Mostrar mensagens com a etiqueta marinha. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta marinha. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 8 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21982: Agenda cultural (767): Novo livro de José Matos (coautor: Mário Matos e Lemos): "Ataque a Conacry: História de um Golpe Falhado" (Lisboa, Fronteira do Caos, 2021, 170 pp., il.)


Capa do novo livro do José Matos, em coautoria com Mário Matos e Lemos. 


1. Mensagem de José Matos, membro da nossa Tabanca Grande, com cerca de 40 referências no nosso blogue:

Data - 7 de março de 2021, 4h18
Assunto - Op Mar Verde

Caro amigo

Espero que te encontres de boa saúde e em grande forma. Estou a escrever-te para anunciar a saída domeu novo livro sobre a Operação Mar Verde na Guiné em 1970. É mais um livro de História, sempre bem documentado e com algumas novidades. Espero que gostes e aqui ficam os links para uma possível compra:


Envio-te também um artigo que escrevi em francês e algum material de divulgação para que possas meter no blogue. [José Matos: "Il y a 50 ans: Opération Mar Verte: l'invasition secrète de Conacry". Marines & Forces Navales, 190,  novembre, 2020, pp. 10-13. Vd, página no Facebook; a revista em papel, é editada pelas Éditions Ouest - France.]

PS - Sobre o livro pedia-te para salientar que se trata de uma abordagem histórica à operação, ou seja, não é um livro de opiniões sobre isto ou aquilo. É que tenho visto no facebook que as pessoas falam sem saber do que estão a falar ou sem sequer terem visto o livro. O livro tem 170 páginas e está muito bem documentado, eu diria que é mesmo o melhor livro que se podia escrever sobre a Mar Verde. Fala também do antes e do depois da operação. Estou muito satisfeito com o resultado final e quando comprares vais ver que é realmente um livro de grande qualidade. (*)
__________

Ficha técnica:

Título: Ataque a Conakry: História de um Golpe Falhado
Autores: José Matos e Mário Matos e Lemos

ISBN: 9789895489268  | Ano de edição: 03-2021 | Editor: Fronteira do Caos | Idioma: Português | Dimensões: 160 x 235 x 9 mm | Encadernação: Capa mole | Páginas: 170 | Tipo de Produto: Livro | Classificação Temática: História Militar | Preço de capa: 14,75 €

 Sinopse:

Na madrugada do dia 22 de novembro de 1970, seis navios de guerra portugueses cercaram Conakry, a capital da República da Guiné, na costa ocidental africana. Aproveitando a escuridão da noite, uma força militar desembarcou nas costas norte e sul da cidade adormecida.

À frente destes homens estava um jovem oficial português, Alpoim Calvão, que tinha sido nomeado para comandar esta operação secreta, com o nome de código Mar Verde. O objectivo principal da invasão era promover um golpe de Estado na antiga colónia francesa e derrubar o regime do presidente Sékou Touré, que apoiava os guerrilheiros do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), que lutavam pela independência da Guiné portuguesa. 

Os invasores pretendiam também destruir os meios navais que os guerrilheiros e a Marinha guineana tinham no porto de Conakry, capturar o líder do partido, Amílcar Cabral, e resgatar um grupo de militares portugueses encarcerados numa prisão às ordens do PAIGC. 

A incursão acabaria por não ter o sucesso esperado relativamente ao golpe de Estado e Portugal seria condenado nas instâncias internacionais pela invasão de um estado soberano, mas esta operação ficaria na memória de muitos como a mais ousada levada a cabo durante a guerra colonial em África, embora o regime português nunca reconhecesse o seu envolvimento.

Fonte: Bertrand Livreiros (com a devida vénia)

Os Autores

José Matos - Investigador em História Militar tem feito investigação sobre as operações da Força Aérea na Guerra Colonial portuguesa, principalmente na Guiné. É colaborador regular da Revista Militar e de revistas europeias de aviação militar e de temas navais. Colaborou nos livros A Força Aérea no Fim do Império (2018); A Guerra e as Guerras Coloniais na África Subsariana (2019). É co-autor dos seguintes livros: Nos Meandros da Guerra - O Estado Novo e a África do Sul na Defesa da Guiné (2020); War of Intervention in Angola, Volume 3: Angolan and Cuban Air Forces, 1975-1989 (2020).

[Do José Matos ver,  no nosso blogue, um poste anterior sobre a Op Mar Verde (**)]

Mário Matos e Lemos - Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi jornalista da Agência de Notícias e Informações (ANI), do Diário  de Notícias e do Diário do Norte (1956-1972). Entre 1972 e 1998 desempenhou funções de conselheiro cultural e de imprensa em diversas embaixadas portuguesas. Foi diretor do Centro Cultural Português de Bissau e, fugazmente, diretor do CENJOR. Atualmente é investigador do CEIS 20, da Universidade de Coimbra. É autor de obras como Liberdade de Imprensa e Outros Ensaios (1964); Um Vespertino do Porto (1972); O 25 de Abril, Uma Síntese, Uma Perspectiva (1986); Política Cultural Portuguesa em África – O Caso da Guiné-Bissau (1999); Dicionário de História Universal (2001); Jornais Diários Portugueses do Século XX. Um Dicionário (2006); José de Melo, o Primeiro Fotógrafo de Guerra Português (2008); Oposição e Eleições no Estado Novo  (2012); 1945 – Estado Novo e Oposição – O  MUD e o Inquérito às suas Listas (2018).

__________

Notas do editor: 

(*) Último poste da série > 9 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21874: Agenda cultural (766): "A Descolonização", série da RTP com emissões nos dias 2; 10 e 16 de Fevereiro de 2021 na RTP2


(...) Finalmente sobre a [Op] Mar Verde, a decisão do [cmdt Alpoim] Calvão em retirar foi a mais acertada a partir do momento que percebe que não conseguiu eliminar a componente aérea. Fez bem em sair, agora vamos imaginar que a malta tinha apanhado os MiG em Conakry, aí o resultado tinha sido outro…

Se não fosse a incerteza dos MiG nós tínhamos dominado a capital, a cidade já estava de pantanas ao fim da madrugada e o golpe teria tido outra evolução. Foi mesmo falha nas informações… A PIDE devia ter mandado alguém para capital uns dias antes para ver o que se passava, para ver se os MiG estavam lá ou não e recolher informações…não fizeram nada disso e deu no que deu… (...) 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21244: Tabanca Grande (500): Carlos Moreno, 2º tenente da Marinha, oficial imediato da Esquadrilha de Lanchas do CTIG (1968/70): senta-se no lugar nº 814, à sombra do nosso poilão



Carlos Bonina Moreno



1. Mensagem do nosso leitor e camarada, Carlos Moreno, novo membro da Tabanca Grande, nº 814:

Data - 3 agosto 2020, 11h10

Assunto . Inscrição no blogue

Bom dia

Solicito a minha inscrição no Blog "Luís Graça e Camaradas da Guiné", que muito aprecio.

Nome - Carlos Bonina Moreno
Guiné 1968-1970
2º tenente Marinha
Oficial Imediato da Esquadrilha de Lanchas da Guiné

Com os meus melhores cumprimentos,
Carlos Bonina Moreno

P.S. - Seguem duas fotos, de antes e depois.

2. Comentário do editor LG:

Meu caro Carlos Moreno:

Sê bem vindo à Tabanca Grande. Passas a sentar-te à sombra do nosso poilão, no lugar nº 814. 

Conheces. por certo, a nossa política editorial, em dez pontos, que de vez em quando é preciso recordar:

O nosso blogue é também uma Tabanca Grande. Originalmente, chamámos-lhe Tertúlia. Tabanca é um termo mais apropriado: nela cabem todos os amigos e camaradas da Guiné.

Neste espaço, de informação e de conhecimento, mas também de partilha e de convívio, decidimos pautar o nosso comportamento (bloguístico) de acordo com algumas regras ou valores, sobretudo de natureza ética:

(i) respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem);

(ii) manifestação serena mas franca dos nossos pontos de vista, mesmo quando discordamos, saudavelmente, uns dos outros (o mesmo é dizer: que evitaremos as picardias, as polémicas acaloradas, os insultos, a insinuação, a maledicência, a violência verbal, a difamação, os juízos de intenção, etc.);

(iii) socialização/partilha da informação e do conhecimento sobre a história da guerra do Ultramar, guerra colonial ou luta de libertação (como cada um preferir);

(iv) carinho e amizade pelo nossos dois povos, o povo guineense e o povo português (sem esquecer o povo cabo-verdiano!);

(v) respeito pelo inimigo de ontem, o PAIGC, por um lado, e as Forças Armadas Portuguesas, por outro;

(vi) recusa da responsabilidade colectiva (dos portugueses, dos guineenses, dos fulas, dos balantas, etc.), mas também recusa da tentação de julgar (e muito menos de criminalizar) os comportamentos dos combatentes, de um lado e de outro;

(vii) não-intromissão, por parte dos portugueses, na vida política interna da actual República da Guiné-Bissau (um jovem país em construção), salvaguardando sempre o direito de opinião de cada um de nós, como seres livres e cidadãos (portugueses, europeus e do mundo);

(viii) respeito acima de tudo pela verdade dos factos;

(ix) liberdade de expressão (entre nós não há dogmas nem tabus); mas também direito ao bom nome;

(x) respeito pela propriedade intelectual, pelos direitos de autor... mas também pela língua (portuguesa) que nos serve de traço de união, a todos nós, lusófonos.

PS - Defendemos e garantimos a propriedade intelectual dos conteúdos inseridos (texto, imagem, vídeo, áudio...).

Em contrapartida, uma vez editados, não poderão ser eliminados, tanto por decisão do autor como do editor do blogue, mesmo que o autor decida deixar de fazer parte da Tabanca Grande.


