A apresentar mensagens correspondentes à consulta "Cherno Sanhá" ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta "Cherno Sanhá" ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22920: (Ex)citações (399): Ética na guerra? O caso do "matador" do comandante de bigrupo Mário Mendes (1943-1972): "Não se mata um homem de costas", disse ao António Duarte, o apontador da HK 21, do 4º Gr Comb da CCAÇ 12... (Seria o Cherno Baldé?)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > CIM de Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > > O Valdemar Queiroz, com os recrutas Cherno Baldé, Sori (Jau ou Baldé) e Umaru Baldé (que, feita a recruta, irão depois para a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, a partir de 18 de junho de 1970). Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade (!). Eram do recrutamento local e, originalmente, não falavam português. Terá sido este Cherno Baldé o "matador" do Mário Mendes? Em 1969/71, havia dois soldados com este nome, ambos fulas, um deles o sold nº 82115269 Ap Metr Lig HK 21, da 1.ª secção do 4.º Gr Comb (que eu, Luís Graça, integrei muitas vezes ao longo da comissão).

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. C
omentário de António Duarte [ex-fur mil da CART 3493, a companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e onde esteve em rendição individual até março de 1974; economista, bancário reformado, formador, com larga experiência em Angola; tem mais de meia centena de referências no nosso blogue] (*)


Boa noite Camaradas.

O homem do PAIGC, Mário Mendes, lidera a operação de colocação de minas. Mata e provoca feridos à CCAÇ 12  e, passado mais de um ano,  morre às mãos da mesma companhia de caçadores.

Casualidades da guerra, bem tristes por sinal. Há uma curiosidade sobre a morte do Mário Mendes. À época eu pertencia à companhia de Mansambo, a CART 3493 / BART 3873 e assisti a uma conversa entre o furriel que comandava a secção de HK 21 e o soldado fula que o abateu, em Bambadinca. 

A CCAÇ 12 estava no mato e detetou a presença de tropa do PAIGC. Ficou também claro que a CCAÇ 12 estava detetada, Os dois grupos evoluíram com muito cuidado e, a determinada altura, penso já perto da Ponta Varela,  a CCAÇ 12  abandonou o trilho e emboscou dentro do mato, ficando a HK 21  apontada na direção de onde se pensava que poderiam vir as tropas do PAIGC. 

Passados alguns minutos vem ao trilho um homem deles, que se ajoelhou e percebe-se que tenta "ler" as pegadas. Os restantes estavam emboscados no lado inverso ao da CCAÇ 12. O furriel faz sinal ao nosso militar para abrir fogo. Para espanto dele, em vez de disparar e apanhar o guerrilheiro em causa,  debruçado e de costas, o homem do quarto pelotão emite um ruído do género "pst pst", o guerrilheiro volta-se e nesse momento é abatido. 

Justificou-se então o nosso apontador, que ele nunca mataria um homem pelas costas.

Entretanto fui para a CCAÇ 12  em janeiro de 73 e tive a oportunidade de confirmar com o próprio e reafirmou-me que não matava ninguém pelas costas. 

Em síntese um código ético pouco compatível com a guerra.

Um abraço
António Duarte
Ex fur atirador, CART 3493 e CCAÇ 12 (Mansambo e Xime, dez 71 /jan de 74)


18 de janeiro de 2022 às 19:32

2. Comentário do editor LG:

O nosso coeditor Jorge Araújo já aqui deu mais informação detalhada sobre este encontro fatal do Mário Mendes. (***)

O comandante de bigrupo Mário Mendes (1943-1972)  morreu em 25 de maio de 1972, 5.ª feira, no decurso da Acção Gaspar 5, realizada por seis Grupos de Combate,  três da CART 3494 e outros três da CCAÇ 12. 

O encontro fatal deu-se em Ponta Varela, tendo sido capturada a sua Kalashnikov, três carregadores da mesma arma e ainda documentação que dava conta do calendário de acções planeadas para a zona, atuava no Sector 2, da Frente Xitole-Bafatá (, nomenclatura do PAIGC), em particular no triângulo Xitole-Bambadinca-Xime.  (****)

Quem teria sido o "matador" do Mário Mendes?

No meu tempo, no 4º Gr Comb da CCAÇ 12 (Bambadinca, julho de 1969 / março de 1971), a HK21 fazia parte da 1.ª secção. E o apontador era o Cherno Baldé, fula (F):

4.º Gr Comb | Comandante: alf mil  cav 10548668 José António G. Rodrigues [, já falecido, vivia em Lisboa]

1.ª secção | fur mil 15265768 Joaquim Augusto Matos Fernandes [, engenheiro técnico, vive no Barreiro; destacado para o redoordenamento de Nhabijões, logo em finais de 1969; substituído, em muitas ocasiões, pelo fur mil arm pes inf, Luís Manuel da Graça Henriques]

1º Cabo 18861568 Luciano Pereira da Silva [, morada actual desconhecida];
Soldado Arvorado 82115469 Samba Só (F)
Soldado 82109869 Samba Jau (Mun Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82115269 Cherno Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82117569 Mamai Baldé (F)
Sold 82117869 Ansumane Baldé (Ap Dilagrama) (F)
Sold 82118269 Mussa Jaló (Ap Dilagrama) (FF)
Sold 82118969 Galé Sanhá (FF)

2.ª secção (a do Mort 60 e do dilagrama) era comandada pelo  fur mil at inf 11941567 António Fernando R. Marques [, vive em Cascais, empresário reformado] e  3.ª secção (a do LGFog 8,9) pelo 1.º Cabo 00520869 Virgílio S. A. Encarnação [, vive em Barcarena]:

É de todo provável que o Cherno Baldé, sold nº 82115269 tenha sido louvado (ou até ganho uma cruz de guerra) por este feito. Mas havia outro Cherno Baldé, também fula, soldado 82109669, Mun Metr Lig HK 21, que pertencia à 3.ª secção do 3.º Gr Comb (comandado pelo alf mil at inf Abel Maria Rodrigues [, bancário reformado, Miranda do Douro]. 

A 3.ª secção era comandada pelo fur mil at inf n.º 06559968 José Luís Vieira de Sousa [, natural do Funchal, agente de seguros reformado]. 
___________

Notas do editor:


(***) Vd. poste de:

17 de maio de  2017 > Guiné 61/74 - P17368: Efemérides (251): ... em abril de 2017: o 13º aniversário do nosso blogue, o XII Encontro Nacional da Tabanca Grande, os 43 anos do regresso da minha CART 3494, o 25 de Abril e o fim da guerra, o meu batismo de fogo há 45 anos em emboscada comandada pelo Mário Mendes (que viria a ser abatido um mês depois)...enfim, os nossos encontros e desencontros (Jorge Araújo)

21 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16865: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (3): Mário Mendes (1943-1972): o último cmdt do PAIGC a morrer no Xime... Elementos para a sociodemografia do seu bigrupo em 1972: tinha 27.9 anos de idade e 8.9 anos de experiência de conflito...

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22812: (De)Caras (184): Sene Sané, régulo de Pachisse, com capital em Canquelifá, tenente de 2ª linha, vogal do Conselho Legislativo, falecido em 1969


Sené Sané, régulo de Canquelifá, eleito pelas autoridades tradicionais para o Conselho Legislativa da Província Portuguesa da Guiné. Sané Sané, régulo de Canquelifá, Tenente de 2ª linha, pertencia *a nobreza mandinga, sendo descendente do último rei do império do Gabu (morto na batalha de Cansalá, em 1867). Publicada em "O Arauto", diário da Guiné, edição de 14 de junho de 1964.

Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do do livro de fotografia "Buruntuma: algum dia serás grande, Guiné, Gabu, 1961-63". (Edição de autor, Oeiras, 2016).] (*): o fotógrafo, em 1961, ao lado do então régulo Sené Sané, que era tenente de 2ª linha. junto ao marco fronteiriço ("República Portuguesa: Província da Guiné"), na fronteira com a República da Guiné. Cortesia do autor-

O autor, Jorge Ferreira, ex-alf mil da 3ª CCAÇ (Bolama, Nova Lamego, Buruntuma e Bolama, 1961/63), é membro da nossa Tabanca Grande, é um fotógrafo amador com mais de meio século de experiência, tem um página pessoal no Facebook, além de um sítio de fotografia, Jorge da Silva Ferreira; as suas fotos de Buruntuma inserem-se na categoria da etnofotografia.


1. O PAIGC teve vários militantes (e guerrilheiros), de apelido Sané, provavelmente aparentados com o Sené Sané (**), um dos mais poderosos régulos da Guiné, na época colonial, ao ponto de ter sido eleito para o Conselho Legislativo da Província (criado pela Portaria n.º 19921, Diário do Governo n n.º 150/1963, série I. 

