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sábado, 19 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21661: Os nossos seres, saberes e lazeres (429): Recordações da casa dos espetros (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Agosto de 2020:

Queridos amigos,
Remexer no passado, é por todos sabido, suscita memórias, sentimentos ambivalentes entre ganhos e perdas. No fundo de uma gaveta apareceram quatro aerogramas, sabe-se lá se escaparam a muitos outros que foram para o lixo, fotografias inesperadas.
Foi um encontro benfazejo para mim, guardo uma recordação muito forte da minha sogra, por tudo o que ela fez pela família, a dedicação extrema pelas minhas filhas. Não me surpreendeu a franqueza com que eu descrevia o meu dia-a-dia, nunca escondi a ninguém o fragor da guerra, a extrema penúria, os perigos constantes. Deve ter havido gente que julgou que eu tinha ensandecido quando contava como Missirá saía das cinzas, entre abril e julho de 1969, foi um repto que me preparou para saber cuidar ou lidar com as intempéries. Gostei tanto de voltar a ler estes aerogramas que aqui vos dou notícia, e não escondo o júbilo, a despeito de muita desta gente querida ter desaparecido, guardo-os carinhosamente nas fotografias que me rodeiam, o seu papel é o de um farol que nos lembra os riscos de perder o dever de memória.

Um abraço do
Mário


Recordações da casa dos espetros

Mário Beja Santos

Vivi nesta casa em dois períodos distintos: de 8 de março de 1952 a 11 de abril de 1967, aqui fiz a escola primária, o liceu e entrei na faculdade, empreguei-me como ajudante de mecanógrafo, nesse 11 de abril de 1967 veio almoçar com a minha mãe e comigo um dileto amigo, Carlos de Sampaio, que me acompanhou ao Rossio; de 13 de maio de 1982 a 30 de dezembro de 1994, após o falecimento da minha mãe candidatei-me à casa, comprei-a mais tarde, aqui vivi com mulher e filhas até 30 de dezembro de 1994, parti então para o Bairro das Ilhas, relativamente perto do Saldanha. Nesta casa faleceram a minha avó materna, a minha mãe, a minha filha mais nova, se aqui regresso é para ajudar a minha filha a pôr uma certa ordem depois da saída inopinada para um lar, devido a graves problemas de saúde, da sua mãe. Conheço ao milímetro todo este espaço, numa primeira fase houve que ir libertando traquitana inútil, removendo lixos, identificando objetos. É numa dessas arrumações, no fundo de uma gaveta, entre dois cartões, que encontro quatro aerogramas que enviei à mãe da minha noiva e mais tarde minha sogra, Celeste Brito Camacho Robalo Revez, e duas inesperadas fotografias.

A minha sogra foi filha, mulher e mãe exemplar. Tratou-me sempre com a maior das dedicações e não tem preço o carinho e o desvelo com que tratou as minhas filhas. Daí a grande satisfação que tenho em partilhar convosco as notícias que lhe enviei, houve muitíssimo mais do que quatro aerogramas, estou absolutamente seguro, oxalá que em próxima “escavação” encontre mais, garanto que então darei notícia.

O primeiro aerograma de 13 de agosto de 1969. Peço desculpa à minha sogra por uma estranhíssima troca de correio. Enviei para Moçambique, para um querido amigo, José Braga Chaves, a quem dei instrução em Ponta Delgada, uma carta em que o trato por Sr. Dona Celeste, não sei se este meu antigo instruendo aceitou que eu já estava avariado do miolo. E a Sr. Dona Celeste recebeu uma carta dirigida ao José Braga Chaves… Toda a minha correspondência acaba por ser um relato fiel do meu quotidiano, falo calmamente em insignificâncias, em problemas de abastecimento, findara há pouco o período de reconstrução de Missirá, e com orgulho vou repertoriando as casas reconstruidas, os abrigos levantados, agradecido às muitas ajudas recebidas, e assim me despeço: “No meio de algumas agruras nada se compara com esta vida que vai crescendo e esta bênção em receber a misericórdia de Deus”.

O segundo aerograma data de 29 de agosto, justifico sempre o envio de aerogramas natalícios à falta de outro papel. “Missirá está há dois dias debaixo de chuva, nem uma nesga de sol, são rios de lama e largos charcos de água barrenta, soldados e civis adoecem. Entretanto os melhoramentos trouxeram-me muita alegria, onde havia um tosco barracão há agora uma sala de convívio, as paredes ainda frescas da tinta de água, há cadeiras confortáveis, o café é servido em chávenas decentes, os móveis faiscam de verniz e temos nas prateleiras uma loiça nova que veio substituir os embaciados pratos de alumínio. As aulas de instrução primária estão a dar os seus êxitos. Vou a caminho de 18 meses de Guiné e são estas obras de paz e esta dedicação à melhoria das condições de vida que me tonifica a alma”.

O terceiro aerograma data de 28 de setembro, é um dia de calma em Missirá, houvera um período contínuo de dez dias de patrulhamentos a Mato de Cão, dificílimas colunas de abastecimento, nas condições mais precárias, sem poder utilizar viaturas em picadas transformadas em lago, para que não subsistisse qualquer dúvida de que a vida era difícil para todos, eu punha uma rodilha na cabeça e segurava com a mão esquerda uma caixa de esparguete. Registo em tom muito confessional que os meus soldados protestam pela vida violenta que levam no Cuor, sonham em ser transferidos para Bambadinca, mal sabem a vida agitada que nos espera a partir de novembro de 1969. Desejo vivamente as melhoras da minha sogra, soubera que estava a viver alguns problemas de saúde, procuro amenizar o ambiente, falo-lhe das minhas leituras, novamente das aulas dos miúdos e dos graúdos e que o mau tempo vai passar em breve, e com esta alegoria me despeço.

O quarto e último aerograma, datado de 17 de outubro, relata um dos episódios mais dramáticos da minha vida, a mina anticarro que explodiu em Canturé, na véspera, não escondo que tenho o coração enlutado, resumo a tragédia à explosão, aos tiros da emboscada, aos destroços fumegantes, ao ferido muito grave e aos sete feridos ligeiros, entreguei o comando a Mamadu Djau e retirei com as crianças para Finete, parecia-me que tinha perdido o olho esquerdo, não via rigorosamente nada, em Finete lavei o rosto e descobri que havia somente queimaduras e poeiras. Omito que coxeio penosamente, o joelho direito inchou, os óculos desapareceram, termino dizendo que a vida vai continuar e logo que acabar este aerograma vou escrever uma carta arrancada a ferros para um lugar do concelho de Ourique, informando um pai que perdeu um filho em combate.

Em resumo, a grata surpresa de rever a minha escrita para a minha sogra, de encontrar uma fotografia em que andei mascarado de guarda-redes num jogo entre oficiais e sargentos em Bambadinca e a fotografia que tirei com a minha noiva em julho de 1968, dias antes de embarcar no Uíge.

São fragmentos que valem por si, não adianta estar a expor mais razões diante de um achado que só pode ser precioso para mim.

Junto igualmente uma fotografia tirada no Bairro das Ilhas, com a minha sogra e as minhas filhas. A minha sogra insistiu que queria trazer para o jantar um lombo de porco e um bolo de gila e amêndoa, natural de Aljustrel era uma cozinheira emérita, graças a ela aprendi a cozinhar quase tudo com coentros, a gostar de gaspacho, pezinhos de coentrada e sopa de toucinho.

Deixo perguntas a mim próprio: a letra, por exemplo, como é que ela se vai manter tão certinha em tempos tão atribulados, quando o tempo escasseava, escrevia estes aerogramas de jato, havia a noiva, toda a família, os queridos amigos, uma hora de escrita era tempo a mais, logo a seguir ao jantar, com o furriel Pires a bater à porta para tratarmos do expediente, e podia muito bem acontecer que aí pela meia-noite se partia para Mato de Cão, bastava que a tabela das marés previsse maré cheia ao alvorecer. Foi assim a minha vida e dou-me muito bem com estes sinais do destino, estes aerogramas imprevistos que me recordam que foi ali, no Cuor, que se forjou o homem que hoje partilha convosco a alegria de viver.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21638: Os nossos seres, saberes e lazeres (428): Em Belmonte, na companhia de Vitorino Nemésio, e não esquecendo Pedro Álvares Cabral (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21606: Os nossos seres, saberes e lazeres (426): Memórias de Paradela (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Paisagem de Paradela


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 2 de Dezembro de 2020, trazendo algumas Memórias de Paradela:


MEMÓRIAS DE PARADELA

Francisco Baptista

Nesse tempo para ir de umas terras às outras, utilizavam-se os caminhos de terra, onde circulavam pessoas a pé ou a cavalo e carros de bois, no geral delimitados por muros toscos de pedra que os isolavam das propriedades. Havia muitos motivos e pretextos para os vizinhos se visitarem, laços de família, negócios, trabalhos em grupo ou de artistas, casamentos, festas anuais, etc. 

Já havia uma estrada municipal de macadame, via muito estreita, onde dificilmente cabiam dois automóveis a par, que saindo de Mogadouro comunicava através de ramais com Remondes, Brunhoso e Paradela no fim de linha. Pouco utilizada de resto porque quase não havia por lá automóveis, as distâncias eram maiores e as vistas melhores por caminhos antigos para quem gostava de apreciar,  com vagar, as culturas agrícolas, os prados, o gado e o arvoredo.

Em Brunhoso havia uma carrinha pequena, que andava sempre talvez a 20 Km à hora ou menos. O dono era um comerciante de cortiça, de apelido Sol, como tal concorrente do meu pai, não se falavam por estórias do tempo do meu avô que morreu cedo, que eu nunca consegui deslindar bem . O meu pai nunca falou disso mas havia uma família de trabalhadores da casa desses meus avós e dos meus pais que falavam mas, por serem muito fabuladores, eu não conseguia saber quando diziam ou não a verdade. Não mentiam mas tinham uma imaginação desenfreada que não conseguiam controlar.

Apesar disso, mesmo sem se falarem, o meu pai e o Sol tiveram sempre boas relações comerciais pois nunca se afrontaram um ao outro nesse âmbito.

Mais tarde, um lavrador inovador que tinha estudado em Coimbra, comprou um automóvel, penso que um Citroën,   já teria eu mais de 15 anos.

Todas as aldeias próximas comunicavam por caminhos entre si assim como com a Vila, onde se faziam as feiras e onde havia os grandes estabelecimentos comerciais.

Paradela fica três quilómetros a sul de Brunhoso. Saída pelo Fundão a trezentos metros, num cruzamento, derivamos à esquerda por um caminho pedregoso para as Rodelas do Fundo. Chegados aqui, vale bem a pena, fazer uma paragem. Para sudeste havia um pequeno vale com alguma água até ao Verão que corria no meio de uma regada (prado com ribeiro), antes de ficar coberto com árvores e arbustos que formavam uma pequena floresta cerrada, que ia dar ao ribeiro da Lagariça, quinhentos mais abaixo. A leste havia uma várzea extensa e fértil, a contrastar com o caminho percorrido. Terra funda e enxuta, a que chamavam Barriguinho, que produzia cereal com abundância, na sua maior parte propriedade de duas famílias ricas da terra. 

O meu pai tinha lá somente cerca de dois hectares, um deles trocou-o cedo por sobreiros, a sua maior paixão.
Paisagem com Brunhoso ao fundo

Maior campina de trigo era o Urzal, que confinava com Remondes, mas menos fértil, para o conseguir ser só em anos de muita chuva, pois as terras eram fracas para suster as águas. Como campo de trigo e centeio, o Urzal era impressionante porque se ligava a outras duas zonas de sequeiro, as Rodelas e os Lameirões. Era belo ver o trigo e o centeio verdejar ao vento nos meses de Março e Abril ou ver a grande campina loira nos meses de junho e julho antes das Segadas.

Depois do passeio por searas da minha mente indisciplinada,   voltemos ao caminho que a viagem é curta. A quinhentos metros das Rodelas do Fundo atinge-se o alto de uma colina que se chama Couço, onde está um marco geodésico a dividir os "termos " das duas freguesias. 

Em frente já em terrenos de Paradela iremos passar pelas eiras da terra, bastante grandes, uma zona de lameiros  algumas hortas, antes de entrarmos na povoação por uma das três ruas principais. À Praça a que os paradelences chamavam Pracinha, com muito orgulho, talvez por estar bem enquadrada e ter uma boa área, em terreno plano, iam desembocar as três principais ruas da aldeia, num lado está a Igreja Matriz, noutro havia uma taberna e um "soto" (mercearia no Nordeste) no outro. 

Era lá, ainda será, que se reuniam os homens a falar da agricultura, do tempo e a comentar as notícias da terra e as de fora. Uma das outras ruas, uma vai para norte em direção à estrada camarária, a outra mais pequena para o sul, na direção do Salgueiro, uma terra anexa com poucas casas a meio caminho do rio Sabor. 

Agora vive lá pouca gente como de resto em todas as aldeias, porém no tempo a que se reporta esta escrita, viviam lá três ou quatro casais todos com muitos filhos.
Pracinha de Paradela
Igreja de Paradela

Nesses tempos havia muito convívio entre aldeias vizinhas. Nas festas, em bailes, jogos de futebol e outros raros convívios a mocidade de uma terra e outra juntava-se muitas vezes. Os jogos de futebol eram muito renhidos e um pouco trauliteiros. O tio Chico Carrasco de Brunhoso, grande trabalhador, muito sociável e amigo da farra, sempre o admirei e muitas vezes convivi com ele, jogou até aos cinquenta anos ou mais, era defesa, a bola podia passar mas o homem não. No fim do jogo era homem para convidar as duas equipas beber à taberna ou ao café.

Nos bailes de Brunhoso, os rapazes de Paradela, sempre melhor arranjados, procuravam agradar e dançar com as raparigas da terra, e elas como mulheres talvez se mostrassem sensíveis à apresentação dos cavalheiros, o que desagradava aos seus conterrâneos, que muitas vezes depois do baile, escorraçavam os "estrangeiros" à pedrada. 

Havia muita picardia de parte a parte mas apesar disso nunca houve danos ou ferimentos visíveis entre eles. Os de Brunhoso detestavam que os de Paradela, vaidosos e fanfarrões, lhes quisessem roubar as raparigas, que eles consideravam suas. Diziam, entre outras maldades: "Paradela com sol a casa" para os desvalorizar e denegrir.

Em tudo isso havia alguma verdade, os de Paradela mais vaidosos, não trabalhavam tanto, os de Brunhoso mais negligentes no vestir, mas trabalhavam muito. Porém nas festas anuais depois do futebol conviviam como amigos e rivais que se respeitam e iam comer às casas dos que faziam a festa.

Algumas regras dos bailes:

Uma jovem depois de se recusar a dançar com algum rapaz, não podia mais dançar nesse dia.

Geralmente os rapazes convidavam as jovens mas a determinado momento havia um mandador que dizia: "Valsas das damas!", a partir daí eram elas que convidavam os rapazes.

O normal era irem só solteiros mas também podiam entrar casados. Algumas vezes, poucas, me encontrei com o meu pai, que era melhor dançarino do que eu, em bailes de Brunhoso. Tive uma prima, muita amiga, que em bailes de família, em casa dela, me tentou muitas vezes ensinar. Dizia-me: Chico faz assim, dois passos para um lado, um para o outro. Eu trocava os passos, era indomesticável!

Uma noite no arraial de Paradela encontrei uma moça alegre, vistosa e divertida, parecia a rainha do baile, fui dançar uma vez com ela e continuamos a dançar, estava descontraído, ia falando e ela a ouvir-me com muitos sorrisos mas nisto o meu amigo que me tinha dado boleia e que tinha o pé mais pesado do que eu, nunca o vi dançar, chamou-me para irmos embora. Estragou-me a festa, em silêncio chamei-lhe todos os nomes, mesmo os mais ordinários.

O padroeiro da festa de Paradela a que eu e os meus irmãos íamos sempre, convidados pela grande família que lá tínhamos, era S. Calisto que foi Papa nos primeiros anos do cristianismo e mártir também, tal como as padroeiras de Brunhoso e Remondes. A Igreja Católica santificou muitos mártires e pô-los nos altares das igrejas de toda a Terra provavelmente para os pobres se resignaram à sua vida miserável. Entretanto, em Roma, depois da conversão de dois Imperadores romanos, cresceu o luxo, a pompa e a devassidão.
Rua de Paradela

O clima da terra era idêntico aos das aldeias ribeirinhas do Sabor próximas, mais quente na ladeira onde havia oliveiras e amendoeiras e mais frio nas proximidades da povoação, onde se cultivava o trigo, o centeio e a cevada e onde estavam as hortas. A distribuição das terras era desigual, muitos pobres com uma hortinha, poucas oliveiras e pouca terra onde semear os cereais, três ou quatro lavradores ricos e alguns mais remediados.

A minha avó materna, que teve alguns irmãos, só teve uma irmã que casou em Paradela. Sendo muito amigas,  cultivaram sempre essa amizade e transmitiram-na à família. A minha mãe só teve irmãos, e as irmãs fazem tanta falta às mulheres, cultivou muito a amizade com as primas duma terra ou de outra. 

Recordo-me de ir lá às festas e ser disputado para almoçar por três ou quatro casas de parentes, os meus irmãos também se tivessem idade para tal, o meu pai muitas vezes, a minha mãe quase nunca, pois estava ocupada com os filhos mais novos ou com a lida da casa.

Tinha lá outra prima, filha de um tio dela, com quem tinha boas relações, embora menos próximas, algumas vezes fui também a casa dela, convidada pelo filho que era da minha idade, infelizmente já falecido há alguns anos.

As primas da minha mãe eram hospitaleiras e simpáticas, os maridos, as filhas e os filhos delas também.

De Paradela era o Jorge, uma alma simples, tinha algum atraso mental, muitas vezes aos domingos e quase sempre em dias de festas em Brunhoso, passava por lá, ficava um pouco à conversa com os rapazes e abalava dizendo que ia beber água a Remondes. 

Outro homem muito recordado em casa dos meus pais era um pequeno lavrador que numa feira de Mogadouro vendeu uma vaca ao meu pai. Foi com um irmão meu a acompanhar a vaca a Brunhoso e o meu irmão conta que foi sempre a chorar. Era uma vaca valente, pouco meiga mas rápida e cheia de génio, o meu pai manteve a descendência dela enquanto pôde, teve filhas e netas valentes como ela. Demos-lhe o nome igual ao apelido do lavrador que mais a chorou.

Para concluir não posso deixar de contar um episódio da minha vida de garoto que me ficou gravado na memória:

Teria 8, 9 ou dez anos, terei sido convidado por um rapaz de Paradela, amigo, primo, não recordo quem, para ir jogar futebol com eles. O que recordo, a minha memória nunca apagou, é que depois de passar pela Praça, na rua de cima que dá para a estrada apareceu à minha frente uma rapariga próxima da minha idade, um pouco magra e mal arranjada, que de uma forma desabrida me perguntou se gostava dela. 

 Eu não gostei confesso, mas por compaixão disse-lhe que sim, segui o meu caminho para o campo de futebol que era mais acima depois de virar à direita numa colina sobranceira à aldeia. Não sei se as bolas rematadas para esse lado com força não sairiam costa abaixo. Quando cheguei estavam lá muitos contemporâneos meus. Formaram-se equipas e não sei se por ser bastante alto e atlético valorizaram muito a minha presença. Eu que nunca soube jogar futebol, tinha tão pouco jeito para isso como mais tarde para dançar, fui muito incentivado e aplaudido, até parecia um craque estrangeiro.

Foi o meu dia de glória no plano desportivo.

Esses rapazes puros e generosos apostaram na minha carreira desportiva, e fizeram-me correr de alegria no regresso à minha aldeia. Depois o sonho acabou, para mim nunca tinha começado, eles quiseram acreditar nele, agradeço-lhes de todo o coração.

Gostei de conhecer Paradela e as suas gentes, passei lá muitos dias felizes.
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Notas do editor

Último poste da série de Francisco Baptista de 21 de Novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21564: Os nossos seres, saberes e lazeres (421): Memórias de Remondes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Último poste da série de 28 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21589: Os nossos seres, saberes e lazeres (425): Na RDA, em fevereiro de 1987 (5) (Mário Beja Santos)

sábado, 21 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21564: Os nossos seres, saberes e lazeres (423): Memórias de Remondes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Paisagem para lá do Sabor


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 4 de Novembro de 2020, desta feita com uma memória de Remondes:


REMONDES

Nesse tempo, já fartos de conhecermos todos os caminhos e limites da nossa aldeia, as terras próximas eram mundos desconhecidos a explorar. Dado que Brunhoso estava situado num baixio, início de dois vales, que nos meses de chuva alimentavam dois ribeiros caudalosos que levavam muita água ao rio Sabor, nenhuma das cinco terras em redor se conseguia avistar. Desde tenra idade ouvia falar delas frequentemente aos mais velhos, por vezes passavam mesmo lá por casa parentes que viviam nelas, sobretudo primas próximas ou afastadas da minha mãe (Paradela e Soutelo) e outros primos mais afastados do meu pai (Remondes e Castro Vicente). Havia uma amizade genuína entre eles que se manifestava em cumprimentos calorosos e na oferta das melhores primícias do ano, figos, maçãs, peras, melões de quem vinha e dos melhores acepipes da casa para os visitantes, alheira, chouriça, salpicão, etc.. Gostava dessa atmosfera de afecto que tanto podia surgir num dia de festa, como noutro dia qualquer do ano. Por este e por outros motivos, a minha infância e adolescência ficou para sempre ligado a essas terras tão próximas da minha. Dentre todas a mais próxima, era Remondes, que deve a sua notoriedade à Ponte de Remondes, conhecida em todo o Norte, pela sua beleza e utilidade, agora submersa pelo lago formado pela Barragem do Sabor.

A velha Ponte de Remondes, agora afundada pela Barragem do Sabor.

Saindo de Brunhoso, a norte, pela Malhada, seguimos pela Faceira, Francos, onde há muita água e havia muitas hortas, depois o Sobreirinho, com um quilómetro de caminho plano, ladeado de grandes sobreiros. A entrada mais próxima e directa leva-nos ao cimo da povoação perto da escola primária, no fundo das eiras. Eiras que havia em quase todas as aldeias do Planalto, eram grandes espaços comunitários onde se malhava o trigo, o centeio e outros cereais. Fora do tempo das colheitas, sobretudo na Primavera, eram um enorme prado verde, para onde os moradores, geralmente os que não tinham lameiros ou regadas, levavam os burros, mulas, e vitelos a pastar.

Sobreirinho (antes de Remondes)

Eiras de Remondes

Castro Vicente atrás do horizonte

Um pouco abaixo começava uma rua larga que percorre quase toda a aldeia com uma curva muito pronunciada quase a meio, todas as outras ruas menores e mais estreitas, convergem para essa. Como todas as aldeias do concelho tem uma igreja matriz, com uma arquitectura semelhante, construída ou restaurada no século dezoito ou dezanove.
As eiras e a igreja, além das ruas, pracetas e tavernas eram os únicos espaços públicos das aldeias do interior.
As Casas do Povo ou da Junta da Freguesia são, na sua maioria, já construídas no tempo da democracia com dinheiros da Comunidade Europeia.
A estratificação social era idêntica à de Brunhoso, muitos com pequenas courelas a trabalhar para três casas grandes de lavoura. Havia ainda dez a quinze lavradores a cultivar e a fazer as colheitas das suas próprias terras, pagando também algumas jeiras quando necessário. Gente simples, com carácter, trabalhadora, parecendo rude, era muito leal e franca, pouco cuidada no trajar e no aprumo, mais os homens. Bastante parecidos com a gente da minha terra embora a mim me tenha parecido sempre que era gente mais antiga, (do tempo dos lusitanos, dos visigodos?) como se há séculos não houvesse povos invasores, apesar da Ponte estar a cinco quilómetros. De garoto ia lá muitas vezes fazer certos trabalhos, como por exemplo com uma burra carregada de sacos de grão trigo ou centeio à moagem do senhor Esperança, voltando depois com ela carregada de farinha.
Era frequente as mulheres ou os homens perguntarem-me: Oh rapaz, de quem és filho? Do senhor Emídio, respondia eu. Filho do Emídio! Então somos parentes, respondiam-me quase sempre.
Gostava do tratamento familiar que davam ao meu pai, já que ele em Brunhoso era quase sempre tratado por senhor. No tratamento entre as gentes, Remondes pareceu-me a terra mais democrática que já conheci. Entre todos, rapazes ou adultos, não havia senhores, vocês ou vocemecês, era tu cá, tu lá, a fórmula mais simplificada de comunicar. Os meus avós paternos, mais tarde vim a saber, tinham ascendentes de lá, por esse motivo e pelo que me diziam os remondeses, a partir de certa idade comecei a considerar todos os naturais de Remondes como meus parentes, ainda assim os considero. Havia os Gaspares, os Pojos, os Alves, os Mendes, os Varizos e outros. Sobre os Baptistas de uma terra e outra há dúvidas, que a genealogia estudada por alguns ainda não esclareceu.

Os naturais de uma terra e outra entendiam-se na bem, "falavam a mesma língua", com ligeiras divergências no sotaque, os de Remondes num tom mais cerrado. Tinham gostos semelhantes, gostavam de estar nas praças a conversar e a praticar jogos tradicionais ou nas tabernas a jogar a sueca e o chincalhão (jogo de cartas proíbido) a copos de vinho ou simplesmente a falar e a beber.
A festa anual era em honra de Santa Sinforosa (o povo dizia Sinfrósia), santa e mártir antiga, dos primeiros tempos do cristianismo, tempos difíceis, de tantos santos e mártires com os quais a Igreja Católica encheu os altares das catedrais românicas, góticas e igrejas, com as suas imagens de madeira, de pedra, de barro. Bárbara, filha de Dióscoro, um pai pagão, santa festejada em Brunhoso é dessa fornada.
Faziam grandes arraiais muito alegres que juntavam muita gente a assistir ou a dançar ao som da música da banda filarmónica ou dos conjuntos musicais que começaram a aparecer por lá na década de setenta.
Além dos vizinhos de Brunhoso, de Soutelo e doutras terras próximas, a Ponte de Remondes que facilitava a comunicação entre as margens do rio Sabor, trazia muitos jovens e mais velhos de Castro Vicente, dos Porrais de Lagoa e de outras terras. Um ano apercebi-me que aquela mistura de rapazes e raparigas de várias terras dava outra animação e colorido ao baile do arraial, na praça entre a Igreja Matriz e a Capela de Santa Sinforosa.
O sagrado e o profano conviviam em harmonia nessa terra de mulheres piedosas, de raparigas divertidas de rapazes e homens folgazões para relaxar e compensar um pouco mais um ano de trabalho duro.
Entre os rapazes de Brunhoso e Remondes nunca conheci as picardias e rivalidades, frequentes entre povoações próximas, muitas vezes causadas pela conquista de namoradas em terra alheia. Tanto os de uma povoação como os da outra sempre toleraram os namoros e casamentos mistos.
Havia também os bailes privados em casa do Senhor Cristino que tinha três netas para casar. O Senhor Cristino era um "brasileiro", educado, distinto no falar e no vestir que em festas ou em alguns domingos à tarde organizava uns bailes, onde eu apesar de bastante novo fui algumas vezes convidado pelo meu irmão mais velho. Além das moças da casa havia ainda mais três ou quatro amigas da terra. As três irmãs sendo embora simpáticas, educadas e elegantes, não casaram com nenhum daqueles rapazes, talvez por causa dessa elegância que não se coadunaria com os gostos desses jovens lavradores que gostariam delas um pouco mais sadias e com curvas mais acentuadas. Entre as amigas havia uma vizinha simpática e bem torneada que viria a casar com esse meu irmão.

Uma noite, depois do jantar, pediu-me para ir com ele a Remondes pedir a mão da namorada aos pais. Entretanto apareceu um primo que tinha um trator e fomos lá os três. Quando entrámos na casa dela, depois dos cumprimentos habituais, o meu irmão disse ao pai qual a missão que nos tinha levado lá. O pai dela que conhecia bem o nosso, ainda eram parentes, a minha avó paterna era prima carnal da sogra dele, perguntou se o meu irmão tinha pedido ao nosso pai também, ele mentiu e disse que sim. O meu irmão já tinha vinte e três anos e não precisava da autorização paterna, mas entre os mais velhos era importante que houvesse acordo entre as famílias. A dona da casa trouxe para a mesa salpicão, linguiça, azeitonas e vinho, e nós por cortesia e porque a qualidade dos produtos nos agradava também, não nos fizemos rogados.
Os meus pais aceitaram bem a ideia pois a noiva era filha de lavradores honrados, ainda parentes e com bastantes terrenos agrícolas.
Para se realizar o casamento, tiveram que pagar uma bula à Igreja por ainda serem primos embora afastados. Casaram na Igreja de Remondes, teria que ser na terra da noiva, a cinquenta metros da casa dela, onde foi o almoço, bem servido e animado.
No domingo seguinte houve a torna-boda em Brunhoso, em casa dos meus pais, igualmente com um bom almoço.
Os noivos tiveram que pagar o vinho aos rapazes de uma terra e da outra, para não serem chocalhados, de uma forma barulhenta durante a noite.

Igreja de Remondes

As hormonas masculinas e femininas há longos anos, falando só da minha família, eram trocadas entre uma terra e outra, pelo menos desde os nossos trisavós.
Da ascendência antiga da minha bisavó Variz teremos herdado os sobreiros da Relva, perto da Ponte de Remondes e os dois sobreirais do Azinhal, mais a sul, a um quilómetro do Sabor, encravados na grande mata de sobreiros e oliveiras do Aprígio um agiota que um dia arribou a Mogadouro, lá fez fortuna e comprou em Remondes uma grande área de sobreiros e oliveiras. A mulher, que lhe sobreviveu muitos anos, herdou-lhe os bens e o apelido "Aprigia" pelo mesmo carácter ambicioso.
Estes sobreirais, implantados no coração do domínio desta senhora, eram como setas a feri-la. O meu tio-avô e padrinho José Baptista que os herdou dos pais dele, foi sujeito a todo o tipo de pressões e manobras para lhos vender. A tudo resistiu, não permitindo que esses sobreiros passassem a ter outra marca que não a da família dele. A velha Aprígia morreu e foi para o céu ou para os infernos, com esses dois espinhos cravados no coração. O meu padrinho, solteiro toda a vida, escolhendo os caminhos da liberdade que mais gostava, para mim era um santo, com os pecados que todos os santos admitem ter, se não forem hipócritas, morreu aos sessenta e nove anos, bem comido e bem bebido, na noite do arraial da festa da Senhora do Caminho, em Mogadouro. Se Deus existe, peço-lhe que o trate bem lá em cima, onde se diz que moram os Justos.



Fonte do Azinhal

Saindo do Azinhal, a cerca de um quilômetro a leste, era a Fonte do Junco, onde tínhamos mais sobreiros. Perto numa casa pequena, morava um casal de Remondes, simpático, sem filhos, cuidavam duma pequena horta e de algumas oliveiras. Ela, a tia Laurinda, teria outras actividades caseiras, e ele, o Zé Bento, caçava muito, clandestinamente. Ela gostava de falar, não admira, a solidão era muita, dizia-me que ainda era prima da minha mãe, eu ficava contente já que seria a única familiar da minha mãe nessa terra, onde o meu pai tinha tantos parentes. Gostava deles também porque eles realizavam um ideal de isolamento, com o céu imenso e a terra a perder de vista, como companhia.

Na Fonte do Junco havia mais dois sobreirais nossos, presumivelmente da mesma herança remondesa. Quando eu era um adolescente imberbe, o transporte dessa cortiça era feito com carros de vacas ou bois e seguia o caminho de Remondes, por ser mais suave e menos difícil para os animais. Esse caminho só já perto de Remondes é que derivava para Brunhoso. Eu sentia muito orgulho em "tocar" um desses carros de vacas, com cortiça, sobretudo quando ela era do sobreiral da fonte do Azinhal, com cortiça da melhor qualidade, tábuas largas, fechadas, sem poros visíveis.
Nas povoações mais próximas do vale do rio Sabor, a pedra predominante, quase a única, era a de xisto. Haverá uma explicação em termos geológicos que o meu pouco saber nesta matéria não me permite dar. Era com essa pedra que as povoações faziam as casas, os muros e todo o tipo de construções. Apesar de existirem grandes aglomerados dessa rocha, grande penedos e fragas de xisto, a sua constituição por camadas com linhas de fragmentação irregulares, não permitia cortar grandes blocos com simetria como noutras rochas, como o mármore, o granito ou o basalto com outra consistência.
Para construir as várias entradas, portas, portões e janelas e dar consistência à obra, viam-se obrigados a comprar granito que encontravam em terras do vale do rio Douro, na direcção de Miranda.
Nesse tempo havia bons pedreiros em Brunhoso, Remondes e todas as outras aldeias, era uma arte que se cultivava. Do passado dos três séculos anteriores essa arte na sua melhor perfeição nota-se ainda nas grandes curraladas, já que não levavam nenhum revestimento de cal. As casas, apesar de a maioria serem construídas com paredes de um metro ou mais de largura, no geral levavam cal, talvez para as isolar mais do frio e do calor, muito excessivos nesse tempo. A arte milenar de pedreiro foi-se perdendo nos tempos modernos, com a construção dos prédios em tijolo e cimento armado. Porém em Remondes houve um grupo de pedreiros habilidosos que continuaram a construir com pedras de xisto na terra deles e noutras para onde eram chamados, inclusivé para lá da fronteira.

Parede de xisto em Remondes

A agricultura de Remondes tal como a de Brunhoso, com as mesmas características de terrenos, era de cereais na zona do planalto, de oliveiras na encosta do Sabor, hortas perto da povoação e sobreiros bastantes, um pouco por toda a área. Nunca abandonaram as oliveiras, mesmo as da encosta do rio, com a ajuda ou não de máquinas modernas e continuam a tratar os campos próximos ou longe da aldeia com culturas antigas ou novas plantações. A emigração clandestina que foi um choque em muitas terras do interior, por ter arrastado consigo quase todos os trabalhadores, em Remondes começou mais tarde, foi gradual e começaram para ir para Espanha, que sendo mais perto dava possibilidades de virem mais vezes à aldeia ver as famílias e tratar das culturas. No geral os terrenos para venda em Remondes têm continuado a ser muito valorizados.
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Notas do editor:

Poste anterior de 5 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21518: Os nossos seres, saberes e lazeres (418): O Rio Sabor da minha juventude e o de hoje (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Último poste da série de 14 DE NOVEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21542: Os nossos seres, saberes e lazeres (422): Na RDA, em fevereiro de 1987 (3) (Mário Beja Santos)

sábado, 15 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21255: 16 anos a blogar (15): A Mãe-de-água e as Fontelas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 14 de Agosto de 2020, para nos fala mais uma vez do povo de Trás-os-Montes, seus usos e costumes:


A MÃE-DE-ÁGUA E AS FONTELAS

Francisco Baptista

São sete homens, é meio-dia, de um qualquer dia de Julho, o calor aperta nas serranias transmontanas, abrem as sacas de linho ou estopa e retiram, o pão, o chouriço, o presunto, o toucinho, o frango assado, ovos cozidos ou omeletes, tiram dos bolsos das calças as navalhas de Palaçoulo, já gastas pelo uso, o almoço de cada um que varia entre todos estes produtos, vai começar, debaixo de sobreiros altos que ensombram a "fontela" da água que brota à superfície da terra, com que matarão a sede. Há também algum vinho numa "cabaça" que passará de mão em mão e de boca em boca, para revigorar as forças..

Cinco homens feitos, já todos chefes de família, são tiradores de cortiça, enrijecidos e queimados, pelo trabalho e pela exposição solar, com as mãos calejadas e negras pelo contacto frequente com o "verde" das tábuas de cortiça. O sexto homem, forte e atlético é o patrão, que orienta e ajuda na tiragem da cortiça sempre com a preocupação de que não se estraguem as árvores. O sétimo é um dos filhos dele que tanto poderá ter treze como vinte anos e tem por missão pintar nos sobreiros descortiçados o ano da tiragem e as iniciais do proprietário e transportar às costas a cortiça para as "rodeiras" onde possam ir os carros de vacas. Se tiver energia, curiosidade e habilidade para tal, poderá também subir aos sobreiros e colaborar na tiragem, o mais velho deles tinha. A cortiça para ter uma grossura razoável para ser vendida para as fábricas de Fiães e Lourosa, por lei, tem que ter pelo menos nove anos de crescimento, que qualquer pessoa pode ler nela, pois cada ano faz uma marca.

Nesse tempo, última metade do século passado, havia na aldeia cerca de quinze tiradores de cortiça, poucas aldeias de Trás-os-Montes, teriam tantos. Hoje por causa das alterações climáticas e das secas que tem provocado a morte de milhares de sobreiros, a produção de cortiça é muito menor, porém os tiradores de cortiça muitos filhos ou netos desses, continuam a ser no mesmo número.

A tiragem da cortiça é dos poucos trabalhos agrícolas que ainda não é mecanizável, tal como no passado e não o será no futuro penso eu. Trabalho humano, muito duro, mesmo para retirar as tábuas mais largas do tronco, que sai da terra, requer muita destreza e equilíbrio, quando se sobe aos canos. Usam uma machada própria, por ferramenta principal e uma panca, pau rijo e comprido, em cunha, a que alguns chamavam Vicente, (como se fosse mais um trabalhador) para ajudar. Trabalho de preferência, em grupo, por ser mais rentável e seguro. Antigamente, porque a cortiça era muita, a colheita da aldeia ocupava-lhes todo o tempo, agora que é menor, os novos corticeiros vão a aldeias próximas e percorrem ainda as Beiras e o Ribatejo enquanto o tempo o permite.

Brunhoso persiste em não ficar parado e em tentar sobreviver à desertificação. Há jovens empresários na aldeia que se esforçam tanto nesta como noutras áreas por criar trabalho e rendimento para eles e para os outros A cena do almoço, a que eles chamam merenda, (é a seco, a comida não é cozinhada ao lume) passa-se na Lagariça onde há a maior mancha de sobreiros de Brunhoso. O mais novo terá também por tarefa, transportar água da fontela sempre que os trabalhadores tenham sede.

Depois de alguns dias na Lagariça cenas semelhantes se repetirão na Hortelã, Fonte da Dona, Ferreiros, Fonte do Buraco, Fonte do Junco, Relva, Azinhal, Gaiteiro, Ribeira, Entre-Caminhos, Cova dos Lobos, Escaleiras.

Hortelã 

Lagariça

Bem perto, a um quilómetro, fica a Fonte da Dona, onde os homens almoçavam debaixo de um grande sobreiro. Tanto a água desta fonte como a da Lagariça embora fresca não era muito saborosa, talvez por causa das raízes dos sobreiros ou das folhas que caíam e que muitas vezes apodreciam lá dentro, pois a limpeza era sazonal, quando alguém aparecia.
Do outro lado no "avessedo" é a Hortelã, onde existe a mata mais densa de sobreiros, muitos quilómetros ao redor, lá não há fontes ou fontelas.

Fontela da Fonte da Dona 

Fontela da Lagariça (encoberta) 

Fontela de Juncais, com corcha de cortiça

Uma corcha, mais visivel

Descendo mais um quilómetro na direcção do Sabor existe o sobreiral dos Ferreiros com uma fontela num olival próximo onde havia também uma macieira com boas malapas (maçãs pequenas e saborosas) Quando não havia fontelas tinha que se transportar a água de longe em cabaças, cântaros ou garrafões.

Na Fonte do Junco e no Azinhal, no termo de Remondes, havia quatro sobreirais, os do Azinhal, encravados na grande área de sobreiros e oliveiras, propriedade da Aprígia uma ricaça de Mogadouro. No sobreiral de baixo, quase no limite, havia uma fonte onde a água, muito boa, manava com abundância e ia irrigar hortas e árvores de fruto dessa senhora.

As fontes ou fontelas estavam espalhadas por toda a zona camprestre para tirar a sede a tantos lavradores e trabalhadores da terra que além de grandes caminhadas, muitas vezes a pé, suportavam trabalhos cansativos e duros. Essas fontes normalmente eram pequenas nascentes de água que brotavam do solo e onde desde tempos antigos as pessoas cavavam uma pequena de poça, onde se pudesse beber, de bruços, com o auxílio de uma corcha de cortiça (no Alentejo chamada cocho ou cocharro) ou com as mãos a fazer concha. Quem bebia dumas e doutras sabia distinguir as suas águas pelo sabor, pela frescura, pela doçura, pela salinidade ou outros atributos. Não eram objecto de qualquer análise bacteriana ou outra por parte das entidades públicas. Com a sua experiência e o seu saber, os habitantes da aldeia é que as analisavam e discutiam entre eles as suas qualidades.

À beira de alguns caminhos havia fontelas muito conhecidas, como as de Juncais e Juncaínhos. A mais famosa era a de Juncaínhos pela frescura e doçura da sua água. Dela contava o Sr. João Passarinho o seguinte facto passado nos anos quarenta: Em 1940 foram para Mogadouro várias equipas dos Serviços Cartográficos do Exército para fazer o cadastro geométrico da propriedade rústica de todo o concelho, onde se demoraram durante mais de dois anos. Para Brunhoso foi uma equipa comandada por um tenente, tendo sido o Sr João, então um jovem trabalhador, já bem conhecedor dos prédios rústicos e dos caminhos, contratado para informador e guia. Disse-me ele, repetidas vezes, que o Sr. Tenente só gostava da água de Juncaínhos, e que todos os dias mandava lá o impedido buscá-la. Infelizmente hoje, essa fontela, está coberta por arbustos e silvas, espreitando pelo emaranhado que a cobre, nem água se vê, provavelmente some-se por outro sítio.

O Sr. João Passarinho já morreu há mais de trinta anos, acredito que durante a vida dele a fontela sempre teve boa água ao dispor de todos os caminhantes e que ele a terá limpado muitos vezes. Era um grande homem, de pequena estatura, humilde, trabalhador, que à jeira ou ajudando outros tão necessitados como ele, conheceu palmo a palmo toda a área agrícola da aldeia. O Sr. João Lagoa, outro bom homem, sendo o homem mais rico da aldeia, a quem ele chamava padrinho, seria dos filhos dele, e de metade dos habitante da terra, não terá sido mais feliz do que ele. Penso que ele morreu a sonhar que toda a área agrícola de Brunhoso, de vinte e um quilómetros quadrados onde ele tinha trabalhado quase 80 anos e onde ele tinha uma pequenina parcela se despedia dele.

Depois de um dia de trabalho extenuante não haveria sono mais reparador e gratificante do que o dos trabalhadores da terra. Ao deixarem a vida, no caminho para o sono eterno seriam transportado por campos de searas, hortas, prados, vinhas, freixos, olmos, sobreiros, carrascos, oliveiras, castanheiros e outras árvores, fontes, rios, ribeiros. Vidas tão cumpridas como eles somente terão tido os cientistas e artistas que se empenharam em grandes projetos criativos.

Nesse tempo toda a água que se consumia em Brunhoso, nascia dentro do seu "termo". A nascente que alimentava a aldeia a chamada "Mãe-de-Água" ficava a um quilómetro da aldeia, numa encosta , que subia para o souto dos castanheiros a nordeste. Era uma mina de água construída em tempos antigos por especialistas, que fazia confluir as águas subterrâneas da área, para um depósito, donde depois era canalizada para as quatro "bicas" da aldeia, para a Fontoz nas Fontaínhas e o tanque das Eiras de Baixo para os animais beberem e onde as pessoas podiam também colher água dos canos, antes de cair nos depósitos, nos tanques.


No limite sudoeste a cinco quilómetros da aldeia passava o rio Sabor, que criava nas suas arribas um microclima mais ameno, quase mediterrânico, propício às culturas das oliveiras, das amendoeiras e das figueiras. Criava fantasias de brincadeiras na água entre os mais novos e lindos espelhos de água com paisagens belas pintadas de azul celeste.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21169: 16 anos a blogar (14): Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

terça-feira, 28 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21205: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (16): Álbum fotográfico - Parte IX

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 27 de Julho de 2020:

Bom Dia e boa semana Carlos Vinhal,
Aqui te envio mais uma página do meu Álbum de Fotos, é por isso a N.º 9, e também a última. Estas são as fotos que ainda guardo como boa recordação pois muitas mais teria se não se tivessem estragado, talvez pela fraca qualidade do papel, ficaram umas debotadas e outras amareladas. Talvez até pela velhice.
Dentro de dias entrará o mês de Agosto e, por isso, durante esse mês não enviarei mais trabalho mas voltarei depois das férias, se é que vai haver férias.
Desde jà envio abraços para todos os Membros da Tabanca Grande e, em especial, para o Carlos, Luís Graça e todos os restantes Chefes de Tabanca, com votos de que tenham umas boas férias, bem gozadas, mas com o devido cuidado desse tão grande inimigo que sempre que pode ataca, obrigando-nos a usar máscara.
Albino Silva



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Nota do editor

Último poste da série de 16 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21173: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (15): Álbum fotográfico - Parte VIII

terça-feira, 21 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21189: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (121): com a ajuda do José Martins (, o nosso "Sherlock Holmes"), o João Crisóstomo, a partir de Nova Iorque, acaba de reencontrar, mais de 50 anos depois, o seu camarada de Mafra, Lamego e Beja, Luís Filipe Galhardo Lopes Ponte, hoje ten cor ref


Imagem nº 1 > Lamego, CIOE, 1964, turma B


Imagem nº 2 > Lamego, CIOE, 1964, turma A

Lamego, CIOE > 1964 > Turmas A e B do curso de operações especiais: o João CRISÓSTOMO  pertencia à turma B (imagem nº 1); e o Luís Filipe GALHARDO Lopes  Ponte à turma A (imagem nº 2) 


Imagem nº 3

Excerto da carta, de 22/5/2020, do capelão militar do RI 3, Beja, padre João Diamantino, ao João Crisóstomo: (...) "Sei que portaste muito bem em Lamego, pelo Luís Filipe da Ponte que está aqui no RI 3" (...)


Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do nosso colaborador permanente José Martins [, ex-fur mil trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/7o; tem mais de 410 referências no nosso blogue; vive em Odivelas; revisor oficial de contas reformado]

Date: segunda, 20/07/2020 à(s) 18:40
Subject: Mensagem ZULU: Em busca do "Luís Filipe"
Boa tarde

Tive o grato prazer de receber uma chamada do João [Crisóstomo], ontem à tarde.

Estivemos a falar o que foi extremamente agradável. 

Terminada a chamada coloquei o nome de Luís Filipe Galhardo Lopes  Ponte (*) e a pesquisa encaminhou-me para a Federação Portuguesa de  Automóveis e Karts. 

Foi piloto durante anos.

Enviei mensagem solicitando informação se se encontrava ainda ligado  àquela federação e que pedia que me contactasse. Hoje recebi indicação  do seu contacto.

Já lhe telefonei, mas não tem memória, pelo menos de imediato, do João  Crisóstomo. Esteve em Mafra e por lá ficou, continuando a tropa no  Quadro Especial de Oficiais. É tenente coronel reformado. 

O contacto do telemóvel é [...].

Espero que tenhas encontrado o homem.

Abraço, Zé Martins


2. Mensagem de João Crisóstomo [luso-americano, natural de Torres Vedras, conhecido ativista de causas que muito dizem aos portugueses: Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes... Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, foi alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): vive desde 1975 em Nova Iorque],  dirigida ao Luís Filipe Galhardo Lopes Ponte, através do e-mail do seu filho Francisco Ponte:

Date: segunda, 20/07/2020 à(s) 20:50

Subject: Hello de Nova Iorque!....

 Meu Caro Luís Filipe,

Permito-me apelidar-te assim, baseado na nossa amizade de há cinquenta anos atrás: Mafra, Beja, Lamego…

Vejo que temos muito em comum, entre elas o de termos esquecido muitas coisas,  o que me sucede mais frequentemente do que eu desejaria… Neste caso porém parece que eu me lembro de mais coisas do que tu, pois nem o meu nome te lembravas já...

Mas eu nunca te esqueci, e muitas vezes me tenho dito: quero encontrar o Luís Filipe,  nunca mais esqueci o abraço (e lágrimas) que me deste (dentro do comboio) em Vila Franca de Xira, quando vinha eu do Porto para Lisboa. Tu,  ao veres-me , ficaste muito espantado e agarraste-te a mim num abraço que jamais esqueci … E que te tinham dito que eu tinha morrido na Guiné…

Bom, vamos com certeza falar mais, para já falamos pelo telefone e oxalá um dia o possamos fazer pessoalmente.

Estou neste momento um pouco apertado (tenho um encontro marcado) mas quero-te enviar aqui estão algumas fotos de que te falei (dentro do contexto duma mensagem que enviei, andando à tua procura…) 

Tu na foto do curso de  Lamego [, de operações especiais,]  estás na turma A, o 3º a contar da esquerda, na última fila, de apelido Galhardo…  A carta do P. Diamantino, que também anexo, menciona o teu nome Luís Filipe Ponte… 

Na outra foto eu estou na turma B, o 3º a contar da esquerda, na última fila...

Um grande abraço e até breve, que eu telefono-te brevemente outra vez!

João


PS - Por favor DIZ AO TEU FILHO PARA FAZER UM "REPLY" ( um simples "OK recebido" é suficiente!), para confirmar o endereço e eu ficar a saber que recebeste...

3. Mensagem do João Crisóstomo, enviada na mesma data e hora ao nosso editor:

Caro Luís Graca,

Depois do post 21079 fiquei a matutar como é que havia de consultar os Arquivos Militares mencionados pelo nosso colega José Martins. Queria dizer-lhe o meu muito, muito obrigado pelo interesse e trabalho de investigacão, mas preferia ( como sempre!) fazê-lo por telefone. Daí a minha chamada de hoje.

Sucede que ao procurar alguns documentos relacionados com a CCaç 1439, vim a descobrir também fotos, cartas, aerogramas, etc.,   que sabia ter guardado como recordações dos meus tempos da Guiné. 

 Mas,  "saído da tropa", levei estas recordações comigo para a Inglaterra, e depois andaram sempre comigo: Paris, Stuttgart, Rio de Janeiro , Nova Iorque … Todavia, com tantas mudanças e endereços,  eu pensava que se tinham já "extraviado".

Que grande satisfação ao reencontrar tanta coisa que já tinha dado por perdido!
Interrompo para te dizer que acabo de falar com o José Martins a quem pude dar pessoalmente o meu grande abraço de gratidão pela sua ajuda. Graças ao "teu/nosso" blogue e a indivíduos como ele,  conseguimos encontrar camaradas há muito tempo perdidos! (**)

Isto é melhor que o Facebook (que também tentei consultar, mas fiquei logo perdido sem chegar a parte nenhuma).

Bom, continuando: Uma das cartas que encontrei, escrita a 22 de Maio de 1965, foi-me enviada pelo P. João Diamantino, na altura capelão militar do RI 3, de Beja por onde passei e onde, saído de Mafra, "preparei" um pelotão. 

Nesta carta ele menciona o Luís Filipe da Ponte, que lhe tinha dado notícias minhas: tínhamos estado juntos e feito o "curso de Rangers" em Lamego; mas a minha memória de gato já não se lembrava disso. 

E encontrei então uma foto desse curso , onde vem um indivíduo ( na turma A, o 3º a contar da esquerda, na última fila) que até me parecia o Luís Filipe, mas o nome não condizia: era Galhardo..."Que semelhança", pensei eu. 

Mas há tanta gente parecida e já me têm sucedido situações até embaraçosas… Mas se ele fez o curso comigo … E  fui de novo à foto: reparei então que o nome "Galhardo" que identifica o indivíduo que "se parecia" com o Luís Filipe,   é um dos nomes do seu nome completo… 

Tem que ser ele!

Agora fico esperançado de ainda poder encontrar o meu camarada amigo que chorou de comoção por me "encontrar vivo", depois de lhe terem dito que eu tinha morrido na Guiné.

Ao meu "camarada salva-vidas" José Martins, peço mais um favor: mencionaste três arquivos; sabes em qual deles encontraste o Cap Luís Filipe Galhardo Lopes Ponte? 

E a quem quer que me possa ajudar … fico antecipadamente grato por qualquer dica ou ajuda em como encontrar/saber a sua morada, etc.,  etc.,  etc… Oxalá seja possível. 

A minha vida está cheia de momentos destes, de reencontros de amigos a quem a separação ocasionou a perda de contactos. E se o "perder" um amigo é sempre uma experiência traumática para mim, o reencontrá-los é sempre uma experiência exilariante.

Sei bem que isto é uma experiência que muitos de nós temos vivido e, sabe Deus, com quanta emoção também. Portanto sabem bem do que estou a falar.

A todos um grande abraço do

João Crisóstomo, Nova Iorque

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de:

10 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21063: Tabanca da Diáspora Lusófona (11): Procuro, desde 1967, o Luís Filipe, que foi meu camarada, no COM, 1º turno de 1964, 3ª Companhia, 5º pelotão, EPI, Mafra... Encontrei-o na estação de caminho de ferro de Vila Franca de Xira, deu-me um grande abraço, julgava-me morto na Guiné, passámos um fim de semana no Algarve, tenho ideia que era alentejano, de boas famílias... Quem saberá o seu nome completo, e outros dados que me permitam ainda poder encontrá-lo ? (João Crisóstomo, Nova Iorque)

15 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21079: Consultório militar do José Martins (51): Fontes arquivísticas para o João Crisóstomo, que vive em Nova Iorque, procurar o nome (e, eventualmente, o paradeiro) do Luís Filiipe, que foi soldado-cadete, do 1º turno de 1964, COM, EPI, Mafra: Escola Prática de Infantaria, Arquivo Geral do Exército, Arquivo Histórico-Militar, Liga dos Combatentes... Há três capitães milicianos com este nome, Luís Filipe Fernandes Tavares (BART 6524/74, Angola); Luís Filipe Rolim Oliveira (BCAV 8323/74, Angola); e Luís Filipe Galhardo Lopes Ponte (CART 3572, Moçambique)

Último poste da série > 27 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20780: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (118): A COVID-19 não passará!... Felizes reencontros de 3 camaradas, que estão à distância de um clique... mas fisicamente separados e agora confinados... Falamos de: (i) José Joaquim Pestana, gravemente ferido em combate em 9/3/1970, no Xime, quando era fur mil da CART 2520, e que vive em Torre de Moncorvo, sua terra natal; (ii) José Nascimento (em Faro, a 671 km, de carro); e (iii) Paulo Salgado, amigo de infância e vizinho do Pestana, a 400 metros da sua porta...

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21173: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (15): Álbum fotográfico - Parte VIII

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 15 de Julho de 2020:

Boa tarde Carlos Vinhal
Como sempre tenho acompanhado tudo o que se vai postando na Tabanca Grande e, claro está, o trabalho que te tenho enviado e que acho que está muitíssimo bem.
Hoje aqui te mando o N.º 8 do meu Álbum de Fotos.
Pelo tempo em que andei afastado, agora não te dou descanso pois para além das fotos ainda há mais artigos para a Tabanca.
Sem mais de momento, um Abraço para todos vocês Chefes de Tabanca e ainda para todos os que nela gostam de estar.
Albino Silva


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Nota do editor

Último poste da série de 9 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21154: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (14): Álbum fotográfico - Parte VII

terça-feira, 14 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21169: 16 anos a blogar (14): Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Brunhoso - Horta de Lamas


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 12 Julho de 2020:


VIAGEM


A música parece vir do Além. 
Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer. 

Neste tempo de pandemia, entre confinado e desconfiado, é ela que me me leva a conviver, a recordar com saudade e melancolia, a comunidade das mulheres e dos homens que amei e já partiram. A música derrama-se com suavidade sobre o silêncio que me cerca e traz consigo um tempo que foi morrendo. Vem-me à memória uma caminhada que fiz há dias na aldeia

Passei pelo sítio dos Olmos, tão verdes , tão frondosos, morreram há muitos anos, agora há lá freixos e choupos, passei pelo largo da Lameira, cruzamento de caminhos e sigo em direcção a Lamas por um caminho sombreado de sobreiros, carrasqueiras e carvalheiras. Em Lamas avisto uma horta bem plantada e bem cuidada, como esta somente irei encontrar mais duas. As outras hortas estão cheias de fenanco, silvas e, arbustos, entre elas está a horta que foi duns avós, depois dos meus pais, onde cavei, lavrei, reguei, apanhei batatas, muitos vegetais, comi melões e nabos, ginjas, amoras de silva.
Toquei a burra , nas voltas da nora, ainda antes de ir à escola, por vezes parava já cansado de tantas voltas, a burra parava também, e de longe, na parte de baixo da horta, ouvia o meu avô chamar-me malvado, porque a água se acabava na "augueira".

A água das poças e charcos de Lamas e Vale-do-Meio que regava "por pé" cerca de trinta hortas destes dois sítios corre agora com abundância pelo caminho que de Vale-de-Meio desce para Lamas que encharca o caminho de Vale-do Meio e prossegue entre as hortas de Lamas. Aprendi a viver com tudo e a viver em todos os ambientes, gostaria de ter a experiência de vida de viver algum tempo no deserto mas o tempo de vida e as comodidades de 50 anos de cidade já me condicionam. Tornei-me um pequeno-burguês, com carro, com sofá, com horários, hábitos e outras comodidades. Sou um cidadão bem comportado, vigiado pelos meus iguais e outros, ainda antes do Covid 19.

Lameiro de Vale-de-Cabo

Os habitantes da aldeia agora reduzidos a um quinto de tempos passados, cultivam alguns quintais e pequenas hortas à volta do povo. Cultivar para vender deixou de ser rentável há muitos anos. Continuo, passo pelos lameiros (prados) de Vale-de Cabo, são dois, um deles era dos meus pais, é de sobrinhos meus, gostava de ir para lá com as vacas, tinha luz, visibilidade, avistava-se a aldeia, ficava no planalto, ao lado era o Urzal, com terras de cereal a perder de vista, com algumas vinhas na Tapada perto, dos meus tios, onde roubei algumas uvas. Já não há vinhas, nem searas douradas ao vento, no seu lugar alguns donos das terras plantaram oliveiras e amendoeiras.

 Sobreiros das Rodelas

Subo um pouco mais o planalto, chego às Rodelas e avisto a paisagem típica transmontana, para lá do Sabor, escondido no vale e algumas franjas de Castro Vicente, atrás do cabeço de Santo Cristo. O caminho entre as Rodelas e as Avessadas é frondoso, com sobreiros com muita rama, grandes e fortes, de ambos os lados. Sinto um grande prazer em caminhar à sombra destas árvores gigantes, que ganharam direito de cidadania , pela riqueza que têm dado à terra..Viro para casa por um caminho paralelo e em parte igual, com muitas terras de "adil" e bastante oliveiras também. Nas Avessadas havia algumas vinhas, entre elas a dos meus avós maternos, onde fui ainda à vindima, quando era garoto da escola. Só já resta uma vinha mais nova, cereais também não há, há oliveiras e amendoeiras, a cobrir parte da área Desço os Lameirôes, volto aos Olmos e entro na aldeia com a igreja à vista, a grande casa, a Casa de Deus, agora mais deserta, como as casas e os terrenos e eu que gostos de cânticos, sem saber cantar, recordo o canto compassado, arrastado por vozes pesadas, gastas, graves, dos homens grandes (mais velhos) da aldeia, num latim antigo, em tempo de Quaresma, fechados na Igreja, perto do portão grande. por onde saiam as procissões. ainda saem. Há muitos anos que não se ouve esse cântico, os que o cantavam já morreram todos, com as suas mortes a terra foi definhando e morrendo, para mim essa música parecia vir do Além.

Texto, fotos e legendas: © Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20988: 16 anos a blogar (13): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte II (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)