Caro Carlos, não temos muitos camaradas da Marinha. De resto, os marinheiros  e fuzileiros eram em menor  número quando comparados com o pessoal das outras armas, e em especial do Exército (, infantes, artilheiros, cavaleiros...), A tua presença honra-nos. E vais querer, por certo, partilhar algumas fotos e outras memórias do tempo da tua comissão de serviço (1968/70).

Se me permites divulgar  mais alguma informação a teu respeito, direi que, de acordo com a tua página no Facebook, és natural da Covilhã, fazes anos a 18 de setembro e entraste em 1973 para a Escola Superior de Belas Artes, Faculdade de Arquiteura, Universidade Técnica de Lisboa, Temoa alguns, mas ainda poucos, amigos comuns no Facebook.A nossa página no Facebook é a seguintre: Tabanca Grande Luís Graça. 

Também sei que profissionalmente és arquiteto, com nome na praça. E pertenceste ao Curso de 1963, da Escola Naval, cujo patrono foi o navegador protugûês Miguel Corte Real (c, 1450 - 1502)

Com tempo e vagar, vais por certo dar-nos a conhecer algumas das tuas funções e missões como oficial imediato da Esquadrilha de Lanchas do CTIG, e reavivar as  emoções  das nossas viagens ou incursões pelos rios da Guiné, do rio Cacheu ao rio Geba, do rio Grande de Buba ao rio Corubal, do rio  Cumbijã ao rio Cacine.

Muita saúde e longa vida é o meu voto para o novo grã-tabanqueiro nº 814, Carlos Moreno, nome que passa a figurar, a partir de hoje,  na lista alfabética dos membros da Tabanca Grande, na coluna (estática) do lado esquerdo do nosso blogue. 
______________

Nota do editor

Último poste da série > 13 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21166: Tabanca Grande (499): Raul Castanha, ex-alf mil PM, CPM 3335 (Bissau, jan 1971 / jan 1973): senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 813

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20523: Notas de leitura (1252): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (39) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
O bardo descarrega as suas penas, o seu companheiro de viagem prossegue em grande círculo, vai ao início da guerra, às suas primícias, tenha o leitor curiosidade e fartas leituras o esperam, tanto para entender o que foi a ascensão nacionalista na Guiné e como cedo se impôs o pensamento de Amílcar Cabral, como para acompanhar a digressão do aparato subversivo, em ondas os insurretos foram-se formar na China e na Checoslováquia, mais tarde na URSS, muito mais tarde virá o apoio cubano, entrementes haverá notórios progressos no armamento.
Por isso aqui se recupera as memórias do "Homem Ferro", um fuzileiro que conheceu a subversão desde 1962, por muitas andanças, em 1963, se apercebeu do alastramento da guerrilha e dos seus focos poderosos.
E aqui também se fala da CCAÇ 675, em 1964 encontraram Binta como território onde agentes do PAIGC se deslocavam folgadamente. Os reforços portugueses foram chegando a conta-gotas, revelar-se-ão insuficientes para estancar a dispersão da guerrilha.
A lira do bardo tem acordes de sofrimento, temos toda a vantagem em tentar perceber os ventos que sopram da guerrilha.
É o que aqui se faz.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (39)

Beja Santos

“Dois colegas com azar
os seus dias terminaram.
O pessoal do Batalhão
grande mágoa passaram.

Para serem tratados
os médicos os examinaram
e algumas chapas lhes tiraram.
Sendo ambos operados
alguns dias foram passados
e soro começaram a levar.
Fartaram-se de penar
com os sofrimentos de gravidade
e foram para a eternidade
dois colegas com azar.

O Francisco António foi o primeiro
que a morte levou.
O António Amaro, desmoralizado
ao ver a falta do companheiro,
o 1.º Cabo e o Furriel enfermeiro
a falar o reanimaram.
A verdade não lhe contaram
para ver se ele não esmorecia.
Mas como o azar o perseguia
os seus dias terminaram.

Este último se aguentou
quarenta e seis dias a sofrer.
Mas começou a emagrecer
porque a hemorragia não estancou.
De dia a dia piorou
levando muita injeção.
A 10 de maio se soube então
que o último suspiro deu.
Pois ele e o Francisco comoveu
o pessoal do Batalhão.

Os pais com aflição
souberam que os filhos tinham morrido.
Pois lançaram grande gemido
naquela região.
Perto da mesma povoação
estes rapazes se criaram
para o Ultramar abalaram
despediram-se com suspiros e ais
e no fim do tempo seus queridos pais
grande mágoa passaram.”

********************

Continua a litania dos padecimentos, o bardo não pára de trombetear desaires e agonias, parece que todo o Batalhão está exposto às mais rudes provas. É nisto, por contraste, que este companheiro do bardo vasculha esta nova guerra da Guiné na sua fase primigénia e encontra um relato sobre os primórdios da luta armada, até ao seu desenvolvimento. Dele já fez referência em obra sua com parceria, intitulada “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: um roteiro”, Fronteira do Caos Editores, 2014, tem a ver com as memórias de um combatente intitulada “Homem Ferro”, seu autor é Manuel Pires da Silva, responsável pela edição, com data de 2008. Tem-se sempre em conta que o leitor é leigo, iniciou-se nestas leituras da guerra da Guiné, procura compreender como desabrochou o conflito na área militar, mais complexo é explicar que houve uma prolongada germinação do nacionalismo, formaram-se diferentes partidos, em 1959, Amílcar Cabral em reunião com outros companheiros do Partido Africano para a Independência, tomaram decisões de fundo, Rafael Barbosa e outros ficaram no interior da Guiné em subversão, Cabral e outros partiram para Conacri para encontrar apoios que dessem incremento sério à guerrilha, como veio a suceder, o mesmo Cabral capitaneou os grandes debates com forças concorrentes, o PAIGC, a partir de 1965, foi reconhecido como a força categórica e exclusiva na frente da libertação nacional. Vejamos agora o que viveu um jovem, a partir de 1962, é um relato que dá muito para pensar.

As memórias do fuzileiro Manuel Pires da Silva trazem surpresas, uma delas é abrir novas perspetivas ao que se passou na Guiné em 1962, ninguém desconhece que as investigações dirigem-se sempre para os acontecimentos a partir de Janeiro de 1963, insista-se que há como que uma nebulosa sobre os preparativos da subversão e a respetiva resposta do lado português. Manuel Pires da Silva conta-nos como se fez marujo, ele levou uma vida atribulada em Vale de Espinho, concelho do Sabugal, mourejou no campo, trabalhou com o pai numa oficina de carpinteiro de carros de bois, andou a furar batentes de portas com martelo e formão, fez a instrução primária, andou no contrabando e apanhou alguns sustos. Adolescente, veio com o irmão mais velho para Lisboa, deram-lhe trabalhos de construção civil, foi depois carpinteiro de cofragem, sentia-se desalentado, queria ir mais longe. Inscreveu-se na Marinha, fez a recruta em Vila Franca de Xira, aos 17 anos era segundo-grumete voluntário. Em 1961, foi frequentar o curso de Fuzileiro Especial, recebeu a boina.

É incorporado no DFE 2, destinado à Guiné, ali chega em Junho de 1962. Que missões tiveram? Fazem guarda ao Palácio do Governador, levam prisioneiros do PAIGC para a Ilha das Galinhas, são mandados para o Sul, onde o PAIGC já desencadeava ações de sabotagem. A primeira operação de reconhecimento visava obter informações das gentes das tabancas de Campeane, Cacine, Gadamael Porto, entre outros lugares; seguem depois para Bula, havia fortes suspeitas de guerrilheiros infiltrados naquela zona. Descreve o efetivo da Marinha, ao tempo. O DFE 2 é pau para toda a obra: operação em Darsalame; vão ao rio Corubal em lanchas de fiscalização, “chegam às tabancas e só vêem velhos, mulheres e crianças, que fogem para todo o lado. Rebentam-se canoas, interrogam-se pessoas, mas ninguém sabe nada”. Em Dezembro, vão até Caiar. “Quando se tentava contactar com a população da tabanca, surge o tiroteio, o primeiro contacto com as armas de fogo do inimigo. O comandante é ferido no pé direito, tendo sido o primeiro fuzileiro ferido em combate”. Pouco antes do Natal, voltam ao rio Corubal, os botes são postos na água e sobem o rio. “Passada cerca de meia hora após largar do navio, ouvem-se rajadas de pistola-metralhadora”. E escreve mais adiante: “A situação agravava-se de dia para dia. O Comandante-Chefe andava preocupado, pois Lisboa não mandava reforços suficientes. Esta preocupação era partilhada pelo Comandante da Defesa Marítima, Capitão-de-Fragata Manuel Mendonça”.

Em Março de 1963, fazem batidas nas áreas de S. João, Tite e Fulacunda, no mesmo mês em que os guerrilheiros se apoderaram dos navios “Arouca” e “Mirandela” perto de Cafine. A situação agrava-se no rio Cobade e Cumbijã, os guerrilheiros atacam ousadamente as embarcações. Na sequência do acidente aéreo que vitimou um piloto e levou à captura do Sargento-Piloto Lobato, os fuzileiros bateram a zona, encontraram o cadáver do piloto sinistrado e os restos do avião. “Os guerrilheiros tinham a população do Sul completamente controlada. Os fuzileiros estavam ali sozinhos a remar contra a maré”. Em Julho, com o apoio de um pelotão de paraquedistas, passam Gampará a pente fino. É nisto que foi necessário acudir na área do Xime, todos os dias há fugas para o mato; no mês anterior, foram até à tabanca de Jabadá, tendo sido recebidos a tiro. O inimigo já desencadeia ações violentas a partir da mata do Oio. “Entretanto, a ilha do Como começa a tornar-se intransitável devido à presença dos guerrilheiros”; a tabanca de Jabadá continua em pé de guerra, a aviação lança bombas de napalm, para intimidar os guerrilheiros, o destacamento desembarca e só encontra velhos e miúdos feridos. A guerra surge à volta de Porto Gole, o inimigo não se deixa intimidar e reage com muito fogo, os fuzileiros sentem-se encurralados, aproveitando uma aberta, eles retiram e pedem apoio da aviação. No dia seguinte voltam, desta feita assaltam o objetivo. “Quando o bombardeamento pára, o destacamento arranca para o assalto final. Depara-se com mais de 50 casamatas, algumas crianças feridas, a chorar, e dois ou três velhos, também feridos. Registam as informações que eles querem dar”. Quando estão a retirar, recebem instruções da aviação, um grupo de guerrilheiros voltou ao objetivo. Os fuzileiros conversam entre si, tanto esforço e o inimigo não se apresenta. A seguir a este relato, o DFE 2 anda numa completa dobadoira, seguem para Gã Vicente e descobrem um novo inimigo, as abelhas. Por esse tempo vão chegando à Guiné mais reforços, o DFE 7, mas a subversão ultrapassa a capacidade de tomar sempre a iniciativa, a fazer fé em tudo quanto ele escreve, o Sul não dá parança. O que está hoje historicamente provado, e muito bem documentado. Em Novembro, é por de mais evidente que o PAIGC controla as ilhas de Como, Cair e Catunco. A resposta é a operação Tridente em que o DFE 2 participa. O DFE 9 chega em finais de Fevereiro.

Tudo se agrava no rio Corubal, as embarcações são constantemente alvo de emboscadas, atacam a navegação na Ponta do Inglês, e mesmo no canal do Geba. Volta-se à península de Gampará, vão com o apoio de forças terrestres, conclui-se que o inimigo não estava até então implantado no terreno. E depois atacam Cafal Balanta, Cafal Nalu e Santa Clara, há fogo do inimigo que só deixa de reagir quando chegam os T6. E no mês de Junho acabou a guerra para o DFE 2. Ele volta à metrópole, à Escola de Fuzileiros, é convidado para dar instrução. E em Outubro de 1965, lá vai Manuel Pires da Silva no DFE 13 a caminho de Luanda.

Vamos agora mais adiante, ao Diário da CCAÇ 675, a Companhia do Capitão do Quadrado, quando chegaram em meados do ano de 1964 à região de Binta, encontraram tudo em estado de sítio, já se fez referência à sua mentalidade ofensiva, o Capitão do Quadrado foi ferido e está hospitalizado em Bissau, a unidade militar em agosto nomadiza até Guidage, no fim do mês regressa o Capitão do Quadrado e em setembro recomeça a polvorosa, golpes de mão, patrulhamentos, batidas.
Também o furriel-enfermeiro é poeta como o nosso bardo, deixa um sinal dos seus afetos numa publicação de caserna, abre com versos melancólicos, lágrimas de despedida lá no cais, são os dias de viagem até à Guiné, ele questiona:  
“Viverei? Voltarei a ver os meus? A Pátria Querida?”.

E despede-se com versos confiantes, animosos:
“À dúvida, ao desânimo, seguem-se a segurança, a fé;
O dever do bom português é mais forte. Vamos lutar,
As dificuldades, os sacrifícios vencem-se de pé.
Mais fortes, mais homens, com honra havemos de voltar.

E quando chegar esse dia ansiosamente esperado,
os vossos corações alvoraçados, delirantes
Voltarão a descortinar no cais festivo, engalanado,
Sorridentes mães, esposas, noivas, felizes como dantes.”

Mas ainda há muito que contar desta Companhia. E um dia destes, pasme-se, chega a hora do BCAV 490 ir para território menos atribulado. Bissau espreita, o estado de ânimo do bardo dará sinais de uma candura, de um rejuvenescimento que desconhecíamos desde aqueles tempos em que a grande questão era a má comida da recruta.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 27 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20504: Notas de leitura (1250): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (38) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20514: Notas de leitura (1251): “Dias Sem Nome, Histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, por João Trindade; By the Book, edições especiais, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20038: Escritos do António Lúcio Vieira (2): De novo o tempo se quedou... (Excerto do livro "O Mouro da Praia da Foz")


Guiné > Região do Cachei > Rio Cacheu > c. 1966/1967 > Destacamento de São Vicente, ligando Bula a Ingoré.  Uma LDM [, a 308,] da Marinha fazia a cambança do rio Cacheu. Na foto, o Lúcio, à direita, com o Miranda e outro militar.

(...) Estive seis meses de intervenção em Bula e 17 meses em Ingoré, na fronteira norte com o Senegal. Daí conhecer muito bem as passagens em João Landim e S. Vicente- (...) O Machado era um dos vários exemplares da Companhia [, a CCAV 788 / BCAV 790, Bula e Ingoré, 1965/67], com aptidões variadas. Uma delas era exactamente a apetência para dar nas vistas. Representava, como poucos, as cenas mais desconcertantes que possas imaginar. As vítimas, muitas vezes, eram os "maçaricos" das Companhias que "estagiavam" connosco, tanto em Bula, como depois em Ingoré.

[...) Trata-se de uma barraca do pequeno destacamento da Marinha que ali assegurava a manutenção da LDM que fazia a travessia do rio. Vejam-se mensagens e os "autógrafos" que a rapaziada lá ia deixando, "grafiatadas" nas paredes"! (...): "Visite o hotel Bandalho",  "LDM 308 C/M Rego", "Coruche, 31-1-66", Parque de Nudismo"...

Foto (e legenda): ©Lúcio Vieira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Carta da Província (1961) > Escala: 1/500 mil > Posição relativa de São Vicente, no rio Cacheu entre Bula e Ingoré. Hoje há uma moderna ponte, de tecnologia e construção portuguesas, em São Vicente, no Rio Cacheu, É a chamada "euroafricana" (*)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)



Guiné-Bissau > Região do  Cacheu > Rio Cacheu > Ponte de São Vicente (ou ponte Euro-Africana). Início da construção construção em 2007.


Guiné-Bissau > Região do  Cacheu > Rio Cacheu > Ponte de São Vicente (ou ponte Euro-Africana), em betão armado, com 670 metros de comprimento, inaugurada em 2009. A construção esteve a cargo da portuguesa Soares da Costa.

Fotos do geólogo e fotógrafo Pedro Moço, autor do blogue "Construção da Ponte de S. Vicente - Guiné.Bissau" (com a devida vénia).


António Lúcio Vieira, ex-fur mil,
CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67)
DE NOVO O TEMPO SE QUEDOU - Nenhum acto é mais irracional que a morte de um ser humano às mãos de outro (**)

por António Lúcio Vieira (***)

Os contornos alaranjados, de um sol que prometia calcinar, surgiram por entre as copas do mangal. A um sinal do guia, a coluna parou. Embora soprasse uma brisa fresca, naqueles derradeiros dias da época das chuvas, quando as temperaturas se tornam impiedosas, os corpos transpiravam abundantemente, como resultado da longa  caminhada nocturna, de muitas horas. Por isso parámos.

Daí a pouco – diziam-nos a experiência e os sentidos – as aves acordariam com o som infernal das rajadas e rebentamentos e nenhum homem podia estar fisicamente cansado, quando entrasse no mortífero jogo. olhámos uns para os outros, em busca de reacções, mas os rostos denotavam a mesma frieza e impassibilidade de tantas outras ocasiões anteriores.

Estávamos, “apenas”, mergulhados em mais uma operação de assalto a um reduto inimigo, desta feita na região de Zinguichor, na linha de fronteira com o Senegal. Só isso. E isso era o que de mais vulgar nos podia acontecer, naqueles estranhos dias, no mato húmido e ardiloso da Guiné. Havia já tanto tempo que vestíamos a pele de guerrilheiros experimentados, que as recordações dos dias banais quase se haviam desvanecido. Porquê preocuparmo-nos agora com um acontecimento, tão aparentemente banal, como pode ser um desafio à morte?

A guerrilha transformara-se, com a rotina permitida pelo tempo, num indelével estigma da nossa existência: um poderoso e inebriante elixir, que nos provocava os sentidos, com desusado vício, e uma quase constante sensação de embriaguez. Tratava-se, afinal, de mais um banal desafio às nossas capacidades e nenhum de nós sabia porquê, nem de que modo, se recusam assim os levianos desafios de vida e morte. A voz do capitão soou no AVF, num aviso sussurrado e lacónico: “Entrámos na zona do objectivo. Máximo silêncio, progressão fantasma”.

Lentamente, com mil cautelas, de olhos e sentidos despertos, recomeçámos a caminhada, agora medindo os passos e as sombras, já de armas em riste e prontas a  iniciar acção de fogo. À frente a atrás da coluna, sentiam--se os olhares de muitas dezenas de homens perscrutando a barreira verde-densa, que ornava as margens da picada, sinuosa e atapetada de ramos e folhas secas. Da progressão de mais de centena e meia de militares, apenas pairava no ar um breve quebrar abafado, provocado pelas folhas secas esmagadas pelas botas de lona.

O pesado silêncio que se abatera sobre a mata – dizia-nos o saber adquirido – não augurava nada de bom. Cherno, o experimentado guia fula, sábio na leitura de pistas e sinais, agitava-se, inquieto e olhava-nos, a espaços, com uma estranha expressão que nunca antes lhe vira. Um pouco adiante, ao dobrar um pequeno renque de cajueiros, a testa da coluna entrou em zona menos arborizada, pejada de mato rasteiro e bordejada por um pequeno mangal. Bruscamente, uma estreita barreira de capim anunciava o fim da savana. À nossa frente, em semicírculo, perfilava-se de novo a mata densa, de árvores enormes, de musculados troncos. Entre a parede de capim e a fronteira da mata, abria-se uma extensa clareira, demasiado extensa e aberta, como as suspeitas e o temor que nos assaltaram.

Quando as primeiras rajadas de pistola-metralhadora acordaram o silêncio, lançadas raso ao solo por duas sentinelas entrincheiradas em abrigos individuais, os homens da  frente, na testa da coluna, atingiam a orla da mata. Era uma ratoeira. Apercebemo-nos da situação no primeiro instante, quando o fogo inimigo começou a esventrar o solo à  nossa volta, abrindo, com incessantes rajadas, caprichosos sulcos mortíferos, como bichas-de-rabear, que nos zurziam aos ouvidos, se infiltravam enfileiradas no chão, quais formações de formigas e nos contornavam os corpos deitados, como se batucassem uma ritual dança de morte.

A mata à nossa frente abria-se em apertado circulo e o inimigo acoitava-se aí, em todo o redor da “ferradura”, a coberto dos trocos espessos e, lá no cimo, dissimulado na ramagem frondosa das imponentes árvores centenárias. No meio, desprotegidos na calva clareira que a mata envolvia, estávamos nós. Expostos e vulneráveis.

O matraquear medonho das armas esboçava uma visão de apocalipse, abalando-nos o âmago e acordando-nos de novo para a eminência do perigo que, em tantas ocasiões semelhantes, de imediato nos tornava animais acossados. E era desse medo, estranhamente inconsciente, porém controlado, que germinava um quase sobre-humano, levianamente inevitável e incorrigível, desprezo pelo silvar das balas, com que, persistente e com demasiada eficácia, tentavam silenciar-nos.

Era imperiosa uma leitura serena da situação e uma tomada urgente de decisões, antes que os morteiros 82, dos artilheiros do PAIGC, corrigissem o ângulo e a Companhia de Infantaria, recém-desembarcada em Bissau – que nos reforçava a retaguarda, naquele que foi o seu baptismo de fogo – se visse envolvida pelos experimentados guerrilheiros guineenses.

O capitão mandou assim avançar o grupo de assalto “Os Dragões”, para envolvimento pela direita, enquanto me ordenava que deslocasse, pelo flanco esquerdo da ferradura, os homens dos “Craques”, numa tentativa de espartilhar os elementos mais avançados do inimigo.

À minha frente, o Jaime, um dos mais hábeis artilheiros do meu grupo, praguejava com a Dreyse, que se encravara, enquanto, muito perto da minha posição e à ilharga dos homens sob o meu comando, o recém-transferido Furriel Miranda, surpreendentemente calmo, acendia um cigarro e percorria com o olhar as copas das árvores, em busca de alvos. Impressionava a frieza e domínio daquele moço cabo-verdiano, serenamente sorridente e despreocupado.

Do interior da mata, ceifando capim e descarnando arbustos, soavam novas rajadas, por entre as quais se distinguia, com enervante nitidez, o cantar irritante de duas metralhadoras ligeiras, estrategicamente instaladas nos flancos da mata. A escassos metros dos homens do meu grupo, o “Aranha”, artilheiro-mor dos “Dragões”, procurava raivosamente silenciar uma delas, à morteirada – com o morteiro 60 abraçado junto ao sovaco, em posição de tiro tenso – e com a destreza e o sangue frio que toda a Companhia lhe reconhecia.

Ao segundo disparo, a metralhadora suspendeu o matraquear e, como que obedecendo a um sinal, todas as armas, de ambos os lados do campo, se calaram. Um manto impressionante de silêncio desceu na mata e envolveu tudo e todos. Olhei em redor os homens do meu grupo, em busca de feridos. Ilesos, dispersos pelo chão, acoitando-se à protecção de troncos caídos, ou nos pouco numerosos morros de baga-baga – altas formações de rijo barro, construídas pelas vorazes colónias de formiga salalé – rompiam com o olhar a densidade da mata, tentando adivinhar as sombras e os segredos, que se aprestavam para um confronto que, do outro lado do bosque, se suspeitava persistente e se tornaria, se necessário, desprendida e pacientemente longo.

Sentia-se, em muitos daqueles jovens militares, uma inabalável decisão, uma quase  teimosa valentia, denunciadas pela estranha tranquilidade nos rostos e nos gestos. Homens, tão arreigadamente decididos, quase sempre aldeões, tão cedo e tão abruptamente arrancados ao conforto materno, viam-se movidos, quantas vezes sem sequer entenderem princípios e razão, para as malhas de obstinados interesses, tão distantes e desligados dos sonhos de futuro, com que, no dia-a-dia, alimentavam a pacatez da arrastada existência, que ao povo humilde coubera em sorte.

Quase sempre, também, sem um gesto de revolta, sem uma palavra de raiva, sem um arredar da barricada, sem comida e sem água, tanta vez, sem uma lágrima de desespero. Sem pernas, sem braços, quantos deles; sem futuro nem esperança: outros ainda sem vida.

Alguns metros atrás, no flanco direito da orla da mata, o furriel enfermeiro, irrequieto madeirense, gracejava, enquanto acudia ao braço do Cabo “Mané”, riscado por uma bala, felizmente sem sorte. Mesmo ali, enquanto dispersas salvas de rajada, mantinham vigilantes as forças em confronto, o funchalense Ilídio – meu particular companheiro de ócios e perigos – mantinha o apurado e incorrigível sentido de humor, que o distinguia no conjunto da Companhia, enquanto se entregava à nobre tarefa de sarar os corpos dos homens no terreno.

Escolhi esse momento para me levantar e correr para um abrigo melhor, que vislumbrara pouco antes, formado por um tronco caído, junto a um trilho, trinta metros  adiante. Mal me havia erguido do chão quando, de uma árvore próxima, saiu uma curta rajada e depois outra mais longa. A primeira cravou-se no extremo do tronco onde antes me abrigava: a segunda, alguns metros adiante, levantou um sopro de poalha acastanhada, quando se cravou num morro de salalé, onde um dos homens do meu grupo pouco antes se havia recolhido.

Corri a trintena de metros, em busca de melhor local para me acoitar, enquanto disparava pequenas rajadas para as copas de duas das árvores, de onde me visavam. Mas os meus disparos já não se ouviam, confundidos na macabra sinfonia do estouro das muitas armas dos rapazes da frente. Recomposto, o “Mané” aprontara já o morteiro 60 quase na vertical, soltando-lhe, logo depois, uma granada. Segundos volvidos, o projéctil mergulhava na copa do bissilão, fazendo saltar ramos e folhas, pedaços de tronco, carne humana e metal.

Depois, o silêncio abateu-se de novo. Pelo ANGRC9 a troante voz de tenor do capitão perguntava se os T6 estavam demorados. Respondeu-lhe o comandante da pequena esquadrilha, avisando da chegada do apoio aéreo ao objectivo em cerca de três minutos. E pedia coordenadas para o lançamento das bombas. No alto, sobrevoando  a zona, a bordo da pequena Dornier, o comandante de batalhão informava: “Abutres na zona”. O Poiares afastou, por momentos, o ouvido do AVF, olhou-me e gritou: “Estão a chegar os aviões. Ouvi agora no rádio”.

Não tardou o som tonificante dos motores dos dois T6 da Força Aérea. Localizado o alvo, picavam, em sucessivas passagens sobre o denso bosque, com manobras de voo rasante, libertando das asas cargas mortíferas, que afundavam crateras e mutilavam árvores e homens, enquanto as armas ligeiras, dos efectivos do PAICG, disparavam descoordenadamente sobre eles, tentando abatê-los. Tudo em redor pareceu eclodir, num apocalíptico derrocar da própria natureza e das vidas que ali se acoitavam.

Respirámos fundo, por escassos momentos. Aliviados de munições, os Harvard T6 rumaram à base em Bissalanca, deixando no seu rasto, para além de sementes da morte, um estranho e cavado silêncio. Pelo rádio chegou o aviso de que as munições  dos “Dragões”, que ocupavam a frente da flecha, ameaçavam esgotar-se. A uma ordem do capitão, o meu grupo e o do Furriel Miranda avançaram. Possuíamos um resto de munições e era-nos ordenado que reforçássemos a vanguarda, na zona mais próxima da primeira linha da guerrilha africana, dissimulada na mata. Cerca de trinta homens apenas, naquela ponta da flecha e uma, preocupantemente reduzida, reserva de munições. Ninguém, no seio dos dois pequenos grupos de assalto, queria pensar no que aconteceria quando, balas e granadas, do nosso escasso grupo de homens, se acabassem.

Éramos, nas circunstâncias, a derradeira esperança de romper a passagem e fazer recuar a força sitiante, após horas de confronto, sem avanços, nem vislumbre de saída daquela armadilha em que, mesmo após a eternidade de uma já longa experiência de guerrilha, havíamos ingenuamente caído.

Algures, já em “chão francês” – como ainda, muitos anos após a independência, era apelidado o território senegalês – na orla da densa floresta, por entre pragas e gritos, sentíamos a movimentação dos homens acoitados na mata, deslocando apressadamente para a retaguarda, nos subterrâneos da base de Zinguichor, situada a escassas dezenas de metros, os mortos e os feridos, que a acção conjunta das forças no terreno e os aviões bombardeiros haviam causado.

Era aí, na referenciada base, agora estrategicamente instalada centenas de metros para o interior, em recém-construído conjunto de instalações e estreitos corredores, dissimulados no subsolo, onde não faltava um improvisado hospital de campanha, que se havia apontado o objectivo da missão. E era a segunda vez que as nossas forças demandavam o local, meses antes arrasado, aquando de uma primeira incursão à estratégica base inimiga.

Algures, alguém pedia desesperadamente um helicóptero, para evacuação de feridos. Na “DO” de comando, que sobrevoava a zona, estava-se por certo a pedir à torre de controlo de Bissau o apoio aéreo, porque, durante breves minutos, nenhum som se ouvia no auscultador do meu rádio. Quando o silêncio pouco depois foi quebrado, a voz serena do comandante Calado restabelecia o contacto, informando que o heli se dirigia a norte, rumo ao objectivo, na zona de fronteira onde nos encontrávamos.

Logo depois vi o Morais, em terreno aberto, deitado sobre um ensanguentado braço esquerdo, que a outra mão amparava. Quando ao longe se destacou a silhueta do helicóptero, chamei o cabo enfermeiro, indiquei-lhe a posição do ferido e ordenei aos homens que avançassem para a língua de bolanha à nossa esquerda, onde se montaria a segurança para a aterragem. Era um local ornado de palmeiras esguias e de frondosa ramagem, alto capim e arbustos flexíveis, que dificilmente se deixam quebrar. Não era a posição ideal para o pouso, mas a urgência da evacuação de, pelo  menos um dos feridos e a proximidade das forças adversárias, não permitiam escolha melhor e mais segura.

Metros atrás, no interior da “ferradura” da clareira, dispersas pelo chão, o grosso das nossas forças vigiava. Estava-se, claramente, numa fase de mútuo estudo de estratégia, durante a qual apenas pequenas rajadas, ou tiros isolados, quebravam o silêncio e mantinham atentos os atiradores de ambos os lados. O mato estendia-se a todo o espaço que a vista abrangia, da orla do pântano à densa floresta ao longe, que uma névoa difusa só agora, várias horas após a nossa chegada, aparentava dissipar-se. Aproximávamo-nos de meio do dia e o chão queimava. Reflexos castanho-avermelhados rodopiavam ao sol, espelhavam nos caules de capim e nas águas lodosas do braço pantanoso da bolanha.

Quando o heli, numa súbita elipse, se aproximou do solo, o vento levantado pelas pás do hélice envolveu-nos numa onda de frescura. Do interior do aparelho saíram o mecânico e uma, estranhamente calma, enfermeira paraquedista. Escassos minutos após o pouso, enquanto da mata os homens do PAIGC metralhavam a zona onde nos encontrávamos, numa tentativa de abatê-lo, o aparelho elevou-se no ar, num quase acrobático salto, brusco e veloz, levando a bordo um primeiro grupo de feridos. Antes, porém, deixara-nos o mais desejado dos presentes: garrafões de fresca água e cunhetes de munições de G3, de Dreyse, de morteiro e bazooka.

Decorreu uma silenciosa eternidade. As munições recém-chegadas distribuíam-se pelos homens, em breves lances de corrida, quase sempre acompanhados por curtas  rajadas de cobertura. Entretanto, quase sem nos apercebermos, o Alouette III regressava, terminando a evacuação dos feridos. Concluída a missão de segurança, atravessámos, em sentido inverso, a estreita língua de pântano, agora sob uma mais cerrada barreira de fogo da guerrilha. As granadas de morteiro caíam à frente e atrás de nós, erguendo cogumelos de lodo e água pestilenta e poupando, milagrosamente, o punhado de homens, que me seguiam de volta à zona da clareira que nos fora destinada.

A bolanha ali era pouco profunda, porém o facto de estarmos enterrados nela até quase aos joelhos e com as botas encalhadas no fundo lodoso e movediço, criava-nos  uma incómoda sensação de aprisionamento. De pé, quase sem capacidade de movimentos e à mercê das balas que, do interior da mata encetavam nova flagelação, tentávamos desesperadamente encetar uma resposta. “Tá um gajo de camisa verde naquela árvore, meu furriel!”- gritava o China, enquanto disparava na direcção do atirador furtivo, que se dissimulara com a ramagem, na forca formada pelo tronco. Na frente, bem no interior da ferradura, já se respondia de novo às armas do PAIGC, que pouco depois voltaram ao silêncio.

Era, porém, um silêncio pesado e angustiante, que nem as aves ousavam quebrar. um silêncio que se elevava no espaço, que parecia subir velozmente rumo ao céu, como se fosse uma maldição, ou uma prece. Mas foi efémero. Daí a pouco, por entre gritos e pragas, as forças inimigas voltaram a disparar.

Abateu-se o céu naquela antecâmara do inferno, dividida pelo espaço aberto da clareira e a fiada de árvores que escondiam a floresta. o estrondo enorme de todas as nossa armas e a consciência de que não estávamos dispostos a ceder, deve ter abalado a moral dos homens na mata porque, pouco depois, os sentimos recuar. Sabíamo-lo porque os tiros nos chegavam agora mais dispersos e distantes.

Entretanto, reabastecidos, os aviões voltaram a rasar o terreno, lançando, uma e outra vez, pesados projecteis, que abalavam a mata até às vísceras. Era uma estranha e assustadora melopeia, que se esbatia, lá longe, em ondas sucessivas. o Micas olhava os enormes pássaros de fogo, com uma expressão quase patética, enquanto gritava, eufórico, naquele seu jeito de dizer as coisas que, mesmo ali, às portas do inferno, arrancava sorrisos aos companheiros.

Era o espectáculo da morte, no seu apogeu, traduzido em nós como algo de imponente e cruelmente tonificante. O nosso primeiro objectivo era a própria sobrevivência e os T6 estavam, decididamente, a contribuir profundamente para a conseguirmos. Era isso, afinal, a premissa de todas as guerras, dos grandes conflitos às curtas escaramuças; das legítimas, onde se defende o berço, o sangue e os haveres, às movidas por obscuros interesses de hegemonia e de conquista.

Enquanto os T6 cumpriam o ritual do extermínio, em bombardeamentos retaliatórios, sentado junto a um morro de baga-baga, um cigarro tremulando entre os dedos, todo esse incómodo desfiar de ideias me atormentava a mente e repercutia no cérebro, quase tanto como o estrondo das bombas lançadas pelos Harvard, a escassos cem metros do meu improvisado abrigo. Quando nos levantámos para o assalto, cumprindo a clássica acção de busca e recolha na mata, após o som dos aviões se ter perdido para os lados do Cacheu, o equipamento pesava-nos como chumbo. A lama e o lodo,  colados ao camuflado e ao corpo e a quase incapacidade de raciocínio, inspiravam-nos laivos de inquietante irracionalidade e desvario.

E isso notava-se bastante mais quando riscávamos os olhares uns pelos outros, sem nos atrevermos a fitar demoradamente os companheiros de missão, de infortúnio, porém de sobrevivência. Autómatos, como muitos de nós pareciam ter por condição, naqueles decisivos momentos da existência. Filhos retirados às mães, perdidos num turbilhão fervente de decisões e tratados e manobras, de uma política que nenhum aprendera a ler e da qual muito menos sabia os reais motivos.

Entrámos, cautelosos, afoitando a densidade da floresta. A frescura provocada pelas sombras da mata colidiu connosco, fazendo-nos sentir, por breves instantes, seres humanos. Mas foi curto o fragor da sensação. A visão apocalíptica dos corpos mutilados, ou totalmente desfeitos, por onde o sangue ainda abundantemente se derramava, regando a terra e ceifando o que de vida lhes restava, ribombou aos nossos olhos.

Ali nos confrontávamos com o cru dilema e nenhum de nós era capaz de discernir o que os nossos olhos viam: se peças de uma máquina desfeita pelo homem, se o próprio homem esmagado pela máquina. No fundo, para as estatísticas oficiais, tratava-se apenas de, fria e levianamente, inimigos abatidos, números para constar nos relatórios, com que os feitores da guerra – habitualmente alheios às dores e traumas dos conflitos – geriam a sorte dos que matam e dos que morrem.

Autómatos, como então pensei, sorriamos, incredulamente renascidos, esquecidos já de perigos e canseiras, mesmo na presença daquela tão cruel e irreparável visão da morte. No chão, cadáveres ou moribundos, deixados para trás, jaziam homens cujo crime se resumia à ignomínia de terem nascido na sua própria terra, a uma teimosa vontade de liberdade, de viverem e morrerem naquele chão que os parira e alimentava, livres de opressões e de destinos alheios.

A acção da guerrilha, sabíamo-lo pela propaganda do movimento, não visava o povo dominador e menos ainda o dominado, que aceitava o jugo, o alvo eram os teimosamente cegos e insensíveis poderes instalados em Lisboa, que rodeavam de grilhetas todos os pulsos e todos os destinos do povo. Pior; dos povos. Sofria-se, “do Minho a Timor”, um longo e desgastante cativeiro, disfarçado, além fronteiras, pelo folclore e pela psicossocial. “Não voltaremos a ser um campo de trabalhos forçados”,  ecoava nas palavras serenas, determinadas e contidas de Amílcar Cabral.

Açoitavam-nos a mente as avisadas palavras dos líderes da guerrilha. os panfletos de propaganda, recolhidos nas tabancas, ou de mistura com o espólio capturado em bases inimigas, açoitavam-nos os olhos e as palavras transmitidas via rádio, a partir de Conacri, invadiam-nos as horas de sono e latejavam-nos na mente, tanto quanto as granadas, que se abatiam sobre a débil moral dos homens, nos esventravam abrigos e casernas e nos minavam a resistência. Que luta aquela e o que fazia, naquela distante terra de outras gentes, a juventude de um país que apenas ambicionava viver solidária e, se possível, feliz. E em paz.

De casa, bem longe, chegavam aerogramas; palavras pungentes, escritas com tinta de lágrimas, linhas de trémula caligrafia, por entre as banais consultas sobre a saúde e o bem-estar, no habitual tropel de interrogações, se queria saber se “já cá vens passar o Natal?”.

Nos homens quase em fim de comissão, prenhes de incertezas, vazios de destino e de futuro; homens de brandos costumes, cansados de guerra e de medos e raivas, os silêncios, mais do que gritados nas entrelinhas das cartas, sentiam-se nos rostos e nos olhares vazios, nos desalentos, de quantos sabíamos não poder responder a muito do que, na longínqua e descuidada “Metrópole”, nos perguntavam os do nosso sangue e os do nosso afecto: os da nossa raça.

E era maior o sentimento de frustração quando, junto às perguntas para as quais, de todo, desconhecíamos resposta, se juntavam as respostas que a prudência aconselhava a evitar. Tal como o amor, imortalizado por Camões, também as palavras, escritas ou faladas, chegadas aos ouvidos atentos dos que, na sombra, “zelavam pela defesa do Estado”, mesmo ali na antecâmara da morte, eram algo que soava como um perigoso “fogo que ardia sem se ver”, uma geração inteira, o sangue novo, generoso e  fértil da juventude de um país, levado em porões de navio para terras que não sabia, sofria amordaçado a sina de ser povo e os caprichos de quantos, muito antes ainda de ter nascido, lhe traçaram o destino e lhe ameaçaram a existência e o futuro.

Pensava-se em tudo isso, numa amálgama confusa de sensações e sentimentos, de razões e motivos, que nenhum de nós, em verdade, conseguia conscientemente entender. Embarcaram os melhores filhos de uma nação em porões de barcos e eles foram. Decretaram-se neles ordens de matar ou, heroicamente morrer. E os filhos do povo, que já tanto sofria na carne a agrura de ser cativo na sua própria terra, partiram, tão espiritualmente vulneráveis, como galhardamente afoitos. Matando, muitos deles; morrendo, ingloriamente, outros tantos. Crianças, há tão pouco, tantos de nós por ali errantes, por entre os nevoeiros da vida, procurando nortes e caminhos, sem saber, quantas vezes, que passos encetar em busca de futuro e sorte.

Pensamentos que, tantos de nós, nos rincões da branda terra portuguesa, ou nos densos e ardilosos matos africanos, sentíamos ecoarem nas mentes, martelando com desusado estrondo as horas de vigília das longas noites de atalaia. ou furtando os pés aos segredos, em longas progressões nocturnas no terreno, semeado de mistério e incertezas. As nossas noites eram, havia muito, noites sem sono, noites sem estradas nem destinos. Sem luar, ou um farol: noites, sequer, sem certezas de haver amanhecer.

Naquele discreto espaço, anichado ao Golfo da Guiné, que a imprensa estrangeira tenebrosamente apelidava de “Vietname de África”, parcela de território pouco mais vasta do que a continental superfície alentejana – escassos 36 mil quilómetros quadrados de chão pantanoso, onde as febres mortais abundam; nesga de África espartilhada pelos limites do moderado Senegal e da hostil República da Guiné-Conacri – ali mesmo, perdido no abafado e castigador clima tropical, adiava-se o futuro de dois povos, distintos e distantes.

De um lado o sangue novo e válido de Portugal que, na mente e no corpo, sofria traumas, que as gerações seguintes não iriam poder sarar. Do outro lado do conflito, a juventude africana que, em recurso, de armas na mão, dizia ao secular colonizador que era tempo de assumir nas suas mãos os destinos do seu próprio povo e que apenas a ele cabia escrever o futuro da sua própria terra.

Já por todo o mundo civilizado as potências colonizadoras tinha escutado e entendido as legítimas aspirações do martirizado continente africano. Menos em Lisboa, onde repousava o autismo e a alma de todo um povo se vestia de luto, em cada barco que chegava, em cada medalha póstuma.

Vinha-nos à mente tudo isso enquanto, perscrutando a ardilosa floresta, invadimos a proibida barreira da fronteira senegalesa. Para além dela, em zona tabu, a base inimiga desalojava, apressadamente, para o interior, os mortos e feridos que, ao longo daquela longa manhã, os guerrilheiros conseguiram evacuar. Numa rápida acção de busca e recolha, capturámos armas e documentos e encetámos o regresso. Não era aconselhável prolongar o avanço, já que o território que pisávamos era soberano e o Senegal não se apresentava como opositor declarado de Portugal. Nada mais havia ali a fazer. As duas centenas de homens, autómatos macerados das duas companhias no terreno, estavam exaustos após seis terríveis horas de fogo.

Sobreviver a um dia assim, dilacera na alma cicatrizes, tão dolorosamente insanáveis e tão eternamente demoníacas, que nenhum homem, nascido e moldado no barro dos afectos e da razão, espiritualmente lhe resiste. Algures, o poema recorda: “nunca se regressa apenas vivo / ainda que a guerra finja não matar”.

Ouvem-se os tambores da guerra, por uma vez, “e nunca mais se retoma a inocência / nem a vida”. E nenhum bálsamo era, ainda assim, mais prodigioso do que a certeza que, para além do germinar dos sinistros e infindáveis pesadelos, arautos do ruir do humano, que nos enfeitiçara a existência, a epopeia da morte não lograva dissipar o pensamento de que podíamos, apesar de tudo, lidar com o inferno e a sombra da mortalha. o sol do meio-dia, que só então parecia ter despertado, espelhava-se a oeste num ténue cirro de nuvens, que se alongava em línguas poeirentas, como tempestades de areia e queimava, mais do que o sibilar das balas e o explodir das granadas, que nos haviam tentado o corpo.

Mas a ligeira brisa que se levantou de sul surgia como uma revigorante terapia de esperança, rasgando as fronteiras de um dia que se anunciava mais promissor e radioso, porque a vida nos devolvia aos recantos da alma, onde o espectro da morte, uma vez mais, se tentara dissimuladamente insidiar.

Depois, na penosa caminhada para sul, a coluna regressou, pelos meandros sinuosos da picada.

António Lúcio Vieira

In “O Mouro da Praia da Foz”  (Lisboa, Chiado Editora, 2014) (cortesia do autor) (****)
 _____________

Notas do editor:


sábado, 3 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20031: Escritos do António Lúcio Vieira (1): A suprema mas vã glória de afundar um submarino inimigo... no Rio Mansoa, nas imediações de João Landim... Ou os delírios de um alferes de engenharia que não ficou na História Pátria!


Guiné > Região do Cacheu > Mapa de Bula (1953) > Escala 1/50 mil > Pormenor: Rio Mansoa e passagem em João Landim.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


Guiné > O fur mil cav Lúcio Vieira, da CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67), no rio Geba.

Foto (e legenda): ©Lúcio Vieira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Um conto do [António] Lúcio Vieira,  ex-fur mil cav, CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67), escritor, residente em Torres Novas. novo membro da nossa Tabanca Grande (*):

SUBMARINO À VISTA!

esta é uma estória realmente surreal

por Lúcio Vieira

[O editor decidou situá-la em João Landim, no Rio Mansoa, à revelia do autor, que apenas esclareceu o seguinte, em email que lhe mandou ontem, em resposta a uma pergunta sobre o lugar:  (...) "sobre o episódio do submarino, não me recordo, francamente, como a estória me chegou. Talvez tenha acontecido em João Landim, mas não sei. Sei, isso sim, é que me pareceu tão deliciosa que não resisti." (...) Ainda bem que o Lúcio Vieira não resistiu... Independentemente do sítio exato onde aconteceu, é uma daquelas histórias que fará parte, seguramente,  da antologia do nosso humor de caserna. Recorde-se, por outro lado, o currículo do autor, enquanto combatente: " "Cruzei o rio Mansoa (na legenda troquei-o, inadvertidamente com o Geba) durante toda a comissão. Tal como o Cacheu.  (...) Estive seis meses de intervenção em Bula e 17 meses em Ingoré, na fronteira norte com o Senegal. Daí conhecer muito bem as passagens em João Landim e S. Vicente."]

Até no desenrolar dos dramas mais pungentes emergem, com alguma frequência, pequenos oásis de balsâmica voluptuosidade, preciosas gotas de água, que se libertam das nuvens da vida e nos refrescam o escaldante quotidiano, pautado pelas dores que sempre resultam das tragédias.

Também no seio dos conflitos armados desabrocham, por vezes, essas pequenas e decisivas pérolas, que nos ajudam a refazer o debilitado estado de espírito e nos criam uma reserva de revigorante resistência, aos sucessivos assaltos de uma sorte mais madrasta do que a madrasta da Cinderela.

Chega. Nada melhor do que contarmos, sem mais delongas, o insólito episódio, ocorrido algures nas margens de um caudaloso rio africano e tendo como cenário um diminuto cais, junto às pré-históricas instalações de um pequeno destacamento militar, algures nas entranhas da Guiné, em meados da longínqua década de 1960.

Manhã cedo – pouco passaria das sete e meia – de um dia já a aquecer e a prometer mais uma escaldante jornada, em tudo igual às que habitualmente pautavam aquele, quase esquecido, reduto de uma reduzida unidade de Engenharia. A capital não distava muitas léguas e o local, quase inacessível por terra, alcançado apenas por tosca e estreita estrada, era classificado, à época, como um reduto seguro, pouco susceptível de se apresentar como alvo de ataques inimigos.

A famosa jangada de João Landim, no rio Mansoa
Foto de Virgínio Briote  (c. 1965/66)
Atracada, uma tosca jangada, de motor assustadoramente periclitante – na ausência de uma mais sofisticada LDM da marinha - aguardava a chegada de uma qualquer coluna de veículos em trânsito, que ali necessitasse efectuar a travessia do largo curso de água.

Pelo espaço em redor, após um reconfortante pequeno-almoço, os rapazes desentorpeciam as pernas, puxavam umas fumaças nos cigarros americanos, trazidos de Bissau e preparavam-se para mais um dia monótono e arrastado, igual aos restantes dias da monótona e arrastada comissão de serviço.

Uma pasmaceira, aquele restar por ali, entre as refeições, umas partidas de sueca, umas mornas e coladeiras na rádio, umas revistas com gajas nuas, as sessões de anedotas, os aerogramas para a Maria, algumas fotografias e, quando calhava, três ou quatro viaturas, para enfiar na jangada e transportar para a margem contrária.

Perdiam-se os olhos na imensidão do rio, pela cinzenta mancha de bolanha, que quase cercava as pequenas barracas, forradas a chapa de zinco, que o destacamento habitava; pelo renque de árvores – bissilões, na sua maioria – que ornavam a estrada na margem norte do rio, a dezenas de metros de distância, do outro lado onde os combates se iam tornando, cada vez com maior intensidade, um acontecimento diário.

Mais a sul, por entre os restos de neblina que se elevavam da bolanha, os olhos ainda distinguiam a enorme mancha verde-escura do tarrafo que, da margem virada a poente, se alongava até perder de vista, para as bandas do mar.

Dois ou três, dos homens do destacamento, ocupavam-se entretanto, junto ao cais, na recolha das armadilhas, deixadas no rio na noite anterior. Havia sempre peixe que optava por não dormir e o que buscava o engodo, nos engenhos de rede, habitualmente dava para uma refeição à pequena guarnição do destacamento.

De pé, encostado à tosca viga de palmeira-dendém, num dos cantos do alpendre, do polivalente refeitório-secretaria e sala de convívio, o alferes que comandava o destacamento observava, a espaços, a paisagem em redor, por vezes de binóculo em punho, com o olhar atento e perscrutador, que se exige à suprema responsabilidade dos lideres, a quem compete zelar pelas vidas dos homens sob o seu comando e dos haveres, que o estado português confiara à sua guarda.

Pese embora o facto de, por aquelas bandas, jamais ter havido notícia de presença inimiga, o homem sabia que não podia baixar a guarda. Quando menos se espera… E recordava, amiúde, os episódios lidos e relidos, sobre guerras distantes ou passadas, nos quais se dava conta das surtidas traiçoeiras, dos audaciosos golpes furtivos e das mil e uma artimanhas, que o génio dos grandes cabos de guerra sempre souberam engendrar, para colher o inimigo de surpresa.

E também da importância estratégica de destacadas zonas do globo, locais cirurgicamente nevrálgicos para o rumo dos conflitos. Assim, aquele perdido posto militar, encravado entre a bolanha e o largo rio, bem podia ser – quem sabe - o seu estratégico rochedo de Gibraltar, ou algo semelhante.

Por isso o nosso alferes não baixava a guarda. Cônscio da importância de uma observação constante e minuciosa, o homem queimava as pestanas, observando metro por metro, litro por litro, as margens e o leito do rio, que na sua frente se abriam. Com ele, ficasse o inimigo a saber, não contassem para menosprezar os perigos, muito menos para se entregar ao desleixo da rotina, que a experiência lhe dizia ser sempre má conselheira.

Um homem, enfim, ciente da sua responsabilidade e da transcendência da missão que até ali o levara; àquele pasmado e frustrante longe de tudo, perdido entre nenhures, onde, habitualmente, o mais emocionante, do arrastado quotidiano, era a passagem, no seio das colunas militares, de uma ou outra bajuda, à boleia.

No seio, foi o que atrás se escreveu, porque nos ditos das moçoilas, rijinhos e ali ao léu, vulgarmente designados por “mama firmada”, já a rapaziada ia, despudoradamente, e sempre que o ensejo se proporcionava, aquecendo as manápulas, naquele tão cativante, quanto emotivo e patriótico, exercício de acção psicossocial.

Estava-se nisto quando, binóculos virados a montante, algo lhe chamou a atenção, lá longe no caudal do rio, logo após a curva junto ao mangal. Havia ali qualquer coisa a navegar, lentamente, em total discrição, descendo sorrateiramente o rio, bem no meio da corrente.

Deixou o local de vigia, no alpendre do barracão e aproximou-se da margem. Não, não havia dúvidas: vinha ali qualquer coisa estranha, com um navegar manhoso. Algo enfim, naquela manhã, descia, lenta e matreiramente, a corrente. Mal se vislumbrava o dorso escuro do enigmático objecto, mas bem se via que era algo grande, arredondado e estranhamente silencioso.

Por entre a onda de espuma que a sua passagem levantava, erguia-se sobre ele, na vertical e a cerca de um metro acima da água, hirto e misterioso, um outro objecto, igualmente redondo e escuro, a fazer lembrar um vulgar tubo de canalização. “Diabo, se aquilo não parece um submarino…”, cogitava o intrigado graduado, de cenho franzido e sentidos alerta.

Voltou a mirar o estranho objecto que sulcava as águas, bem no meio da corrente, a uns bons cem metros da margem. Numa daqueles clássicas decisões, bem expressas nos cânones da caserna, que mandam, em caso de dúvida, atirar primeiro antes de se perguntar “quem vem lá?”, o homem tomou de imediato uma decisão de radical efeito. E tudo ali então se precipitou.

De binóculo em riste - em clara desvantagem ante o, bem mais potente e avantajado, “periscópio” inimigo - porém munido de corajoso ímpeto de destemido afrontamento, o alferes gritava a plenos pulmões: “Peguem nas armas! Vai ali um submarino!”, enquanto os homens, dispersos pelo recinto, de expressão aparvalhada, tentavam perceber a situação. Antes de desaparecer no interior das instalações, em busca da sua própria arma e de umas quantas granadas defensivas, ainda o espavorido oficial repetia à restante guarnição: “Porra, vão buscar as armas!”

Atarantados, os rapazes corriam, desordenadamente, para o interior dos barracões, em busca das G3. Pelo caminho, um ou outro, de mente menos confusa, ia-se deitando a matutar que ideia seria aquela de enfrentar um submarino com umas reles espingardas automáticas, mais umas pobres granadas, que tanta falta faziam para as radicais pescarias do peixe mais graúdo. Mas pronto, o alferes é que tinha os livros; por aquelas bandas, ainda era quem mandava na guerra.

Entrincheirado com a jangada, o destemido comandante da guarnição abria fogo de rajada sobre o “submersível inimigo”. Só podia ser inimigo, já que a pelintra marinha de guerra nacional ainda não conseguira orçamento para tais luxos. Porém, o PAIGC ainda menos. Era pois, seguramente, um vaso de guerra de leste, da União Soviética, que todos sabiam estar de panelinha com os movimentos guerrilheiros.

“Fogo, fogo nele!”, gritava o homem, qual Rommel no deserto, qual Napoleão antes da debandada em Waterloo, qual Nuno Álvares em Aljubarrota ou, mais adequadamente, qual Mouzinho em Chaimite. As balas – apenas as dele, adiante-se – tracejavam as águas, levantavam cogumelos de espuma, enquanto por ali, deitados no chão, em posição de fogo, os homens se entreolhavam, de expressões idiotas, sem entender patavina da situação.

“Aquilo é um submarino! É ou não é, malta?”, interrogava ele, aos brados, num esforço de autoconvencimento. “É, é, meu alferes! Vê-se bem…”, respondiam os homens, confusos e sem coragem para contrariar o agitado superior. “Fogo nele! Afundem os gajos!” Relutantes, os subalternos lá iam disparando uns tiros dispersos, que aquilo de estar ali ao desvario a atirar para o boneco, não lhes cabia lá muito na cachimónia. O intrépido alferes, entretanto, em pequenas corridas pela margem, na busca de melhores posições de tiro, não dava tréguas ao misterioso objecto navegante.

Era uma cena patética, digna da mais talentosa opera-buffa, dos gloriosos tempos da commedia dell’arte.

Nos fugazes segundos que mediariam, entre o gizar de uma estratégia de ataque, ao iminente, inevitável e definitivo afundamento do descomunal submersível, o homem imaginava-se nas capas dos jornais da longínqua capital do império, sob os holofotes da televisão e os microfones das rádios, nos gabinetes dos ministérios e chancelarias, nos jantares de gala em sua honra, no decorrer dos quais, uma vez mais, se enalteceria, nas vozes embargadas dos nossos mais lídimos representantes, o seu heróico feito.

O homem já se via - mais do que numa qualquer e banal entrega de medalhosas distinções, no Terreiro do Paço - nos próprios salões do palácio de Belém, altivo, impante, solene, distinto, em farda de gala, na presença das mais altas figuras da nação. E depois – oh, subida glória! – recebendo, das mãos do venerando chefe de estado, uma qualquer comenda, das várias com que o patrono das ordens honoríficas habitualmente ornamenta o pescoço e o ego dos nossos mais distintos eleitos.

Depois, como corolário, talvez o nome numa rua da sua vila natal, quiçá de vilas e cidades de norte a sul do país, e a inevitável promoção por distinção que, unanimemente, as altas chefias forenses não deixariam de lhe proporcionar.

Que subida honra, que glória, que página, nos anais onde se canta a imortalidade dos heróis. Caramba! Não é todos os dias – nem, por ventura, em todas as guerras – que se abate, sem remissão, ou se aprisiona, um submarino inimigo, recheado de uma tripulação amedrontada e rendida à heroicidade de meia dúzia de bravos militares portugueses. De Engenharia. Ainda por cima, homens da Engenharia!

Toda a pequena guarnição estava, pois, prestes a protagonizar um feito único nos anais da história militar lusíada. Uma epopeia que contariam aos filhos e netos, os quais, orgulhosos do apelido e do sangue herdados, haveriam de se rever nela por incontáveis gerações.

“Atirem, não o deixem escapar!”, e os rapazes, mais para evitar reprimendas do que para confrontar a ameaça navegante, lá iam despejando carregadores, para aquele intruso flutuante que, oriundo por ventura dos confins soviéticos, ali lhes calhou em sorte, por certo numa missão de solidária “mãozinha” ao inimigo.