Os outros dois eleitos foram o régulo de Badora, Mamadu Bonco Sanhã, e o régulo de Cachungo, Joaquim Baticã Ferreira, fuzilados pelo PAIGC a seguir à independência. O Conselho começou a funcionar em 1964 sob o "consulado" de Schulz. Sené Sané teve "a sorte" de morrer... em 1969. Mas a sua cabeça devia estar... "a prémio", a par do Bonco Sanhá e do Baticã Ferreira.  Para o PAIGC, era "um dos cães dos colonialistas". (***)

Ironia da história, o actual régulo de Pachisse (vd. carta de Canquelifá 1957, escala 1/50 mil) que abrange as aréas de Canquelifa, Camajaba e Buruntuma, é o José Bacar Sané, um dos filhos do velho régulo Sene Sané (imformação confirmada pelo Cherno Baldé e pelo Patrício Ribeiro).(*)

Em 27/11/2019, o Patrício Ribeiro escreveu-nos (*): 

"Falámos com filho mais velho, do antigo régulo Sene Sané, José Bacar Sané, telemóvel nº 00254...119, morador em Canquelifa, é o actual régulo de Canquelifa e Buruntuma, já com alguma idade. (Foi antigo militar português do grupo de Marcelino do Mata).

"Nomeou o seu irmão mais novo, Mama Sané ( telemovel nº 00 245...330), residente em Buruntuma, seu representante do seu regulado em Buruntuma."

E a propósito o Chermo Baldé comentou no poste P20384 (*):

(...) "Como se costuma dizer, pode-se facilmente conquistar um território pela violência, mas é extremamente difícil continuar a governar as pessoas na base na mentira e na propaganda. Começaram, logo após a independência, por destituir todos os Régulos e Regulados (quando não eram fuzilados) e nomeado seus Comitês de tabancas. Com o tempo constataram que nada funcionava como queriam e a população não reconhecia as autoridades impostas de cima para baixo. Com o golpe de estado de Nino Vieira, voltaram a reconhecer as antigas chefias da época colonial para melhor controlar e manipular as populações."

E esclarece o nosso colaborador permanente, que vieve em Bissau: "O Regulado que tutela a cidade de Pitche chama-se Manna e tem a sua sede em Dara, localidade a cerca de 15/17 Km de Gabu cidade na estrada para Pitche. Este Regulado confina com o de Chanha a sul e o Paquessi a Nordeste/Leste."

O nosso editor LG,  por sua vez,comentou:

"Era voz concorrente que os elementos do grupo "Os Vingadores", comandados por Marcelino da Mata, teriam sido todos fuzilados, a seguir à Independência, com uma ou duas exceções (a começar pelo Marcelino, oportunamente refugiado em Portugal)...

"Se o José Bacar Sané, filho do antigo régulo Sene Saná, da época colonial (e amigo do Jorge Ferreira), foi um antigo militar português, e esteve integrado no grupo de Marcelino do Mata, "Os Vingadores" (de acordo com a informação do Patrício Ribeiro), e está vivo, mora em Canquelifa, e é hoje o atual régulo de Canquelifá / Buruntuma... bom, só temos que nos congratular com esse facto... Espero que seja um sinal, sincero e irreversível, da reconciliação dos guineenses que outrora foram 'inimigos', combatendo uns sob a bandeira do PAIGC e outros sob o estandarte do exército português, naquilo que foi não apenas uma 'guerra pela independência' ou de "libertação' mas também uma 'guerra civil' "


Guiné > Região de Gabu > Canquelifá > s/d  > O régulo Sene  Sané, tenente de 2ª linha, com uma das filhas, e um militar português. Alguém é capaz de identificar este camarada e a subunidade a que pertencia? - Pergunta a Lucinda Aranha. O régulo morreu em 1969.

Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Carta de Canquelifá (1957) > Escala 1/50 mil > Pormenor > Posição relativa de Canquelifá, capital do regulado de Pachisse.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


2. Reproduz-se  a seguir um documento, do Arquivo Amílcar Cabral, datado de Kundara, República da Guiné,  16 de janeiro de 1962, e onde é patente o temor que o régulo Sene Sané inspirava em Canquelifá: 

Em carta, datilografada a Amílcar Cabral, José Ferreira Crato faz o balanço das informações obtidas na sua sequência da sua viagem de  reconhecimento da região fronteiriça. Ele e o  seu companheiro, Alphouseni [Sané], natural do regulado de Pachisse,  não conseguiram transpor a fronteira e chegar ao coração da região de Gabu, como pretendiam, e conforme missão que lhes fora confiada pelo Secretário Geral do PAIGC. Todavia, terão recolhido informação relevante sobre Canquefilá.  Na povoação fronteiriça da Guiné-Conacri, que o remetente  não identifica, chama-lhe apenas "a última tabanca dos pajadincas", haveria já muitos "simpatisantes" do PAIGC... Repare-se, estamos o início do ano de 1962...

Pode ler-se: "Encontrámos muitos simpatisantes do nosso partido, porque quase todos os pajincas ali residentes são de Canquelifá, que fugiram por causa do régulo Sené Sané (sic)"... 

E arremata: "Eu não garanto, mas pelos vistos havemos de vencer o Sené Sané, sem dificuldades como muitos julgam".





Citação:
(s.d.), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37630 (2021-12-15)

Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares |  Pasta: 04604.038.014 | Assunto: Informa que já se encontra em Koundara. Missão na fronteira com Alfosseine. Dificuldades na tabanca dos Pajadincas. Can-Quelifá. Declarações da população local. Régulo Sene Sané. | Remetente: José Ferreira Crato, Koundara | Destinatário: Secretário Geral do PAIGC [Amílcar Cabral] | Data: s.d. | Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência 1962 (...)  |  Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.

  [Reproduzido com a devida vénia...]  

3. Comentário do Cherno Baldé, acabado de chegar,  ao poste P22808 (**)

A acentuação em alguns nomes não está correcta, assim escreve-se Sene e não Sené (nome próprio das etnias mandinga e fula); escreve-se também Alage e não Alagé (titulo honorifico de quem fez a peregrinaçao a cidade "santa" de Meca, transfigurado para nome próprio nos grupos muçulmanos).

O caso da família dos Sané, régulos de Pachisse com capital em Canquelifa e descendentes directos de Djanké Waly, o último rei de Gabu ou Kaabu, ilustra o facto de que, na realidade, nunca houve uma guerra entre fulas e mandingas, como sempre se propalou durante o regime colonial, pois se isso fosse o caso os Sané de Paqhisse (Canquelifa) não seriam régulos após a derrota dos mandingas. 

A história da África Ocidental está repleta de casos de guerras pelo poder em que os derrotados eram sempre obrigados a se submeter ao grupo maoritário de entre os vencedores e o surgimento de novas alianças estratégicas, facto que muitas vezes levava a mudanças radicais entre os vencidos, inclusive o abandono da sua língua e parte de práticas culturais e adopção de uma outra lingua, usos e costumes.

Neste caso concreto, os Sané de Canquelifa, para continuarem a fazer parte do poder foram obrigados a se converter a favor da língua fula, grupo maioritário e mais forte dentro do grupo que conquistou o poder, de tal maneira que as últimas gerações, vivendo no meio de uma maioria fula, já nao falavam a lingua mandinga e muitos nem se consideravam mandingas. 

Quem diz mandingas, diz também padjadincas, saracolés, landumas, bajaras, jacancas etc; da mesma forma que os fulas durante todo o periodo de mais de 6 séculos que estiveram sob o dominio mandinga de Mali, primeiro e Gabu, mais tarde, foram obrigados a falar a língua do dominador, apesar da resistência passiva em curso.

Era esta a realidade no terreno e em espaços humanos ainda em construção e em constantes mutações sócio-politicas e territoriais. Todavia, os novos acontecimentos no território após a independência (1974) tiveram o efeito e a tendência inversa ao curso dos anos anteriores, obrigando a novas situações e novos posicionamentos de adaptação ao novo contexto político e social.
____________

Notas  do editor:


(**) Vd. postes de: 


15 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22808: Fotos à procura de... uma legenda (157): Os quatro membros da comitiva guineense (a saber Sené Sané, Sampulo Embaló, Duarte Embaló e Alagé Baldé, amigos do meu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres,) às Comemorações do V Centenário da morte do Infante D. Henrique, agosto de 1960 (Lucinda Aranha, escritora) - II ( e última) Parte

(***) Último poste da série > 24 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22748: (De)Caras (183): Revivendo e partilhando (João Crisóstomo, Nova Iorque, de Visita a Portugal)

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22753: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
É bem provável que este fim de comissão coincida com a concretização de trabalho de Paulo em Bruxelas, seria uma verdadeira revolução, os cinquentões apaixonados juntos no ninho. Esta carta com apontamentos do quase final da comissão também deixa transparecer que Paulo, num curto lapso de tempo, terá que tomar decisões, é funcionário público, terá que pedir licença registada, seguramente que será deferido, são casos tratados como conveniência de serviço; dois dos filhos singram na vida, mas há aquele Ricardo que sofre de Síndrome de Asperger, é muito agarrado ao pai, há que adotar um procedimento de o deixar bem acompanhado, talvez mesmo haverá a necessidade de ele ir para Bruxelas, tudo isso vai pesar nas decisões de Annette e Paulo. Acontece que Annette trouxe uma questão nova para o romance: será que a comissão do Paulo acabou exatamente no dia em que ele desembarcou no Cais da Rocha do Conde de Óbidos? É possível acabar uma ligação que teve afetos tão poderosos? Não houve um depois? Então o Paulo não voltou à Guiné? Não seria melhor a Rua do Eclipse prosseguir por esse mar fora, dado que é notório a relação inquebrantável? Paulo cisma, é preciso ser prudente, tudo vai do trabalho que lhe vão propor em Bruxelas, e, francamente, agora não há caderninhos viajantes, há escassas memórias, talvez Annette pudesse encontrar agora um remate inspirador para o fim do livro. Vamos esperar.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Ma chérie, aí estarei amanhã ao fim da tarde, como, infelizmente, tenho viagem marcada dois dias depois, permito-me fazer seguir pelo correio todo o restante material que guardei do final da minha comissão em Bambadinca. Entrego-te com muito carinho o caderninho viajante que andava sempre comigo, aquelas últimas viagens no período de sobreposição com o Nelson Reis, as últimas fotografias tiradas nas tabancas em autodefesa, comoveu-me profundamente os abraços recebidos por chefes de tabanca e mesmo do régulo de Badora, de nome Mamadu Sanhá, andava sempre com os seus galões de tenente e viajava até Bambadinca numa motoreta. Registei que estava a partir e chegou Dauda Bari, era um cabo Fula que viera de Gandembel. Registei um comentário de Sadjo Seidi que se queixava das aulas de ginástica da escola, achava que já não tinha idade para aprender mais letras. Irei reencontrá-lo décadas depois, não esquecera o seu comentário, e manifestava pesar por não ter estudado. Como te disse na última carta, fiz um telefonema a Cherno Suane, que tu conheces, ele trabalha num estabelecimento de eletrodomésticos de um senhor que se chama Adolfo Brilhante, perto do Largo de São Paulo, pedira-lhe se ele podia escrever umas notas sobre os episódios da nossa vida entre julho e agosto de 1970, sabendo eu de antemão que o Cherno depois do seu duplo traumatismo craniano tinha falhas de memória. Apareci na loja depois de ter feito ginástica e fomos os dois para um café-restaurante ali ao pé chamado Pérola de São Paulo, o papel do Cherno segue nesta carta, ele relata emboscadas em Samba Silate, a nossa permanência na ponte de Undunduma, patrulhamentos em direção a Taibatá, noites na Missão de Sono, os dois dias que passámos em Mansambo, a vigilância que fazíamos na estrada alcatroada do troço Amedalai – Ponta Coli – Xime.

O Cherno tem um curioso contrato com o senhor Adolfo, este cede-lhe uma casa ali no Largo de São Paulo que o Cherno enche de gente que vem ou vai para a Guiné, um dia fui lá visitá-lo com o Abudú Soncó, a certa altura pensei que estava num terminal de aeroporto. E sempre com a sua voz ciciante e com aqueles olhos que volteiam e revolteiam, penso sempre que é uma questão de timidez não me olhar fixamente, falou dos dois últimos dias que passei em Bambadinca, não sei porquê perguntou-me se eu me lembrava de Damba Trilene, fui sincero com ele e disse-lhe que não me lembrava, depois fiquei a saber que fora fuzilado depois da independência, gritara desalmadamente que não tinha feito mal nenhum. É nisto que o Cherno me pergunta se o livro que eu estou a escrever já está pronto, e então perdeu a timidez quando eu lhe disse que o livro estava avançado, fez-me inúmeras perguntas sobre pessoas, se estavam incluídas no meu trabalho, fiquei atónito quando ele me perguntou se eu ia dizer que Serifo Candé fizera parte da 3.ª Companhia de Comandos, aquele meu amigo do coração que eu fora visitar à tabanca dele em 1991 e que julgou que eu o vinha buscar, como é que tu me deixas aqui a passar fome, não tenho comida para dar aos meus filhos? Eram pormenores sem conta, procurei suavemente explicar ao Cherno que não podia entrar em tanto detalhe, era um livro sobre a minha comissão, jamais poderia esquecer a lealdade e a fidelidade de todos aqueles que tinham combatido ao meu lado, mas este tipo de livros tem que respeitar as recordações. E pela primeira vez na vida o Cherno repreendeu-me: “Escrevi aqui tudo de que me lembrei porque pensava que tu querias que toda a gente ficasse a saber que combateste com um grupo de africanos que acreditaram sempre em ti, por isso nós devíamos constar da história desse teu livro”. Fiquei com a garganta seca, prometi-lhe que iria rever todo o trabalho já passado a escrito, estamos os dois de pé, e neste exato momento, estou na véspera da tarde da minha partida, ando na companhia do Cherno, do alferes Reis e do furriel Pires, despedi-me dos comerciantes de Bambadinca, visitei as famílias dos soldados, fui aos Correios agradecer todas as gentilezas de D. Leontina, foi penoso despedir-me de D. Violete e da sua mãe, subimos a rampa de Bambadinca e Cherno, como é seu hábito, ajuda-me carinhosamente a arrumar todos os meus trastes num caixote que foi feito na carpintaria, anda por ali o jovem Mamadu Soncó que teima em que eu o leve para Lisboa, continuo a olhar para o Cherno, agora seguro-lhe as mãos, já abracei quem fica no quartel, o rosto de Mamadu Soncó é uma máscara de inquietação, sei que me vais esquecer, eu estudei português, matemática, desenho e ciências naturais, deixa-me ir estudar… Fiz-lhe promessas, fui-lhe escrevendo ao longo do tempo, encontrei casualmente um aerograma que ele me enviou em setembro de 1973, já tinha feito a quarta classe, continuava a estudar, trabalhava como escriturário na Polícia Militar, sabia datilografia. Continuando a olhar este meu irmão Cherno Suane, estamos numa coluna que vai em direção a Xime, despedi-me de quem está na ponte de Undunduma, de quem faz vigilância nas obras do alcatroamento da estrada, cumprimentei quem me esperava em Amedalai, alguém subiu para uma viatura para me contar que o PAIGC celebrara o 3 de agosto flagelando o Enxalé, foi fogo de pouca monta porque houve a reação do fogo de obus do Xime.

Estou agora a despedir-me do Cherno, ele vai voltar para o local de trabalho e eu vou apanhar o Metropolitano até ao Saldanha, o pelotão despede-se de mim e eu dele, depois de um aperto de mão a mão direita vai até ao coração, mais uma vez pedi a todos que ajudassem o alferes Reis, ajudam-me a levar a bagagem para dentro da lancha, mostro a guia de marcha, mandam seguir. E é neste exato momento , meu querido Cherno, que eu dei comigo a pensar como iria cumprir os meus sonhos, os olhos não param de se deslumbrar com aquele Geba que parece uma folha dourada, os tufos de vegetação de um lado e do outro, já passámos a embocadura do Corubal, então sento-me, rezo, oiço o ronronar dos motores, venho à amorada e avisto o Ilhéu do Rei, desembarcamos no Pidjiquiti e alguém me leva com a mala para o Vaticano III, um albergue de curta permanência já dentro do quartel de Santa Luzia, a mala seguiu para Brá, para o Depósito de Adidos, anoiteceu, sinto que todos os perigos da guerra estão passados, agora tenho que prospetar o futuro, mas há uma sensação muito dolorosa, minha adorada Annette, começara, eu estava a sentir, aquela dolorosa separação dos meus bravos soldados.

Não sei o que me reserva a reunião com o Diretor da Confederação Europeia dos Sindicatos. Falei telefonicamente com Paolo Adorno e Michel Renard, eles suspeitam que me vão propor um contrato até cinco anos, renovável mais um ano, intuem que me vão propor os pelouros dos Consumidores e da Saúde, já sabem que rejeito categoricamente as áreas da Concorrência e da Agricultura. Das informações que aqui pude obter, é possível obter uma licença registada, por conveniência de serviço em organizações comunitárias, vou ver as condições financeiras que me oferecem, espero que o destino nos prepare uma bonita surpresa. Parece que estou a sofrer daquela inquietação que relatei acima, quando eu sabia de ciência certa que já nada tinha a ver com os meus bravos soldados, não via ser difícil suspender todas as minhas colaborações, poderei até conservar alguns artigos em jornais e revistas, atendendo ao acesso a informações que no futuro disporei. Há a situação dos meus filhos, o Henrique tem presentemente trabalho, vejo-o muito estabilizado, ele e a mulher constituem um casal que vive em rigor orçamental; o Ricardo está presentemente desalentado, ele precisa muito de mim, gostaria de conversar largamente contigo se era possível encontrarmos algo em Bruxelas em que ele se inserisse perfeitamente, a Rita vai de vento em popa. Não quero acrescentar mais nada a esta carta, sei que amanhã vou ter a grande alegria de estar contigo, e que no dia seguinte, muito provavelmente, te transmitirei notícias que te encherão de felicidade. É bem engraçado escrever estas coisas e saber que tu as vais ler algum tempo depois de termos vivido o nosso presente, não achas? Bien à toi, bisous milles, comme toujours, Paulo.


Vejo vezes sem conta a rampa de Bambadinca, aqui cheguei extenuado, vindo de Missirá ou Mato de Cão, muito provavelmente com o Unimog 411 do outro lado da bolanha, pronto para receber bidons de gasóleo ou petróleo, sacos de cimento, rolos de arame farpado, as vitualhas possíveis, aqui se chegava e um pequeno grupo dividia-se com obrigações: uns para as munições, outros para o material de Engenharia, aqueloutros para equipamentos de transmissões, questões relacionadas com a manutenção de viaturas, o economato, o abastecimento alimentar, sempre discutido, por vezes com gritaria, não há isto nem há aquilo, tem latas de chouriço e barricas de pé de porco, umas latas de feijão-verde, e viva o velho. Por vezes tínhamos sorte, disponibilidade de viaturas àquele arremedo de cais, entrar na canoa de Mufali Iafai com as pernas na lama até às coxas, e nunca esqueço a noite de 28 de maio de 1969, viemos de Missirá a trote alta noite para apoiar os flagelados de Bambadinca, o Zé Maria Tavares trouxe-me até aqui, o Geba estava na vazante, tinha uns bons quilos de lodo em cima da farda, mas fiquei feliz, havia um pequeno sinistrado depois de todo aquele angustiante foguetório.

Aqui está a erosão do tempo, é capaz de ser uma daquelas fatalidades das alterações climáticas, a rampa achatou-se, até parece que a laterite se descoloriu, era um caminho vistoso até ao cais, passados todos aqueles anos dói que se farta ver a incúria e o abandono, todos aqueles edifícios podiam ser úteis para as populações, os armazéns estão destruídos, o porto desapareceu, fiquei especado junto à casa de Mufali Iafai, o jovem faleceu e o caminho da bolanha de Finete também desapareceu.

Quantos telefonemas vim fazer para Lisboa na estação dos CTT, era um edifício impecável, tinha pessoal garboso, gente atenciosa, vinha à procura de selos também, não só para a minha correspondência, mas havia quem me solicitasse, por hábitos filatélicos, as últimas edições. À chegada ou à partida cumprimentava este pessoal, de cortesia esmerada.

E também quantas vezes entrei nesta escola para cumprimentar Dona Violete e acertarmos uma hora do chá, ela fazia sempre questão, e apareciam papéis sobre a história da Guiné e recordações dos tempos em que ela fora professora em Gã Gémeos, no início da década de 1950, era um encanto ouvi-la e devo-lhe a iniciação dos estudos deste país fascinante, preso ao meu coração.

Neste dia parto do Xime na lancha de desembarque grande Alfange. Era um cais sólido, preparado para receber pesadas cargas, a navegabilidade do Geba ficou alterada a partir de outubro de 1969, os barcos mais possantes atracavam aqui, só as embarcações civis seguiam até Bambadinca. Ironia do destino, esperaram a minha transferência para Bambadinca para pôr este cais e porto operacionais, aguentei a pé firme as idas a Mato de Cão, ininterruptamente, de agosto de 1968 a outubro de 1969. O cais morreu, o porto também, ficou esta camada de alcatrão que a natureza se encarrega de atapetar, o Xime parecia fadado, com a independência, a ser um porto influente, ali perto está um silo monumental, que deve ter custado uns bons milhões de dólares, nunca foi usado, pode ser exibido como um dos elefantes brancos de gente que sonhava em grande esquecendo que era preciso cuidar dos pequenos.

Este homem que sorri com riso franco chama-se Samba Gebo, assim que me viu chegar a Bambadinca, antigo companheiro de armas, nunca mais me largou. Viemos até à velha ponte do rio de Undunduma, ali perto estava um destacamento infecto onde passei muito sobressalto, pelo temor de uma flagelação brutal, felizmente que nunca aconteceu. A guerrilha do PAIGC atacara Bambadinca vindo por aqui, a partir desse momento criou-se um destacamento onde passávamos a noite e se faziam uns pequenos patrulhamentos de dia, à volta de Amedalai.

Guardei as melhores recordações da Pensão Central, aqui almoçava e jantava durante os meses que fiz cooperação, em 1991. Comida gostosa, preços económicos, por vezes cooperantes interessantíssimos, caso dos holandeses do saneamento básico, os profissionais de saúde da Medicina Tropical, e numa mesa ao fundo, sempre com o seu sorriso doce, Dona Berta, uma senhora que fez milagres aí por 1977, quando não havia praticamente comida em Bissau e aqui nunca faltou a sopa, o prato e a sobremesa aos cooperantes. Um mistério que nunca se irá apurar.

A Fundação Mário Soares recuperou entre o material calcinado pelo vandalismo das tropas senegalesas imagens de rara beleza, que subsistiram das fogueiras feitas por estes colaboradores de Nino que destruíram a maior parte do acervo histórico da Guiné-Bissau. É uma imagem que foi publicada no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, um Mandinga prepara uma esteira.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22730: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22562: Historiografia da presença portuguesa em África (281): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Por determinação do Governador Vellez Caroço, o Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis lança-se numa explanação sobre os principais eventos indicadores do princípio da "pacificação", encetado a partir de 1834 e tendo o seu termo em 1924. Seria a primeira vez que a nível oficial se produzia uma listagem de acordos, convénios e tratados entre a soberania portuguesa e as chefias indígenas. Imprevistamente, o Coronel Miguéis resolve por sua conta e risco pronunciar-se sobre a rebelião de Abdul Indjai, que nos vem dizer não está conforme outros relatos, seguramente este oficial do Exército intuía que a detenção e o exílio do régulo do Oio podia empalidecer os atos militares de Teixeira Pinto, e daí as considerações um tanto barrocas e atenuantes que ele profere, como se lerá adiante. Hoje, está claramente demonstrado que Abdul Indjai, independentemente da sua bravura pessoal, cometeu desmandos incríveis e deixou de praticá-los com os seus mercenários, praticaram-se pilhagens e raptos em toda a península de Bissau. E desmandou-se como régulo do Oio, aterrorizando e impondo impostos como direito de saque. Esta é a verdade dos factos.

Abraço do
Mário



A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (2)

Mário Beja Santos

Como é sabido, a Biblioteca da Sociedade de Geografia possui uma secção de Reservados onde tenho tido a felicidade de encontrar algumas peças preciosas. Houve agora oportunidade de regressar a este filão de manuscritos, e deparou-se-me um dossiê intitulado Res 1 – Pasta E-21, que se intitula Apontamentos Relativos às Campanhas para a Pacificação da Guiné de 1834 a 1924, compilados pelo Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis, Bolama, com data de 6 de agosto de 1925, Repartição Militar da Colónia da Guiné, 1.ª Secção. É então Governador Velez Caroço.

Trata-se de um inventário minucioso, o oficial procurou esmerar-se, manda o bom-senso que não se vai escrever por atacado toda a sua narrativa, e não há nada como explicar porquê. Começa por nos dizer que desde a descoberta da Guiné até ao ano de 1834 não encontrou nos arquivos da Repartição quaisquer elementos respeitantes a operações militares.

Como vimos anteriormente, é um elenco extensíssimo, mas de extrema utilidade para quem investiga todo este período da pacificação, já possuímos elementos com certa vastidão nesta matéria, como é o caso do admirável levantamento feito por Armando Tavares da Silva em Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926, Caminhos Romanos, 2016.[*]

O Tenente-Coronel Miguéis mantém uma narrativa neutra até chegar à prisão de Abdul Indjai, aí o seu coração balanceou, quer proceder a uma certa advocacia, seria possível traição daquele que foi o braço-direito de Teixeira Pinto, e temos agora um quase solilóquio à procura de explicação para essa estranha rebelião do régulo do Oio, damos-lhe a palavra:
“Revolta-se contra quem? Contra o governo da Província, representado por Henrique Sousa Guerra, seu companheiro de armas, seu comandante durante o período da doença de Teixeira Pinto, e portanto seu amigo? Não, a rebelião de Abdul Indjai não representa uma rebelião contra o domínio português no Oio, seu regulado, deve representar qualquer coisa que ignoro, mas suponho ser forjada pela intriga que campeia em toda a província da Guiné.
João Teixeira Pinto, se te pudesses levantar do túmulo e lançar em rosto as vilanias daqueles que tem adulavam movendo a intriga, por certo Abdul Indjai, teu companheiro e amigo, não mandaria disparar um único tiro contra as forças portuguesas; correria a abraçar-te e apesar da sua cor e raça serem diferentes chorariam ambos a infeliz pátria que impulsionada pela vil traição de alguns dos teus filhos, que nada produzem, deixa muitas vezes no esquecimento aqueles que por ela sacrificaram o seu bem-estar, o seu sangue e a sua vida.
Por vil intriga, tu, Teixeira Pinto, meu camarada, amigo e condiscípulo, não foste galardoado pelo grande serviço que prestaste à Guiné, na ilha de Bissau. Sofredor como eras, contentaste-te com a dispensa do exame para o posto de major. Não serias tu um general em vez de um major? Tenho fé que apagadas as paixões mesquinhas, num futuro não muito longe, a História há de fazer-se e justiça ser-te-á feita assim como ao teu companheiro Abdul Indjai”
.

E pondo termo à exaltação pessoal, preito de homenagem ao camarada e amigo Teixeira Pinto, lança-se na documentação existente, ela é de uma grande importância, não encontrei até hoje nada de tão substancial para descrever os acontecimentos:
“Não se encontra na Ordem à Guarnição a nomeação de qualquer força para combater as hostes rebeldes de Abdul Indjai. Na Ordem à Força Armada apenas se lê que desde 23 de junho até 26 partem para Farim e para Mansoa alguns oficiais, que, suponho, irem tratar desta questão.
Um relatório que tenho presente diz que em 19 de março foi a povoação de Solinhoté assaltada pela gente armada de Abdul que tinha por fim prender o indígena Malam Sanhá para ser por Abdul Indjai morto na povoação de Mandorno; que em 20 de maio, 2 Oincas refugiados no território de Bissorã entre esta região e a de Gansambu foram atacados pela gente de Cherno Sabali, dos quais feriram um, não aparecendo mais o outro; que dias depois esta mesma gente assaltou a povoação de Fajonquito, levando tudo quanto encontraram; que em 2 de julho, indo a mesma gente assaltar a povoação de Batur, dali levou 36 cabeças de gado; que em 3, quando a gente de Abdul se dispunha a atacar a povoação de Gussafari para roubar, foram atacados pelos auxiliares, e que em 26 a gente de Cherno Sali atacou os auxiliares de Gussafari para se apoderarem de uma lancha que estava no porto.
No relatório do capitão-tenente João Quadros vê-se que este oficial conduziu a bordo do “Bissau”, em 24 de julho, um destacamento de 40 praças indígenas, 3 europeias, 2 sargentos e o alferes Trindade. Comandava esta força o tenente Sobral. Chegaram a Farim no dia 26. Em 29 chega a Farim o vapor “Capitania”, conduzindo o capitão Lima e um destacamento do comando do alferes Alonso Figueira, 13 soldados indígenas e um europeu.


Em 1 de agosto segue para Mansabá um reforço de 30 praças sobre o comando do Alferes Figueira, levando três carregadores. Os rebeldes (diz o relatório) hostilizaram esta força e cortaram a linha telegráfica entre Farim e Mansabá. Em 13 de julho uma diligência de 23 auxiliares e 2 guardas da circunscrição de Farim prenderam 3 jauras (homens de guerra) mal-armados, tendo fugido outros nove também mal-armados que impunham à gente da povoação de Nema o pagamento de uma multa de 20 escudos e 5 vacas. Pelo relatório do capitão Lima conclui-se que houve em Mansabá uma conferência entre Abdul Indjai, o Capitão Espírito Santo e outros oficiais, que particularmente sei serem o Tenente Honório de Oliveira Marques e o Alferes Alberto Soares, na qual Abdul Indjai propõe o seguinte a troco de entregar todas as armas: 1 – A redução da guarnição do posto de Mansabá a 1 oficial, 1 sargento, 2 cabos e 27 soldados; 2 – A retirada da força militar de Farim; 3 – Desarmamento dos auxiliares da região de Bissorã; 4 – Anexação ao seu regulado das razões de Tiligi, Binar, Bula, Canchungo e Churo; 5 – Que lhe fosse paga a quantia de 40 mil escudos como recompensa do seu trabalho por ter batido as regiões de Mansoa, Oio, Costa de Baixo e Bissau e que lhe fosse dada uma percentagem de 10% sobre o imposto de palhota cobrado anualmente nas regiões acima referidas.

Em 1 de agosto, quando uma força do comando do Alferes Figueira seguia de Farim para Mansabá foi este oficial avisado durante o trajeto que vários grupos de forças armadas se dirigiam ao seu encontro, pelo que tomou certas disposições no sentido de evitar qualquer surpresa. Até à povoação de Bironque a marcha fez-se sem incidentes, tendo notado apenas que a linha telegráfica se encontrava cortada. O 2.º Sargento Parreira, que comandava a guarda avançada, foi avisado que uma força armada, mais adiante, se opunha à passagem dos nossos.
Como os carregadores informados do caso pretendessem fugir, o sargento abandonou a coluna dirigindo-se para Farim, sendo seguido por um indígena e um cabo europeu que, alcançando-o, se verificou ser Alburi Indjai, alferes de segunda linha, sobrinho de Abdul, que ia comunicar estar Abdul inteirado de que a força não ia atacar e que por isso podia continuar a marcha, pois já tinha avisado a sua gente para lhe não impedirem a passagem."


(continua)
Jorge Frederico Velez Caroço, governador da Guiné
____________

Notas do editor:

[*] - Vd. postes de:

30 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17526: Notas de leitura (973): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

3 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17536: Notas de leitura (974): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

7 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17554: Notas de leitura (975): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

10 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17563: Notas de leitura (976): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (4) (Mário Beja Santos)

14 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17582: Notas de leitura (977): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (5) (Mário Beja Santos)

17 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17591: Notas de leitura (978): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (6) (Mário Beja Santos)
e
21 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17610: Notas de leitura (979): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (7) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 15 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22546: Historiografia da presença portuguesa em África (280): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22453: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (65): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Pode parecer bazófia, mas é pedir muito à memória que reconstitua, quase ao milímetro, a operação Tigre Vadio. Paulo Guilherme é um cinquentão maduro, bateu-lhe a felicidade à porta, adora o trabalho, propôs à mulher que ama profundamente que ela operasse como uma cronista de acontecimentos pretéritos, marcantes, agora revividos na grande angular de dois anos de comissão, sem intervalos nem desfalecimentos, narrados tal como ele os recorda. E o que é mais surpreendente é que ele pode, a partir das decisões tomadas na sala de operações, descrever o que se passou, os preparativos que não foram tão minuciosos como isso, cometeu o erro palmar de se esquecer dos jerricans de água, coisa que não passou pela cabeça dos capitães, mas isso também não o alivia, ao escrever a Annette o que mais o confunde e perturba é a memória fotográfica do tempo e dos lugares, revê feições, contempla panoramas, percorre novamente Cancumba, Paté Gidé, Sancorlã, Salá, tem diante dos olhos uma monumental queimada que vem de Madina, e que tudo vai alterar, e chega-se a um trilho que foi indicado lá dos céus por um major de operações, são duas horas tórridas, impensável que alguém se possa aproximar do centro nevrálgico de Belel e trazer a besta do Apocalipse. Pois aconteceu.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (65): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette adorée, ma fidèle chroniqueur, mesmo enquanto me desenvencilho das últimas frequências que estou a classificar, e pressionado pelos prazos imperativos de dois documentos que esta semana a Associação Europeia de Consumidores tem que enviar para os serviços da Comissão Europeia, não posso furtar-me de dizer que estou cheia de saudades tuas, que já estão esboçadas as primeiras duas semanas de férias, tu pediste-me dois dias em Lisboa para irmos ao Parque das Nações, ver a exposição das joias de Goa, conhecer o Museu da Cidade e voltar novamente aos Jerónimos e Museu do Chiado, encontrei duas casas maravilhosas numa freguesia do concelho da Lourinhã, perto de tudo, iremos a Óbidos, às Caldas da Rainha, a Alcobaça, às praias, comer peixe a Peniche, na primeira semana, e penso ficarás feliz por esta iniciativa, Jules andará connosco por Lisboa e pela chamada região do Oeste, hesito se não devíamos visitar o Porto e o Douro demoradamente. Se não te importas, é assunto que trataremos telefonicamente dentro de dias, quando eu tiver dado as classificações dos meus alunos.

Não quero iludir que me estás a pôr questões que exigem respostas bem dolorosas, até porque mantenho a memória em carne viva. Continuava combalido pela notícia da morte daquele que foi o meu mais querido amigo da juventude, entregue a rotinas, coisas como montar a segurança à volta do Bambadincazinho, isto quando o Ministro do Ultramar, o comandante-chefe e o comandante de Bafatá visitavam o reordenamento dos Nhabijões. O que antes era seguro deixara de o ser. Apareceram minas entre a ponte de Undunduma e Amedalai. Num local chamado Fá formava-se a 1ª Companhia de Comandos Africana, destacavam-se mais efetivos para montar segurança no Cuor, e nós fazíamos parte destas andanças que, regra geral, nos eram ditadas em cima da hora. Tens aí os documentos, meu adorado amor, guardei o calendário dos preparativos que conduziram à mais sangrenta das operações em que intervim, a Tigre Vadio. Foi na manhã de 28 de março que o major das operações me convocou, compareceram os intervenientes, duas companhias reduzidas sediadas em Bafatá, companhia de caçadores de Bambadinca, dois pelotões de caçadores nativos, duas esquadras de morteiro, adicionando grupos de milícias. O que o Sr. major nos queria dizer era que o objetivo da operação seria o de bater a região Ocidental do Cuor e procurar destruir os acampamentos de Madina e Belel, se possível trazer prisioneiros e armamento. Sabia-se da existência de um bigrupo bem equipado que protegia as populações em Madina, Quebá Jilã, Belel e talvez em Sinchã Banir, à entrada do Oio, com ligação ao corredor de Sara-Sarauol, no voo de reconhecimento aéreo ele próprio verificara uma extensa rede de vias de comunicação. Há poucos dias, na região de Madina, fora desencadeada uma operação de paraquedistas, incendiaram um conjunto de barracas e havia sinais evidentes de vida organizada. Pediu sugestões para a organização de duas colunas, em seu entender não fazia qualquer sentido pormos tão grande contingente a irem uns atrás dos outros quando os objetivos da destruição e aniquilamento distanciavam cerca de dez quilómetros. Lembrado do desaire do ano anterior, daí a sugestão de que os dois destacamentos podiam partir separadamente, um do Enxalé em direção a Madina, o outro de Missirá para Belel, ou então partirem conjuntamente de Missirá e bifurcarem na região de Quebá Jilã, a retirada ficaria condicionada à evolução dos acontecimentos, devia pôr-se sempre a hipótese de que, ultrapassado o fator surpresa, qualquer uma das forças retiraria para o ponto de onde partiu. Senti-me feliz quando me disseram que os dois destacamentos se iriam autonomizar. E quero confessar-te, eu adorado amor, que nesse momento em que eu discutia com todos, as transmissões, as munições, os carregadores (falo de seres humanos que nos ajudariam a transportar os morteiros 81) esvaiu-se-me da memória os carregadores para jerricãs de água. Enquanto te escrevo, parece que sinto os lábios ressequidos, ando aos tombos num helicóptero com vidros estilhaçados, jamais me sai da memória aquele momento em que o piloto, numa lala completamente desconhecida e sem vivalma me convidou a sair com os jerricãs, ele deve ter percebido no meu olhar que não me lançaria em tão dementada operação.

Mas voltemos atrás, tens aí nos documentos a descrição detalhada dos preparativos, se houvesse informadores em Bambadinca eles seguramente que ficariam desorientados e gente a caminhar para Fá, gente a caminhar para Finete, gente num Sintex a subir o Geba estreito, não houve percalços, ao anoitecer do dia 30 de março entramos todos sossegadamente em Missirá, disfarço emoções, preparei-me para entrar aqui como em qualquer outro teatro de operações, claro está que abracei todos os meus amigos, pedi licença para descansar em cima de uma manta, mastiguei umas coisas de uma ração de combate. É nesse momento que se fez luz, estava em Missirá comigo o melhor conhecedor de toda a região, Cibo Indjai, faço-lhe a proposta de que ele seja o batedor com Queta Baldé, seguir-se-ão os meus bazuqueiros de elite, eu e Cherno Suane e depois os meus habilidosos apontadores de dilagrama, Sadjo Seidi e Tunca Sanhá. Não podia prescindir de Quebá Soncó e do meu querido amigo Bacari Soncó. Estamos juntos e ficou acordado que o ponto de separação seria perto de Quebá Jilã, então Cibo seguiria connosco para Belela, Quetá Baldé, Bacari e Quebá Soncó seguiriam na testa do destacamento que iria em direção a Madina.

Annette, talvez pela adiantada hora, talvez porque neste momento sinta incendiada a minha memória fotográfica, estamos a sair de Missirá ainda não é meia-noite, a temperatura excecionalmente elevada, seguimos para Cancumba, daqui para Paté Gidé, falta aqui um detalhe, depois de conversar com os guias fui falar com os capitães e com o meu camarada Alferes do pelotão 54, o capitão dos caçadores de Bambadinca, o capitão Brito, deu-me logo inteiramente luz verde para a escolha do itinerário. O capim é elevado, marchamos silenciosamente, todo aquele calor atabafa, seguimos para Sancorlã, graças à lua dou comigo embevecido, maravilhado, é uma vegetação frondosa, não sei como foram parar ali aqueles poilões gigantes, misturado com palmeiras, em dado momento entramos num túnel de vegetação, a luz altera-se e é com os alvores do dia que chegamos ao extremo do território onde por vezes fiz reconhecimentos, sabendo que a escassos quilómetros estamos em Quebá Jilã, paramos em Salá para um curto descanso, não se veem trilhos, não se ouve nenhum ruído nas proximidades. E inopinadamente sou procurado por Cibo Indjai, o caçador ágil, que tem uma visão de águia, encontrou um trilho, bem dissimulado, por vezes andamos por ali atarantados no meio de um terreno alcantilado, ainda não se sabe se já entrámos no corredor do Oio, que do avião nos dê indicações sobre a orientação dos trilhos. Amanheceu completamente, nunca se viu àquela hora da manhã um calor de frigideira, meu adorado amor neste exato momento parece-me que está a escorrer o suor em bagas e nesse momento, enquanto não se recebe qualquer informação de quem anda ou poderá vir a andar nos ares ficamos estarrecidos por uma extensa cortina de fumo. Paramos, embaraçados. O que fora gizado na sala de operações é contraditado pelo imprevisto daquela imensidão de fogo. Neste ínterim, somos sobrevoados pela avioneta quando o major de operações nos manda contornar a queimada e determina que os destacamentos devem continuar juntos, em direção a Belel, estou junto ao cabo das transmissões, António Fernando Ribeiro Teixeira, nos céus vem indicação de que um pouco mais à frente há um trilho, é para aí que nos devemos dirigir. Dou instruções aos guias, Sadjo Seidi segue na vanguarda, é de facto um trilho largo, são duas horas da tarde, ninguém pode imaginar que em breve vai começar o inferno em Belel. Peço-te perdão, é tudo fruto da idade e do trabalho, acredita que estou neste momento num trilho, estou a ver um rodado de bicicletas, volto àquele dia de 1970 em que disse para mim que felizmente estávamos protegidos pelo arvoredo denso, chegara alguma frescura. Amanhã continuo, espero que estejas preparada, já que leste os documentos que te enviei, para o turbilhão de fogo que se vai seguir.

(continua)


