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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21870: Antropologia (40): Conto iniciático da etnia Fula, contado aos mais novos (Cherno Baldé, colaborador permanente em assuntos étnico-linguísticos da Guiné-Bissau)

Guiné > Região de Cacheu > Bigene > A festa do fanado... mandinga

Foto (e legenda): © António Marreiros (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, ("Chico de Fajonquito", colaborador permanente em assuntos étnico-linguísticos da Guiné-Bissau), com data de 1 de Fevereiro de 2021:

Caros amigos,

Na sequência das ultimas publicações sobre cerimónias e ritos tradicionais de fanados e outros, junto envio um conto iniciático dos fulas, contado aos mais novos nessas ocasiões. Trata-se de uma amostra quando se fala das bases sociológicas em que se assentava a educação tradicional africana nas suas diversas facetas.

Todos aqueles que foram educados na base da matriz cultural da tradição africana saberão reconhecer os alicerces e suas derivações e aqueles que não o sendo tem acompanhado seus contornos poderão experimentar o prazer de navegar em águas já conhecidas e apreciadas ao longo dos últimos anos.

Se for de algum interesse, de momento, podem publicar no Blogue da TG.

Com os meus respeitosos cmpts,
Cherno Baldé


CONTO INICIÁTICO DA ETNIA FULA CONTADO AOS MAIS NOVOS

Um homem que vivia numa aldeia tinha um filho de quem gostava muito e a quem queria dar uma boa educação conforme usos e costumes da época. Depois de uma vida de criança livre de brincadeiras até à idade dos sete anos, o pai decidiu enviá-lo para uma escola corânica a fim de aprender os fundamentos da religião que orientava a vida espiritual da sua comunidade. 

Depois de muitos anos de aprendizagem e de duros trabalhos junto do seu mestre, concluiu os estudos e voltou para casa familiar.

Após o contentamento e euforia dos primeiros dias e quando o jovem se preparava para construir sua casa e ampliar a família com a constituição de sua própria família, o pai chamou-o outra vez e disse-lhe:

- Meu filho, estamos muito orgulhosos da tua dedicação ao trabalho e o teu desempenho escolar, mas acontece que na vida a escola é importante mas não é tudo. Agora vais ter que aprender na escola maior que é vida, o conhecimento sobre o mundo, suas infindáveis maravilhas, contradições e desafios, por isso queremos que partas para uma viagem de volta ao mundo, tomando a direcção que te convier - Norte-Sul-Este-Oeste - e durante o percurso vais encontrar e viver muitas situações e observar fenómenos que nunca tinhas visto e experimentado na tua vida. Em tudo deverás tirar lições que te poderão servir na vida futura, pelo que tudo que não for da tua compreensão, deverás observar direito e tomar boa nota até ao seu regresso.

No dia seguinte, o filho despediu-se da sua mãe e de toda a família, pegou na sua flecha e no chapéu de abas largas com que protegia a cabeça do ardor do sol africano e outras poucas coisas que poderia precisar durante a sua viagem e partiu rumo ao desconhecido.

Depois de muito caminhar, encontrou uma abelha que estava morta no caminho e decidiu dar-lhe sepultura, mas para sua surpresa, à medida que a enterrava e se preparava para continuar a sua caminhada a abelha emergia da terra e voltava ao mesmo sitio donde a tinha retirado antes.

 Percebendo estar diante de um fenómeno que não compreendia, lembrou-se dos conselhos do pai que lhe dissera para tomar nota de tudo que visse e lhe parecesse estranho, tomou nota e continuou a sua caminhada.

Mais à frente viu no caminho um objecto redondo que brilhava parecendo ouro, mas quando se preparava para pegá-lo o objecto transformava-se numa cobra e quando se afastava, o objecto voltava a assumir, de novo, o mesmo brilho. Percebeu estar diante de um fenómeno estranho, tomou nota e continuou. 

Prosseguindo seu caminho, viu um macaco em cima de uma árvore que, sistematicamente, metia a mão no sexo e de seguida punha na boca como se de alimento tratasse, pareceram-lhe muito estranhos e pouco higiénicos estes gestos, todavia lembrando-se dos conselhos do pai, tomou nota e prosseguiu.

Passou à frente e viu um grupo de vacas num terreno de ervas verdes e água ao redor, mas os animais eram bem magros e de aspecto triste. Não conseguiu entender o que se passava com aqueles animais, havia muita erva e água em abundância, mas mesmo assim estavam tão magros e tristes. 

Mais à frente vislumbrou um outro grupo de vacas num terreno desta vez sem ervas nem água, curiosamente, desta vez, os animais eram gordos e bem dispostos. Pareceu-lhe mais um fenómeno incompreensível, tomou nota e prosseguiu.

Continuando a sua caminhada viu, mais à frente, um porco vestido de batina, uma larga e comprida camisa que lhe ia da cabeça aos pés como se vestem os nossos almames (padres), nas mãos tinha um rosário cumprido recitando versículos corânicos. Ele que conhecia o Alcorão de cor, nunca na sua vida imaginara ver um porco religioso e eis que encontra um porco que recitava versículos. Era tudo muito estranho. 

Mais a frente viu uma outra imagem, onde o mesmo porco estava, desta vez, mais descontraído e rodeado de mulheres em ambiente que parecia de uma grande festa. O jovem ficou confuso diante deste fenómeno bizarro, lembrou-se das palavras do pai, tomou nota e continuou seu caminho. 

Cada vez mais perplexo com o que estava observando pelo caminho, prosseguiu a sua caminhada e desta vez ele viu um enorme elefante parado numa bolanha (planície) enquanto outros pequenos animais, répteis, insectos e pássaros subiam ou pousavam no seu dorso picando e alimentando-se da sua carne e bebendo do seu sangue, mas o elefante, incompreensivelmente, mantinha-se quieto e imóvel. O jovem não compreendeu porque um animal tão possante estava parado e quieto enquanto animais insignificantes o molestavam. Lembrou-se das palavras do pai, tomou nota e continuou sua viagem.

Mais à frente viu uma gazela que só tinha três pés e dum lado e doutro do corpo tinha brilho de ouro e de prata. O jovem correu atrás da gazela tentando agarrá-la ja que só tinha três pés, no entanto sempre que se aproximava da mesma esta parecia que voava e se distanciava para bem longe da sua vista. Pareceu-lhe estar diante de um novo fenómeno que não compreendia, lembrou-se do pai, tomou nota e prosseguiu. 

Continuando a sua caminhada de aprendizagem sobre a vida e o mundo e já o sol se escondia no horizonte e a noite estendia o seu manto de escuridão sobre a terra, quando o jovem resolveu entrar numa aldeia situada à beira do caminho para passar a noite a fim de prosseguir no dia seguinte. Quando entrou na primeira morança, encontrou um homem muito velho e abatido pelo peso da idade que estava sentado junto a uma fogueira, cumprimentou-o com todo o respeito e pediu asilo para uma noite pois tinha caminhado muito e estava cansado. 

O velho respondeu-lhe numa voz acabada e quase inaudível que a morança não era dele, mas do seu pai que, de momento estava ausente. O jovem ficara, mais uma vez, pensativo com a ideia de saber, se o filho estava assim naquele estado como não seria o pai. No mesmo momento surgiu a entrada da morança um homem mais novo e robusto que trazia lenha a cabeça para sua morança. O homem cumprimentou-o e confirmou que, de facto, era o pai do velho sentado junto a fogueira. Deu asilo e mandou trazer água e comida ao jovem, que, mais uma vez ficou intrigado com o fenómeno diante dos seus olhos, lembrou-se das palavras do pai, tomou nota e foi dormir para descansar, enquanto passava em revista todas as cenas de que tinha sido testemunha em tão pouco tempo de viagem.

Após alguns anos de viagem pelo mundo, o jovem decidiu regressar a casa dos pais e contar ao pai e família tudo aquilo por que tinha passado e tinha observado ao longo dos últimos anos. Enquanto ele descrevia as cenas do filme das experiências da sua viagem, o seu pai dava o significado dos diversos comportamentos e fenómenos daquilo que ele tinha visto no caminho, com que tomamos a liberdade de partilhar com os nossos estimados leitores.

Assim:

1. A abelha que ele não conseguia enterrar, é o homem de bem, homem puro, solidário e desprovido de inveja, a este homem imaculado ninguém consegue denegrir a sua imagem por mais que tentem. É o homem próximo do Deus.

2. O objecto brilhante que se transforma em cobra, é a mentira embelezada para parecer verdade, ao longe tem o brilho de ouro, mas é brilho de pouca dura, pois se a mentira pode ser o início numa relação, só a verdade a manterá.

3. O macaco que metia a mão no sexo e de seguida a levava a boca, são os nossos tempos actuais “Afri-djamanu” (África moderna), tempos em que homens e mulheres vendem seu corpo, ganham autonomia financeira vivendo por sua conta graças à prostituição, alimentando famílias inteiras.

4. O cabrito que subia o tronco da árvore com espinhos em vez dos seus semelhantes fêmeas, é o jovem que vai atrás de mulheres idosas e do sexo duvidoso e infrutífero, ele perde seu tempo, sua força e saúde, mas nunca terá progenitura.

5. O pássaro que, quando se pousava numa árvore esta perdia suas folhas, é o homem irresponsável que em sua casa não assume suas responsabilidades, mas lá fora é o homem-valentão de mãos largas e bondoso que alimenta as mulheres e filhos alheios.

6. O grupo de vacas muito magras num terreno fértil e água em abundância, são as mulheres eternamente insatisfeitas, que passam a vida a bisbilhotar na vida dos outros e levantar a vista para a casa dos vizinhos. Estas mulheres, inconformadas com as possibilidades dos seus maridos e família,  nunca se contentarão com aquilo que têm, em consequência nunca serão felizes da vida. As vacas gordas num terreno seco sem ervas nem água, pelo contrário, são as mulheres de bem, conformadas com o pouco que têm em casa e não se embirram com seus maridos.

7. O porco vestido de batina com um rosário nas mãos recitando versículos, é o rei despojado do seu trono que está a fazer figura de grande religioso. Devolvam-lhe o poder e verão que ele continua tão descrente como todos os reis e homens de poder do mundo.

8. O elefante gigante parado na bolanha e servindo de pasto aos pequenos animais, é o velho e chefe da morança (família) que com paciência, benevolência e muita resignação trabalha todos os dias para o sustento e bem estar da sua família sem esperar qualquer retribuição em troca. Em África, o mais velho é o centro do mundo, o abrigo e a lixeira onde se deita o lixo da humanidade.

9. A visão da gazela de três pés que tinha brilhos de ouro e de prata de um lado e doutro, é a visão utópica e efémera do mundo que perseguimos todos os dias, sem nunca a alcançar na sua plenitude. Significa que no mundo, ninguém deve esperar ser completamente satisfeito e que devemo-nos conformar com a nossa pequena estrela e que é o nosso destino, para a sanidade do nosso espírito e da nossa mente numa luta de permanentes (des)equilíbrios e rupturas.

10. E, por fim, o velho encontrado junto da fogueira e que era filho do outro homem, aparentemente, mais novo que ele, é a visão metafórica da inutilidade de alguns jovens da nossa sociedade actual que vivem do ócio e da futilidade, onde o corpo e a alma, rapidamente, envelhecem triste e precocemente.

Estas sessões iniciáticas em forma de lições de vida para os mais novos, eram feitas nos fanados e outros fóruns de ritual tradicional africano com o objectivo de prepará-los para a vida adulta de modo a poderem assumir plenamente suas responsabilidades como homens e futuros chefes de família.

Bissau, 1 de Fevereiro de 2021
In Conto tradicional fula, de autor(res) desconhecido(s)_apenas um exemplo.
Tradução de Cherno Baldé
Bissau-Guiné-Bissau

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Nota do editor

Último poste da série de 25 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20773: Antropologia (39): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (3) (Mário Beja Santos)

domingo, 17 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21775: Fotos à procura de... uma legenda (137): Pistas de leitura para uma festa do fanado mandinga, em 1973, em Bigene, região do Cacheu (Texto: Cherno Baldé; fotos: António Marreiros)



Foto nº 1


Foto nº 3


Foto nº 4

Guiné > Região de Cacheu > Bigene > CCAÇ 3 (1973/74) > A festa do fanado... mandinga


Fotos (e legendas): © António Marreiros (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1.  Mais um precioso comentário do nosso amigo e colaborador permanente Cherno Baldé, desta vez às fostos do António Marreiros, inseridas no poste P21760 (*) .

Voltamos a reproduzir, embora em formato mais reduzido, as belas imagens captadas pelo nosso camarada António Marreiros em Bigene, em 1973. O Marreiros, um algarvio que vive há muito no Canadá, foi alf mil, CCAÇ 3544, Buruntuma, 1972, e CCAÇ 3, Bigene, 1973/74.





António Marreiros

Legendas para as fotos de uma festa do fanado,
em Bigene, em 1973




Cherno Baldé
 

Caro amigo Antó
nio,

Devem ser fotos tiradas em Bigene a julgar pelo ambiente, população e a manifestaçao cultural em presença.

As fotos nºs, 1, 3 e 4 são do mesmo dia e da mesma festa de animação de um fanado mandinga de rapazes que já devem estar no mato h+a cerca de uma semana.

Os guardiões do fanado, lambés, voltam à aldeia com um ou dois kankurans ou cancurans (o tal ser mascarado com um tecido vegetal) que não é suposto ser conhecido e cuja origem e destino são desconhecidos tal como a origem do bem e do mal que ele vem exorcizar e extirpar a fim de proteger os jovens fanados (iniciados) que, supostamente, no preciso momento se encontram num estado de vulnerabilidade face às forças ocultas.

A festa é da comunidade, incluindo homens e mulheres, mas a animação é sobretudo dos mais novos entre jovens e raparigas, familiares dos iniciados ou fanados, que cantam e dançam dando conhecimento a todos que a vida e a saúde das crianças que se encontram na barraca do fanado estão bem protegidas pelo espirito do kankuran.

De casa em casa vão recolhendo alguns donativos em produtos alimentares que servirão para o sustento da barraca durante alguns dias e assim por diante.

A duração média de um fanado (periodo iniciático) é variavel entre 1 a 3 meses. Há casos extremos, verificados entre certos grupos (Balantas e Nalus) que podem durar até 6 meses.

A festa do fanado é um ritual de iniciação que já existia antes da chegada das grandes religiões dos livros ou abraâmicas e continuam a ser feitas já com alguma influência destas com a eliminação dos aspectos mais feticistas das religiões tradicionais africanas.




Foto nº 2 > O António Marreiros no meio dos blufos, balantas


A foto nº 2 não deve estar relacionada com as outras, pois que se trata de jovens blufos, balantas em migração. Nesta fase das suas vidas são capazes de tudo, porque consideram-se livres das restrições da sociedade e é também a fase da moldagem do seu espírito e capacidades de guerra e de resiliência que os prepara para a vida futura onde a astácia, a camuflagem e a coragem sero os elementos mais apreciados e valorizados.

Durante a minha infância, e tão idiota que era, participei em três fanados diferentes no mesmo ano (1969).

Primeiro levaram-me para o fanado dos fulas, tipico dos Fulas-forros a que pertencia que durou mais ou menos um mês.

Duas semanas após a minha saida, eis que os jovens Fulas-pretos, por sua vez, deviam ser submetidos ao mesmo ritual, mas como diziam que o nosso era tão leve que mais parecia fanado de mulheres, lá fui outra vez para ver com os meus próprios olhos em que é que era, de facto, diferente. Desta vez não fui submetido ao corte físico [do prepúcio] como da primeira vez e, no fim, depois de dois meses, constatei que não era muito diferente daquilo que ja conhecia do meu primeiro fanado.

Passado um més após a saida deste último, era a vez de os mandingas celebrarem o seu fanado e, eis senão que o menino Cherno, sempre insatisfeito e curioso, queria ver com os próprios olhos como era o tão propalado fanado mandinga.

Apos três meses de vai e vem entre a barraca no mato e a aldeia para transporte de comida e água para os fanados-novos, incluindo os preparativos e as festas semanais dos kankurans na aldeia, finalmente fechamos a barraca, voltamos a aldeia num ambiente de grande frenesim festivo.

Mas, a constatação final era que tudo não passava de pura propaganda para a valorização de grupo e a única diferença a considerar, de facto, era a animação dos kankurans e o incomparável talento e capacidade de alardear e fazer propaganda e folcore sócio-cultural, típico dos (artistas) mandingas.

Factos e evidências que justificam o nascimento e sobrevivência do provérbio guineense que diz, em crioulo:"Duno di boca mas duno de mala".

Em tradução livre: Mais vale ter uma boca refinada do que uma mala cheia de dinheiro", ou seja, a aparência (a propaganda) quando bem utilizada, vale mais do que a riqueza (conhecimento, trabalho, o saber fazer). [O provérbio popular português diz o contrário: "Antes sê-lo  que parecê-lo", LG. ]

Este conceito, também, é universal, acho eu e hoje mais que nunca. (**)

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21760: Álbum fotográfico de António Marreiros, ex-alf mil, CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e CCaç 3, Bigene e Guidage, 1973/74 - Parte II: A festa do fanado


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

Guiné > Região de Cacheu > Bigene > CCAÇ 3 (1973/74) > A festa do fanado

 1. Mensagem do nosso camarada António Marreiros [ a viver há quase meio século no Canadá (Victoria, BC, British Columbia), ex- alferes miliciano em rendição individual na Companhia CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e, meses depois, transferido para Bigene, CCaç 3, até Agosto 1974]: 



António Marreiros, 1973, no rio Cacheu


Data - domingo, 3/01&2021, 20:59


Assunto - Ritual de iniciação


Talvez o Cherno Baldé possa esclarecer.

Não estão tão nítidas, as fotos que mando em anexo,  mas é uma janela no passado...

Lembro-me bem disto, fui convidado pelos jovens e meti-me no grupo... Havia um indivíduo mascarado todo coberto de castanho ( vê se mal nesta foto) que levava os jovens para o mato (Foto nº 1)...

São quatro fotos que eu penso estão relacionadas com “ o fanado”...

Abraços, 

António Marreiros

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Notas do editor:


Vd. também postes de:

3 de janeiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21731: Fotos à procura de...uma legenda (129): Pistas de leitura para um casamento Balanta-Mané, em 1973, em Bigene, região do Cacheu (Texto: Cherno Baldé; fotos: António Marreiros)

3 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21729: Memória dos lugares (416): Um casamento em Bigene (António Marreiros, ex-alf mil, CCAÇ 3544, Buruntuma, 1972, e CCAÇ 3, Bigene, 1973/74)

domingo, 26 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20594: Agenda cultural (725): Odivelas, sábado, 8 de fevereiro de 2020: 5º Encontro Regional para uma Intervenção Integrada pelo Fim da Mutilação Genital Feminina (José Martins)



1. Informação que nos foi fornecida pelo nosso colaborador permanente, José Martins, que reside em Odivelas [ex-fur mil trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/7o; tem mais de 400 referências no nosso blogue): 


Odivelas recebe o 5.º Encontro Regional para uma Intervenção Integrada pelo Fim da Mutilação Genital Feminina

Data: Dia 08 de fevereiro 

Local:  Auditório da Escola Braamcamp Freire.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20313: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VIII: Fulacunda, usos e costumes... Lembro-me pelo menos de uma menina que foi a Bissau ao "fanado", e não voltou... Não havia, na época, preocupação de maior com a Mutilação Genital Feminina, por parte das autoridades. civis e militares


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  Lavadeiras... Mas aqui também, se praticava a Mutilação Genital Feminina, coisa que nunca preocupou nem Spínola nem Amílcar Cabral...

Foto (e legenda): ©  Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1/ CAC 7, 1969/71) > Parte VIII


[ Foto à esquerda: Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda]



Dentro da população, tínhamos o Alferes de 2ª linha, o Malan, que era um homem sensato e que tinha a habilidade de nos contar histórias/lendas do seu povo.


Recordo que alguns desses contos foram reproduzidos no boletim que a Companhia publicava quase mensalmente e que se chamava “O Boina Negra”. 

Entre muitos dos que colaboravam, estava na linha da frente o Alferes  Barbosa,  e eu próprio escrevi alguns artigos. Recordo-me também de reproduzir situações bem conhecidas do “Zé da Fisga”, na contracapa.

Ao fim da tarde, era frequente ver furriéis e soldados passearem pela Tabanca para gáudio dos miúdos que brincavam ao vento. 


Conhecíamos alguns hábitos e costumes destas gentes e entrávamos nas suas tabancas com alguma frequência apenas com a curiosidade de poder conhecer o seu “modus vivendi”. 

Sabíamos que era frequente terem várias mulheres, de acordo com as suas regras de vivência. O dono da morança dormia numa esteira no quarto que só a ele pertencia e os mais afortunados já tinham uma tarimba no seu quarto. As mulheres, normalmente, dormiam todas em outro quarto e ao chamamento do marido lá eram escolhidas para uma noite de acasalamento. 

Quando um homem pretendia casar com terceira mulher, já deveria ter quase sempre em mente o casamento com a quarta mulher,  o mais depressa possível. É que ter três mulheres em casa provoca um desequilíbrio grave pois uma delas virava quase sempre vítima das outras duas.  Até nesta forma de viver os Africanos tinham as suas regras de vivência pacífica.

Com condições de vida muito precárias, viviam de alguns trabalhos que emanavam do Comando da Companhia. Semeavam mancarra, amendoim, que frequentemente iam vender a Bissau, normalmente à Casa Gouveia, pertencente a (ou contratante de) o Grupo CUF.

Havia, também, outras vivências. Recordo de um ou dois casos de raparigas com os seus oito ou dez anos, terem ido a Bissau fazer a ablação do clitóris. Uma delas não voltou, porque, segundo se constou, não sobreviveu às infeções a que estavam expostas. 


Eram rituais da população que ao que sei, à época, as autoridades não dariam muita importância, assim como a circuncisão dos rapazes.

Hoje, sabemos que se está fazendo um esforço de sensibilização para se evitarem tais atos nefastos para a saúde das raparigas, futuras mulheres. Fazem-se leis, mas de difícil cumprimento porque a África é demasiado grande e os meios de comunicação demasiados lentos e escassos. Os costumes milenares levam sempre muito tempo a serem mudados ou erradicados.


Quando havia disponibilidade e sossego para isso, tinha grandes conversas agradáveis com o Comandante [da CCAV 2482]. 


Era um jovem Capitão, Oficial e Cavalheiro da Arma de cavalaria. Tinha um trato fácil e simpático. Era respeitado pelos seus Homens, por quem estes tinham e demonstravam ter uma estima como se de um protetor se tratasse.

Não me lembro de ordens ríspidas ou despropositadas. Era um “ranger” que também respeitava os seus Homens, embora quase todos a iniciarem a maioridade, que na época se alcançava aos 21 anos, a menos que ingressasse nas Forças Armadas com idade inferior. Hoje a maioridade é reconhecida aos 18 anos, mas de uma imaturidade que brada ao Altíssimo. 


(Continua)
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segunda-feira, 30 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18583: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 45 e 46: como te disse, eles aqui fazem a festa do Fanado, que é para fazer umas coisas às mulheres que eu, quando for de férias, te explicarei.




Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > 1973 > Bajudas

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*)

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalahou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.


Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade (dirirido pelo alf mil Jor Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;

(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 45 e 46




[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]



45º Capítulo > O FANADO

A principal carta sobre sexo que escrevi data do dia 18 de Março [DE 1973]. Nela, falo de masturbação e explico porque a esponja dos colchões das camas estão furadas em certos locais. Mas, se querem saber mais, tirem o cavalinho da chuva, nunca divulgarei uma carta tão íntima.

A máquina de tirar café chegou no dia 19 de Março. No dia 20 escrevia mais uma das minhas burrices. Eis a descrição letra a letra:

“Neste mês realizam-se aqui umas festas em que não pode entrar homem nenhum, nem branco nem preto e que se chama O Fanado. Duram cerca de um mês, essas festas que fazem parte da religião dos Muçulmanos. O povo aqui é todo Muçulmano e o Deus deles chama-se Alá e como te disse eles fazem a festa do Fanado, que é para fazer umas coisas às mulheres que eu quando for de férias te explicarei. Ora como a festa é só para as mulheres elas este mês não trabalham de maneira que durante um mês vou ter de lavar a minha roupa o que para ser franco não me agrada nada.

(Apetece-me, por um momento, dar um grito de raiva, perante a clamorosa estupidez duma religião que não é mais do que um grotesco ritual, e um grito ainda mais forte contra governantes arcaicos que cometem o crime de mutilação genital feminina em jovens como as da foto que reproduzo. Penso que, por essa ignomínia, talvez nenhuma delas seja viva. A foto tem 44 anos. Acresce ainda o facto de que, em 2016, em Portugal, se conheceram cerca de 100 casos de mutilação genital feminina).

Quero também que saibas que o governador da Guiné, General Spínola, elogiou a nossa companhia por causa dos “turras” e armas que capturamos. Diz o meu capitão que a continuarmos assim a apanhar armas e “turras” somos de facto capazes de sair mais cedo daqui e irmos para Bissau onde não há guerra. Vamos ver no que isto vai dar”.

Pelo que me lembro sem ler mais, não deu em nada, porque a comissão foi toda em Fulacunda.


46º Capítulo > UM POUCO DE MÚSICA

Não vou sublinhar o que vos digo a seguir pois quero intercalar mais que um tema. Começo por uma encomenda que recebi no dia 22 de Março [de 1973]. Trazia vinho verde e chouriços para o dia de Páscoa. Essa encomenda foi a que menos tempo demorou; exactamente 17 dias. Foi uma agradável surpresa vir tão rapidamente; normalmente demoravam um mês.

O primo da Amélia ia regressar à metrópole por terminar a comissão mas já vinha para cá o Ferreira. Era sempre assim: uns a ir e outros a vir. Dizia eu que também o meu dia de regressar haveria de chegar.

Nesta altura, resolvi caiar a cantina, (isso é o que escrevi), mas não me lembro de o ter feito. Também por estes dias algumas coisas correram mal. Os dois geradores eléctricos avariaram em simultâneo e, embora eu me referisse a que os “turras” não se vinham meter na boca do lobo e tentar atacar-nos a coberto da escuridão, a verdade é que denotava bastante preocupação e, além disso, deixei de tomar banho pois, sem luz, não havia água. Em breve, iria cheirar mais a catinga que os próprios negros.

Também tive de pagar, nesse período, a viagem que tinha decidido fazer à metrópole, em gozo de férias, e, como não tinha poupado dinheiro suficiente para tal, a minha avó ia ter de mandar-me o resto.

Na carta seguinte, não fiz comentários. Decidi enchê-la de frases de amor e pétalas de flores das árvores de Fulacunda, até porque era um domingo.

Dediquei o resto do dia a ouvir música, juntamente com o Silva. Nessa semana, tinha recebido duas cassetes com os álbuns “Déjà Vu” de Crosby Stils Nash Young. O Abraxas de Santana. Onde estavam também incluídas mÚsicas de Melanie Safka etc. Escutem-nas.
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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de abril de 2018 Guiné 61/74 - P18565: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 43 ("A minha úlcera") e 44 ("Biafadas ou balantas ?")

domingo, 14 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18213: Álbum fotográfico de Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil, CCAÇ 4740 (Cufar, dez 72 / jul 73) e Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, jul 73 /ago 74) (24): ronco balanta em Cufar, a festa de circuncisão ('fanado') dos rapazes ('blufos')



Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3 


Foto nº 4


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 9



Foto nº 8


Foto nº 10


Foto nº 5

Foto nº 12


Guiné > Região de Tombali >  Cufar > CCAÇ 4740 (1972/74) >  1973 > Ronco balanta, a festa da circuncisão ('fanado') dos rapazes ('blufos')



Fotos (e legendas): © Luís Mourato Oliveira (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Mais fotos do álbum do Luís Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro, que foi alf mil inf, de rendição individual, na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar, 1.º semestre 1973) e, no resto da comissão, comandante do Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, 1973/74). (*)

Afinal, o Oliveira ainda esteve umas largas semanas em Cufar com o António Graça de Abreu, do CAOP1 (,  pelo menos desde junho até agosto de 1973), antes de ir, no 2º semestre, para o setor L1 (Bambadinca), comandar o Pel Caç Nat 52 e fechar a guerra...

Durante a sua comissão foi sempre uma apaixonado pela fotografia. A sequência que hoje publicamos, a preto e branco, é notável, retratando um acontecimento que poucos de nós puderam apanhar... Ele chamou-lhe simplesmente "ronco"... Mas trata-se (, e eu confirmei isso com ele ao telefone) da festa da circuncisão ('fanado') dos rapazes ('blufos'), que se passava em três ou quatro momentos e espaços: tabanca (preparativos, anúncio, batuque), bolanha, tabanca,  floresta (cerimónia da circuncisão p.d. e transmissão de saberes) e, mais tarde, o regresso de novo à  tabanca (**)... É pena não podermos legendar com detalhe cada uma das fotos... Este 'fanado' (masculino) era (e continua a ser) um aspeto central da cultura balanta. O médico que estava então em Cufar, um alferes miliciano (Faria, se não erro) tentou que a pequena ciriurgia (ablação dp prepúcio) se realizasse em condições de higiene, segurança e assepsia. Em vão...

2. Veja-se o que diz o dicionário sobre o vocábulo "blufo":

blufo | s. m.
blu·fo
(balanta blufo)
substantivo masculino

1. [Guiné-Bissau] Rapaz não circuncidado.

2. [Guiné-Bissau] Jovem inexperiente.

3. [Guiné-Bissau] Indivíduo considerado estúpido.

4. [Guiné-Bissau] Dança executada na cerimónia de circuncisão.

"blufo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/blufo [consultado em 14-01-2018].
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Notas do editor:


(...) Em 1951, James Pinto Bull, nascido em 1913 em Bolama, funcionário colonial, ao tempo administrador de circunscrição, e com carreira de deputado pela frente, três vezes eleito pelo círculo da Guiné para a Assembleia Nacional, escreve no Boletim Cultural da Guiné um artigo intitulado “Subsídios para o estudo da circuncisão entre os Balantas”.

É uma escrita direta, de pendor marcadamente divulgativo, chama à atenção para o “fanado” e para o modo como os Balantas encaram esta cerimónia religiosa, começando logo por referir que os “grandes” das tabancas apresentam-se com o tradicional “lopé” e trazendo enrolado pelo corpo pedaços de corda, vão à autoridade local pedir autorização para “deitar o fanado”.

Segue-se uma descrição vivacíssima:

“Dada a autorização, rompe imediatamente o tamborilar de um pequeno tambor para levar a nova aos indígenas reunidos nas moranças e com danças alusivas à cerimónia que se vai iniciar, os velhos regressam à tabanca. Toda a noite se ouve o barulho do “ẽbõbor” (tambor grande, anunciando às tabancas distantes a realização do fanado, convidando os jovens a virem alegrar com a sua presença a grande festa. 

"Rompe a aurora e principia a concentração da turba nas proximidades da tabanca onde se realiza o fanado. A falange engrossa rapidamente e os assistentes vão-se aquecendo, não só pela ação do calor que sufoca, mas também pela do álcool. O mestre-cerimónia dá o sinal para se fazer a concentração geral. Começa a marcha e centenas de indígenas lançam-se em correria desenfreada, parecendo à primeira vista que se trata de um ataque guerreiro, pois quase todos os do sexo masculino ostentam espadas e cacetes. 

"O grupo dos futuros circuncisos esforça-se por abrir caminho a fim de se dirigir para o porto ou bolanha mais próximos, onde besuntam o corpo com lama. Em correria louca e entoando cânticos variados, os blufos regressam à tabanca, formando grupos separados, para que cada um possa mostrar o seu valor. Continua nos arredores da tabanca o barulho ensurdecedor dos tambores, misturado com milhares de vozes e com a gritaria infernal dos mais alcoolizados. 

"O sol vai declinando e, enquanto os futuros circuncisos se reúnem na tabanca para tomarem a última refeição ainda como blufos e receberem as mezinhas para os proteger contra os feiticeiros durante a permanência na barraca, a multidão alegra-se cada vez mais, chegando a tomar o aspeto de verdadeira orgia. Todos estão em maior ou menor grau sobre a ação etilisante do álcool”.

(...) “As mulheres e as bajudas estão completamente excitadas sobre a dupla ação do álcool e algumas delas não resistem à tentação de se deixar agarrar pelo blufos que sabem tirar partido destas oportunidades. É que nesse dia tudo é permitido, desde o adultério, que para certos maridos até constitui honra, por verem que as suas mulheres foram muito apreciadas, até a própria violação das bajudas, facto que alguns pais perdoam, não exigindo a costumada reparação material”.

É então que o mestre-cerimónia, velhos e rapazes já circuncidados seguem para a bolanha para que se cumpra a operação. A festa acabou. Os futuros circuncisos já chegaram à bolanha e estão atolados pelo menos até aos joelhos. Vamos regressar ao relato:

“Começa então a operação feita pelo parente mais próximo, a qual consiste no corte do prepúcio, por um ou mais golpes ao contrário do que se sucede nas outras tribos em que o corte tem que ser rápido e com um único golpe. Acaba a operação, os pacientes recolhem-se a um local antecipadamente escolhido, em princípio numa mata próxima da tabanca, e onde é feita previamente uma clareira protegida por uma paliçada. 

"A permanência varia de um a três meses, e enquanto os circuncidados ali permanecerem, as famílias são obrigadas a preparar-lhes as melhores comidas e a confecionar os tradicionais e caprichosos panos de fanado. 

"Terminado o tempo julgado necessário, os circuncisos descem às povoações, formando um único grupo, envolto nos panos do fanado. Cumpridas estas regras, o irresponsável blufo que até vivia em comum com os seus camaradas, adquire todos os direitos e deveres de homem, podendo construir a sua palhota e arranjar mulher para constituir família”.

(...) Uma última nota, James Pinto Bull irá falecer num acidente de helicóptero, em Julho de 1970, faleceram entre outros, José Pedro Pinto Leite, considerado como uma das grandes promessas da Ala Liberal. (...)

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18163: Notas de leitura (1028): “Dinâmica da arte Bijagó, Guiné-Bissau – contribuição para uma antropologia da arte das sociedades africanas”, por Danielle Gallois Duquette, editado pelo Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1983 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Não é novidade para ninguém que as peças de arte dos Bijagós e dos Nalus são procuradas por museus e colecionadores particulares de todos os cantos do mundo, conferem a esta arte um elevadíssimo grau de imaginação, um sentido estético apuradíssimo e uma criatividade transbordante nas figuras antropomórficas.
A autora esteve presente no arquipélago durante vários períodos da década de 1960, gerou confiança de chefes, religiosos, artistas e procurou entender a dinâmica socio-religiosa de um povo cioso da sua autonomia e da sua vida social horizontal. O artista Bijagó (não esquecer que toda esta investigação decorreu nos anos 1960) está no centro das tensões dinâmicas, tem que cumprir à luz da exigências de quem encomenda dentro do arquipélago e é confrontado com uma procura extremada: a dos colecionadores que buscam peças muito apuradas e um mercado de consumo alargado que se satisfaz com o bom, bonito e barato.

Um abraço do
Mário


Dinâmica da arte Bijagó

Beja Santos

O livro “Dinâmica da arte Bijagó, Guiné-Bissau – contribuição para uma antropologia da arte das sociedades africanas”, por Danielle Gallois Duquette, editado pelo Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1983, é o resultado de um trabalho de pesquisa iniciado em 1972, que se prolongou por toda a década e a elaboração do documento final foi a etapa seguinte.

A autora adquiriu os seus diplomas universitários no desenho de arte e confessa a paixão que lhe despertou toda a produção plástica Bijagó, particularmente a estatuária. Trabalho aturado, de convivência com as populações Bijagós que em certas matérias foram extremamente reservadas, há segredos que não podem ser revelados. A autora orgulha-se de ter conseguido um dossiê fotográfico contendo 300 obras observadas no terreno ou nos museus ocidentais. A par da arte Nalu, a arte Bijagó é disputada pelos mais conceituados museus etnológicos em todo o mundo. Explicando a sua investigação diz-nos que o seu trabalho de campo passou por analisar os mecanismos socio-religiosos, é um trabalho que faz apelo ao facto estético total, isto é os objetos fabricados, a indagação da cultura material, o estudo das indumentárias efémeras, o conhecimento da mímica, da dança, dos cantos, da música e da palavra. Considera-se seguidora de Claude Levi-Strauss para explicar que o estudo das máscaras induz o conhecimento dos mitos, pode-se, por comparação, concluir quanto às migrações geográficas.

Prévio ao trabalho de campo foi a elaboração de um questionário em que se procurou aprofundar o conhecimento da estatuária, ornamentos de cerimónia, organizou-se um álbum de trabalho antigos realizados no arquipélago. Como fazem os antropólogos e os etnólogos, a autora muniu-se de ferramentas de escultura que depois trocou com os artistas que lhe permitiram fotografar as suas obras durante o processo de evaporação e aceitaram responder às questões que ela lhes ia pondo.


Seguindo a estrutura da obra, temos um primeiro capítulo onde se dissecam as estruturas sociais dos Bijagós, a organização espacial e arquitetónica dos seus aldeamentos e a configuração dos objetos usuais; no segundo capítulo, procura dar-se a ideia da partilha dos poderes através do estudo dos santuários, pinturas parietais e emblemas usados pelas famílias reais; os terceiro e quarto capítulos tratam dos ritos iniciáticos masculinos e femininos que são fundamentados sobre o estudo da arte do corpo e do aparato cerimonial; o quinto capítulo mostra os aspetos essências da escultura Bijagó, no capítulo seguinte procura-se distinguir o significado da morfologia e no último capítulo compara-se a produção plástica atual com a produção tradicional.

Dissertando sobre a origem dos Bijagós, o que é dado como seguro é a sua origem nilótica, tal como os Balantas são uma sociedade horizontal em que a chefia é repartida pelo Conselho dos Anciãos (a Grandeza), os reis e os sacerdotes. São fundamentalmente animistas. Desde a independência, e com êxito relativo, o PAIGC tem procurado disciplinar o tempo do fanado, proibiu que se batesse nos jovens durante a iniciação do fanado e estipulou que os períodos de iniciação devem decorrer durante as férias escolares; procurou igualmente proibir que os mortos pudessem vir a ser enterrados nas habitações.

A habitação Bijagó, como a Balanta é construída numa elevação de terra com cerca de 30 cm e dotada de um galeria circular exterior. A autora comenta a organização interna do espaço e mostra como os espíritos da família são alvo de um tratamento especial. O utilitarismo estético é muitíssimo apurado e a autora socorre de um exemplo comezinho como são as fechaduras com tratamento decorativo. Passando para os símbolos do poder, é detalhado a simbologia do altar do santuário e a importância da disposição dos participantes nas cerimónias religiosas.


Os Bijagós continuam a prezar a sua autonomia e a imagem que deles vem do passado não é lisonjeira, tirando a bravura, os vários autores que sobre eles escreveram revelam a sua barbaridade, falando de sacrifícios em que os seres humanos eram enterrados com reis, o historiador António Carreira descreveu as reações do Governador Correia e Lança, em 1889, contra a tirania dos reis que sacrificavam crianças, metendo-as nos túmulos com os cadáveres dos dignatários que acompanhavam o falecido no outro mundo. Detalhando a organização, a autora fala sobre o Conselho dos Anciãos como um dos vetores do poder social, apresenta as principais figuras do poder religioso e do poder iniciático, com sacerdotisas, padres e mestres do fanado. Como as de mais sociedade africanas, os Bijagós prezam as classes de idade, dividem a vida do nascimento à morte, o ancião é encarado como o espalho da sabedoria. Entrando nos aspetos etnológicos e antropológicos, são referidas as apresentações dos amuletos corporais, é dito que na sociedade dos Bijagós não há circuncisão nem mutilação genital mas existe a iniciação nos segredos da vida sexual e até no conhecimento dos métodos abortivos.

Centrada agora na arte, a autora descreve os materiais escultóricos e as figuras onde primam os irãs antropomórficos. A escultura tem três direções: motivação religiosa, utilitária e iniciática. Povo hospitaleiro, os Bijagós marcam distâncias, sempre consideraram os continentais como estrangeiros. A independência suscitou ao artista Bijagó novas questões: há missões religiosas que apoiam o fomento do artesanato vendido nalguns locais das ilhas e nalgumas lojas de Bissau. Há compradores que disputam as peças elaboradas utilizadas sobretudo nas danças e rituais, há uma escultura de caráter comercial que vulgariza a arte dos bancos e dos deuses, e no final do seu trabalho a autora interroga-se até que ponto o turismo e a necessidade de sobreviver vendendo obras mais baratas e vulgares não está a afetar a genuinidade artística Bijagó. Importa saber se a arte Bijagó mereceu outros estudos complementares a este, depois da década de 1980.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18153: Notas de leitura (1027): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (15) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16401: Notas de leitura (872): “Subsídios para o estudo da circuncisão entre os Balantas”, por James Pinto Bull (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Independentemente do que aqui se escreve a propósito de um encontro fortuito na Feira da Ladra e de uma dedicatória de James Pinto Bull ao seu prezado primo Jorge, quis o acaso que o tenha visto pela primeira e última vez em Julho de 1970, dois helicópteros trouxeram um conjunto de deputados a Bambadinca, foram até aos Nhabijões e conversaram com o comandante e o segundo comandante. E refrescaram-se na messe. Vindo dos Nhabijões, onde montáramos segurança aos ilustres visitantes, reencontrei José Pedro Pinto Leite e conversámos à parte. O deputado estava ciente que as coisas da Guiné caminhavam para o beco sem saída, disse-me que ia avisar Marcello Caetano. Não teve tempo, morreu dois dias depois no rio Mansoa, tal como James Pinto Bull.
Casos e acasos de que se fazem as nossas vidas.

Um Abraço do
Mário


Da circuncisão entre os Balantas, por James Pinto Bull

Beja Santos

Em 1951, James Pinto Bull, nascido em 1913 em Bolama, funcionário colonial, ao tempo administrador de circunscrição, e com carreira de deputado pela frente, três vezes eleito pelo círculo da Guiné para a Assembleia Nacional, escreve no Boletim Cultural da Guiné um artigo intitulado “Subsídios para o estudo da circuncisão entre os Balantas”. É uma escrita direta, de pendor marcadamente divulgativo, chama à atenção para o “fanado” e para o modo como os Balantas encaram esta cerimónia religiosa, começando logo por referir que os “grandes” das tabancas apresentam-se com o tradicional “lopé” e trazendo enrolado pelo corpo pedaços de corda, vão à autoridade local pedir autorização para “deitar o fanado”.

Segue-se uma descrição vivacíssima:
“Dada a autorização, rompe imediatamente o tamborilar de um pequeno tambor para levar a nova aos indígenas reunidos nas moranças e com danças alusivas à cerimónia que se vai iniciar, os velhos regressam à tabanca. Toda a noite se ouve o barulho do “ẽbõbor” (tambor grande, anunciando às tabancas distantes a realização do fanado, convidando os jovens a virem alegrar com a sua presença a grande festa. Rompe a aurora e principia a concentração da turba nas proximidades da tabanca onde se realiza o fanado. A falange engrossa rapidamente e os assistentes vão-se aquecendo, não só pela ação do calor que sufoca, mas também pela do álcool. O mestre-cerimónia dá o sinal para se fazer a concentração geral. Começa a marcha e centenas de indígenas lançam-se em correria desenfreada, parecendo à primeira vista que se trata de um ataque guerreiro, pois quase todos os do sexo masculino ostentam espadas e cacetes. O grupo dos futuros circuncisos esforça-se por abrir caminho a fim de se dirigir para o porto ou bolanha mais próximos, onde besuntam o corpo com lama. Em correria louca e entoando cânticos variados, os blufos regressam à tabanca, formando grupos separados, para que cada um possa mostrar o seu valor. Continua nos arredores da tabanca o barulho ensurdecedor dos tambores, misturado com milhares de vozes e com a gritaria infernal dos mais alcoolizados. O sol vai declinando e, enquanto os futuros circuncisos se reúnem na tabanca para tomarem a última refeição ainda como blufos e receberem as mezinhas para os proteger contra os feiticeiros durante a permanência na barraca, a multidão alegra-se cada vez mais, chegando a tomar o aspeto de verdadeira orgia. Todos estão em maior ou menor grau sobre a ação etilisante do álcool”.


Faz-se aqui uma pausa para recordar duas coisas. Primeiro, ao tempo do Governador Sarmento Rodrigues começou-se a solicitar aos quadros da administração colonial espalhados pela província que enviassem regularmente relatórios com pendor etnográfico, etnológico e antropológico, sugeria-se mesmo que elaborassem monografias e enviassem quer para o boletim cultural quer para o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa artigos ou dados relevantes que se prendiam com observação do funcionário. Segundo, este texto decorre dessa mesma observação, é feita sem comentários, sem interpretação, não há pretensões de qualquer leitura científica, o que aqui se escreve é o que James Pinto Bull viu e fotografou, e escreveu com gosto, vê-se que aprecia temperar os seus relatos. Continuando:
“As mulheres e as bajudas estão completamente excitadas sobre a dupla ação do álcool e algumas delas não resistem à tentação de se deixar agarrar pelo blufos que sabem tirar partido destas oportunidades. É que nesse dia tudo é permitido, desde o adultério, que para certos maridos até constitui honra, por verem que as suas mulheres foram muito apreciadas, até a própria violação das bajudas, facto que alguns pais perdoam, não exigindo a costumada reparação material”.

É então que o mestre-cerimónia, velhos e rapazes já circuncidados seguem para a bolanha para que se cumpra a operação. A festa acabou. Os futuros circuncisos já chegaram à bolanha e estão atolados pelo menos até aos joelhos. Vamos regressar ao relato:  
“Começa então a operação feita pelo parente mais próximo, a qual consiste no corte do prepúcio, por um ou mais golpes ao contrário do que se sucede nas outras tribos em que o corte tem que ser rápido e com um único golpe. Acaba a operação, os pacientes recolhem-se a um local antecipadamente escolhido, em princípio numa mata próxima da tabanca, e onde é feita previamente uma clareira protegida por uma paliçada. A permanência varia de um a três meses, e enquanto os circuncidados ali permanecerem, as famílias são obrigadas a preparar-lhes as melhores comidas e a confecionar os tradicionais e caprichosos panos de fanado. Terminado o tempo julgado necessário, os circuncisos descem às povoações, formando um único grupo, envolto nos panos do fanado. Cumpridas estas regras, o irresponsável blufo que até vivia em comum com os seus camaradas, adquire todos os direitos e deveres de homem, podendo construir a sua palhota e arranjar mulher para constituir família”.

Pergunta o leitor a que propósito se descreve a circuncisão entre Balantas, assunto que praticamente ninguém desconhece. Esta separata de James Pinto Bull tem a sua história. Num vendedor da Feira da Ladra encontrei esta separata e francamente que não lhe teria dado qualquer atenção não contivesse a dedicatória do autor ao prezado primo Jorge. Acicatado pela dedicatória, comecei a vasculhar em toda a papelada à venda e lá encontrei fotografias e referências a Jorge Wahnon Pinto Costa. São momentos em que junto à excitação a repugnância pelas pessoas que se desfazem da intimidade daqueles que morreram e são assim postos a nu na praça pública, na rua do Século, em Lisboa existe um alfarrabista que tem a biblioteca e dossiês do professor Silva Cunha, que foi ministro do Ultramar. Interrogo-me como é que é possível desbaratar tal património que devia ser apreciado pelos competentes investigadores. Uma última nota, James Pinto Bull irá falecer num acidente de helicóptero, em Julho de 1970, faleceram entre outros, José Pedro Pinto Leite, considerado como uma das grandes promessas da Ala Liberal. As voltas que o mundo dá.

 Dedicatória
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16396: Notas de leitura (871): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VII: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (III): Na mata do Fiofioli, pensei que ia morrer, pensei nos meus filhos, que iriam ficar sem pai… coitados, tão pequenos