Uma, duas rajadas. O arrojado alferes não descansava. Depois, granada na mão, cavilha arrancada com um gesto largo e decidido e o lançamento do engenho para bem longe, nas águas do rio. À boca pequena comentava-se: “O nosso alferes não ‘tá bom da cabeça”. Então “aquilo” estava a ir ali a mais de cem metros de distância… quem é que o alferes pensava que era: “campeão do lançamento do martelo, ou quê?”

Entretanto, mesmo ali frente ao cais, com um repentino remoinhar das águas, o “vaso de guerra inimigo” inverteu o “leme” a estibordo e parecia querer rumar a montante, de onde havia pouco surgira. “Está com medo, rapazes: ele está com medo. Vai voltar para trás! Fogo, não o deixem fugir!” E as armas voltaram a troar, rasgando de novo a quietude da manhã.

E que manhã! Ciente agora que o matreiro submersível tentava escapar, o homem lembrou-se que, no reduzido espaço que servia de paiol, repousava a um canto uma metralhadora ligeira. Lá estava, havia muito, para o que desse e viesse. “A Dreyse, tragam a Dreyse!”. Lesto, o cabo e um soldado ergueram-se, entreolharam-se por momentos e partiram numa corrida, desaparecendo no interior das instalações.

Quando voltaram, de metralhadora em punho e uma braçada de carregadores a caírem dos braços, deixaram a arma nas mãos decididas do alferes e aprestaram-se para o municiar. Da ponta da jangada, já sobre as águas, a Dreyse iniciou então o ritmado e mortífero concerto. As balas sulcavam as águas e atingiam certeiramente a misteriosa “embarcação”, ante o eufórico frenesim que agitava o bravo oficial.

Fosse por acção das balas, ou por capricho da corrente do rio, o manhoso “submarino” inverteu de novo a rota e voltou a navegar para jusante, rumando, tranquila e suavemente, para a foz. Ficava já fora do alcance do fogo lançado da margem e parecia ir perder-se para lá da curva frente ao bosque de palmeiras, na viagem que o levaria ao oceano.

As armas calaram-se. Uma densa e negra nuvem formava-se agora, nos olhos e na mente do ofegante comandante do destacamento de Engenharia, aquartelado naquela perdida margem de rio. As honrarias, as comendas, os jantares e discursos e as ruas com o seu nome esfumavam-se assim, mais depressa do que o fumo que se evadira dos canos das armas. Oh, glória tão efémera e vã! Oh, história tão ingrata, que assim lhe iria olvidar o nome.

Que dia aquele, de tanto fervor patriótico e de tanta alma guerreira, transformados, ingloriamente, na mais redundante e decepcionante manobra militar, alguma vez encetada em terras da Guiné. Os deuses, os tais do Olimpo, deviam mesmo estar loucos. Oh, com os reveses enchem, tanta vez, as guerras de infortúnio. Ia assim o homem cismando, tentando refazer-se dos amargos de boca, resultantes da frustrante acometida.

Acalmara-se um pouco. Acendeu um cigarro e encaminhou-se, cabisbaixo e de cenho franzido, para o recato das instalações. Necessitava de um revigorante whisky, para encarrilar as ideias.

No exterior, ainda aturdidos, os homens olhavam-se, acendiam igualmente cigarros e, entre o encarrilar de ideias e a sequente procura do revigorante whisky, quedaram-se, por momentos, a matutar, que raio de mosca teria mordido ao alferes, para desatar a ver submarinos e a despejar quilos de munições, num pobre e inofensivo tronco de bissilão que, inadvertidamente, entendeu entregar-se aos prazeres da navegação no dia errado, no rio errado e na hora errada.

O perturbado alferes, esse entretanto e enquanto via esvaírem-se os sonhos de glória e imortalidade, de olhar lançado ao alto e pensamento embargado pela emoção, justificava a si próprio o desaire, citando – como, de resto fica bem em situações tão dramaticamente solenes, como aquela – as palavras do poeta: “malhas que o Império tece…”

Perdão, tecia.

---------------------

Em rodapé, aqui - como preito de homenagem ao avisado bom senso - se regista o alívio da restante guarnição, pelo facto de, na balburdia gerada pelo fragor da insólita “peleja”, o inefável e confuso alferes nunca se ter lembrado de, via rádio, pedir o apoio dos T-6 da Força Aérea, ou dos patrulheiros da Marinha. Valeu esse lapso porque, para ridículo, já tinham de sobra para contar.

António Lúcio Vieira
CCav 788 / BCAV 790 ( Bula e Ingoré, 1965/67)
_______________

Nota do editor:

(*) Vd. poste  de 2 de agosto de  2019 > Guiné 61/74 - P20027: Tabanca Grande (483): Lúcio Vieira, ex-fur mil, CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67), natural de Torres Novas, jornalista, poeta, dramaturgo, encenador: senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 794

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19962: Notas de leitura (1195): "Crónicas de um tenente", de Fernando Penim Redondo, Lisboa, edições Colibri, 2019, 188 pp. Prefácio de Mário de Carvalho (A. Marques Lopes)




Capa e contracapa do livro de Fernando Penim Redondo, "Crónicas de um tenente: Guiné-Bissau, 1968-2018". Lisboa: Edições Colibri, 2019, 188 pp. Preço de capa: 15 €, (Prefácio: Mário de Carvalho)


A. Marques Lopes
1. Mensagem de A. Marques Lopes, com data de 8 do corrente:

[cor art DFA, na reforma, ex-alf mil art, CART 1690, Geba, e CCAÇ 3, Barro (1967/68)];autor de "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp.); tem mais de 240 referências no nosso blogue; lisboeta, vive em Matosinhos]


Não conheci o meu amigo Fernando Penim Redondo na Guiné, embora, pelo que vejo, ele tenha passado várias vezes pelo sítio onde fui colocado na segunda vez em que fui mandado para a Guiné, também em Maio de 1968, Barro, quase pegado às margens do Cacheu.

Conhecemo-nos e fomos amigos, ele e a Rosa, mulher dele, nos tempos memoráveis de 1974 e 1975.

Diz o Fernando no início do seu livro:

"No dia 1 de Maio de 1968, o Tenente largou do Tejo, rumo à Guiné, a bordo da fragata Corte Real. Era então um jovem fuzileiro, de 22 anos, recém-casado, que interrompera os estudos de Economia na Universidade de Lisboa.

Em Bissau integrou a 6, a Companhia, aquartelada no INAB, junto ao Geba. A missão consistia essencialmente na escolta de comboios de embarcações que abasteciam os quartéis do Exército no interior do território.

Subiu e desceu os principais rios da Guiné comandando as missões a partir das lanchas da Armada.

Navegou no Cacheu até Farim, no Mansoa, no Geba e no Rio Gran­de de Buba. Ligou por mar a foz desses grandes rios e também foi a Catió, a Bolama e aos Bijagós.

A guerra era uma realidade penosa para quem como ele, jovem mi­litante comunista, se opunha ao domínio colonial e defendia a inde­pendência das colónias. Partilhou esse drama pessoal com a sua mulher, que trabalhou como professora de História no então Liceu Honório Barreto.

A fotografia constituiu um paliativo. Ao fotografar a dignidade do povo guineense, a beleza das suas mulheres, o porte dos seus ho­mens e o encanto das suas crianças, ele tinha a impressão de estar a fazer um gesto de amizade no contexto da guerra.

Tal como muitos outros jovens da sua geração aprendeu, 'no ter­reno', a grande lição da relatividade da nossa própria cultura. »


2. Sinopse da obra

No corredor da prisão instalara-se um caos, cada um tentando perceber se iam ser fuzilados ou libertados. Ao fim de algum tempo lá apareceu um oficial, mais sensível, que lhes explicou o que estava a acontecer. Começou então a longa espera até que a Junta de Salvação Nacional aceitasse libertar todos os presos e não apenas alguns. A comunhão dentro da prisão era completa e o Tenente reencontrou a sua mulher que, sem ele saber, se encontrava na outra ala do edifício prisional.

Como se formava um jovem progressista nos turbulentos anos 60?
Como se lutava contra a guerra colonial, antes e depois de nela ter participado?
Como se navegava, e encalhava, nos rios da Guiné com incêndios, abalroamentos e bazucadas?
Como podem a poesia e a fotografia ajudar um combatente contrariado?
Como reagir quando nos entra pela cela dentro um camarada de armas, durante uma inesperada revolução?
Como se sente o regresso, 50 anos depois, ao lugar da guerra e da juventude?

/Este não é / um livro de fotografia / mas tem muitas imagens
/Este não é / um livro de poesia / mas tem vários poemas
/Este não é / um livro biográfico / mas conta certas estórias / que mostram / o sentido de uma vida.

3. Sobre o autor: Fernando Penim Redondo:

(i) nasceu em Lisboa, em 1945;

(ii) estudou economia no ISCEF, curso que não concluiu:

(iii) adere ao Partido Comunista Português em 1966 e é eleito, no mesmo ano, para a Direcção do Cineclube Universitário de Lisboa;

(iv) em 1967 é incorporado na Armada e segue para a Guiné, como tenente dos fuzileiros, onde fica até 1970;

(v) especializado em gestão da produção, automação e CAD/CAM, conduziu projectos em dezenas de empresas industriais portuguesas mas fez carreira, durante 23 anos,  como Systems Engineer na IBM (1970-1993) - e posteriormente como gestor;

(vi) em paralelo com a carreira profissional mantém sempre a actividade política: é  preso em 18 de Abril de 1974 e libertado pela Revolução dos Cravos; é eleito para a CT da IBM de 1974 a 1975 e de 1981 a 1993; é eleito para a direcção do Sindicato do Comércio e Serviços (CESL) de 1989 a 1993.

(vii) a partir de 2000 dedica-se a actividades de jornalismo tecnológico com base na Internet;

(viii) tem página no Facebook.

Fonte: Adapt. de Edições Colibri
________________

Nota do editor: