveite uma oportunidade: ir para Londres.
Lá, tinha um primo bem colocado na General Motors e eu tinha lugar garantido, casa, carro da empresa, pagamento de curso superior, com facilidades, era só um telefonema.
A minha mãe ficou como que num beco sem saída, pois achava boa ideia, apesar da dificuldade e risco do ‘salto’, mas dizia que nunca mais me via, dadas as circunstâncias.
Aliás, situação idêntica já tinha sido equacionada, França ou Suécia, mas ficou no tinteiro, pelas mesmas razões.
O amor misturado com o egoísmo, sempre perspectivando a possibilidade de eu ficar na metrópole, o tempo todo.
E eu também não estava muito para aí virado, talvez mais por comodismo e também pensar que o ultramar acabaria por não me tocar, mas o pior aconteceu, um ano depois…
"Adolfo, nessa altura, como sou uns meses mais velho do que o Adolfo, já eu tinha uns meses de tropa e já estava no Casão Militar.
Eu tinha entrado em Abril de 69 e completei três anos em Abril de 72.
Comecei a trabalhar a seguir ao Verão."
caldas da rainha…
Oito da manhã de segunda feira, dia 6 de Outubro de 1969, data marcante: RI 5, aqui estou, meus senhores!
O que encontrei era o que me diziam, mais ou menos, mas não contava com tamanhas e frequentes filas, para isto e para aquilo, durante três dias, alternando com exercícios diversos.
Mas, confesso, nada que me metesse medo.
Como sempre detestei filas, andei à civil durante os três dias, para fugir às filas, embora tivesse de fazer alguns exercícios, vestido daquela maneira, os que não consegui evitar, e não era nada agradável.
Sempre que confrontado com aquela situação:
"Já não há o meu número e disseram-me para esperar.
Os meus colegas conseguiram, tiveram mais sorte do que eu."
"Colegas?! Aqui não há colegas, há camaradas!"
Aquilo mexeu com algumas células mentais e levou-me para cenários ideológicos, políticos, conotados com a esquerda, nada de acordo com os motivos e objectivos que me tinham sido impostos, levando-me para o serviço militar…
Terminados os três dias, já não tinha de andar em filas e acabei por receber as roupas e tudo o mais.
Nunca esquecerei aquela caserna, com frio das janelas que pareciam facas, com camas de ferro em beliche, colchões com recheio em palha, roupa nojenta, casas de banho, ou coisa parecida, com manchas por todo o lado.
Consegui arranjar um soldado que me tratava da cama, me pregava os botões, me engraxava as botas e limpava as instalações, sempre que me calhava em escala.
Tudo o que tinha de fazer, a contar para classificação, tentava que ficasse com nota média, pois pensava que poderia ficar cá, sem ter de ir ao Ultramar, segundo orientações que me tinham dado.
Uma coisa tinha de conseguir: não ficar no quartel um só fim de semana que fosse, e consegui!
Fácil: pagava a quem fizesse o serviço por mim, pois havia malta de longe, que não tinha interesse em ir de fim de semana e podia ganhar umas massas.
Assim foi acontecendo a recruta, com alguns momentos razoáveis, sempre com fins de semana na Figueira da Foz ou Lisboa, nem outra coisa eu poderia aceitar…
Já nos finais da recruta, Dezembro, um frio de rachar, e chegam as célebres patrulhas pela Serra do Bouro.
Nomeiam-me comandante de uma patrulha e lá vamos, estrada fora, até à Serra do Bouro, onde está escuro como breu, sem se conseguir perceber de que lado é a cidade, de que lado é o mar, pois os barquinhos de pesca nocturna, com as luzinhas, confundem-se com as luzes da cidade.
Cada passo, uma espécie de miragem, pois cada vulto parece uma casa, uma árvore, mas nada é o que se pensa ou imagina.
A certa altura, mesmo no cimo da serra, três militares, sem saberem quem são.
Afinal, eram três comandantes de patrulha que tinham perdido as respectivas patrulhas!
Falámos e conseguimos descer a serra até encontrarmos uma casita antiga, com uma luz muito ténue no interior.
Batemos e atende uma senhora idosa que logo nos oferece, além de um sorriso espontâneo e meigo, uma malguinha de café e um pedaço de pão saloio, uma verdadeira delícia!
Continuámos a descer até chegarmos à cidade, onde dispersámos, cada um seguiria um caminho diferente, até ao quartel, de forma a disfarçar o insucesso das nossas missões.
Eu, em vez de ir direito ao quartel, passei por um restaurante que conhecia, já fechado, mas lá estava alguém ainda a tratar de contas, a filha mais nova, que eu já conhecia, e me abriu a porta, mas logo se desfez em pedidos de desculpa por já não ter nada de comida feita, claro.
Consegui convencê-la a arranjar-me qualquer coisita, uns ovos mexidos, a única coisa possível e que muito agradeci.
Eu estava com a barba grande, de farda número três, a designada farda de trabalho, toda suja, de arreios, bornal, cantil, G3 e cartucheiras.
Ali estava eu, a conversar com a miúda, enquanto fazia os ovos, quando alguém bate no vidro da porta de entrada.
A irmã aparece, abre a porta e entra um indivíduo que logo me pergunta o que faço ali, àquela hora e naquele estado.
Respondo, naturalmente, que tinha estado em exercícios nocturnos e que estava de regresso ao quartel, mas tentando comer alguma coisita.
A outra faz-me um sinal, dando-me a entender qualquer coisa desagradável, logo, fiquei de pé atrás.
O indivíduo mandou-me sair, sem me deixar comer os ovos, e fazendo notar que era melhor assim.
Na dúvida, era melhor zarpar, o que fiz, sem pestanejar.
Voltando à nossa tentativa de disfarçar o insucesso da operação, o disfarce não pegou e fomos castigados, pois tínhamos perdido as nossas patrulhas, grave.
Castigo: banhos e massagens na estância balnear e termal da Foz do Arelho!
Ordem de partida do quartel, rumo à Foz do Arelho, a pé, uns bons quilómetros e, depois, várias vezes a percorrermos a praia de um lado para o outro, junto à água, carregados de material, e voltar ao quartel a pé, sem descanso - muito duro!
Só o percurso quartel - Foz do Arelho - quartel, cerca de vinte quilómetros.
Dois dias depois, passei pelo tal restaurante e perguntei à miúda quem era o namorado da irmã: um tenente do quadro do quartel RI 5!...
Terminada a recruta, desfile pela cidade e formatura na parada, de todas as companhias, perante a tribuna de honra, no edifício do comando.
Estamos formados e achamos alguma familiaridade em três dos oficiais que compunham a tribuna, mas era difícil descobrir porquê.
Discursam, discursam, até que se ouve um deles a enunciar uma lista de instruendos destinados a Lamego:
-………………
-………………
-Adolfo (…) Cruz
-………………
-………………
Eu fiquei de boca aberta e ansioso por poder perguntar o que queria dizer aquilo.
Logo que pude falar, mostrei estranheza e desagrado ao comandante do pelotão, o alferes Macedo, um alferes do quadro, rigoroso e duro, que me mandou calar, que era assim, e mais nada!
No final da sessão, falei com ele e perguntei como era possível ter sido seleccionado, dadas as minhas fragilidades e problemas de saúde.
Só me responde que estava tudo registado e eu tinha todos os exercícios com nota muito bom, embora os tivesse feito nos intervalos, para esconder as minhas capacidades, e que alguém esteve a seguir-nos, desde o início da recruta.
Resumindo: aqueles três oficiais que estavam na tribuna e nos pareciam familiares, andaram o tempo todo vestidos de trabalhadores da construção, em fato de macaco, misturados com os verdadeiros que faziam umas obras no quartel!
Não fiz mais nada e fui agarrar-me a um médico do quartel queixando-me de tudo e mais alguma coisa, nomeadamente, problemas de estômago, lesões na coluna e nas pernas, etc.
Afinal, já ninguém me tirava o ser atirador de infantaria e preferia ir para Tavira, fazer a especialidade, o que me daria uns bons momentos de Algarve, nada que se parecesse com o frio gelado do Norte, principalmente, naquela zona de Lamego, e com tempo de inverno.
"Teve razão em evitar a especialidade em Lamego, pois sempre ouvimos falar da violência dos treinos e preparação para o ultramar, além do frio e neve…"
Pois, mas já verá que não foi assim tão boa opção…
(Continua)
____________
Notas do editor
- Ortografia de acordo com o texto original
Vd. poste de 8 DE ABRIL DE 2017 > Guiné 61/74 - P17222: Tabanca Grande (431): Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 (Gadamael, Vicente da Mata, Ome (Bijemita), Quinhamel, Biombo e Bissau, 1970/72)... Grã-tabanqueiro n.º 740
quarta-feira, 31 de agosto de 2022
Guiné 61/74 - P23572: Notas de leitura (1484): "Aprendiz de Mágico", de António Mário Leitão: "Um romance autobiográfico surpreendente (...) Ao longo da narrativa aparecem as diferentes facetas profissionais vividas por um farmacêutico que também foi professor, analista clínico, director de um serviço hospitalar, animador cultural, aviador, patrão de alto-mar, instrutor de mergulho e chefe de expedições de aventura, até se converter em escritor compulsivo" (António Trovela)
«1. O António] Mário Leitão é um limiano, nascido em 1949, que toca "sete instrumentos" e tem "muitas vidas". Além de marido, pai e avô, terno, extremoso, babado, é ou foi:
(i) fur mil na Farmácia Militar de Luanda, Delegação n.º 11 do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF), 1971 a 1973;(vii) escritor, membro da Associação de Escritores, Jornalistas e Produtores Culturais de Ponte de Lima, membro da Associação Portuguesa de Escritores, autor dos seguintes livros:
- "Aprendiz Mágico" (Lisboa, Astrolábio, 2022, 264 pp.)
- “Heróis Limianos da Guerra do Ultramar”(Ponta de Lima, ed. autor, 2018, 272 pp.);
- "História do Dia do Combatente Limiano" (Ponte de Lina, ed. autor, 2017)
- "Biodiversidade das Lagoas de Bertiandos e S. Pedro d´Arcos" (Ponte de Lima: Lions Clube de Ponte de Lima, 2012, 295 pp. e mais de 500 fotografias).
Participou ainda no XI volume da obra "Guerra Colonial - a História na primeira pessoa" (QUIDNOVI, 2011 a pág. 18 a 28), com o artigo "A farmácia militar".
Sexta-feira, dia 2/9/2022, às 20h00, vai estar presente na Feira do Livro de Lisboa, Parque Eduardo VII, pavilhões D44, D46, D48, D50, D52, para autografar o seu último livro "Aprendiz de Mágico", editada pela Astrolábio / Grupo Editorial Atântico (Prefácio do jornalista e diretor de comunicação Carlos Enes. Preço de capa: 12 euros | ebook: 5 euros) (*)
2. Texto do poeta limiano António Trovela:
Aprendiz de Mágico,
por António Trovela
Como diz Carlos Enes no prefácio, a vida do Autor, contada,
não se acredita: da escuridão do fundo do
mar à claridade celestial que pastoreia as nuvens, o protagonista enfrenta a
morte com escandalosa insistência e arrebatador desprendimento. João Barbosa, escritor limiano, comparou os
relatos do “Aprendiz de Mágico” com as aventuras de Dan Brown, mas realçou uma
diferença importante: a autobiografia de A. Mário Leitão é verídica!
Não é todos os dias que aparece uma obra a contar as
“excentricidades” de alguém que sobreviveu a um grave choque anafilático na
infância, que foi salvo de afogamento na adolescência, que foi libertado da
forca in extremis, que escapou a um
assombroso assalto de indígenas em terra africana, que esteve a morrer por
paludismo, enfim… que pertence ao restrito clube dos pilotos sobreviventes de
desastres aéreos!
Muitos leitores referem a sua experiência de terem lido o
livro de uma assentada, e têm razões para isso: a pequena extensão de cada um
dos 44 capítulos e cativação que a leitura provoca. De facto, em determinados
momentos surge no leitor a interrogação sobre o que é que virá a seguir!
Esta é uma peça literária que junta a aventura com o humor,
ambos polvilhados com adequada dose de lirismo. No prefácio, o livro é descrito
como um parque de diversões de géneros literários, onde cabem a biografia, a
crónica, o romance fantástico e até qualquer coisa de novela de cavalaria. Não
poderá haver melhor definição para este “Aprendiz de Mágico”.
Contudo, há três capítulos verdadeiramente desconcertantes
no que respeita ao que é permitido a um ser humano viver na sua passagem por
este mundo.
Um deles relata a experiência do furriel miliciano que foi
convidado para a mesa do General Luz Cunha, comandante-chefe das Forças Armadas
de Angola, meticulosamente relatada.
Outro descreve, segundo a segundo, o disparo de uma
espingarda submarina de pressão-de-ar, cujo arpão de 330 gramas beijou a face
do autor e atravessou a sua máscara de mergulho, algures na praia de Vila Chã,
em Vila do Conde.
O terceiro testemunho é um hino à vida, pois o Autor deixa
escapar o orgulho que sente por ter impedido a consumação de três abortos. Por
via disso, confessa jubilosamente, considera-se uma espécie de “pai espiritual”
de três seres humanos, concretamente um médico, um professor e um advogado.
Ao longo da narrativa aparecem as diferentes facetas
profissionais vividas por um farmacêutico que também foi professor, analista
clínico, director de um serviço hospitalar, animador cultural, aviador, patrão
de alto-mar, instrutor de mergulho e chefe de expedições de aventura, até se
converter em escritor compulsivo.
É plausível que este livro venha a ser objecto de larga
divulgação, quiçá global, pois é um romance autobiográfico surpreendente. (**)
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 5 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23232: Agenda cultural (809): "Aprendiz de Mágico" (Lisboa, Astrolábio, 2022, 264 pp.), de António Mário Leitão: sessão de lançamento, sábado, 7 de maio, 17h30, auditório da CM Ponte de Lima
(**) Último poste da série > 30 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23568: Notas de leitura (1482): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IV: as circunstâncias da morte do 2º sargento mecânico auto Rodolfo Valentim Oliveira, em 11/8/1965...
quinta-feira, 5 de maio de 2022
Guiné 61/74 - P23232: Agenda cultural (809): "Aprendiz de Mágico" (Lisboa, Astrolábio, 2022, 264 pp.), de António Mário Leitão: sessão de lançamento, sábado, 7 de maio, 17h30, auditório da CM Ponte de Lima
(vii) escritor, membro da Associação de Escritores, Jornalistas e Produtores Culturais de Ponte de Lima, membro da Associação Portuguesa de Escritores, autor dos seguintes livros:
- "Aprendiz Mágico" (Lisboa, Astrolábio, 2022, 264 pp.)
- “Heróis Limianos da Guerra do Ultramar”(Ponta de Lima, ed. autor, 2018, 272 pp.);
- "História do Dia do Combatente Limiano" (Ponte de Lina, ed. autor, 2017)
- "Biodiversidade das Lagoas de Bertiandos e S. Pedro d´Arcos" (Ponte de Lima: Lions Clube de Ponte de Lima, 2012, 295 pp. e mais de 500 fotografias).
Aprendiz de Mágico é um parque de diversões de géneros literários: biografia, crónica, romance fantástico e até qualquer coisa de novela de cavalaria.
Em abono deste último género, fique o leitor a saber que o Mago Merlin teve no século passado uma filha no Alto Minho, de seu nome Rosa Carriça. Apesar de tão remota ascendência, era uma mulher muito à frente do seu tempo, possuidora de poderosos conhecimentos iniciáticos sobre o poder das plantas e dos minerais.
Em lugar de uma espada, confiou às mãos do afilhado, na véspera de este partir para a guerra, um saco de cristais muito brilhantes.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021
Guiné 61/74 - P21942: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (8): O valor da seringa
8 - O VALOR DA SERINGA
Faltava sempre alguma coisa, na hora da rendição, fossem os atacadores de umas botas, o testo de uma panela, uma cavilha da G3, ou até a culatra de um obus. Quando havia um ataque a um aquartelamento era relativamente fácil, no respetivo auto, incluir a perda de parte de um produto, de um elemento de um qualquer equipamento ou mesmo considerar a sua destruição integral. Na tropa chamava-se a isso o desenrascanço, umas vezes seria uma forma expedita de alguém se livrar da injustiça de pagar por algo de que não tinha sido responsável, mas, nalguns casos não era senão uma vigarice para encobrir furtos.
Quando cheguei a Mampatá tive que acusar a receção de uma série de equipamentos onde se incluía um atrelado sanitário, material para pequenas cirurgias, seringas e outras miudezas. O meu antecessor queria que eu assinasse tudo, quase sem ver e, não sei se propositadamente, deixou tudo para o último dia, o dia de todos as pressas. Fui muito claro e franco:
- Venho avisado para o comportamento costumeiro das rendições, sei que vão faltar algumas pequenas coisas, aliás de pouca monta, como já confirmei, também não sou pessoa para estragar a vida a ninguém, quero por isso que me apresentes uma relação escrita do que falta, só para meu uso pessoal.
Assinei então o auto de receção, confirmando a existência da carga sem qualquer falta, permitindo que o meu camarada regressasse a Lisboa sem problemas. Ele dizia-me que já assim tinha acontecido aquando, dois anos antes, da rendição, entre ele e o seu antecessor.
Nenhum prejuízo resultou da falta daqueles objetos, alguns deles já em desuso, razão pela qual não fazia sentido adotar outra atitude eventualmente mais rígida. Mais tarde, pensava eu, logo se veria a volta a dar ao problema. Os meses foram lentamente passando sem que eu me quisesse sujeitar a pedinchar ao Sargento e ao Capitão da Companhia a colaboração na elaboração de um auto de destruição de forma a que o material em falta fosse abatido à carga. Fui empurrando com a barriga, porque, naquelas circunstâncias, quanto mais tarde melhor, e eu até podia, com o meu dinheiro, comprar o material em falta, quando julgasse oportuno, que não era nenhuma fortuna.
A inesperada chegada do 25 de Abril, quase concomitante com o fim da comissão, veio, num primeiro momento, facilitar-me a vida, porque, julgava eu, que acabada a guerra, já não me teria que submeter à operação da transmissão dos materiais a nova companhia, mas, simplesmente, seria feita a doação de todo o equipamento e medicamentos remanescentes aos representantes do novo governo. Enganara-me, o material seria ainda entregue a uma companhia recém-chegada ao território. De pronto, evitando a sujeição aos trâmites burocráticos da tropa, encarreguei o meu amigo 1.º Cabo Enfermeiro Celso Mendes, de, na sua ida a Bissau para uma consulta, adquirir com o meu dinheiro, o material em falta, livrando-me de qualquer problema, aquando da rendição da nossa companhia ou de fazer a outrem o que não gostaria que a mim me fizessem. Por outras palavras: quando o dinheiro puder resolver não devemos, por causa dele, arranjar problemas de consciência ou outros.
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021
Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá
© Foto: Vasco da Gama
1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a sétima.
7 - O MILAGRE DE NHACOBÁ
Tinha-me sentado, já a noite tinha feito adormecer as mulheres e as crianças daquela morança, numa espreguiçadeira igual a muitas que havia por toda a tabanca, nalguns casos mais do que uma por casa. Acordado estava só o More, o homem da casa, soldado do pelotão da milícia, combatente desde a primeira hora, do lado de Portugal. Era assim que ele gostava de dizer:
- Eu sou português, eu não quero governo de PAIGC, eu gosto de General Spínola.
Ele escutava-me pacientemente, como se não tivesse que se levantar antes das seis horas do dia seguinte. Não era um soldado qualquer, tinha sido condecorado pelo Governo de Portugal com uma Cruz de Guerra e era talvez o melhor combatente de Mampatá. Baixo e magro, aliava a sua destreza felina à experiência adquirida desde os primeiros recontros da nossa tropa com o inimigo Eu sabia que, na madrugada seguinte, ambos sairíamos a caminho da tabanca de Nhacobá, integrados numa força equivalente a duas companhias, que tinha sido tomada , no dia anterior, pela nosso exército, onde permaneceríamos por um dia e meio, até sermos substituídos por outras forças. Quem melhor do que ele me poderia fortalecer o ânimo, naquelas horas que precederam a arriscada operação. Dizia-me, na sua islâmica convicção, que tudo iria correr bem, porque eles tinham fugido deixando mortos no terreno e assim demorariam algum tempo até se recomporem da derrota.. Que me fosse deitar no meu quarto, porque no outro dia nem um tiro seria preciso dar.
E lá fui apalpando a escuridão por entre carreiros que me levaram até à solidão da minha cela que ficava justamente ao lado da enfermaria. Refrescado o corpo por um minuto debaixo do chuveiro deixei-me cair no catre onde já dormira cerca de trezentas longas noites. Mas, perturbado por pensamentos cheios de mutilações e morte, só por intermitentes momentos tinha passado pelo sono, durante aquela madrugada, quando ouvi, em frente à janela do meu quarto, o barulho que faziam os meus camaradas a levantar munições, granadas e algum armamento especial para aquele dia. Estava na hora de fazer a minha parte. Não podia dar sinais de fraqueza, por isso aprovisionei a minha bolsa de enfermagem, de tudo o que poderia ser precioso em caso de ferimentos graves, onde não poderiam faltar garrotes, soro fisiológico, ampolas hemostáticas, morfina, pensos e os mais diversos comprimidos. Carregaria ainda a minha G3, que um rapazinho da tabanca tinha lubrificado no dia anterior, as cartucheiras e uma caixa com a ração de combate. E aí vou, de medo disfarçado, ao encontro dos meus camaradas. Olhava-os como se fizessem parte da minha família, e eram mesmo, porque desde que o avião nos despejara, em Bissau, largos meses antes, estávamos ali entregues à nossa sorte, no meio do mato, sem que os nossos pais, irmãos, avós, esposas e namoradas pudessem imaginar as agruras dos nossos longos dias. Em camiões militares depressa percorremos aqueles quinze quilómetros, pela estrada recentemente concluída, até à tabanca nova de Cumbidjã, onde dois ou três meses antes se tinha instalado uma nova companhia. Empreendemos então, apeados, o trajeto até Nhacobá, pelo itinerário já desbravado pelas máquinas da engenharia, onde nos esperavam os camaradas de outras companhias que íamos render. Ante os nossos olhos havia um conjunto de casas de planta quadrangular cobertas de capim, abandonadas pelos seus moradores de etnia balanta. Era uma comunidade de gente dedicada à cultura do arroz de bolanha, ao contrário dos fulas, nossos amigos de Mampatá, que cultivavam o arroz de sequeiro. Se o ambiente era, aparentemente, seguro, para tanto contribuía a vastidão de mata capinada e terraplanada, permitindo abranger um extenso horizonte visual. O perigo, por certo, não viria enquanto a noite não chegasse e nos impedisse de vermos o inimigo, porque ele, escondido lá longe, aguardaria, pacientemente, pelo momento propício, como o leão espera pela gazela.
Segundo o plano previamente estabelecido, cada grupo de combate ocupou o seu lugar, no interior de valas, constituindo-se numa formação de quadrado defensivo, ficando no centro o espaldão das peças de artilharia e um abrigo subterrâneo onde o Capitão Marcelino, o More, o Pinheiro das transmissões e eu próprio iríamos passar aquela noite em alerta permanente. O More estava ali como guarda-costas e conselheiro do Capitão. Quem como ele conhecedor daquelas matas desde pequeno, habituado a distinguir os ruídos dos animais da mata, poderia melhor perscrutar os sons da selva e interpreta-los? Por isso estava ali, ao nosso lado e transmitia-nos confiança. Por momentos eu dormitava escudado pelo estado de vigília permanente do More, mas quando me tirava do sono ele dizia-me, em crioulo, quase paternalmente :
- Durme, perigo não tem gora.
As castanhas de cola, que continuamente mascava, mantinham-no arrebitado, como a todos convinha. Vi-o rezar, dentro do abrigo, balbuciando em palavras árabes, orações que sabia de cor. Não pediria a Deus, em absoluto, que o salvasse da morte, antes lhe rogaria que, caso morresse, o acolhesse no paraíso celeste. Pedi eu, igualmente, ao mesmo Deus, que me salvasse da morte, mas já não me importei em pedir-Lhe o paraíso celeste, caso não me quisesse ou pudesse livrar da morte. Na verdade o único paraíso que eu queria era o que eu conhecia bem, a minha família e aquela que eu desejava ardentemente constituir, nada de paraísos metafísicos. Ele era muçulmano, mas ambos sabíamos que o Deus de Moisés era-nos comum e que só Jesus Cristo e Maomé nos separaram nos catecismos que nos formataram na infância.
De repente, um tiro, dois, muitos, logo seguidos de rajadas, interromperam o sono de uns e as evocações e invocações de outros. O ataque tinha começado. Os clarões dos rebentamentos de granadas faziam da noite dia e ouvia-se gritaria indecifrável no meio da trovoada das armas. O Pinheiro, da Vila das Aves, deixou o rádio e saiu do abrigo, indo instalar-se a fazer fogo num sector que lhe pareceu mais desprotegido, sendo secundado pelo More.
No fim, caladas as armas, só por milagre não teríamos um ou mais mortos, e, por certo, muitos feridos, pensava eu. Na verdade só arranhões! Um milagre!
O More, esse fidelíssimo e intrépido soldado do exército português, admirado e protegido por nós, foi fuzilado pelo PAIGC, passado pouco mais de um ano, por ter apostado no lado errado – aquele que lhe parecia o certo.
A razão é sempre a dos vencedores, ávidos de vingança, ciosos, das suas conquistas e dos seus despojos, os do lado certo.
Nota do editor
Último poste da série de 19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021
Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados
1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a sexta.
6 - O SOLDADO DOS PÉS INCHADOS
O rapaz apareceu-me tão cedo, na enfermaria, que me tirou da cama. Aquele assunto era mais do que urgente para ter que esperar pela hora oficial da abertura dos serviços. Dentro de poucos minutos ele tinha que estar na formatura, incorporado no seu grupo de combate, ali junto à árvore grande dos passarinhos, bem no centro da tabanca, fardado, com a arma, cartucheiras, cantil e ração de combate. A saída para o mato incutia-lhe algum receio, porque tinha já ouvido o alferes, no dia anterior, à noite, avisar que iriam montar uma emboscada num carreiro, onde era altamente provável a interceção de um grupo inimigo.
Há dias assim, em que mesmo o combatente mais afoito, nas suas elucubrações, tem uma premonição que o adverte para uma desgraça fatal. E foi isso mesmo que o atormentou a noite toda. E como havia ele de se livrar do mato, pelo menos naquele dia que lhe parecia poder ser o último dos seus verdes vinte anos? Tinha que engendrar um plano. E quando acordei, atordoado, com aquelas pancadas repetidas na janela, ao mesmo tempo que chamava por mim como se estivesse com muitas dores, foi só o tempo de calçar os chinelos e abrir-lhe a porta.
- Então, que se passa Sousa, perguntei-lhe?
- Olhe para os meus pés. Acha que eu estou em condições para sair para o mato, assim, com os pés inchados?
O problema parecia-me grave, até porque ele não me ajudava mesmo nada a diagnosticar o mal. Na verdade isso era o que menos lhe interessava. Que não estava em condições de cumprir aquela missão era a única certeza que eu tinha. E era isso, apenas, que interessava ao Sousa. Apressei-me a comunicar ao Alferes que aquele homem não estava operacional, partindo o grupo para a operação, sem ele.
Não me achando capaz de debelar aquele mal, nem lhe conhecendo a origem, encaminhei-o para o médico, colocado na sede do batalhão que, por sua vez, na ausência de meios complementares de diagnóstico o fez evacuar para o Hospital Militar de Bissau. Ao fim de alguns dias regressou o Sousa a Mampatá, já sem inchaço.
Só há meia dúzia de anos o Sousa me contou como me enganou, assim como ao Alferes médico. Naquela noite ele tinha aplicado uma espécie de garrote em cada perna, que desapertou imediatamente antes de me bater à janela, “aflito”.
Não fiquei agastado com o Sousa, nem tinha que ficar. Afinal, na operação em que ele não participou correu tudo bem, mas podia ter corrido mal.
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021
Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo
1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a quinta.
5 - DORMIR COM O INIMIGO
Conhecia-os bem, porque passavam, de vez em quando, pelo nosso aquartelamento de Mampatá, a caminho do mato, sempre que as operações decorriam na área do sector atribuído à nossa companhia. A sua companhia era de intervenção, o que significava que não tinha apenas uma área fixa à sua responsabilidade operacional, mas intervinham às ordens do comando do batalhão, ora num subsector ora noutro. Era na verdade uma companhia muito prestigiada e com uma atividade operacional muito intensa a Companhia de Caçadores n.º 18, designada por nós a CCaç 18, a que aqueles dois furriéis pertenciam.
A maioria dos seus militares era natural da Guiné, e só a minoria composta pelo capitão, quatro alferes, 1.º sargento, alguns furriéis e uns tantos cabos especialistas, eram oriundos da então chamada metrópole portuguesa. Mas estes dois furriéis que viajavam comigo num batelão de mercadorias, em pleno rio Grande de Buba, eram guineenses de pele bem escura. E se nos conhecíamos de Mampatá e até de encontros fortuitos em Aldeia Formosa, durante aquelas longas horas entre Buba e Bissau, com escala na ilha de Bolama, falámos de tudo, mas especialmente da guerra e das previsões que dela faziam aqueles dois meus camaradas de armas. Sim parecia-me que entre nós os três havia muito em comum, embora não deixasse de considerar que eles estavam no seu solo e no seio da sua cultura.
Ambos eram manjacos, um dos grupos étnicos não islamizados, combatentes do exército português, tal como eu. Os três iríamos desfrutar de um mês de férias, eu em Medas-Gondomar, eles em Bissau. Pelo que tenho presente nenhuma reserva mental se interpunha entre o meu pensamento e as ideias que exteriorizava sobre aquele conflito sugador de bens, ávido de sacrifícios e predador de vidas. Parecia-me, pelo lado de ambos, algum desconforto na impossibilidade de me dizerem tudo o que lhes ia na alma. Sentir-se-iam eles de consciência absolutamente tranquila, cientes de que lutavam dentro do seu território contra, pelo menos, uma parte do seu próprio povo? Ou criam naquela ideia, utópica para uns, realizável para outros, de uma Guiné integrada num espaço pluricontinental e pluricultural, beneficiando da proteção de uma metrópole europeia capaz de assegurar a formação de quadros técnicos e apoio na construção de infraestruturas, num território delas tão carente? Mas como poderia Portugal, então sob um regime de ditadura, garantir a uma ou a todas as suas parcelas dispersas pelas mais diversas geografias, um governo autónomo resultante de uma escolha democrática?
Um era o Furriel Baticã, do outro já se me varreu o nome da memória, mas ambos me pareciam apreensivos quanto ao seu futuro, vestindo uma roupagem que não lhes assentava na perfeição. Mesmo assim, no decurso daquela viagem até Bissau, muito aprendi da sociologia da Guiné, dos usos e costumes, dos dialetos, do comércio esclavagista, do fluxo demográfico da Guiné para Cabo Verde e, posteriormente, da migração de cabo-verdianos para a Guiné.
Desembarcados em Bissau, combinámos beber umas cervejas no Café Bento, logo ali à direita, no início da avenida mais importante da capital guineense, onde daríamos os últimos retoques à conversa e nos despediríamos. E foi assim, na despedida, que os dois camaradas da CCaç 18 me convidaram para passar, na casa que tinham na cidade, os dois ou três dias que teria que esperar pelo meu embarque para o Porto, via Lisboa.
A casa era modesta, para os padrões europeus, mas boa no contexto da Guiné. Num amplo quarto estavam dispostas meia dúzia de camas de ferro ladeadas por uma mesinha de cabeceira. Tudo muito sóbrio num chão de cimento coberto aqui e ali por esteiras de confeção artesanal.
Naquela casa entravam e saiam, continuamente, familiares e amigos dos meus anfitriões, aceitando com naturalidade e até simpatia a minha presença. Por certo todos estavam informados de quem eu era. Pela minha parte sentia-me à vontade, mais seguro até do que se estivesse num local onde predominassem militares de pele clara. Bissau começava a ser um local pouco seguro, a que chamávamos a Saigão da Guiné, sobretudo desde o ataque, com foguetões, ao aeroporto.
Mais tarde, depois das férias que correram vertiginosamente na metrópole, e regressado ao mato, reencontrei estes hospitaleiros camaradas guineenses e até ao fim da comissão tive oportunidade de lhes reafirmar a minha gratidão pela forma simpática como me receberam em sua casa onde passei dois ou três agradáveis dias, num bairro onde só se viam pessoas de pele escura.
Alguns anos depois da independência da Guiné, vim a saber, com algum espanto, que o Furriel Baticã, foi integrado no governo do PAIGC, ao contrário de muitos outros guineenses que foram fuzilados por terem integrado as Forças Armada Portuguesas. Posso então dizer que dormi na casa do inimigo.
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021
Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca
Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > Uma manada de vacas, cambando o Rio Udunduma... Possivelmente pertencentes a um notável fula da região (Amedalai, por exemplo, que era a tabanca mais perto)... Só com muita relutância os fulas vendiam cabeças de gado à tropa... O gado era, tradicionalmente, um "sinal exterior de riqueza", um símbolo de "status" social...
Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a quarta.
4 - A VACA
Para além dos sofrimentos da alma, dos perigos sempre no horizonte mental, das agruras do clima, da omnipresença dos incomodativos insetos, havia, ainda, uma alimentação monótona e quase sempre imprópria para seres humanos.
Os alimentos e quase tudo o que consumíamos estava dependente do seu transporte, desde Lisboa até ao local recôndito onde estávamos instalados, com recurso a sucessivas operações de carregamento e descarregamento, por entre navios, barcos mais pequenos, camiões, aviões e outros meios, suportando dias de exposição ao calor e à chuva, chegando ao destino, muitas vezes já afetados no seu estado de conservação ou literalmente adulterados.
Os aquartelamentos implantados junto à margem dos grandes rios ou braços de mar tinham um abastecimento mais regular, visto que recebiam diretamente, por barco, as suas provisões, mas aqueles, como era o caso de Mampatá, que tinham que organizar colunas de reabastecimento, sofriam os constrangimentos quer de eventuais ataques da guerrilha ou rebentamento de minas, quer das indiscritíveis condições de transitabilidade por caminhos que pareciam rios, na estação das chuvas.
Nalguns casos o transporte planeado para certo dia era adiado, porque numa situação de guerra de guerrilha, o espaço não era ocupado apenas por um dos beligerantes, mas sujeito sempre à presença, ainda que esporádica, do inimigo. Havia aquartelamentos implantados bem perto de tabancas habitadas por população que tinha um comportamento duplo, ora connosco ora com o inimigo. Nestes casos, ocorriam operações em que eram roubadas vacas que depois eram abatidas para abastecimento do depósito de géneros da companhia. Não era o nosso caso.
Estávamos em setembro de 1973, em plena estação das chuvas, e talvez por isso a chegada de géneros alimentícios tardava, e parecia que não havia mais nada que comer para além daquela fastidiosa massa com rodelas de chouriça de colorau, ao almoço e ao jantar. Para ser mais exato havia uma variante, arroz em vez de massa. Mas que fazer? O caçador da milícia bem se esforçava, saindo de noite para a zona periférica do quartel onde esperava horas pelo aparecimento de uma gazela ou de um porco do mato. Mas nada! Nem para ele nem para nós.
Um dia, mais uma vez, interpelei o meu Capitão, dizendo-lhe que até na enfermaria se repercutiam as consequências de uma dieta tão monótona promotora de um agravamento generalizado do estado de saúde da rapaziada. Ele, farto de me ouvir, e não tendo solução para um problema que também o trazia preocupado, propôs-me:
- Ó Carvalho, você, que até se dá muito bem com a população, veja se consegue convencê-los a venderem-nos uma vaca!
Pois o desafio era esse, convencê-los a venderem-nos uma vaca, e se não resolvia o problema estrutural, amenizava-o, pelo menos.
Os Fulas, grupo étnico predominante naquela região, no sul da Guiné, tinham muita relutância em vender uma das suas vacas que pastavam capim no lado exterior da cerca de arame farpado que nos protegia dos ataques do inimigo. Na verdade, a nossa perspetiva eivada de etnocentrismo impedia-nos de perceber que, para eles, as vacas constituíam a sua propriedade que geriam de forma muito parcimoniosa.
Devido às altas temperaturas tropicais e à ausência de meios de frio, os fulas matavam, para consumo próprio, uma vaca de cada vez, numa escala rotativa por entre todos os possuidores de cabeças de gado, sendo que toda a carne de um animal era distribuída em doses proporcionais ao número de membros de cada agregado, para consumo num único dia. Para eles, a venda de uma vaca não lhes interessava, porque alterava todo o esquema estabelecido no seio da comunidade. Era então preciso sentarmo-nos à mesa, como se diz em Portugal, para tentarmos convencer os donos daquelas vacas pequenas e magras a venderem-nos uma.
Confiante na minha facilidade de comunicação com a população de Mampatá, primeiro falei com o Régulo, Aliú Baldé, só depois com alguns dos homens grandes da terra. O régulo é assim uma espécie de presidente de Junta, mas com mais autoridade, talvez um misto de presidente de junta e regedor.
Disse-me ele, naquele seu modo seguro mas ponderado, que o assunto iria ter um bom desfecho, mas que era preciso fazer uma reunião com a presença dos proprietários das vacas, cerca de uma dúzia, e nós os dois.
No dia seguinte, pelas três horas da tarde, lá estávamos todos na morança do Régulo Aliú. Ele próprio, com a paciência de Fula, num tom monocórdico, expôs o objeto da reunião, no dialeto local, permitindo-me, mesmo assim, perceber que argumentou em favor da minha pretensão, dando-me, de seguida, a palavra.
Em rigor aquela reunião não decorria à volta de uma mesa, mas simplesmente nos encontrávamos sentados, cada um sobre uma esteira, no chão de terra. E foi assim, naquela roda democrática, que intervim aduzindo argumentos em favor da minha companhia, usando palavras em crioulo mescladas com muitos termos do dialeto fula. Disse-lhes que estávamos ali todos irmanados no mesmo objetivo, que também, inúmeras vezes colaborávamos com a população nas suas atividades agrícolas e que, por isso, agora que tínhamos problemas de saúde pela falta de uma alimentação variada, precisávamos que nos vendessem uma vaca.
Todos quiseram dar a sua opinião, mas eu estava certo que nenhum deles se iria opor. Na verdade apenas havia que se cumprir aquele ritual, e a mim nada custava deixar passar o tempo e as cerimónias próprias daquele ato diplomático.
Os Fulas eram quase todos boas pessoas e eu sentia-me bem em tratar daquele assunto. No dia seguinte uma vaca foi sacrificada, e centena e meia de soldados tiveram uma refeição melhorada.
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo
Meus caros amigos, combatentes.
O que vos mando é mais um capítulo do meu livro, para, caso entendam, o publicarem no nosso blog. Como é bastante volumoso poderá ser publicado de modo fatiado, admitindo até que algumas partes possam ser desinteressantes, logo não publicáveis.
Um abraço vos mando por esta via, com votos de saúde.
Carvalho de Mampatá.
3 - O CANHANGULO
O Samba era um soldado da milícia de Mampatá. Fazia parte do grupo de três ou quatro dezenas de civis armados da povoação, cuja missão principal era a defesa da população civil, perante um eventual ataque do inimigo. Todos eles tinham as suas famílias na localidade e ocupavam-se, paralelamente, dos seus afazeres, quase sempre, na cultura do arroz e do amendoim. Recebiam uma remuneração modesta do Exército Português, por participarem no esforço daquela guerra. Algumas vezes o dinheiro não lhes chegava até ao fim do mês, por isso, era frequente pedirem algum emprestado com a promessa de o devolverem, logo que voltassem a receber.
O Samba era um dos que me batiam à porta sempre que o mês se tornava mais longo que o dinheiro. Quando a importância era de valor muito residual fazia de conta que me esquecia, coisa que lhe agradava.
Da última vez tinha-me pedido setenta pesos, com a promessa de mos devolver, logo que recebesse, no fim desse mesmo mês. Passaram-se dias, semanas e até meses, e o Samba, sempre que o interpelava, respondia-me com aquela ingenuidade de quem acha que os prazos só são de cumprir quando se pode:
- Não pode ainda, eu tem filho doente, mulher está mal, espera mais.
Não tinha eu outro remédio, senão esperar.
Quase a acabar a minha comissão, já convencido que aquela dívida não seria mais cobrável, numa das minhas digressões pela tabanca, passei pela morança do Samba. Conversávamos do meu regresso a Lisboa, do fim da guerra, da revolução do 25 de Abril, abrigados pela sombra da cobertura de capim daquela casinha construída da forma mais primitiva que se possa imaginar, quando uma espingarda de fabrico artesanal, encostada a um canto me despertou a atenção. Pelo seu aspeto, coberta de poeira e um pouco desconchavada, não me pareceu que lhe merecesse muito apreço nem que lhe servisse de alguma coisa.
Para mim, aquele objeto ferrugento teria algum valor, se o mandasse restaurar por mãos habilitadas, quando regressasse às Medas. Mas era preciso que ele mo vendesse, coisa que me parecia muito provável quer pela amizade que havia entre nós quer por já não lhe servir de nada. Tomando-a nas mãos, como a mostrar-lhe o meu interesse por aquela arma inerte, perguntei-lhe se ma queria vender. Admirado pelo meu interesse numa arma que já não fazia fogo, agradado por me fazer feliz, como se me quisesse manifestar gratidão, recusou vender-ma, como se isso manchasse a nossa amizade.
- Se tu quer essa arma, leva ela pro Lisboa, eu não vendo, eu dá para ti.
Não tendo que lha pagar, sempre achei oportuno, declarar-lhe que, no mínimo, considerasse que já não me devia os setenta pesos, amortizados por aquele ato generoso e desprendido de sua parte. Só então, perante o seu ar de espanto, percebi que teria sido melhor não fazer referência à sua dívida, porque ele tinha-se desligado dela e só me pagaria num qualquer dia, se eu precisasse daquele dinheiro e a ele não fizesse falta.
Obrigado, amigo Samba, por me teres ensinado, que existem no mundo, outros paradigmas culturais, para além dos nossos conceitos ou preconceitos judaico-cristãos.
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021
Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné
Meus caros amigos, combatentes.
Um abraço vos mando por esta via, com votos de saúde.
Carvalho de Mampatá.
2 - DESPEJADO NA GUINÉ
Aos dezoito meses de tropa fui convocado para me apresentar no Quartel da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, onde me havia de juntar à Companhia de Artilharia n.º 6250 e seguir por avião para o território da Província da Guiné, no dia 27 de junho de 1972.
Falava-me de patrulhamentos sob temperaturas escaldantes, de milhões de mosquitos e outros insetos incomodativos, de noites inteiras debaixo de chuvas torrenciais, de sede, de péssima alimentação e também de gritos de feridos e outras cenas tétricas. E era ele, segundo me disse mais tarde, e eu próprio vim a perceber, muito contido nas descrições.
Passadas quatro horas, desde a partida do aeroporto de Lisboa, lá estávamos nós a divisar, por entre as nuvens, as coberturas de zinco da maioria das casas da cidade Bissau, o que nos dava por antecipação uma ideia de pobreza da cidade capital. As portas abertas do avião, logo que se imobilizou na pista, deixavam entrar uma aragem muito quente e húmida que nos fazia ensopar o corpo e a farda de abundante suor. Estávamos já em plena época das chuvas que se inicia em maio e acaba em novembro, com temperaturas muito altas de dia e de noite.
O Zé Manel da Régua não foi só um dos soldados da minha companhia, ouvia-lhe opiniões e leituras das realidades exóticas daquela terra e das suas gentes e gostava da sua autenticidade e honestidade, sobretudo da sua humanidade e do seu espírito generoso e disso tudo resultou uma amizade para toda a vida.
Permanecemos nesta ilha durante cerca de trinta dias, em exercícios de aperfeiçoamento operacional. Bolama era de certo modo o espaço ideal para o efeito, porque tinha características de vegetação idênticas às que iríamos encontrar e era território insular e, por isso, sem guerra. Como é sabido, numa ilha é quase impossível a sobrevivência de guerrilha por ausência de apoios externos e caminhos de fuga.
Bolama tinha sido capital da Guiné, entre 1879 e 1941, por isso deslumbrava-me com alguns exemplares do seu património arquitetónico, apesar do seu estado de abandono e ruína, como o antigo Palácio do Governador, o edifício dos Paços do Concelho e as desativadas instalações do Banco Nacional Ultramarino. Nada que me mitigasse a saudade dos que tinha deixado por cá, como da minha namorada com quem, se não fosse o execrável estorvo da guerra, teria já casado, dos meus pais, dos irmãos, da minha tia materna, dos avós, dos amigos, das coisas boas da vida normal sem sobressaltos nem medos.
No dia seguinte uma avioneta fez o transporte dos dois combatentes, para Bissau e, passados alguns dias ou poucas semanas, estariam os sinos das suas terras a chamar os amigos e vizinhos para o enterro destes jovens que tinham perdido a vida pela Pátria. Nós sairíamos daquela ilha, integrada no chamado arquipélago dos Bijagós, no dia 28 desse mesmo mês de julho, com destino ao sector onde devíamos substituir outra companhia e aí permanecer durante cerca de vinte e quatro meses.
A viagem teve duas etapas, porquanto saímos de Bolama numa embarcação idêntica à que nos trouxera de Bissau, uma LDG (Lancha de Desembarque Grande) que nos levou por um braço de mar até à povoação de Buba e só ao segundo dia partimos de Buba para Mampatá, o nosso destino, no dia seguinte. Uma LDG servia para transportar tudo: camiões, materiais de qualquer tipo e tropas, e tinha a particularidade de pode acostar em qualquer ponto da costa ou da margem dos rios, mesmo que desprovidos de cais.
Logo ali, ainda antes de chegarmos ao nosso sector, fui solicitado para colaborar na assistência ao soldado Bento que estava entre a vida e a morte. A enfermaria estava instalada dentro de um abrigo subterrâneo e eu auxiliava o furriel enfermeiro da companhia de Buba na tarefa penosa de mantermos vivo aquele jovem que tinha um estilhaço alojado no tórax. Por entre gemidos do ferido e os estrondos das saídas das granadas das nossa peças de artilharia instalava-se, entre nós os recém chegados, a sensação de que tínhamos vindo parar a um dos piores sítios da Guiné. O contacto com os guerrilheiros tinha ocorrido quase no fim da tarde e, em pouco tempo, a escuridão sobreveio e por isso não mais foi possível a evacuação aérea do ferido para o Hospital Militar de Bissau.
No dia seguinte iniciaríamos a nossa jornada de vinte e cinco quilómetros até Mampatá, alquebrados de corpo e de espírito pelos acontecimentos do dia anterior. Nos camiões que nos transportavam seguiam também materiais de construção, munições e víveres. Ao meu lado, sentado sobre um saco de arroz, olhos perscrutantes sobre a mata cerrada, um soldado do recrutamento local, o More. Magro e baixo não parecia nada o guerreiro destemido que vim a conhecer na convivência quotidiana, em Mampatá. Dizia-me o More :
Os meus olhos focavam-se na mata densa procurando entrever qualquer sinal de perigo no espaço marginal à picada, preocupado com a iminência de uma emboscada e pouco interessado na beleza da floresta de onde se ouviam apenas os guinchos dos macacos. Estariam eles a avisar-nos de algum perigo ou, pelo contrário, tendo celebrado um acordo com o inimigo, anunciavam antecipadamente o nosso massacre. Estes e outros pensamentos fluíam da minha imaginação como se houvesse alguma relação lógica entre aquela guincharia e a nossa sorte.
Se alguém fazia anos havia sempre cerveja e algum vinho a regar uma refeição melhorada, com a presença dos amigos mais chegados. Normalmente os furriéis comemoravam em conjunto com os alferes e vice-versa. Os cabos e soldados festejavam normalmente por secção. Nalguns casos, os militares de especialidades com poucos componentes, como os mecânicos, os enfermeiros e os transmissões juntavam-se nos festejos de aniversário em função da respetiva especialidade.
Passados três dias coube-me sair para o mato com um pelotão. Não era frequente sair, o meu trabalho estava diariamente ligado à enfermaria que dava assistência a militares e à população civil. Talvez estivesse algum cabo enfermeiro de férias e cumulativamente um outro doente. Certo é que, pelas seis da manhã, como era comum nas operações de segurança aos trabalhos da construção da estrada, lá estou eu com um grupo de combate a caminho da frente da estrada, logo a seguir à tabanca de Colibuia.
Em 2009, quando fui à Guiné, numa caravana solidária, transportando alguns bens preciosos para o povo de Mampatá, procurei o Ussumane Buaró, dele só já pude ver a campa onde seus restos mortais foram sepultados no redor da tabanca. Ao seu filho mais velho deixei uma recordação num modesto gesto de homenagem e gratidão a alguém que se preocupou com a minha sobrevivência. No dia 16 de março de 1973, saiu, pelas seis horas da manhã, um grupo de combate da minha companhia, com destino à frente de trabalhos das obras de abertura e pavimentação da estrada entre Mampatá e Nhacobá. A cerca de um quilómetro o soldado Albuquerque pisou uma mina antipessoal e com o estampido uma nuvem de pó visível de longe, fazia crer o pior – a perda de uma perna, na melhor hipótese. Transportado de helicóptero para o Hospital de Bissau e operado, morreu passados cinco dias. Está sepultado no cemitério de Barcelos.
Um poema de homenagem ao Albuquerque – Autor: Josema, pseudónimo do meu amigo e camarada da companhia José Manuel Lopes:
Puseste o pé em sítio errado
um som violento o pó levantado
escondeu por algum tempo
o teu corpo violentado
sem pensar em outras minas
correram em teu socorro
o sangue fugia do teu corpo
e o “hélio” não chegava
tua cara ainda de criança
ficava cada vez mais pálida
tudo num silêncio angustiado
apesar dos teus vinte anos
a vida fugiu-te em golfadas
porquê tanto sangue derramado?
Concluída a primeira estrada foi preciso construir uma outra, ligando o nosso destacamento ao importante quartel de Buba, ficando quase toda a atividade operacional condicionada pelo lema spinolista: "Por Uma Guiné Melhor". O General Spínola tomou posse como Governador e Comandante Chefe da Província da Guiné em 1968, e na tentativa de subtrair a população do controlo dos guerrilheiros organizou os chamados congressos do povo que eram assembleias consultivas constituídas por régulos, chefes religiosos e pessoas com ascendência social relevante que funcionavam como câmaras de eco das aspirações da população. Ao mesmo tempo desenvolveu um grande esforço no domínio da construção de estradas e de escolas.
Naquele primeiro semestre de 1973 a situação militar piorava cada vez mais, e o abandono do quartel de Guileje bem como o massacre a que foram sujeitas as nossas tropas em Gadamael, no Sul e em Guidage, no Norte, resultavam sobretudo da grande dificuldade que os pilotos da Força Aérea Portuguesa sentiam agora, face ao uso dos novos misseis, pelo PAIG. Esse constrangimento repercutia-se não só num desempenho menos eficiente, por parte da Força Aérea, na proteção das nossa tropas, como também, na evacuação de feridos e no transporte aéreo de víveres, tabaco e correio. Este era absolutamente fundamental para o estado psicológico da maioria dos soldados e a falta de correspondência escrita, durante muitos dias, provocava desânimo.
Houve dois grandes momentos de eufórica alegria, durante a comissão: a notícia da revolução do 25 de Abril e o dia do regresso a Portugal em 24 de agosto de 1974. Naquela manhã, aparentemente igual a tantas outras, depois de ter já cumprido a minha rotina na assistência aos doentes da população civil, passando pelo bar para tomar alguma bebida fresca, vi junto ao posto de transmissões alguns camaradas que dialogavam entre si, com gestos e expressões de espanto e notável felicidade.
Tinha assistido ao fim de um conflito evitável e sem qualquer proveito para ambas as partes, no qual perderam a vida, nos três territórios de Angola, Guiné e Moçambique 8831 jovens portugueses, num total de 800.000 militares mobilizados durante 13 anos. E aos que propagam a teoria de que a guerra de África não era uma causa perdida e que até já estava quase ganha responde o silêncio de 98 jovens mortos, só na Guiné, no período decorrente entre 1 de Janeiro e 25 de Abril de 1974.
As guerras deverão ser sempre o último recurso das nações civilizadas, nunca uma opção estratégica. Dirão outros que aquele era um território português e como tal tinha que ser defendido. A esses asseverarei que os estados têm como dever prioritário não propriamente a defesa do território, mas a defesa de todas as pessoas que nele habitam, assegurando que todos tenham direito à satisfação das suas necessidade básicas, à liberdade, à democracia e à justiça.
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Nota do editor
Primeiro poste da série de 12 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Manpatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...