Abdulai Djaló, mais conhecido por O Campino, alguém lhe ofereceu um barrete de homem das lezírias, nos momentos de ócio vestia-se à paisana, um perfeito galã embarretado. Um bazuqueiro destemido, competia em heroísmo e bravura com Mamadu Djau, mas superava-o como galã, quando aceitou ser fotografado colheu a pose, nada aqui está por acaso, a mão delicadamente assente no joelho, fazendo jus à sua fama de cavalheiro sem rival.
Dir-me-ão que é uma imagem banal, como esta há aos milhões, só que o sentimento, a apreensão e a expetativa de quem vai nesta caminhada não é transmissível. Nesta imagem estamos todos os que atravessaram lalas, neste oceano de capim jovem, sabendo de antemão que há imponderáveis, surpresas, a hipótese de um morteiro fazer estalar aqui o caos, fracionar a coluna, desmotivar quem se apresta para o combate. Uma imagem do nosso blogue, seguramente que nela todos nos revemos.
Bendito helicóptero que traz notícias de quem amamos, nos evacua os feridos ou transporta generais ou coronéis que falam zangadamente, admoestando. Foi numa destas máquinas que vim a Bambadinca numa tarde num dia de abril de 1970 buscar 27 jerricãs de água que desafortunadamente não chegaram ao seu destino, o piloto lá teria as suas razões por ter os vidros estilhaçados, eu ia feliz com os sopros do ar, experiência irrepetível. E fui largado no Xime com toda esta carga de água enquanto os meus camaradas viviam o horror da sede.
Em novembro de 2010, em dia de emoções descomunais, na motocicleta de Lânsana Sori, entrei em Belel cheio de vontade de me reconciliar com o que aqui aconteceu num dia de abril de 1970, dia de luto para quem vivia no mato, pois a operação Tigre Vadio destruiu muitas vidas, deixou múltiplos sofrimentos. Encontrei antigos combatentes e conheci camponeses, houve quem pensasse que eu era médico ou fazia parte de um projeto de água potável, trazia uma bomba de água para Belel. Se houve dia de reconciliação na minha vida foi este, experiência inaudita, abraçar alguém que seria meu inimigo 40 anos antes e que me convidou a regressar. O que ainda não foi possível.
Os meus velhos soldados, a alegria do encontro, mas neste momento saúdo particularmente o homem que está ao centro, Sadjo Seidi, quando nos reencontrámos foi um abraço de choro convulsivo, Sadjo foi o único ferido do Pel Caç Nat 52 na operação Tigre Vadio, ele será o primeiro a entrar em Belel, o sentinela ainda tentará matá-lo, a granada rebentou na palmeira, ficou com o peito estilhaçado, será evacuado no mesmo helicóptero que me levará a Bambadinca para vir buscar água que não impediu que centenas de homens vivessem o inferno da sede.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22437: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (64): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22108: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (48): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Annette é uma cronista exigente, não se cinge à documentação recebida, quer interpretação das imagens, decifrar o que vem nas entrelinhas e sobretudo pede respostas para assuntos jamais mencionados: a ocupação dos tempos livres, que leituras Paulo Guilherme fazia, que conversas tinha com aquele padre de Missirá, um tal Lânsana Soncó, com quem falava de gente do passado, da fauna e da flora, do nome das árvores, o que efetivamente fundamentava a curiosidade de Paulo Guilherme? Ela nunca esquecera uma descrição do seu amado de um amanhecer em Mato de Cão, vieram os flamingos, pernaltas róseos, que alheios a quem os observava pesquisavam nas águas do Geba o seu alimento; e havia aquela versatilidade de símios, ele fazia referência aos macacos cão e fidalgo, uns com pontas de bigode e umas franjas e outros de rabo pelado, de cor avermelhada; e não esquecia os répteis, a repentina surucucu e a sempre temida cobra verde, o horror de quem subia às palmeiras.
Paulo Guilherme chegara a Bambadinca e ela pede pormenores, e então conta-se uma história hilariante da praxe que o comandante lhe fez, nomeou-o como ajudante de campo da senhora professora, senhora muito carente que gostava de se passear sentada no quadro da bicicleta, a sentir o braço do seu servidor no dorso, coitada, sofria de vertigens... Já estamos em Bambadinca, vai começar um carrossel com montanha-russa de histórias que só são possíveis para quem faz uma intervenção errante, que tanto podem ser emboscadas noturnas, como alucinantes colunas de abastecimento ao Xitole ou operações na Ponta do Inglês, tudo numa vertiginosa sequência.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (48): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Très, très chère Annette, muito fatigado por um dia de trabalho que culminou com aulas ao fim de tarde no Monte da Caparica, venho procurar dar-te informações ao que me pedes. Estranhas muito as referências ao nome de Infali Soncó, o avô do régulo Malã Soncó, pois fica sabendo que Infali Soncó tornou-se um nome lendário pela sua rebelião em 1907, era régulo do Cuor, com a conivência dos régulos de Badora, Joladu e Xime procuraram fechar a navegação do Geba, o que se tornou intolerável para as autoridades de Bolama (era então a capital da Guiné). Foi decidido constituir-se uma força militar de envergadura, veio muita gente de Portugal e uma unidade militar de Macuas de Moçambique, em 1908 vão dar combate ao rebelde, que foi forçado a fugir, virá mais tarde, depois do afastamento de outro rebelde, de novo Abdul Indjai, o régulo do Oio e do Cuor, fora o mais precioso auxiliar do capitão Teixeira Pinto nas campanhas de pacificação que culminaram em 1915 com a rendição dos Papéis de Bissau. Vou enviar-te um documento muito curioso escrito por Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo Malã, vive em Portugal desde 1996, deram-lhe facilidades para vir frequentar uma ação de formação em Setúbal, ele era professor primário, passava mais de 7 ou 8 meses sem receber o ordenado, preferiu ficar a trabalhar na construção civil, visita-me regularmente, falei-lhe do assunto do bisavô, ele escreveu a memória da vida deste turbulento régulo. Ainda não tive oportunidade de te dizer que os Soncó eram Beafadas mandinguizados, quer isto dizer que aceitaram a fé muçulmana, abandonaram o animismo e incorporaram-se na família Mandinga, o mesmo aconteceu com outros régulos desta região, como o régulo Mamadu Sanhá, do Cossé, que conheci, vinha de motociclo a Bambadinca, impecavelmente fardado, exibindo orgulhosamente os seus galões de tenente de segunda linha.

Perguntas-me sobre a adaptação a Bambadinca. Vinha dolorido pela separação do Cuor, que nunca aceitei, embora percebesse perfeitamente que os meus soldados estavam saturados de viver permanentemente no interior do mato desde 1966. Não poucas vezes, quando tinha uma aberta nos meus afazeres, descia a rampa de Bambadinca até ao porto e ficava especado a ver a bolanha de Finete e todo o denso arvoredo que se estende até Mato de Cão. Cheguei a Bambadinca, fiquei num quarto com mais dois oficiais milicianos da CCAÇ 12, de nomes Magalhães e Abel Rodrigues, mantivemos uma relação altamente estimável. Conseguiu-se alojamento para todos os soldados e cabos africanos, houve que adiantar dinheiro para aluguer de moranças. Definimos as regras do jogo de quem ficava como intermediários para contatos urgentes, para qualquer tipo de saídas, desde colunas de reabastecimento ao Xitole a emboscadas noturnas; definiram-se responsabilidades para a guarda das nossas munições e armamento, ficou rigorosamente proibido que na povoação os soldados tivessem granadas de qualquer tipo, era a melhor maneira de prevenir acidentes dramáticos, eu já tinha ouvido histórias de sinistros devido a tais desleixos. E nunca esquecera o acidente de Abudu Cassamá, aquela criança de Finete que espevitada pela curiosidade viu algo dentro de um atrelado, era uma granada incendiária, tirou-lhe a cavilha, ficou brutalmente queimado.

As regras de convivência alteraram-se radicalmente. Agora tomo as refeições na messe de oficiais, sempre detestei jogos de cartas, acabei por ser atraído por um jogo simplório, verdadeiramente de fortuna ou azar, chamado lerpa, dei comigo a passar horas sem fim, foi excitante ao princípio, depois tornou-se uma sensaboria, voltei às leituras.

Tu tens razão, adorada Annette, falta na documentação que te tenho enviado, informação sobre aquilo que chamamos ocupação dos tempos livres. Como recordarás, levei centenas e centenas de livros, um espólio apreciável de discos de vinil e um gira-discos de altíssima qualidade, tudo ficou em cinzas em março de 1969. A correspondência, a leitura e a música foram os melhores lenitivos que encontrei. De tal ordem, que mesmo que regressasse estafado de madrugada de um patrulhamento a Mato de Cão havia sempre um cadinho de leitura, cheguei mesmo a amassar livros debaixo do peito quando cedia ao sono. Tens toda a razão, vou procurar nos escaninhos da memória uma possível relação daquilo que li, da música que ouvia.

Pedes-me mais imagens e tenho que confessar-te que poucas mais me restam. O que tinha até março de 1969 só se salvou o que mandei à família e aos amigos. Recebi depois algumas fotografias ou estão presentemente a facilitar-me imagens alguns antigos camaradas, mas não era para mim prioritário comprar uma boa câmara, tive que comprar roupa, tive que ajudar quem precisava, controlei as minhas despesas com livros, consegui um gira-discos a pilhas e adquiria em Bafatá discos de vinil com gravações magníficas, mas tudo moderadamente. Não sei a que propósito tirei aí uns quatro dias depois da mina anticarro, em Canturé, esta fotografia onde não escondo as dores que me vão na alma, comprei novos óculos, as lentes escuras trouxeram-me alívio para o sol incandescente. O dado curioso é que quando explodiu a mina e eu julgava que os meus óculos se tinham volatizado, alguém os encontrou, pasme-se, intactos, debaixo do chassi, evidentemente cheios de pó, comoveu-me muito este achado. Tenho dado voltas à cabeça para responder cabalmente ao que me pedes sobre o que tu chamas a minha inserção na vida de Bambadinca. Agora tenho condições para participar na missa dominical, faço visitas de rotina às instalações do batalhão, a burocracia continua, temos a nossa própria contabilidade e secretaria, são afazeres que reparto com o meu fiel ajudante, o furriel Sousa Pires.

Tenho um episódio hilariante para te contar. O comandante do batalhão entendeu que me devia praxar. O pretexto foi a saída do alferes Almeida de um outro pelotão de caçadores nativos, o n.º 63. Havia uma professora primária, Dona Violete, uma senhora de idade indefinida, de cabeleira oxigenada, gentil e faladora. Houve que a contatar, eu ficara com a incumbência de apurar quais os programas em curso para a 3.ª e 4.ª classe para o professor de Missirá e tinha um soldado que pretendia fazer a 4.ª classe, Dona Violete foi muito prestável. Contei este episódio ao comandante e ele informou-me com o ar mais sério deste mundo que com a saída do Almeida eu ficaria com a responsabilidade de acompanhar Dona Violete nas suas saídas de Bambadinca, era responsabilidade do batalhão fazer boas relações públicas com a professora, e que devia prontamente apresentar-me, dando-lhe a saber que passava a ser o seu fiel companheiro. Achei aquilo tudo insólito, mas não tugi nem mugi. Pedi ao Ussumane Mané, o meu novo guarda-costas (não te esqueças que o Cherno estava ainda hospitalizado em Bissau a tratar do seu duplo traumatismo craniano) que fosse perguntar à senhora professora se me podia receber pelas seis da tarde, e igualmente pedi ao Queta Baldé se me adquiria um ramo de flores no Mercado de Bambadinca. Tudo ajustado, apareci às seis da tarde com um bouquet de flores e com a minha farda n.º 2. Dona Violete estarrecida com a novidade da minha intendência, mandou-me entrar na sala da sua casa, apresentou-me a mãe, uma senhora esquálida vestida de preto e de idade ainda mais indefinida. Falei no alferes Almeida, a professora estava derretida, que o senhor alferes a levava no quadro da bicicleta, que esperava de mim uma gentileza tal, por exemplo descermos a Rampa de Bambadinca e irmos até Santa Helena, que a amparasse nas costas, ela às vezes tinha vertigens e gostava de estar amparada. Achei aquilo tudo estapafúrdio, mas o mais grave veio depois, Dona Violete pôs-se de pé, mantinha a sua voz melodiosa, falava da sua solidão, da necessidade que sentia de ter carinho e como o alferes Almeida era gentil com ela, e que esperava o mesmo de mim, avançava discretamente na minha direção, senti que estava encostado à parede e que a dita senhora me passava as suas mãos pelos meus braços, constrangimento maior não podia estar a ter, ocorreu-me olhar para o relógio e pedir licença para me retirar, era hora do jantar, prometia voltar a visitá-la para se marcar um passeio. Sempre com um sorriso travesso, Dona Violete pegou-me no braço, despedi-me da mãe dela, e à saída, não sabendo como rematar a minha partida, perfilei-me, curvei-me e beijei-lhe a mão, ficou em derriço.

E só quando atravesso a rua e vejo os oficiais à porta com uma expressão de gozo é que se deu o toque da campainha, fora tudo montado para eu ter aquele arrepio na espinha. Entrámos na messe, o comandante perguntou-me se estava tudo a correr bem, julguei oportuno dar-lhe em voz alta a lição que ele merecia, a senhora professora agradecia, mas estava à espera que fosse o senhor comandante a visitá-la, gostava mais de se dar com gente da sua idade…

Prometo contar mais histórias hilariantes, isto de estar na guerra não são só tiroteios nem rodopios de coragem, atos de solidariedade ou quadros de horror, há a vertente parodiante, muito do bizarro da vida vem ao de cima, é o contraponto para toda aquela tensão da contraguerrilha.

E deixo uma boa notícia para o fim: aguardo a marcação para os próximos 15 dias de uma reunião da nossa Assembleia-Geral em Bruxelas. Parece que será numa segunda-feira. Se assim for, e se tu tiveres disponibilidade, pedia-te para ir quinta-feira à noite e irmos a Ypres. Porquê Ypres? O meu querido amigo Melvin Coats tem família natural do Sul da Escócia, há para ali uma prima que anda a fazer a genealogia dos Minto, procura desesperadamente dois irmãos que morreram em data diferente e estão sepultados em cemitérios de Ypres, como sabes foi nesta região da Flandres que morreram muitas centenas de milhares de homens para conter a onda alemã. Dar-te-ei mais pormenores na próxima carta. Quando hoje atravessei o Tejo, vindo das aulas no Monte da Caparica, lembrei-me do passeio que demos à Arrábida, tu estavas felicíssima com aquela vegetação mediterrânica, prometi-te voltar a levar lá e espero que seja muito em breve que tu aqui regresses, o verão está próximo. Bisous, mais bisous e muito mais bisous, bien à toi, Paulo.
Imagem de uma parte do contingente que veio, às ordens de Oliveira Muzanty, combater a rebelião de Infali Soncó, a fotografia foi tirada pelo nosso primeiro fotógrafo de guerra no interior da fortaleza da Amura. A rebelião de Infali Soncó durou de 1907 a 1908
Em Bissau, na primeira visita, março de 1969, encontrei o Barbosa (à esquerda) e o Teixeira (à minha direita) com um amigo, aproveitámos para matar saudades. O Barbosa e o Teixeira foram dois diletos colaboradores, guardo-os no meu coração.
Fotografia tirada em Bissau em outubro de 1969, vim fazer tratamento oftalmológico e comprar óculos novos, a seguir à explosão da mina anticarro
Rampa de Bambadinca
Imagem da devastação em Ypres, Bélgica, I Guerra Mundial
Homenagem aos caídos nas batalhas de Ypres, Bélgica
____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22086: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (47): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21993: A Operação Vaca, em 10 de março de 1965, em que forças da CCAÇ 675, com a ajuda da Marinha, "resgataram" 85 vacas "turras", no Oio, "ronco" que gerou depois um contencioso entre "infantes" e "marinheiros" (Belmiro Tavares, ex-alf mil, Binta, 1964/66)

Guiné  Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 >  A ganadaria da "companhia do quadrado"...

Guiné  > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > C. 1965 > Secretaria da Companhia, que funcionava como sala de visitas: da esqerda para a direita, 1.º Ten Batista Lopes, cmdt da LFG Lira (que na época fiscalizava o rio Cacheu),  Ten Cor Fernando Cavaleiro, CMDT do BCav 490  (Farim, 1963/65), Cap Tomé Pinto, CMDT da CCAÇ 675, e Cap Cav Manuel Correia Arrabaça, CMDT da CCS / BCav 490

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]




1. O Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009,  empresário hoteleiro, é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014  (*). 

Grande parte dessas histórias e memórias foram recompiladas no livro cuja capa se reproduz acima. Com a devida vénia, vamos reproduzir a segunda parte do poste P9646 (**),  que corresonde no essencial, no livro supracitado, à narrativa "10 de março de 1965: um dia agitado: operação "Vaca" (pp. 255/257). É uma história bem humorada, e contada com talento.


Belmiro Tavares, alf mil, CCAÇ 675
(Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)
Também a famosa "companhia do quadrado" tinha de lidar, como todas as outras, ao longo da guerra,   com o candente problema da "falta de carne", alegadamente pelos mesmos motivos: "os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais", devido à importância que o "gado vacum", em especial,  representava para as famílias e as comunidades... Esse problema tem sido aqui abordado, de um lado e do outro (***).


A operação Vaca

por Belmiro Tavares


Hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer 
nome – nem houve tempo para tal!  

Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt do navio Lira [, Lancha de Fiscalização Grande,]  que patrulhava o Cacheu naquela data, chamou-lhe “Operação Vaca”, nome que aceitámos... 
à posteriori.

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em março de 1965 [, dia 10, p. 255 do supracitado livro].

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu Grupo de Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois Gr Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.

 O cap Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:

–  Sr. Capitão! Sr. Capitão!

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.

– O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.

A proposta partia do comdt Baptista Lopes, um grande amigo da CCaç 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada [, abastecimento de água potável], por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a Madalena Iglésias e o António Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.

O cap Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.

– Por vaca... eu vou até ao inferno!

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (Lancha de Desembarque Médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! 

Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A CCaç 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhá.

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300 m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela CCaç 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela CCav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt do BCav  490 [, ten cor Fernando Cavaleiro],  a equipa de futebol da CCav 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cacheu.

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da CCaç 675 e da CCav 487; os infantes triunfaram por concludentes 3 x  0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armazéns de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar, a qualquer preço,  e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na CCaç 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo, para ele, vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “Aguardente” (era percetível) !. 

Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguém que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto),  embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! 

O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cacheu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “Operação Vaca”.

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.

Uns dias mais tarde a CCaç 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas. Não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades,  exigiam apenas 42,5 vacas!

O cap Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cálculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. 

Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia, e como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!

O próximo comandante, R.V.V. e Sá Vaz, a patrulhar o Cacheu,  trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.

O cap Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!

Por fim o comdt Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): 

–  A CCaç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).

O cap Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer”, não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.

A ganadaria da CCaç 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.

Fez-nos um jeitão do caraças!

Belmiro Tavares

[Com a devida vénia ao autor... Seleção, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. primeiro (1) e último (47) poste: