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sábado, 29 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13956: (Ex)citações (253): de facto sou eu, estou a preparar o embarque de um jipe Willys com destino a Bissau (devidamente canibalizado)...E aproveito para recordar a BOR, embarcação civil que fazia transporte de tropas com uma pequena escolta de fuzileiros (Ismael Augusto, ex-alf mil manut, CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)


Guiné > Zona leste > Bambadinca > c. 1968/69 > Bambadinca e o seu porto fluvial...Na foto conseguimos  distinguir [, com a ajuda do Beja Santos...] o Ismael Augusto [, ex-alf mil manut, CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70].  É o primeiro à esquerda, precedido pelo chefe de posto administrativo. (*)

A partir de 24 de novembro de 1969, a administração do porto de Bambadinca passou a dispor dum autogrua mais potente, a Galion, que veio substituir a autogrua Fuchs (que se sê na foto). Na história do BCAÇ 2852, lê-se que no dia 25/11/1969, o 2.º comandante do BENG 447 visitou a sede do batalhão, visita essa que só pode estar relacionada com a entrega da autogrua Galion, permitindo melhorar as operações de carga e descarga no porto fluvial de Bambadinca.

Foto © Jaime Machado [ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70]. Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]


1. Mensagem do nosso camarada Ismael Augusto  com data de hoje, a propósito do poste P13918 e de um comentário meu, ou melhor, de uma provocação minha (*):

De facto estou a preparar não o desembarque mas o embarque de um WILLYS com destino a Bissau (devidamente canibalizado, claro, embora no caso pouco restasse) e conforme o que constava nas NEP (Normas de Execução Permanente), aqui na parte restrita do Serviço de Material.

Relativamente ao cais, em 1968,  a CCS do BCAÇ 2852 chegou a Bambadinca num barco civil que fazia o transporte de tropas. Era um barco (lancha ou navio, para não ofender os nossos amigos da marinha, que fazem muita questão na destrinça entre estas designações dadas pelos menos conhecedores, o que é o caso).  

Chamava-se BOR (**) e dispunha de apoio de uma pequeno grupo de fuzileiros, que nos acompanhou a bordo durante todo o percurso.  Obrigado a eles. Foi por eles que fiquei a saber da existência do macaréu que,  com outra designação [, pororoca ].  tem a sua réplica no rio Amazonas, pelo menos nesse.

A navegação não poderia ter lugar quando esse fenómeno se observasse, pelo que era importante saber da sua existência. Fiquei a conhecer as tabancas que marginavam o Geba e os pontos mais críticos do percurso, que naturalmente coincidiam com o inicio do Geba estreito.

A este propósito, fiz uma vez o percurso Bambadinca- Bissau, num barco de transporte de "mancarra", numa viagem de cerca de 10 horas, onde literalmente fritei, pois as sombras e o espaço eram quase inexistentes.

Tive no entanto a sorte de a partilhar com um chefe religioso (fula) e a conversa não podia ser mais interessante. Só o sol é que não colaborou. (***)

Um abraço,

Ismael Augusto (****)

_________________

Nota do editor:

(*)  Vd. poste de 19 de novembro de  2014 > Guiné 63/74 - P13918: (Ex)citações (249): Quando os barcos chegavam ao porto fluvial de Bambadinca: fotos de Jaime Machado e legendas de Beja Santos

 (...) Comentário de Luís Graça:

Quem seriam os senhores que vieram de jipe até ao cais de Bambadinca (foto nº 1A) ?

Para além do nosso engº Ismael Augusto (, a engenharia veio mais tarde, e com ela a RTP, as telecomnunicações, a TDT...), reconheço o chefe de posto de administrativo de Bambadinca, que era caboverdiano... Nunca privei com ele, nem sei como se chamava...Mas, pela farda, deveia ser ele... Quanto aos dois militares à sua frente, só poderiam ser dois militares, oficiais, da CCS/BCAÇ 2852... Convivi com este batalhão cerca de 1 ano, entre meados de 1969 e maio de 1970...

O Ismael Augusto é nosso grã-tabanqueiro, tal como o Fernando Calado, dois alferes milicianos da CCS/BCAÇ 2852, do tempo do Jaime Machado e do Beja Santos...

Ouvir aqui uma entrevista, de 2012. do Ismael Augusto na qualidade de especialista em TDT. (...)

(**) Sobre a BOR, vd. poste de 12 de fevereiro de  2008 > Guiné 63/74 - P2527: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Na Bor, Rio Geba abaixo, com o Alferes Carvalho num caixão de pinho...

(***) Último poste da séroe 26 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13945: (Ex)citações (252): Comentário ao artigo "Guiné, Guileje e o desnorte do reino" publicado em O Adamastor (4)

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13494: Efemérides (172): Ainda o Naufrágio no Rio Geba em 10 de Agosto de 1972, aflorado no P10246

A propósito da passagem dos 42 anos sobre o "Naufrágio no Rio Geba", ocorrido em 10 de Agosto de 1972, que resultou na morte de três militares da CART 3494, lembrado pelo nosso camarada Jorge Araújo no Post 13482 de 10 de Agosto passado e pelo nosso camarada António José Pereira da Costa no Post 13493 de hoje, e seguindo a sugestão deste útltimo camarada, republica-se aqui e agora o primeiro Poste a aflorar o acontecimento, também de autoria do ex-Fur Mil Op Esp Jorge Araújo da CART 3494, o Post 10246 de 10 de Agosto de 2012. 

Os Editores
************

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp/Ranger da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74), com data de 9 de Agosto de 2012: 

Caríssimo Camarada Luís Graça, e restantes operacionais do nosso blogue:

Os meus melhores cumprimentos.

Serve o presente para anexar uma narrativa dos acontecimentos relacionados com o Naufrágio de 10 Ago 1972, no Rio Geba, envolvendo alguns militares da CART 3494.

Através desta metodologia pretende-se transferir o conhecimento individual de quem viveu de forma intensa aquele contexto, descrevendo-se um conjunto de detalhes julgados pertinentes com o objectivo de se conceber a sua história, agora que estão decorridos quarenta anos após esse acidente.

Ela é, ainda, mais uma pequena contribuição que é disponibilizada à opinião pública, por meio deste espaço plural de partilha, como é o caso da «Tabanca Grande», sobre as diferentes ocorrências registadas durante o conflito militar no CTIG, quer ela seja interpretada pelos ex-combatentes quer se trate da análise a realizar pelas gerações mais novas no âmbito multidisciplinar.

Obrigado pela atenção.
Jorge Araújo.
Ex-Furriel Mil Op Esp/RANGER
CART 3494
Xime-Mansambo
1972/1974


O RIO GEBA E O MACARÉU 

O NAUFRÁGIO NO DIA 10.AGO.1972

I – O NAUFRÁGIO NO RIO GEBA – 10.AGO.1972

No intervalo das duas emboscadas sofridas pela CART 3494 na Ponta Coli, local situado na estrada entre o Xime e Bambadinca, e já objecto de narração anterior (Postes 9698* e 9802*), focalizámo-nos hoje em mais um acontecimento que marcou a vida colectiva dos seus membros, em particular daqueles que directamente nele estiveram envolvidos, e que ficou conhecido, na história da Companhia e do Batalhão, como o Naufrágio no Rio Geba. 

Este episódio verificou-se exactamente a meio dos dois acontecimentos anteriormente assinalados, contabilizando-se um período de cento e onze dias entre cada um deles, o que é uma coincidência interessante. 

Durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, sendo que esta última expressão/conceito viria a aplicar-se, lamentavelmente, a três dos catorze militares que naquela 5.ª feira, dia 10 de Agosto de 1972, faz hoje quarenta anos, tinham por missão fazer a travessia entre as margens esquerda e direita do Rio Geba, por esta ordem, com o objectivo operacional de sinalizar eventuais vestígios deixados no terreno pelo IN, vulgo reconhecimento à zona circunvolvente ao Destacamento de Mato Cão. 

Curiosamente, nessa mesma data, foi testemunhado o movimento de um meteoro, que se tornou conhecido como A Grande Bola de Fogo Diurna de 1972, sobre as Montanhas Rochosas do Sudoeste dos EUA em direcção ao Canadá e que, caso tivesse explodido (dizem os cientistas),  seria semelhante à explosão de Hiroshima (Bomba Atómica Little Boy), ocorrida em 03.Ago.1945, ou seja vinte e sete anos antes, e que acabaria por estar ligada ao términus da II Guerra Mundial concretizado oficialmente após a assinatura do armistício verificada em 02.Set.1945, na Baía de Tóquio. 

Entretanto, a travessia do Rio Geba, a iniciar-se no Cais do Xime, seria feita com recurso a um bote de fibra de vidro conhecido por Sintex, com motor fora de bordo de 50 Cavalos, sendo sugerida, como elemento de segurança, que a sua lotação não deveria ultrapassar a dezena de indivíduos, incluindo o barqueiro. 

Para se ter a noção deste tipo de embarcação, uma vez que não existem imagens reais da ocorrência, seleccionámos a foto ao lado, publicada pelo Correio da Manhã em 27.Jun.2010, na rubrica “A Minha Guerra”, e que serviu para enquadrar a História de Guerra contada pelo nosso amigo e camarada ex-alferes Joaquim Mexia Alves,  naquele órgão de comunicação social. 

Porém, tudo leva a crer que estamos perante o mesmo bote que foi utilizado naquele dia 10 de Agosto, uma vez que o ex-alferes Mexia Alves, ao ser nomeado CMDT do Pel Caç Nat 52 algum tempo depois, viria a ser colocado no Destacamento de Mato Cão, ficando este sob a jurisdição do BART 3873, e, portanto, dependente do seu apoio logístico. 

Com efeito, e porque ainda hoje subsistem algumas dúvidas sobre como tudo aconteceu, nomeadamente causas e efeitos das decisões tomadas pela linha de comando, este texto corresponde tão só e apenas ao que ainda guardamos em memória deste tema (e ainda bem que o ser humano tem memória), uma vez que também neste caso estivemos envolvidos até ao tutano. 

Procuramos, através da informação retida e das muitas imagens ainda bem presentes, caracterizar cada elemento do todo fenomenal, com o objectivo de acrescentar algo mais ao que já foi tornado público em outras ocasiões, em particular no Blogue da CART 3494 (vidé: poste 17 (10.fev.2009); poste 29 (22.mar.2009) e poste 44 (12.nov.2009). 

Tal como nos depoimentos anteriores, o método utilizado assenta numa estrutura organizada cronologicamente a partir de cada um dos diferentes momentos: o antes, o durante e o depois dos factos. 


II – O DIA 09 DE AGOSTO DE 1972

Tendo por cenário as ocorrências contabilizadas durante a primeira emboscada sofrida pela CART 3494, através do seu 4.º GComb, no dia 22.Abr.1972, levando-o a ficar inoperacional por algum tempo, como consequência dos diferentes graus de enfermidade e de inferioridade física de parte significativa dos seus elementos, foi decidido superiormente que transitaríamos de imediato para o 1.º Pelotão, em virtude deste GComb estar desfalcado de quadros de comando. 

Esta transferência, que no início tinha carácter provisório acabaria por ser definitiva, pelo que nos mantivemos neste pelotão até ao final da comissão de serviço no CTIG, justificada, em certa medida, pela transferência do seu oficial adstrito (ex-alferes Carneiro) para uma CCaç, e que, por motivos que desconhecemos, não viria a ser rendido. 

Assim, em conformidade com o plano das acções/missões atribuídas a cada pelotão, o dia 09 de Agosto de 1972 foi passado no cumprimento das diferentes tarefas logísticas internas como sejam a limpeza, recolha e abastecimento de água pelos diferentes abrigos e outros serviços de manutenção ao aquartelamento, sob a orientação operacional dos três furriéis do grupo: Godinho, Ferreira e eu próprio. Concluídas as diferentes missões, o restante tempo que faltava para encerrar o dia foi utilizado no jantar, na messe, e depois recolhemos ao nosso Tê Zero, procurando recuperar energias para o dia seguinte, já que a missão atribuída na escala era de intervenção, desconhecendo-se, naquele momento, o que estava previsto ou pensado para esse efeito. 

Já na posição horizontal, recebendo o ar fresco da ventoinha suspensa na estrutura da cabeceira da cama, eis que entra no quarto o ex-Furriel Ferreira, com ar de poucos amigos, contando que tinha sido chamado ao Gabinete do CMDT da Companhia, ex-Cap. J. A. Pereira da Costa, líder da CART 3494 desde 22.Jun.1972, recebendo instruções para preparar a sua Secção (Bazuca) reforçada com mais alguns elementos do Pelotão, com o objectivo de no dia seguinte, de manhã, participar num patrulhamento a efectuar na margem direita do Rio Geba, estando prevista a inclusão, na acção, do Major de Operações do BART 3873, ex-Major de Art. Henrique Jales Moreira. 

Perante os sinais de ansiedade transmitidos em cada frase emitida e o nervosismo sentido em cada movimento corporal, logo o questionámos – eu e o Godinho – o que se passa contigo? 

A resposta não foi imediata. Mas, depois de alguma insistência, afirmou sentir-se um pouco em baixa de forma. Perguntei-lhe se queria que eu fosse no seu lugar. A sua resposta foi afirmativa, deixando cair, então, um grande fardo que tinha sobre os seus ombros.

Questionado se já tinha dado instruções aos seleccionados para a missão, a sua resposta foi positiva. 

Passado algum tempo chega a informação de que o bazuqueiro, ex-Soldado Ricardo Teixeira (imagem ao lado), tinha ficado ferido durante o serviço de limpeza, em consequência de ter espetado um prego no pé, ao tentar compactar o lixo que se encontrava na viatura, deixando-o, assim, incapacitado para a tarefa agendada para o dia seguinte. 


III – O DIA 10 DE AGOSTO DE 1972 – o naufrágio no Rio Geba 

As actividades militares do dia em referência foram iniciadas com a concentração vs organização dos militares destacados para a acção identificada no dia anterior, grupo constituído por nove praças devidamente equipados para a missão, por mim próprio, a quem tinha sido entregue um rádio de transmissões AVP1, a que se juntou, no Cais do Xime, o CMDT da Companhia, ex-Cap. Pereira da Costa, o ex-Alferes Guimarães, em situação de Estágio Operacional e o ex-Major de Operações Henrique Jales Moreira, totalizando treze elementos. 
A este número faltava adicionar, ainda, o barqueiro do Sintex, perfazendo então um universo de catorze militares a transportar no bote que, como referido no ponto I, era aconselhada uma lotação máxima de dez indivíduos.

Parecendo estarem reunidas todas as condições operacionais para o sucesso da missão, embarcámos para o bote Sintex, distribuindo-se a totalidade dos elementos de modo equitativo, dando-se então início à navegação por volta das 09:00 horas. 

Depois de percorridas algumas dezenas de metros, verificou-se que o plano de água não permitia o avanço da embarcação, uma vez que o hélice do motor batia no fundo do rio, pois estávamos ainda na situação de baixa-mar, pelo que era necessário aguardar pela passagem do macaréu. Por isso regressámos ao local da partida, dando por concluída a primeira tentativa da travessia do Geba. 

Uma vez que o Aquartelamento distava do cais entre 250/300 metros, e a nossa presença não era necessária naquele contexto, decidimos ali regressar. Quando estávamos já no seu interior, muito perto da parada, depois de ultrapassada a porta de armas original, cujo modelo ou patente julgamos não ter sido registada, ouvimos um sinal sonoro no nosso rádio AVP1, que atendemos. O conteúdo da informação recebida dava conta da passagem do macaréu, pelo que se solicitava a presença de todos os militares no cais, para dar-se início a nova viagem. 
Contudo, foi com algum espanto e muita perplexidade que recebemos a notícia da passagem do macaréu, na medida em que conhecíamos mais ou menos bem a sua evolução no processo de enchimento da maré, devido à situação de proximidade com o rio, facto que suscitou em nós, desde o início, uma natural curiosidade pela observação deste fenómeno da natureza.

E o que é o fenómeno macaréu? 

A hidrografia explica que o macaréu é o choque das águas de um rio caudaloso com as ondas durante o início da maré enchente. 

Este fenómeno das marés, que dá origem à elevação do nível das águas oceânicas, faz com as mesmas invadam a foz dos rios, podendo formar ondas até dezenas de metros de largura, com três a cinco metros de altura, atingindo uma velocidade entre trinta e cinquenta quilómetros por hora. Esta poderosa massa de água que se transforma em onda pode durar entre quinze minutos e uma hora. 

Para além do Rio Geba, este fenómeno é observado em vários pontos dos cinco continentes, nomeadamente no Brasil, na foz do rio Amazonas e afluentes do litoral paraense e amapaense, como sejam os rios Araguari, Maicaré, Guamá, Capim e Moju, e na foz do rio Mearim, no Maranhão. 

Nessa região amazónica, esse fenómeno é designado por pororoca, mupororoca ou macaréu. Porém, outras designações são atribuídas ao mesmo fenómeno, com diferentes escalas, observado em diferentes rios do mundo, de que é exemplo o caso de Inglaterra, na foz dos rios Severn, Tamisa e Trent, conhecido por bore. Eis algumas imagens de cada um dos diferentes fenómenos. 


Na França, o exemplo observado na foz dos rios Gironda, Charante e Sena é conhecido por mascaret ou barre.

De regresso ao cais, as dúvidas suscitadas inicialmente quanto à oportunidade de dar-se início à travessia não se dissiparam, antes pelo contrário, elas ampliaram-se em função da qualidade de agitação da água do rio. Esta nossa avaliação era coincidente com a do Cabo Silva (um militar da Marinha, que durante mais de duas décadas viveu as experiências das diferentes marés por onde andou, por ter estado ligado às actividades dos submarinos) e que naquela ocasião se encontrava no cais, dirigindo os trabalhos de carregamento de madeiras para a embarcação civil CP10.

Esta conclusão resultou do facto de ter escutado a parte final da conversa havida entre aquele militar e o Major de Operações, em que o primeiro tentou convencer o segundo a não se fazer à água naquele momento, aconselhando-o a aguardar mais algum tempo de modo a diminuir o risco de um eventual acidente, mas sem sucesso. À ordem de avançar porque se fazia tarde, eis a mensagem que circulou, entrámos pela segunda vez no bote Sintex, mantendo-se a distribuição anterior. 

A partida aconteceu no local indicado na foto ao lado (Cais do Xime), agora em ruínas. 

O sentido da navegação corresponde igualmente à da imagem apresentada, sendo a margem esquerda aquela que se encontra à direita e a margem direita a que se encontra à esquerda. 

Demos, então, início à segunda tentativa da travessia do Rio Geba. Com a navegação a cargo do barqueiro, com o motor em funcionamento e com as águas muito agitadas, certamente que cada um de nós se interrogou quanto ao sucesso da aventuraem que tínhamos embarcado e que não tinha hipóteses de retrocesso. 

Logo nas primeiras dezenas de metros, os “palpites” começaram-se a escutar, na medida em que a embarcação não podia tomar o rumo certo. Uma ordem foi escutada: desligue-se o motor, o que foi acatado pelo barqueiro. Mas, mesmo assim, dava a sensação de que o bote continuava com o motor ligado, tal era a velocidade com que o mesmo deslizava naquelas águas revoltas. 

O pânico subia à medida que a embarcação se aproximava da cabeça do macaréu, cada vez com mais agitação e remoinhos à mistura. Naquele momento, um novo conceito surgiu no léxico dos militares, particularmente nas praças, que traduzia o sentimento que estavam a viver, ou seja “eu não sei nadar”, no princípio entredentes e depois mais audíveis e expressivos. 

O cenário começava, então, a ficar cinzento, diria mesmo muito cinzento no sentido da cor negra, independentemente de estar um dia óptimo, cheio de sol e com a temperatura ambiente a aumentar. 
A pergunta filosófica que, certamente, cada um formulou para si, era a de saber como poderíamos sair daquele imbróglio, sãos e salvos?

Entretanto, uma nova ordem foi dada, visando criar algumas réstias de esperança quanto à possibilidade de sobrevivência colectiva, apontando para uma “navegação o mais perto possível da margem esquerda”, ou seja, a mesma donde partíramos. Quando nos encontrávamos a cerca de quatro/cinco metros do tarrafo – zona de lodo ainda não submersa, e onde habitualmente a comunidade de crocodilos (alfaiates) se organiza em frisa apanhando os seus banhos de sol – eis que se escuta uma nova ordem: “haja um que salte para o tarrafo levando consigo as correntes do bote com o objectivo de o poder suster”. 

Olhando à minha volta, e perante a ausência de candidatos e/ou voluntários disponíveis para o cumprimento deste desiderato, eis que tomámos em mãos esse desafio. Porque a embarcação continuava instável face à movimentação das águas, o salto só poderia acontecer quando a distância entre o bote e o lodo fosse de molde a facilitar a operação proposta. 

Não sendo possível identificar o melhor momento para o salto, eis que no tempo «X» saltámos levando nas mãos a dita corrente já referida anteriormente. Durante o salto, feito de frente para o tarrafo, ouvimos, vindo da nossa rectaguarda, um ruído provocado pelo embate da proa do bote na parte mais alta do lodo, tendo como consequência a inclinação do mesmo projectando para a água todos os seus ocupantes, primeiro os que se encontravam no lado esquerdo da embarcação e depois os do lado direito, por efeito do desequilíbrio de peso que entretanto ocorrera (lei da física). 

Quanto a nós e na sequência do salto, ficámos de imediato enterrados no lodo até aos joelhos, procurando, mesmo assim, manter o controlo da embarcação através do uso da sua corrente, mas não por muito tempo. Face à diminuição da nossa resistência por via da força da maré, que nos conseguiu arrancar ao lodo arrastando-nos num espaço de alguns metros quase até à posição de «pino», não tivemos outra alternativa senão deixar o bote entrar à deriva. 

Como podem imaginar todo esta descrição corresponde a uma fracção de tempo diminuto entre alguns segundos e poucos minutos, mas que no terreno mais parece uma eternidade. 

Entretanto, na água, a luta era extremamente desigual entre o poder do homem e o poder da maré. Cada um dos militares, equipados e vestidos com os seus camuflados que lhes dificultava a mobilidade dentro de água, procuravam chegar a terra firme o mais rapidamente possível, pondo-se a salvo. E isso aconteceu a oito de um total de catorzes elementos. 

Dos seis em falta, três conseguiram entrar no bote: o barqueiro (nome que desconhecemos, pois era elemento da CCS), o Miranda (1.º Cabo de dilagramas) que remando com a sua sacola das granadas permitiu recolher o ex-Major de Operações Jales Moreira em situação muito difícil. E os três seguiram ao sabor da corrente na direcção de Bambadinca, local onde estava sediado o Batalhão. 

Os outros três elementos em falta eram: o José Maria da Silva Sousa, o Manuel Salgado Antunes e o Abraão Moreira Rosa, que acabariam por desaparecer nas águas barrentas do Rio Geba, sem que existisse qualquer hipótese de salvamento. No caso do José Sousa ainda o vi emergir três vezes. Mas como tinha em seu poder a bazuca e esta estava presa à paleta da camisa, provavelmente esta situação não lhe foi favorável, dificultando-lhe ainda mais os movimentos. 

Para além de não se ter concretizado a travessia, de o grupo ter ficado fraccionado e com baixas, de termos ficado desarmados e sem meios de comunicar com a nossa Companhia, tínhamos ainda pela frente um longo caminho a percorrer até chegarmos ao nosso Aquartelamento, no Xime. 

Assim, os oito elementos que estavam aparentemente a salvo, mas ainda dentro de água tentando localizar alguma das armas perdidas, tinham ainda pela frente um osso difícil de roer, passe a imagem metafórica, uma vez que faltava transpor o obstáculo tarrafo até chegar a terra mais sólida. 

E a primeira dificuldade com que nos deparámos tinha a ver com a necessidade de percorrer cerca de quinze metros de lodo extremamente mole, num momento em que as águas continuavam a subir a um ritmo veloz, e em que o movimento de elevação de cada perna, correspondente a cada passo, era sempre maior que o anterior, fazendo lembrar que estávamos perante um contexto de areia movediça. 

Após os primeiros passos, não nos restava outra alternativa senão tentar nadar no lodo, agora cada qual em tronco nu mas com os seus objectos sob controlo (roupa, cinturão e carregadores). Na sequência de cada braçada, esses objectos eram arremessados para a frente, para depois se efectuar nova braçada e novo arremesso. Todo o nosso corpo era lodo: o cabelo, o rosto, a boca, os membros, etc., etc., etc.. Para percorrer os tais quinze metros de tarrafo, aproximadamente, foram gastos cerca de vinte e cinco minutos, o que diz bem das dificuldades sentidas. A meio da viagem, por efeito de estar verdadeiramente exausto, pensei que já não seria capaz de ali sair. A força e a energia tinham-se esgotado. 

Depois de um curto descanso a pedido do corpo e da mente, aconteceu um novo impulso antes da última transcendência (a morte), conseguindo então chegar ao fim da linha. Espalhados ao longo do lodo encontravam-se ainda os meus sete camaradas, cada um lutando para ultrapassar as suas dificuldades. 

Fazendo uso da faca de mato, que usávamos presa ao cinturão, procedemos ao corte de alguns troncos dos arbustos existentes na zona, arremessando-os na sua direcção, visando facilitar a mobilidade nos últimos metros da tortura. Os pequenos troncos, porque foram colocados entre os corpos e o tarrafo, funcionando como estrado, acabariam por provocar ligeiros ferimentos, particularmente no peito e zona abdominal, devido às suas saliências. 

Tendo saído vitoriosos da primeira batalha, outra seguir-se-ia, mas esta sem alvo pré-definido, uma vez que o itinerário era desconhecido, impondo-se, então, uma decisão quanto ao rumo a tomar (sentido de orientação). É que estávamos no início de uma bolanha (exemplo: imagem ao lado) e tanto quanto o horizonte visual nos permitia enxergar, não víamos alma nem qualquer vestígio da presença humana. 

Avançámos de forma empírica corrigindo a direcção por simpatia, sabendo-se, no entanto, que aquela zona estava sob controlo das NT, e que provavelmente estávamos em presença da bolanha de Nhabijões, o que se veio a confirmar depois. 

Durante a caminhada, sob um sol abrasador e com uma temperatura a rondar os 35/40 graus (a estação da época era a das chuvas), a resistência de cada um de nós voltou a ser, uma vez mais, posta à prova, concluindo-se que o humano não conhece os seus limites. A exaustão e a desidratação eram compensadas com um mergulho na bolanha a cada dez metros, distância suficiente para fazer secar os corpos e a roupa. Passado algum tempo não cronometrado - esse detalhe não era importante naquela situação - avistámos ao longe umas chapas de zinco brilhando por efeito do sol, tendo seguido nessa rota. Estávamos então nas traseiras da Tabanca de Nhabijões. Aí chegados, impunha-se conquistar uma merecida sombra e a ingestão de líquidos e de alguns alimentos. Mas há falta de recursos, bebemos água e eu comi uma lata de salada de frutas de conserva que jamais esquecerei. 

O CMDT do pelotão aí residente estranhou a nossa presença, pois não sabia do que nos tinha acontecido. E foi a partir desse momento que sinalizámos a nossa existência na rede de comando, solicitando uma viatura para nos transportar até ao Xime, onde chegámos a meio da tarde. 

À chegada, foi-nos confirmado o desaparecimento dos três camaradas anteriormente referenciados, bem como a ancoragem do Sintex no Cais de Bambadinca transportando os três elementos que nele entraram para uma viagem única em que foi aproveitada a força da maré. 

Entretanto, e porque o ex-Major de Operações Jales Moreira foi o primeiro a dar a notícia da ocorrência, logo se providenciou no sentido de se mobilizarem os meios operacionais, nomeadamente a partir dos recursos humanos da CART 3494. Sob o comando do ex-Cap. Pereira da Costa foi encetado um novo patrulhamento com maior incidência na zona do naufrágio, visando encontrar os corpos dos militares afogados, mas sem sucesso. Esta acção contou com o apoio de meios aéreos. 

O regresso ao Xime aconteceu já de noite. 


IV - CAUSAS/EFEITOS DO NAUFRÁGIO

O dia seguinte foi vivido, por todos, sob o efeito das diferentes ocorrências do dia anterior, todas elas contribuindo para um estado de espírito francamente negativo, em particular pela perda, de uma assentada, de três membros do nosso grupo, num acidente inquestionavelmente estúpido, como são todos aqueles que poderiam ser evitados. Deste modo, a angústia e a ansiedade dominaram este e os dias seguintes, desenvolvendo-se a crença e/ou a expectativa dos corpos dos desaparecidos poderem ser recuperados. 
Essa crença e/ou expectativa apenas se concretizou uma vez, lamentavelmente.

Decorridas mais de trinta horas após o acidente foi localizado um corpo/cadáver junto ao Cais do Xime (imagem ao lado); era o do José Maria da Silva Sousa (o bazuqueiro).

O seu corpo estava desnudo e em processo de transformação, o que é natural neste tipo de ocorrência. O seu comprimento aumentara substancialmente, ultrapassando largamente os dois metros, assim como o seu peso, agora com valores a rondar os cento e cinquenta quilos. 

Dois dias depois procedemos à realização do funeral, numa tarde de autêntico dilúvio e com direito a Honras Militares, ficando o seu corpo sepultado no cemitério de Bambadinca, conforme se demonstra na foto ao lado, cedida pelo ex-1.º Cabo Condutor Auto – Abílio Soares Rodrigues. 

Durante mais alguns dias, todos os olhares estiveram direccionados para o Rio Geba, esperando que ele nos devolvesse os restantes corpos, mas em vão.
Entretanto, devido a ter-se verificado mortes e desaparecido material de guerra, foi decidido pelo CMDT do Batalhão 3873, ex-Tenente-Coronel Tiago Martins (que já não está entre nós) a abertura de um Auto de Averiguações, que decorreu durante os primeiros meses, tendo sido consultados/inquiridos os militares envolvidos neste acidente. 

Treze meses depois do naufrágio – Setembro de 1973 – fomos convocados para comparecer no Tribunal Militar Territorial, em Bissau, para participar no acto de julgamento do processo, tendo como Réu o ex-Major Henrique Jales Moreira, e na qualidade de testemunhas oculares, eu próprio e o 1.º Cabo Miranda. 

Tratou-se de uma nova aventura e de uma grande experiência que não gostaríamos de repetir, em função do ambiente em que decorreu. 

O veredicto final do Tribunal determinou a absolvição do Réu. 

Por último, resta-nos referir que esta nova história que ousei narrar sobre um tema sensível no contexto da CART 3494 / BART 3873, escrita na primeira pessoa e que agora vos dei a conhecer, ocorrida durante o projecto militar desenvolvido no CTIGuiné (1972/1974), ficará gravada indelevelmente para sempre na minha história de vida, na medida em que é difícil fazer-se o seu luto. 

Em cada um dos diferentes momentos foi possível retirar lições de vida, ajudando-nos a melhor compreender os desempenhos socioculturais e sociopolíticos do ser humano. 

Assim, deixo à consideração de cada um dos leitores a competente avaliação do valor do escrito e das lições que dele julguem poder retirar. 

Um grande abraço para todos, e até à próxima história. 
Jorge Araújo.
Agosto/2012.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13482: Efemérides (171): Relembrando o naufrágio no Rio Geba, no dia 10 de Agosto de 1972, em que perderam a vida três camarada da CART 3494 (Jorge Araújo)

domingo, 10 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13482: Efemérides (171): Relembrando o naufrágio no Rio Geba, no dia 10 de Agosto de 1972, em que perderam a vida três camarada da CART 3494 (Jorge Araújo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 8 de Agosto de 2014:

Caríssimo Camarada Carlos Vinhal
Os meus melhores cumprimentos.

O Naufrágio no Rio Geba ocorrido no dia 10AGO1972, independentemente de estar a uma distância de quarenta e dois anos – faz hoje – foi, é e continuará a ser um tema sensível no contexto dos ex-combatentes da CART 3494, do BART 3873, por ter provocado, de forma perfeitamente estúpida, o desaparecimento de três dos seus membros por afogamento.
Porque estivemos envolvidos nessa experiência de forma intensa, em que durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, como referimos na introdução, continuamos a considerar tarefa difícil fazer-se o seu luto, tão fortes foram as emoções e as tensões que ocasionaram.
Dito isto, não podia deixar de prestar, nesta data, mais uma singela homenagem aos camaradas naufragados, relembrando/recordando alguns detalhes desse evento, adicionando-lhe outros factos associados que merecem a nossa relevância social e histórica.
Eis, em anexo, mais um contributo historiográfico, para memória futura, sobre as nossas vivências no CTIG.

Obrigado.
Um forte abraço.
Jorge Araújo.
Ago2014.


RELEMBRANDO O RIO GEBA E O MACARÉU

O NAUFRÁGIO NO RIO GEBA – 10AGO1972 E FACTOS ASSOCIADOS

I – O NAUFRÁGIO

Introdução

Em 2012, faz hoje precisamente dois anos [Vd. P10246(1)], tomei a iniciativa de divulgar, na primeira pessoa, as ocorrências relacionadas com um acontecimento que marcou a vida colectiva dos ex-combatentes da CART 3494, em particular daqueles que directamente nele estiveram envolvidos – uma secção reforçada do 1.º GComb – e que ficou conhecido, na história da Companhia e do BART 3873, como o «Naufrágio no Rio Geba».

Como referi nesse testemunho histórico, durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, sendo que este último conceito viria a aplicar-se, lamentavelmente, a três dos catorze militares que naquela 5.ª feira, 10AGO1972, faz hoje quarenta e dois anos, tinham por missão fazer a travessia entre as margens esquerda e direita do Rio Geba, por esta ordem, com o objectivo operacional de sinalizar eventuais vestígios deixados no terreno pelo IN, vulgo reconhecimento à zona circunvolvente ao Destacamento de Mato Cão.

Relembramos, neste contexto, que a travessia do Rio Geba, a iniciar-se no Cais do Xime, sito a 250/300 metros do Aquartelamento da Companhia, seria feita com recurso a um bote de fibra de vidro conhecido por Sintex, com motor fora de bordo de 50 cavalos, sendo sugerido no protocolo de utilização, como elemento de segurança, que a sua lotação não deveria ultrapassar a dezena de indivíduos, incluindo o barqueiro. Contudo o universo de efectivos militares destacados para esta missão era constituído por nove praças devidamente equipados, por mim próprio, e ainda pelo CMDT da Companhia, o ex-Cap. Pereira da Costa, pelo ex-Alf. Sousa, em situação de Estágio Operacional e pelo ex-Major de Operações Henrique Jales Moreira [o mais graduado], bem como pelo barqueiro do Sintex.
 


O naufrágio [relembrando alguns detalhes]


Com a navegação a cargo do barqueiro, como seria natural e normal, com o motor a desempenhar a sua função e com as águas muito agitadas por efeito do macaréu, cada um de nós não deixou de se interrogar quanto ao sucesso da «aventura» em que tínhamos embarcado e que, pouco tempo depois, deixou de ter hipóteses de retrocesso.

O pânico subia à medida que a embarcação se aproximava da cabeça do macaréu, cada vez com mais agitação e remoinhos à mistura. Naquele momento, um novo conceito surgiu no léxico dos militares, particularmente nas praças, que traduzia o sentimento que estavam a viver… “eu não sei nadar”, no princípio entredentes e depois mais audíveis e expressivos. O cenário começava, então, a ficar cinzento, deslizando para uma cor cada vez mais escura, independentemente de estar um dia óptimo, cheio de sol e com a temperatura ambiente a aumentar.

A pergunta filosófica que, certamente, cada um formulou para si, era a de saber como poderíamos sair daquele imbróglio, sãos e salvos? Entretanto, uma nova ordem foi dada, visando criar algumas réstias de esperança quanto à possibilidade e/ou às probabilidades de sobrevivência colectiva, apontando para uma “navegação o mais perto possível da margem esquerda”, ou seja, a mesma donde partíramos.

Quando nos encontrávamos a cerca de quatro/cinco metros do tarrafo – zona de lodo ainda não submersa, e onde habitualmente a comunidade de crocodilos [alfaiates; conceito militar] se organizava em frisa apanhando os seus banhos de sol [imagem acima] e, eventualmente, observava as suas presas – eis que se escuta uma nova ordem: “haja um que salte para o tarrafo levando consigo as correntes do bote com o objectivo de o poder suster”.

Olhando à minha volta, e perante a ausência de candidatos e/ou voluntários disponíveis para o cumprimento deste desiderato, eis que tomámos em mãos esse desafio. Porque a embarcação continuava instável face à movimentação das águas [imagem abaixo], o salto só poderia acontecer quando a distância entre o bote e a lodo fosse de molde a facilitar a operação proposta. Não sendo possível identificar o melhor momento para o salto, eis que no tempo «X» saltámos levando nas mãos a dita corrente já referida anteriormente. Durante o salto, feito de frente para o tarrafo, ouvimos, vindo da nossa rectaguarda, um ruído provocado pelo embate da proa do bote na parte mais alta do lodo, tendo como consequência a inclinação do mesmo projectando para a água todos os seus ocupantes.
Primeiro os que se encontravam no lado esquerdo da embarcação e depois os do lado direito, por efeito do desequilíbrio provocado pela transferência de peso que então ocorrera [lei da física].


De seguida, na água a luta era extremamente desigual entre o poder do Homem versus o poder da maré. Cada um dos militares, equipado e vestido com o seu camuflado que lhe dificultava a mobilidade no meio daquele líquido espesso e lodoso [imagem acima], procurava chegar a terra firme o mais rapidamente possível, pondo-se a salvo. E isso aconteceu a oito de um total de catorze elementos.

Dos seis em falta, três conseguiram entrar no bote: o barqueiro, o Miranda [1.º cabo de dilagramas] que, remando com a sacola das suas granadas, ajudou a recolher o ex-Major Jales Moreira em situação problemática. E os três seguiram ao sabor da corrente na direcção de Bambadinca, local onde estava sediado o Batalhão.


Os outros três elementos em falta eram: José Maria da Silva Sousa [de S. Tiago de Bougado, Trofa Velha (Santo Tirso)], Manuel Salgado Antunes [de Quimbres, São Silvestre (Coimbra)] e Abraão Moreira Rosa [da Póvoa de Varzim], que acabariam por desaparecer nas águas escuras e lodosas do Rio Geba, sem que existisse qualquer hipótese de salvamento [Vd. P10246(1)].


A recuperação dos náufragos

A angústia e a ansiedade dominaram o resto deste dia e dos subsequentes, desenvolvendo-se a crença e/ou a expectativa dos corpos dos desaparecidos poderem ser recuperados. Porém, essa crença e/ou expectativa apenas se concretizou uma vez, lamentavelmente. Decorridas mais de trinta horas após o acidente foi localizado um corpo/cadáver junto ao Cais do Xime [imagem abaixo]; era o do José Maria da Silva Sousa [o Bazuqueiro]. O seu corpo estava desnudo e em processo de transformação, como é natural neste tipo de ocorrência. O seu comprimento aumentara substancialmente, ultrapassando largamente os dois metros, assim como o seu peso, agora com valores a rondar os cento e cinquenta quilos.

Durante mais alguns dias, todos os olhares estiveram direccionados para o Rio Geba, esperando que ele nos devolvesse os outros dois corpos, mas em vão.


Em 13AGO1972, domingo, procedemos à realização do funeral do camarada José Maria da Silva Sousa, numa tarde de autêntico dilúvio [estávamos na época das Chuvas] e com direito a Honras Militares, função desempenhada pelo 3.º GComb, ficando o seu corpo sepultado no Cemitério de Bambadinca, sede do BART 3873.


Factos associados

Mesmo estando decorridos quarenta e dois anos da data desta lamentável ocorrência, continuam a persistir dúvidas a nível de alguns Quadros de Comando do BART 3873, nomeadamente quanto aos dois náufragos não recuperados. Em nome da verdade dos factos, confirmo que só um dos três corpos foi recuperado pelo contingente da CART 3494, pelo que só uma das três campas existentes no Cemitério de Bambadinca se refere ao militar metropolitano: o José M. S. Sousa.

Quanto às outras duas (?!) campas que o ex-Major Jales Moreira me informou aí existirem, em contacto recente, é de admitir, como probabilidade credível, que se refiram a dois combatentes do PAIGC, mortos no dia 01DEZ1972 na 2.ª emboscada na Ponta Coli [Vd. P9802], ou seja, três meses e meio depois do naufrágio.

Ainda hoje se não entendem as motivações que influenciaram a decisão de omitir, na HISTÓRIA DO BART 3873, este acontecimento marcante para todos nós, dele fazendo-se “tábua rasa”, nomeadamente no seu 5.º fascículo referente às actividades/acções do mês de «Agosto-1972» [pp. 77/79; pontos 35/40].
O único apontamento que conhecemos está expresso no Capítulo III – Baixas, Punições, Louvores e Condecorações [pp. 145/165]. Na pg. 149; Agosto-72; 1.Baixas; pode-se ler na alínea d) “Por Outras Causas” [nome dos três camaradas naufragados] “… todos da CART 3494, mortos por afogamento, no acidente do rio Geba, em 10AGO72”.
É inacreditável…, pois nunca houve justificação para tal.




II – HISTÓRIA DIVULGADA POR FAMILIAR DE UM NÁUFRAGO

O caso do Manuel Salgado Antunes

No dia 25 de Maio de 2013 Miguel Ribeiro Antunes, sobrinho de Manuel Salgado Antunes, na sequência de ter lido no blogue da CART 3494 a narrativa sobre o Naufrágio no Rio Geba de 10AGO1972, onde se fazia referência, justamente, aos nomes dos três náufragos [sendo um deles o de seu tio], tomou a iniciativa de nos escrever dando conta do que sabia sobre este tema.

A residir na Suíça, onde é arquitecto, Miguel Antunes refere que nunca conheceu o seu tio, que era irmão de seu pai. Sobre este caso, afirma que a sua família nunca soube muito bem o que se passou. A sua avó morreu há dois anos [2011] e no último dia de vida perguntou-lhe o que é que eu “Manuel” [confundindo-o com o seu filho/tio] estava ali a fazer quando estivera tanto tempo sem aparecer. Para Miguel foi o seu maior desgosto por ver aquela mulher, que ele adorava, morrer sem nunca ter tido uma certeza nem um corpo para fazer um funeral. Mais estranho é o facto de no dia em que sua avó morreu, esteve um senhor na sua casa afirmando saber onde estavam os restos mortais do seu tio na Guiné, e caso estivessem interessados em tratar deste assunto, ele era um ex-combatente.

Naquele contexto de muito pesar, a sua mãe não fixou o nome do senhor ex-combatente, tendo apenas a ideia de tratar-se de alguém duma localidade perto de Quimbres, de nome Carapinheira.

Pelo exposto, acredita que é o primeiro familiar de Manuel Salgado Antunes a saber, verdadeiramente, a história de seu tio, solicitando, se possível, mais informações sobre este caso, pois mantem presente essa curiosidade, agora que estão passados tantos anos.

Ainda nesse mesmo dia, na sequência de ter recebido notícias do camarada Sousa de Castro, que agradeceu, acrescentou que este assunto sempre se falou em sua casa sem problemas, mas nunca se aprofundou muito. A incerteza quanto ao incidente era alguma, até porque outras pessoas da aldeia e arredores, ex-combatentes, contavam várias histórias diferentes e ao longo dos anos talvez a versão original se tenha dissipado.

Porque se encontra na Suíça, por ser mais um que teve de deixar o País, não pode enviar fotos do seu tio. Mas, quando vier de férias a Portugal, promete enviar algumas que tem e que estiveram escondidas durante anos, decisão tomada pelo seu pai para que a sua avó não vivesse agarrada a esse passado – histórias da vida.

Perante estes dois contactos carregados de angústia e emoção, e como resposta ao interesse demonstrado em saber algo mais, escrevi-lhe o seguinte:

Caro Miguel,
Antes de mais receba os meus melhores cumprimentos e um bem-haja pela iniciativa que tomou. Com efeito, foi uma boa notícia saber que um familiar do Manuel Antunes, a mais de dois mil quilómetros da sua terra natal, tomou conhecimento, mais de quarenta anos depois, dos factos reais relacionados com a morte de seu tio, assunto que durante todo este tempo esteve envolto em mistério, suscitando naturais dúvidas e incredulidade no seio da sua família.

Considero este seu contacto, por isso, uma recompensa à iniciativa de tornar pública essa ocorrência estúpida, como são todas aquelas que poderiam ser evitadas, e que fez com que o seu tio naufragasse naquele dia 10Ago1972, nas águas revoltas do Rio Geba, na Guiné, e de mais dois camaradas seus.
Reafirmo o que ficou expresso na minha narrativa: - os corpos dos n/ camaradas Manuel Antunes, seu tio, e o do Abraão Rosa, nunca apareceram pelo que não existem restos mortais recuperados. Daí ninguém poder afirmar que conhece as suas localizações, o que lamento e lamentam todos os ex-militares constituintes da CART 3494. Lamento, ainda, a falta de ética e moral como trataram este assunto junto dos seus familiares directos, ocultando a verdade dos factos, entretanto tornados públicos. Por via da existência deste nosso blogue, que é a expressão colectiva de todos quantos partilharam o mesmo contexto, pretendemos continuar a prestar um verdadeiro “serviço público”.

Uma vez que gostaria de voltar a este assunto, e porque certamente o Miguel já fez circular estas notícias por outros membros da sua família, muito grato ficaria se pudesse acrescentar algo mais ao que já referiu nos seus comentários, em particular a opinião de seu pai [a resposta ainda não chegou…].
J.A.

Porque este foi, é e continuará a ser um tema sensível no contexto da CART 3494, do BART 3873, os acontecimentos no Rio Geba [Xime-Bambadinca], no dia 10AGO1972, continuarão a ser relembrados/recordados… sempre, na medida em que é difícil fazer-se o seu luto.

Um grande abraço, muita saúde e boas férias.
Jorge Araújo.
10Ago2014.
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Nota do editor

(1) - Vd. poste de 10 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10246: Efemérides (107): Dia 10 de Agosto de 1972 - Naufrágio no Rio Geba de um sintex com pessoal da CART 3494 (Jorge Araújo)

Último poste da série de 7 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13472: Efemérides (170): João Augusto Ferreira de Almeida - o único português fuzilado na I Grande Guerra (Benjamim Durães)

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12135: Acção Garlopa, no setor L1, subsetor do Xime, com a CART 3494, a CCAÇ 12 e a CCP 121, que levou à captura de 10 elementos da população, em 19/7/1972 (Sousa de Castro)






Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74) > População sob controlo do PAIGC, no subsetor do Xime, capturada no decurso da Acção Garlopa, em 19 de julho de 1972, num total de 10 elementos.

Fotos (e texto):  © Sousa de Castro (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]


1. Mensagem do Sousa de Castro, o nosso tertuliano nº 2 (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74) [, foto à esquerda, no Xime, 1972] , com data de 8 do corrente;

Caros camaradas depois de ler o poste P12128, leva-me a concluir que tem a ver com a actividade da CART 3494 em Julho de 1972 conforme página 75 da História do BART 3873 que anexo, bem como as fotos de elementos da população capturados nessa operação (Acção Garlopa). Junto igualmente um síntese da actividade operacional, no subsector do Xime, editada por mim.

Com os melhores cumprimentos, A. Castro.
.
2. Comentário de L.G.:

Meu caro António:  Obrigado pela tua rápida resposta. Conheci, bem demais, como tu sabes, o subsetor do Xime, aquando da minha comissão na CCAÇ 12 (169/71). Era raro não haver contactos com o IN na região de Poidon/Ponta do Inglês, sempre que a gente lá ía, em força (cinco  a oito grupos de combate, 2 destacamentos).

Em 21 de janeiro de 1970,   a CCAÇ 12, a 3 Gr Comb reforçados (destacamento A) e a CART 2520 (unidade de quadrícula do Xime, a 2 Gr Comb) (Dest B), no decurso da Op Safira Única, foram à região da Ponta do Inglês e, sem dar um tiro, recuperaram 15 elementos da população, destruiram dois acampamentos e aprisionaram um guerrilheiro "em férias", armado de pistola Tokarev (*)...

Recordo-me que os prisioneiros ficaram às ordens do comando e CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Lembro-me particularmente do ar aterrorizado das crianças, nuas, ao ouvir o ronco de uma GMC... Eram miúdos nascidos no mato (a partir de 1963). Já não recordo de qual terá sido o seu destino: como era usual, eram entregues à autoridade administrativa local e acabavam por ser integrados nalguma tabanca mais próxima, com gente da sua etnia (balantas ou beafadas). 

Todos os anos era o mesmo drama, com esta pobre gente que trazíamos do mato, em geral na altura da época seca ou no princípio da época das chuvas, e para qual não havia, no quartel de Bambadinca, as condições mínimas de acolhimento e muito menos uma política de integração... Esse drama será presenciado, no ano seguinte, pelo alf mil capelão Arsénio Puim, que pertenceu ao batalhão seguinte, o BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). Vd., a este propósito, , as suas memórias de Bambadinca.

Quanto à população a que te referes, capturada pelas NT (onde lá estão novamente os desgraçados da CCAÇ 12, já com com 3 anos de guerra!), na sequência da Acção Garlopa... Pelas minhas contas, é capaz de ser a mesma. Tu referes-te a 10 elementos capturados em 19 de julho de 1972 (E as fotos documentam-no). O jornalista do Diário de Lisboa, Avelino Rodrigues (que esteve 2 semanas na Guiné, não sei exatamente quando) acompanhou Spínola numa operação, já  também na pensínsula da Ponta do Inglês, em que foram capturados 10 elementos da população, balantas (7 mulheres, um velho e duas crianças). Spínola (,a companhado pelo jornalista) foi ao mato (possivelmente já perto do Xime, em Madina Colhido) recebê-los e tranquizá-los (**). Serão depois recebidos no palácio do Governador, com novas fatiotas, rádios a pilhas e dinheiro! Podes ler a segunda crónica, do jornalista, com data de 29/8/1972, aqui, no magnífico arquivo da Fundação Mário Soares. Podes ampliar a imagem (p. 12). Devo, de resto, dizer que é uma excelente reportagem, feita com rigor, isenão e objetividade, que honrou o grande jornalismo português que se fazia na época. Não sei o que é a censura ("exame prévio") cortou, se é que cortou (como vai cortar ao Expresso, em 1973 e 1974)!... 


(**) 8 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12128: Notas de leitura (524): (Mário Beja Santos): Reportagem do enviado especial do Diário de Lisboa, Avelino Rodrigues, CTIG, agosto de 1972

domingo, 28 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11877: Memória dos lugares (240): Xime (macaréu), Bambadinca e Bafatá (José Rodrigues)

1. Mensagem do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72) enviada ao nosso Blogue:

Caro Editor do Blogue, Camarada e Amigo Carlos Vinhal:

Entendi ter chegado o momento de dar resposta positiva ao desafio, que há tempos atrás me colocaste, de publicar as minhas oito crónicas “Conversas à mesa com Camaradas Ausentes” (Estórias da História da Guerra Colonial na Guiné-Bissau) e das oito crónicas “A minha primeira viagem à Guiné – 1998”.

Deixo à consideração dos Editores do Blogue, o momento e a periodicidade da publicação das mesmas.

Para os camaradas que andaram por Bafatá, Bambadinca e Xime, envio para publicação um vídeo (de 2001) com pequenos apontamentos dessas zonas e que inclui ainda imagens da passagem do Macaréu no rio Geba, recolhidas no local do que resta do antigo cais do Xime.

De salientar que as imagens se referem à época seca.

Com um Cordial Abraço de Amizade e Camaradagem
José Rodrigues
Ex-1.º Cabo Aux. Enfermeiro
CART 2716
XITOLE
1970/72


2. Comentário do editor:

Caro camarada e amigo José Rodrigues,

De acordo com o combinado, vamos publicar as tuas estórias e as crónicas da tua primeira viagem de saudade à Guiné-Bissau. Fá-lo-emos com periodicidade semanal, em princípio às quartas-feiras.

Hoje, para começar, deixamos os links para o sempre espectacular macaréu, que em boa hora registaste no Xime, e para o filme (completo) que fizeste a caminho do Xime, Bambadinca e Bafatá, que irá lembrar boas e más horas a quem por lá passou.

Fica aqui um abraço dos editores para ti.
Carlos Vinhal




Vídeo, de 2001, com o macaréu no Rio Geba, no Xime, filmado a partir do antigo cais...



Viagem, en 2001, à Guiné-Bissau, com passagem pelo antigo setor L1, zona leste. Neste vídeo, há cenas filmadas no Xime, Bambadinca e Bafatá [No vídeo, aparece por diversas vezes o Dr. António Rodrigues Marques Vilar, hoje médico psiquiatra reformado, residente em Aveiro. Aparece no vídeo de pera e chapéu de palhinha.  Era carinhosamente conhecido, entre a malta, pela alcunha Drácula... Foi alf med na CCS/BART 2917, unidade que esteve sediada em Bambadinca (1970/72]. 

Neste vídeo, são  revisitados vários sítios que nos são familiares, àqueles de nós que passaram por Bambadinca, desde o Bataclã de Bambadinca (discoteca...) até à casa do Rendeiro, o comercaiante da Murtosa, que morreu ainda há pouco tempo... O outro comerciante, o José Maria, já não era vivo em 2001. Nesta viagem também participou o David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716 (Xitole, 1970/72). A voz "off" deve ser do José Rodrigues, o autor do vídeio. (LG).

Vídeos: © José Ridrigues (2001). Todos os direitos reservados

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11863: Memória dos lugares (239): Canjambari 1972 (2) (Manuel Lima Santos)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10246: Efemérides (107): Dia 10 de Agosto de 1972 - Naufrágio no Rio Geba de um sintex com pessoal da CART 3494 (Jorge Araújo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp/Ranger da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74), com data de 9 de Agosto de 2012:

Caríssimo Camarada Luís Graça, e restantes operacionais do nosso blogue:

Os meus melhores cumprimentos.

Serve o presente para anexar uma narrativa dos acontecimentos relacionados com o Naufrágio de 10 Ago 1972, no Rio Geba, envolvendo alguns militares da CART 3494.

Através desta metodologia pretende-se transferir o conhecimento individual de quem viveu de forma intensa aquele contexto, descrevendo-se um conjunto de detalhes julgados pertinentes com o objectivo de se conceber a sua história, agora que estão decorridos quarenta anos após esse acidente.

Ela é, ainda, mais uma pequena contribuição que é disponibilizada à opinião pública, por meio deste espaço plural de partilha, como é o caso da «Tabanca Grande», sobre as diferentes ocorrências registadas durante o conflito militar no CTIG, quer ela seja interpretada pelos ex-combatentes quer se trate da análise a realizar pelas gerações mais novas no âmbito multidisciplinar.

Obrigado pela atenção.
Jorge Araújo.
Ex-Furriel Mil Op Esp/RANGER
CART 3494
Xime-Mansambo
1972/1974


O RIO GEBA E O MACARÉU 

O NAUFRÁGIO NO DIA 10.AGO.1972

I – O NAUFRÁGIO NO RIO GEBA – 10.AGO.1972

No intervalo das duas emboscadas sofridas pela CART 3494 na Ponta Coli, local situado na estrada entre o Xime e Bambadinca, e já objecto de narração anterior (Postes 9698* e 9802*), focalizámo-nos hoje em mais um acontecimento que marcou a vida colectiva dos seus membros, em particular daqueles que directamente nele estiveram envolvidos, e que ficou conhecido, na história da Companhia e do Batalhão, como o Naufrágio no Rio Geba.

Este episódio verificou-se exactamente a meio dos dois acontecimentos anteriormente assinalados, contabilizando-se um período de cento e onze dias entre cada um deles, o que é uma coincidência interessante.

Durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, sendo que esta última expressão/conceito viria a aplicar-se, lamentavelmente, a três dos catorze militares que naquela 5.ª feira, dia 10 de Agosto de 1972, faz hoje quarenta anos, tinham por missão fazer a travessia entre as margens esquerda e direita do Rio Geba, por esta ordem, com o objectivo operacional de sinalizar eventuais vestígios deixados no terreno pelo IN, vulgo reconhecimento à zona circunvolvente ao Destacamento de Mato Cão.

Curiosamente, nessa mesma data, foi testemunhado o movimento de um meteoro, que se tornou conhecido como A Grande Bola de Fogo Diurna de 1972, sobre as Montanhas Rochosas do Sudoeste dos EUA em direcção ao Canadá e que, caso tivesse explodido (dizem os cientistas),  seria semelhante à explosão de Hiroshima (Bomba Atómica Little Boy), ocorrida em 03.Ago.1945, ou seja vinte e sete anos antes, e que acabaria por estar ligada ao términus da II Guerra Mundial concretizado oficialmente após a assinatura do armistício verificada em 02.Set.1945, na Baía de Tóquio.

Entretanto, a travessia do Rio Geba, a iniciar-se no Cais do Xime, seria feita com recurso a um bote de fibra de vidro conhecido por Sintex, com motor fora de bordo de 50 Cavalos, sendo sugerida, como elemento de segurança, que a sua lotação não deveria ultrapassar a dezena de indivíduos, incluindo o barqueiro.

Para se ter a noção deste tipo de embarcação, uma vez que não existem imagens reais da ocorrência, seleccionámos a foto ao lado, publicada pelo Correio da Manhã em 27.Jun.2010, na rubrica “A Minha Guerra”, e que serviu para enquadrar a História de Guerra contada pelo nosso amigo e camarada ex-alferes Joaquim Mexia Alves,  naquele órgão de comunicação social.

Porém, tudo leva a crer que estamos perante o mesmo bote que foi utilizado naquele dia 10 de Agosto, uma vez que o ex-alferes Mexia Alves, ao ser nomeado CMDT do Pel Caç Nat 52 algum tempo depois, viria a ser colocado no Destacamento de Mato Cão, ficando este sob a jurisdição do BART 3873, e, portanto, dependente do seu apoio logístico.

Com efeito, e porque ainda hoje subsistem algumas dúvidas sobre como tudo aconteceu, nomeadamente causas e efeitos das decisões tomadas pela linha de comando, este texto corresponde tão só e apenas ao que ainda guardamos em memória deste tema (e ainda bem que o ser humano tem memória), uma vez que também neste caso estivemos envolvidos até ao tutano.

Procuramos, através da informação retida e das muitas imagens ainda bem presentes, caracterizar cada elemento do todo fenomenal, com o objectivo de acrescentar algo mais ao que já foi tornado público em outras ocasiões, em particular no Blogue da CART 3494 (vidé: poste 17 (10.fev.2009); poste 29 (22.mar.2009) e poste 44 (12.nov.2009).

Tal como nos depoimentos anteriores, o método utilizado assenta numa estrutura organizada cronologicamente a partir de cada um dos diferentes momentos: o antes, o durante e o depois dos factos.


II – O DIA 09 DE AGOSTO DE 1972

Tendo por cenário as ocorrências contabilizadas durante a primeira emboscada sofrida pela CART 3494, através do seu 4.º GComb, no dia 22.Abr.1972, levando-o a ficar inoperacional por algum tempo, como consequência dos diferentes graus de enfermidade e de inferioridade física de parte significativa dos seus elementos, foi decidido superiormente que transitaríamos de imediato para o 1.º Pelotão, em virtude deste GComb estar desfalcado de quadros de comando.

Esta transferência, que no início tinha carácter provisório acabaria por ser definitiva, pelo que nos mantivemos neste pelotão até ao final da comissão de serviço no CTIG, justificada, em certa medida, pela transferência do seu oficial adstrito (ex-alferes Carneiro) para uma CCaç, e que, por motivos que desconhecemos, não viria a ser rendido.

Assim, em conformidade com o plano das acções/missões atribuídas a cada pelotão, o dia 09 de Agosto de 1972 foi passado no cumprimento das diferentes tarefas logísticas internas como sejam a limpeza, recolha e abastecimento de água pelos diferentes abrigos e outros serviços de manutenção ao aquartelamento, sob a orientação operacional dos três furriéis do grupo: Godinho, Ferreira e eu próprio. Concluídas as diferentes missões, o restante tempo que faltava para encerrar o dia foi utilizado no jantar, na messe, e depois recolhemos ao nosso Tê Zero, procurando recuperar energias para o dia seguinte, já que a missão atribuída na escala era de intervenção, desconhecendo-se, naquele momento, o que estava previsto ou pensado para esse efeito.

Já na posição horizontal, recebendo o ar fresco da ventoinha suspensa na estrutura da cabeceira da cama, eis que entra no quarto o ex-Furriel Ferreira, com ar de poucos amigos, contando que tinha sido chamado ao Gabinete do CMDT da Companhia, ex-Cap. J. A. Pereira da Costa, líder da CART 3494 desde 22.Jun.1972, recebendo instruções para preparar a sua Secção (Bazuca) reforçada com mais alguns elementos do Pelotão, com o objectivo de no dia seguinte, de manhã, participar num patrulhamento a efectuar na margem direita do Rio Geba, estando prevista a inclusão, na acção, do Major de Operações do BART 3873, ex-Major de Art. Henrique Jales Moreira.

Perante os sinais de ansiedade transmitidos em cada frase emitida e o nervosismo sentido em cada movimento corporal, logo o questionámos – eu e o Godinho – o que se passa contigo?

A resposta não foi imediata. Mas, depois de alguma insistência, afirmou sentir-se um pouco em baixa de forma. Perguntei-lhe se queria que eu fosse no seu lugar. A sua resposta foi afirmativa, deixando cair, então, um grande fardo que tinha sobre os seus ombros.

Questionado se já tinha dado instruções aos seleccionados para a missão, a sua resposta foi positiva.

Passado algum tempo chega a informação de que o bazuqueiro, ex-Soldado Ricardo Teixeira (imagem ao lado), tinha ficado ferido durante o serviço de limpeza, em consequência de ter espetado um prego no pé, ao tentar compactar o lixo que se encontrava na viatura, deixando-o, assim, incapacitado para a tarefa agendada para o dia seguinte.


III – O DIA 10 DE AGOSTO DE 1972 – o naufrágio no Rio Geba

As actividades militares do dia em referência foram iniciadas com a concentração vs organização dos militares destacados para a acção identificada no dia anterior, grupo constituído por nove praças devidamente equipados para a missão, por mim próprio, a quem tinha sido entregue um rádio de transmissões AVP1, a que se juntou, no Cais do Xime, o CMDT da Companhia, ex-Cap. Pereira da Costa, o ex-Alferes Guimarães, em situação de Estágio Operacional e o ex-Major de Operações Henrique Jales Moreira, totalizando treze elementos.
A este número faltava adicionar, ainda, o barqueiro do Sintex, perfazendo então um universo de catorze militares a transportar no bote que, como referido no ponto I, era aconselhada uma lotação máxima de dez indivíduos.

Parecendo estarem reunidas todas as condições operacionais para o sucesso da missão, embarcámos para o bote Sintex, distribuindo-se a totalidade dos elementos de modo equitativo, dando-se então início à navegação por volta das 09:00 horas.

Depois de percorridas algumas dezenas de metros, verificou-se que o plano de água não permitia o avanço da embarcação, uma vez que o hélice do motor batia no fundo do rio, pois estávamos ainda na situação de baixa-mar, pelo que era necessário aguardar pela passagem do macaréu. Por isso regressámos ao local da partida, dando por concluída a primeira tentativa da travessia do Geba.

Uma vez que o Aquartelamento distava do cais entre 250/300 metros, e a nossa presença não era necessária naquele contexto, decidimos ali regressar. Quando estávamos já no seu interior, muito perto da parada, depois de ultrapassada a porta de armas original, cujo modelo ou patente julgamos não ter sido registada, ouvimos um sinal sonoro no nosso rádio AVP1, que atendemos. O conteúdo da informação recebida dava conta da passagem do macaréu, pelo que se solicitava a presença de todos os militares no cais, para dar-se início a nova viagem.
Contudo, foi com algum espanto e muita perplexidade que recebemos a notícia da passagem do macaréu, na medida em que conhecíamos mais ou menos bem a sua evolução no processo de enchimento da maré, devido à situação de proximidade com o rio, facto que suscitou em nós, desde o início, uma natural curiosidade pela observação deste fenómeno da natureza.

E o que é o fenómeno macaréu?

A hidrografia explica que o macaréu é o choque das águas de um rio caudaloso com as ondas durante o início da maré enchente.

Este fenómeno das marés, que dá origem à elevação do nível das águas oceânicas, faz com as mesmas invadam a foz dos rios, podendo formar ondas até dezenas de metros de largura, com três a cinco metros de altura, atingindo uma velocidade entre trinta e cinquenta quilómetros por hora. Esta poderosa massa de água que se transforma em onda pode durar entre quinze minutos e uma hora.

Para além do Rio Geba, este fenómeno é observado em vários pontos dos cinco continentes, nomeadamente no Brasil, na foz do rio Amazonas e afluentes do litoral paraense e amapaense, como sejam os rios Araguari, Maicaré, Guamá, Capim e Moju, e na foz do rio Mearim, no Maranhão.

Nessa região amazónica, esse fenómeno é designado por pororoca, mupororoca ou macaréu. Porém, outras designações são atribuídas ao mesmo fenómeno, com diferentes escalas, observado em diferentes rios do mundo, de que é exemplo o caso de Inglaterra, na foz dos rios Severn, Tamisa e Trent, conhecido por bore. Eis algumas imagens de cada um dos diferentes fenómenos.


Na França, o exemplo observado na foz dos rios Gironda, Charante e Sena é conhecido por mascaret ou barre.

De regresso ao cais, as dúvidas suscitadas inicialmente quanto à oportunidade de dar-se início à travessia não se dissiparam, antes pelo contrário, elas ampliaram-se em função da qualidade de agitação da água do rio. Esta nossa avaliação era coincidente com a do Cabo Silva (um militar da Marinha, que durante mais de duas décadas viveu as experiências das diferentes marés por onde andou, por ter estado ligado às actividades dos submarinos) e que naquela ocasião se encontrava no cais, dirigindo os trabalhos de carregamento de madeiras para a embarcação civil CP10.

Esta conclusão resultou do facto de ter escutado a parte final da conversa havida entre aquele militar e o Major de Operações, em que o primeiro tentou convencer o segundo a não se fazer à água naquele momento, aconselhando-o a aguardar mais algum tempo de modo a diminuir o risco de um eventual acidente, mas sem sucesso. À ordem de avançar porque se fazia tarde, eis a mensagem que circulou, entrámos pela segunda vez no bote Sintex, mantendo-se a distribuição anterior.

A partida aconteceu no local indicado na foto ao lado (Cais do Xime), agora em ruínas.

O sentido da navegação corresponde igualmente à da imagem apresentada, sendo a margem esquerda aquela que se encontra à direita e a margem direita a que se encontra à esquerda.

Demos, então, início à segunda tentativa da travessia do Rio Geba. Com a navegação a cargo do barqueiro, com o motor em funcionamento e com as águas muito agitadas, certamente que cada um de nós se interrogou quanto ao sucesso da aventura em que tínhamos embarcado e que não tinha hipóteses de retrocesso.

Logo nas primeiras dezenas de metros, os “palpites” começaram-se a escutar, na medida em que a embarcação não podia tomar o rumo certo. Uma ordem foi escutada: desligue-se o motor, o que foi acatado pelo barqueiro. Mas, mesmo assim, dava a sensação de que o bote continuava com o motor ligado, tal era a velocidade com que o mesmo deslizava naquelas águas revoltas.

O pânico subia à medida que a embarcação se aproximava da cabeça do macaréu, cada vez com mais agitação e remoinhos à mistura. Naquele momento, um novo conceito surgiu no léxico dos militares, particularmente nas praças, que traduzia o sentimento que estavam a viver, ou seja “eu não sei nadar”, no princípio entredentes e depois mais audíveis e expressivos.

O cenário começava, então, a ficar cinzento, diria mesmo muito cinzento no sentido da cor negra, independentemente de estar um dia óptimo, cheio de sol e com a temperatura ambiente a aumentar.
A pergunta filosófica que, certamente, cada um formulou para si, era a de saber como poderíamos sair daquele imbróglio, sãos e salvos?

Entretanto, uma nova ordem foi dada, visando criar algumas réstias de esperança quanto à possibilidade de sobrevivência colectiva, apontando para uma “navegação o mais perto possível da margem esquerda”, ou seja, a mesma donde partíramos. Quando nos encontrávamos a cerca de quatro/cinco metros do tarrafo – zona de lodo ainda não submersa, e onde habitualmente a comunidade de crocodilos (alfaiates) se organiza em frisa apanhando os seus banhos de sol – eis que se escuta uma nova ordem: “haja um que salte para o tarrafo levando consigo as correntes do bote com o objectivo de o poder suster”.

Olhando à minha volta, e perante a ausência de candidatos e/ou voluntários disponíveis para o cumprimento deste desiderato, eis que tomámos em mãos esse desafio. Porque a embarcação continuava instável face à movimentação das águas, o salto só poderia acontecer quando a distância entre o bote e o lodo fosse de molde a facilitar a operação proposta.

Não sendo possível identificar o melhor momento para o salto, eis que no tempo «X» saltámos levando nas mãos a dita corrente já referida anteriormente. Durante o salto, feito de frente para o tarrafo, ouvimos, vindo da nossa rectaguarda, um ruído provocado pelo embate da proa do bote na parte mais alta do lodo, tendo como consequência a inclinação do mesmo projectando para a água todos os seus ocupantes, primeiro os que se encontravam no lado esquerdo da embarcação e depois os do lado direito, por efeito do desequilíbrio de peso que entretanto ocorrera (lei da física).

Quanto a nós e na sequência do salto, ficámos de imediato enterrados no lodo até aos joelhos, procurando, mesmo assim, manter o controlo da embarcação através do uso da sua corrente, mas não por muito tempo. Face à diminuição da nossa resistência por via da força da maré, que nos conseguiu arrancar ao lodo arrastando-nos num espaço de alguns metros quase até à posição de «pino», não tivemos outra alternativa senão deixar o bote entrar à deriva.

Como podem imaginar todo esta descrição corresponde a uma fracção de tempo diminuto entre alguns segundos e poucos minutos, mas que no terreno mais parece uma eternidade.

Entretanto, na água, a luta era extremamente desigual entre o poder do homem e o poder da maré. Cada um dos militares, equipados e vestidos com os seus camuflados que lhes dificultava a mobilidade dentro de água, procuravam chegar a terra firme o mais rapidamente possível, pondo-se a salvo. E isso aconteceu a oito de um total de catorzes elementos.

Dos seis em falta, três conseguiram entrar no bote: o barqueiro (nome que desconhecemos, pois era elemento da CCS), o Miranda (1.º Cabo de dilagramas) que remando com a sua sacola das granadas permitiu recolher o ex-Major de Operações Jales Moreira em situação muito difícil. E os três seguiram ao sabor da corrente na direcção de Bambadinca, local onde estava sediado o Batalhão.

Os outros três elementos em falta eram: o José Maria da Silva Sousa, o Manuel Salgado Antunes e o Abraão Moreira Rosa, que acabariam por desaparecer nas águas barrentas do Rio Geba, sem que existisse qualquer hipótese de salvamento. No caso do José Sousa ainda o vi emergir três vezes. Mas como tinha em seu poder a bazuca e esta estava presa à paleta da camisa, provavelmente esta situação não lhe foi favorável, dificultando-lhe ainda mais os movimentos.

Para além de não se ter concretizado a travessia, de o grupo ter ficado fraccionado e com baixas, de termos ficado desarmados e sem meios de comunicar com a nossa Companhia, tínhamos ainda pela frente um longo caminho a percorrer até chegarmos ao nosso Aquartelamento, no Xime.

Assim, os oito elementos que estavam aparentemente a salvo, mas ainda dentro de água tentando localizar alguma das armas perdidas, tinham ainda pela frente um osso difícil de roer, passe a imagem metafórica, uma vez que faltava transpor o obstáculo tarrafo até chegar a terra mais sólida.

E a primeira dificuldade com que nos deparámos tinha a ver com a necessidade de percorrer cerca de quinze metros de lodo extremamente mole, num momento em que as águas continuavam a subir a um ritmo veloz, e em que o movimento de elevação de cada perna, correspondente a cada passo, era sempre maior que o anterior, fazendo lembrar que estávamos perante um contexto de areia movediça.

Após os primeiros passos, não nos restava outra alternativa senão tentar nadar no lodo, agora cada qual em tronco nu mas com os seus objectos sob controlo (roupa, cinturão e carregadores). Na sequência de cada braçada, esses objectos eram arremessados para a frente, para depois se efectuar nova braçada e novo arremesso. Todo o nosso corpo era lodo: o cabelo, o rosto, a boca, os membros, etc., etc., etc.. Para percorrer os tais quinze metros de tarrafo, aproximadamente, foram gastos cerca de vinte e cinco minutos, o que diz bem das dificuldades sentidas. A meio da viagem, por efeito de estar verdadeiramente exausto, pensei que já não seria capaz de ali sair. A força e a energia tinham-se esgotado.

Depois de um curto descanso a pedido do corpo e da mente, aconteceu um novo impulso antes da última transcendência (a morte), conseguindo então chegar ao fim da linha. Espalhados ao longo do lodo encontravam-se ainda os meus sete camaradas, cada um lutando para ultrapassar as suas dificuldades.

Fazendo uso da faca de mato, que usávamos presa ao cinturão, procedemos ao corte de alguns troncos dos arbustos existentes na zona, arremessando-os na sua direcção, visando facilitar a mobilidade nos últimos metros da tortura. Os pequenos troncos, porque foram colocados entre os corpos e o tarrafo, funcionando como estrado, acabariam por provocar ligeiros ferimentos, particularmente no peito e zona abdominal, devido às suas saliências.

Tendo saído vitoriosos da primeira batalha, outra seguir-se-ia, mas esta sem alvo pré-definido, uma vez que o itinerário era desconhecido, impondo-se, então, uma decisão quanto ao rumo a tomar (sentido de orientação). É que estávamos no início de uma bolanha (exemplo: imagem ao lado) e tanto quanto o horizonte visual nos permitia enxergar, não víamos alma nem qualquer vestígio da presença humana.

Avançámos de forma empírica corrigindo a direcção por simpatia, sabendo-se, no entanto, que aquela zona estava sob controlo das NT, e que provavelmente estávamos em presença da bolanha de Nhabijões, o que se veio a confirmar depois.

Durante a caminhada, sob um sol abrasador e com uma temperatura a rondar os 35/40 graus (a estação da época era a das chuvas), a resistência de cada um de nós voltou a ser, uma vez mais, posta à prova, concluindo-se que o humano não conhece os seus limites. A exaustão e a desidratação eram compensadas com um mergulho na bolanha a cada dez metros, distância suficiente para fazer secar os corpos e a roupa. Passado algum tempo não cronometrado - esse detalhe não era importante naquela situação - avistámos ao longe umas chapas de zinco brilhando por efeito do sol, tendo seguido nessa rota. Estávamos então nas traseiras da Tabanca de Nhabijões. Aí chegados, impunha-se conquistar uma merecida sombra e a ingestão de líquidos e de alguns alimentos. Mas há falta de recursos, bebemos água e eu comi uma lata de salada de frutas de conserva que jamais esquecerei.

O CMDT do pelotão aí residente estranhou a nossa presença, pois não sabia do que nos tinha acontecido. E foi a partir desse momento que sinalizámos a nossa existência na rede de comando, solicitando uma viatura para nos transportar até ao Xime, onde chegámos a meio da tarde.

À chegada, foi-nos confirmado o desaparecimento dos três camaradas anteriormente referenciados, bem como a ancoragem do Sintex no Cais de Bambadinca transportando os três elementos que nele entraram para uma viagem única em que foi aproveitada a força da maré.

Entretanto, e porque o ex-Major de Operações Jales Moreira foi o primeiro a dar a notícia da ocorrência, logo se providenciou no sentido de se mobilizarem os meios operacionais, nomeadamente a partir dos recursos humanos da CART 3494. Sob o comando do ex-Cap. Pereira da Costa foi encetado um novo patrulhamento com maior incidência na zona do naufrágio, visando encontrar os corpos dos militares afogados, mas sem sucesso. Esta acção contou com o apoio de meios aéreos.

O regresso ao Xime aconteceu já de noite.


IV - CAUSAS/EFEITOS DO NAUFRÁGIO

O dia seguinte foi vivido, por todos, sob o efeito das diferentes ocorrências do dia anterior, todas elas contribuindo para um estado de espírito francamente negativo, em particular pela perda, de uma assentada, de três membros do nosso grupo, num acidente inquestionavelmente estúpido, como são todos aqueles que poderiam ser evitados. Deste modo, a angústia e a ansiedade dominaram este e os dias seguintes, desenvolvendo-se a crença e/ou a expectativa dos corpos dos desaparecidos poderem ser recuperados.
Essa crença e/ou expectativa apenas se concretizou uma vez, lamentavelmente.

Decorridas mais de trinta horas após o acidente foi localizado um corpo/cadáver junto ao Cais do Xime (imagem ao lado); era o do José Maria da Silva Sousa (o bazuqueiro).

O seu corpo estava desnudo e em processo de transformação, o que é natural neste tipo de ocorrência. O seu comprimento aumentara substancialmente, ultrapassando largamente os dois metros, assim como o seu peso, agora com valores a rondar os cento e cinquenta quilos.

Dois dias depois procedemos à realização do funeral, numa tarde de autêntico dilúvio e com direito a Honras Militares, ficando o seu corpo sepultado no cemitério de Bambadinca, conforme se demonstra na foto ao lado, cedida pelo ex-1.º Cabo Condutor Auto – Abílio Soares Rodrigues.

Durante mais alguns dias, todos os olhares estiveram direccionados para o Rio Geba, esperando que ele nos devolvesse os restantes corpos, mas em vão.
Entretanto, devido a ter-se verificado mortes e desaparecido material de guerra, foi decidido pelo CMDT do Batalhão 3873, ex-Tenente-Coronel Tiago Martins (que já não está entre nós) a abertura de um Auto de Averiguações, que decorreu durante os primeiros meses, tendo sido consultados/inquiridos os militares envolvidos neste acidente.

Treze meses depois do naufrágio – Setembro de 1973 – fomos convocados para comparecer no Tribunal Militar Territorial, em Bissau, para participar no acto de julgamento do processo, tendo como Réu o ex-Major Henrique Jales Moreira, e na qualidade de testemunhas oculares, eu próprio e o 1.º Cabo Miranda.

Tratou-se de uma nova aventura e de uma grande experiência que não gostaríamos de repetir, em função do ambiente em que decorreu.

O veredicto final do Tribunal determinou a absolvição do Réu.

Por último, resta-nos referir que esta nova história que ousei narrar sobre um tema sensível no contexto da CART 3494 / BART 3873, escrita na primeira pessoa e que agora vos dei a conhecer, ocorrida durante o projecto militar desenvolvido no CTIGuiné (1972/1974), ficará gravada indelevelmente para sempre na minha história de vida, na medida em que é difícil fazer-se o seu luto.

Em cada um dos diferentes momentos foi possível retirar lições de vida, ajudando-nos a melhor compreender os desempenhos socioculturais e sociopolíticos do ser humano.

Assim, deixo à consideração de cada um dos leitores a competente avaliação do valor do escrito e das lições que dele julguem poder retirar.

Um grande abraço para todos, e até à próxima história.
Jorge Araújo.
Agosto/2012.
____________

Notas de CV:

 (*) Vd. postes de:

3 DE ABRIL DE 2012 > Guiné 63/74 - P9698: O caso da ponta Coli, Xime-Bambadinca (Jorge Araújo)
e
 25 DE ABRIL DE 2012 > Guiné 63/74 - P9802: O caso da Ponta Coli (Xime-Bambadinca) II. Nova emboscada (Jorge Araújo)

- Vd. ainda postes do Blogue da CART 3494 & Camaradas da Guiné de:

10 de Fevereiro de 2009 > P17: Soldados da CART 3494 apanhados pelo Macaréu quando se deslocavam para OP no Mato-Cão (10AGO1972)

22 de Março de 2009 > P29: SITUAÇÃO DE RISCO ELEVADO - CART 3494 ( Xime, 10 de Agosto de 1972)
e
12 de Novembro de 2009 > P44 - Os mortos da Companhia de Artilharia 3494

- Vd. último poste da série de 1 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10216: Efemérides (106): Romagem ao Cemitério de Lavra, Concelho de Matosinhos, no dia 8 de Agosto de 2012, em homenagem aos militares mortos em campanha na Guerra Colonial (Carlos Vinhal)