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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2513: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (19): O Natal de 1969 em Bambadinca e na Ponte do Rio Udunduma

Capa do disco de ópera Carmen, de Bizet, com a Maria Callas... "A prenda que me ofereci no Natal de 1969...É nas andanças da procuração de casamento, em Bafatá, muito perto do Natal, que vou à casa Teixeira onde me mostram um acontecimento musical que acaba de chegar: a última gravação da Maria Callas numa ópera integral. De facto, foi a Carmen a última ópera que a Callas cantou por inteiro. A partir de 1964, a Divina só aceitou actuar em concertos ou em master classes. Esta gravação da Callas foi objecto de apreciações tensas e contraditórias. O fundo orquestral é de uma beleza ímpar (estou à vontade, só como melómano é que de vez enquando oiço a Carmen, que classifico como ópera bonita mas fácil nos seus efeitos), Nicolai Gedda era seguramente um grande tenor do seu tempo, e cumpre a preceito o Dom José. O barítono Robert Massard é para mim o grande achado da ópera, um toreiro fogoso e viril. Gosto da voz assanhada da Callas, mas hoje é um registo bastante ultrapassado. Custou-me 400 escudos, paguei em dois meses, já estava a preparar o casamento em Bissau. A ópera foi muito bem aceite na caserna, o Alf Abel[, da CCAÇ 12,] gostava de a ouvir por sua iniciativa. Veio comigo, é uma relíquia desse Natal de 1969, onde me faltou a festa como nos Açores e em Missirá, as minhas inesquecíveis festas de Natal".

Digitalização da capa: uma gentileza do Humberto Reispara quem vai um abração.

Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Ponte do Rio Udunduma, na estrada Bambadinca- Xime > Pel Caç Nat 52 (1968/70) > Natal de 1969 (2) > Os bravos soldados do 52, que o Mário considerava os melhores soldados do mundo... O famigerado destacamento da Ponte do Rio Udunduma resumia-se a uns bidões de areia, umas valas, umas chapas ... como tecto e milhões de mosquitos. Este rio era uma fluente do grande Geba... Foto do ex-Fur Mil João Sousa Pires, a quem agradecemos a gentileza de nos autorizar a sua reprodução (LG).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 11 de dezembro de 2007:

Luis, recordo que tens aí a fotografia do dia de Natal na ponte de Udunduma, enviei já as ilustrações do Claude Simon e S. S. Van Dine, tens igualmente a ópera Carmen. Vou começar já o episódio n.º 20, temos que fazer tréguas no Natal. Muitíssimo obrigado pelo teu esforço na recolha e preparação dos materiais que vão ilustrar Na Terra dos Soncó. Segue pelo correio o conjunto de aerogramas que ainda tinha em meu poder, referentes a 1969. Vou telefonar para marcarmos o almoço de Natal. Um abraço do Mário.


Operação Macaréu à vista > Episódio XIX (3)

O NATAL EM BAMBADINCA E NA PONTE DE UDUNDUMA
por Beja Santos


(i) Os preparativos do Natal, a história de um poemacto alucinante

Começam a chegar as iguarias natalícias provenientes de Lisboa, bolo rei, broas castelares e de milho, coscorões, rabanadas, entre outras. Um alferes Rodrigues que até hoje nunca consegui identificar (logo ficou claro que não era o Rodrigues da CCaç 12, esse quando se apresentou de férias vinha com alguns discos de vinil debaixo do braço), deixara em Bafatá um pacote de doces no comando do Agrupamento e lá fui buscá-lo a propósito de mais um episódio com a procuração para o meu casamento, a que se juntou o atestado de residência.

No fim do ano escreverei à Cristina:

“Espero que o Ismael te tenha telefonado em Bissau, aqui os telefones deixaram de funcionar, as minhas insónias têm-me impedido de escrever com regularidade. Não é nada de grave, já não sei se é o desgaste físico que abala o psíquico ou vice-versa. O destacamento da ponte de Udunduma é escabroso, sem qualquer segurança, umas valas mal amanhadas, custa conciliar o sono dentro daquele buraco. O Vidal Saraiva quer pôr-me num quarto de repouso em Bissau, talvez uma semana seja o suficiente para eu recuperar. Parte das minhas economias deste mês foram para substituir a roupa esburacada, calças e camisas na fímbria... Agradeço-te do coração o novo Chopin, mas confesso-te que houve um pequeno desastre, saí uma manhã destas para ir às tabancas próximas, deixei-o fora do estojo, quando voltei estava ondulado. O Samson François não merecia este castigo! Li 'Guerra e Paz' na tradução da Isabel da Nóbrega e do João Gaspar Simões, o português é escorreito mas não sabe a nada. Começaram as medidas de prevenção que irão até ao Ano Novo.

"A grande notícia é que os documentos da procuração estão novamente prontos, não sei se te contei que descobri no meio dos meus livros a procuração anterior, mais uma vez anulada porque faltava a data de nascimento do teu pai. Não percebo porque é que uma procuração tem que ter estes pormenores, em que a data de nascimento do pai da noiva é crucial. Por aqui, não se pode dizer que a guerra se tenha agravado. Há de vez em quando incêndios de moranças nas redondezas de Bambadinca, assaltos aos Nhabijões quando os naturais não oferecem vacas nem outros mantimentos aos rebeldes, houve agora um grande ataque ao Enxalé e pouco mais. O ano está quase a acabar e o futuro espera-nos. Aconteça o que acontecer, confio que Deus nos quer juntos no próximo ano. Peço-te muito que descanses e não te aflijas. Logo que resolva o problema das insónias tudo vai voltar à normalidade”.


Desço a rampa e vou conversar com o Zé Maria. Já sei que o dia de Natal será passado na ponte de Udunduma, a ver se ele consegue preparar uns frangos para eu almoçar com a malta do pelotão no dia 24. É uma negociação difícil, o Zé Maria começa por me pedir o couro e o cabelo, vai descendo, faz as contas a doze frangos, arredondo para quinze, um grande tacho de arroz, canja e depois papaia, sendo a bebida a laranjada, acertamos a verba e subo novamente a rampa para entrar nas lides burocráticas.

Cá em cima, na secretaria, tenho de rectificar nomes de uma proposta feita ainda em Missirá. Enviara o ofício n.º 366, processo 200.03, dirigido ao comandante do BCaç 2852, SPM 5188, com os seguintes dizeres “Em virtude de recentes desfalques nos quadros orgânicos destes dois pelotões de milícias, dada a circunstância de faltar um comandante de secção em Finete e um cabo em Missirá, sugiro a V. Ex.ª se digne promover ao posto de 2º sargento o 1º cabo Ieró Baldé do Pel Mil 102 e a 1º cabo o soldado Dauda Jamanca do Pel Mil 101”. Sempre com o cenho carregado, o tenente Pinheiro argumentava:
- Beja, V. só me dá trabalhos, o homem não se chama Ieró Baldé mas Inderissa Baldé, não é a mesma coisa, fazíamos as folhas de pagamentos e depois tínhamos o Inderissa a pedir um vencimento que só existe para o Ieró, acontece que V. já tem cá dois Ieró para aumentar a balbúrdia!

Se estava de cenho carregado, o semblante do tenente Pinheiro, enquanto eu escrevia ou garatujava uns papéis freneticamente não disfarçava o pasmo:
- Beja, V. está a ouvir-me, o que é que está a escrever?.

Depois de lhe ter perguntado se ele estava mesmo interessado em saber o que se estava a passar na minha cabeça, respondi-lhe na mais completa das inocências:
- Pinheiro, estou a tentar escrever uma carta ao Deus menino, a dizer que o amo muito. Como não sou poeta, vou ajeitando, vou acomodando as palavras nestes papéis, à espera de uma inspiração. Se quer saber, aqui escrevi "aeroplano de papel', “nesta pétala encravada em minas de salgema”, “é uma sarça ardente em labareda, avermelhando o arvoredo”, “daquela fundura, chegam-nos os odores dos mangais e dos limoeiros, é então que me fere uma dor maturescente”, “Bambadinca está acima da savana, vai pipilando entre candeeiros de petróleo, envolvidos no orvalho do amanhecer”.

O rosto do tenente Pinheiro congestionava-se:
- V. veio gozar-me, vem misturar trabalho com coisas da sua cabeça desarranjada. Se isso é cultura, vou ali e já venho. Acabemos por aqui, antes que eu me irrite.

Pôs a boina na cabeça e atirou a porta com todo o estrondo. O 1º cabo Olival parecia estar a assistir a uma cena do outro mundo, inclinava bem a cabeça sobre os papéis, atarefava-se com a sua escrita ornamentada, floreada.


(ii) E chegámos ao poemacto alucinante

Pedi duas folhas de papel ao 1º cabo Olival, arrumei o dossiê dos expediente a tratar, inclusive todos estes rabinhos de palha de Missirá e Finete, há deprecadas urgentes a expedir, também, olhei os apontamentos garatujados, os que estavam em cima da mesa e os que me saíram dos bolsos, pus a Montblanc em movimento:

“Ao meu querido Deus menino, Tu, detentor do mais lindo sorriso do mundo, vê se me podes ajudar com os teus bracinhos abertos lá no presépio, cativado, protegido por teus pais, pastores e reis magos. Conto com o teu lindo, cúmplice sorriso, protegido na noite estrelada que eu desenhava nos presépios da minha infância. Vem dizer-nos que nos protegerás sempre quando partimos nas colunas de reabastecimento ou nos estradões e picadas que levam ao combate, em todos os momentos de dúvida quanto ao nosso feliz regresso. Vem dar-me fé sobre a sumaúma que se desprende dos bissilões, como cabelo ao vento, neste tempo da época seca. Impõe a Tua inocência benfazeja nesta cintura da guerra. Traz-nos o consolo da cola, do sal e do pão ázimo, cuida dos meus soldados, dá um sinal de misericórdia entre os nossos consanguíneos. Sei que Te estou a pedir muito, como se de um milagre se tratasse: Menino amado, ilumina-nos a mata, aparece como sarça ardente, com uma angra de promessas, dá-nos um sinal do teu perdão nesta enseada de sangue coalhado. Assina um lorde gentílico, numa guerra repartida, à espreita de ver o arvoredo com cores de incêndio, dá, imploro-Te, o Teu sinal como sarça ardente nessa noite de Natal”.

O 1º cabo Olival viu-me atarefado, escrevendo e refazendo, deu-me, solícito vários aerogramas aonde se copiou o pretenso poemacto, que seguiu para algumas partidas do mundo. Nalguns casos, nada mais se dizia a não ser o teor da mensagem ao Deus menino. Noutros, escreviam-se algumas outras banalidades, tais como: a existência de boatos de que Amílcar Cabral estava tuberculoso e que já havia uma luta de poder nos bastidores, isto segundo a propaganda emitida pela rádio; que, devido à acção do calor, pois saíra de madrugada e deixara a luz acesa, o disco com trechos de obras de Wagner, a Sinfónica de Chicago dirigida por Fritz Reiner, ficara em gelatina, só me apercebera quando quisera ouvir a Marcha Fúnebre de Siegfried e saíram uns sons cavos; que o jogo do xadrez se presta a agressividades, numa noite atrás dois oficiais, parceiros pacatos, desataram aos gritos e aos insultos, tabuleiro e peças andaram pelo ar, ninguém percebeu porquê, já nos bastam as cenas com a comida em que uma simples observação pode dar dez dias de prisão; que Cibo Indjai, o mais valoroso caçador do Cuor, me veio perguntar se pode voltar para Missirá, tem saudades de caçar, pedi-lhe para esperar, por enquanto há só um furriel, há cabos em falta e soldados doentes, não posso dispensar os melhores soldados; regressou o Campino e temos mais um apontador de bazuca e recebemos um fula educadíssimo, Dauda Bari; que na véspera do dia de Natal almoçaremos juntos, seguiremos para Bafatá onde vou buscar a ópera “Carmen”, que é a prenda que me ofereci, mais os doces, a procuração e o atestado de residência que seguirão directamente para Lisboa; que jantaremos todos muito tarde e que haverá uma consoada no quartel; e que ao amanhecer do dia de Natal partiremos por quatro dias para a ponte de Udunduma; àqueles que mais me estimam ainda sou capaz de lhes confessar o meu sofrimento com as insónias. Só me apetece dormir, a luz fere-me os olhos, todos os sons mudaram de volume. Assim acabei o correio de antes do Natal.

(iii) O dia de Natal na ponte de Udunduma

A 24 [de Dezembro de 1969], coube-nos reabastecer quem estava nos Nhabijões, fomos buscar doentes a Samba Juli para ir à consulta do Vidal Saraiva, levaram-se munições para o pelotão de milícias em Amedalai, seguiu-se para Bafatá, deixei no correio um punhado de cópias do poemacto, tratei dos documentos, voltei ao correio e meti-os numa carta que seguiu para a Cristina, fui buscar a minha prenda de Natal, o Cherno olhava para a senhora do estojo da ópera, eu disse-lhe:
- É a Callas, via-a em Lisboa há onze anos, gosto muito da sua voz.

O Cherno limitou-se a pegar no embrulho e comentou:
- Agora quem ouve a gritaria são os outros lá do teu quarto!.

Seguimos para Bambadinca, ficámos no Zé Maria, onde já estava o resto do pelotão, não sem ter pedido ao Xabregas que trouxesse o Setúbal, os condutores de Missirá pertenciam à família. E tratou-se de uma almoço em família, eles eram a minha gente, eu bem pedia a Deus que não houvesse mais infortúnios nos próximos sete, oito, nove meses em que seria o seu comandante. Agradeci-lhes muito a companhia e o seu heroísmo, a sua capacidade de sacrifício, de tarde ainda iríamos a Galomaro, nessa noite não haveria emboscada nem reabastecimentos, seguiríamos às 7h da manhã para a ponte de Udunduma, revezando um dos grupos de combate da CCaç 12.

Pela meia noite, brindámos na messe de oficias, abriram-se iguarias (da minha parte, escondi ao máximo as minhas para as oferecer no dia seguinte no local mais desagradável que vi a imitar um refeitório), fizeram-se votos, recolhemos cedo, os operacionais sabiam que não haveria tréguas no dia de Natal. Lembro-me de ter conversado com o major Cunha Ribeiro, pedindo-lhe toda a compreensão para o facto de precisar de mais sargentos. Com o novo ano, sairá o Pina e virá o Vitorino Ocante, mais tarde chegará um militar destemido, o sargento Manuel Cascalheira, que tanto me ajudou na operação Rinoceronte Temível.

Vão seguir-se quatro dias de suplício na ponte, um local onde nada acontece, no dia de Natal ainda nadei umas braçadas no rio Udunduma, enquanto houve luz li e escrevi, as noites vou passá-las praticamente em claro, é um período sem história, não consegui ter argumentação para convencer o major de operações a olharmos a ponte de Udunduma doutra maneira, fazer patrulhamentos envolvendo Amedalai, Demba Taco e Moricanhe, na resposta eram só dificuldades, havia sempre obstáculos que tudo inviabilizavam. Com o cansaço, desisti de argumentar. E voltámos para Bambadinca, para o torvelinho das rotinas.

A 30, li num aerograma que mandei à Cristina, visitou-nos o Spínola: “Esteve cá o Spínola depois de ter ido a Missirá. Altivo, monóculo faiscante, perguntas em tom abrupto”. O que eu não disse à Cristina foi que ele se passeou com a sua comitiva e diferentes dos nossos oficiais pelos abrigos, interpelando com contundência Jovelino Corte Real enquanto entravam e saíam dos abrigos. Lá para os lados da caserna dos soldados, à entrada de um desses abrigos um prego apanhou a camisa do comandante no cós das costas, a camisa rasgou-se e transformou-se numa fralda deixando a carne à mostra.

Com toda a dignidade possível, Cunha Ribeiro passou a dialogar com Spínola enquanto Jovelino Corte Real foi mudar de camisa. No fim da visita, o comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné bradou que iria voltar em breve e que haveria consequências caso não fossem tomadas as providências que ele exigia.

A 31, pelas 6h da manhã, um jogo de futebol, finalmente o 52 derrotou a equipa da CCS, assisti da bancada, sem qualquer energia para jogar dez minutos. Nessa noite, o conjunto pop do batalhão deu uma récita com guitarras eléctricas e bateria. Por essa altura, recebi muitas cartas amigas, o Ruy Cinatti procurou dar-me estímulo, o Ferreira de Castro pedia notícias. Peguei num jornal atrasado e soube da morte do Alves Redol e do José Régio.

Fui à capela de Bambadinca rezar por todos os meus entes queridos, pedi paz, supliquei para que o novo ano nos trouxesse menos sofrimento. Depois partimos para o Bambadincazinho, vamos fazer a emboscada na missão do sono. Regressarei pelas 6h da manhã com um moribundo nos braços e uma camisa perfurada pelo ocaso das balas. É uma camisa ensanguentada que o Cherno vai exibir por Bambadinca, a sua prova definitiva de que eu sou um baqué, aquele guerreiro mitológico que nenhuma bala pode matar.


(iv) Uma grande descoberta, Claude Simon


Comecei a ler um livro extraordinário, uma prenda da minha Mãe, A Casa Grande de Romarigães, de Aquilino Ribeiro. Leio devagar, a saborear uma prosa alquímica que nos fala do Minho rural, a posse da terra, a construção da riqueza fundiária, os preconceitos, o peso das superstições. Leio e releio, não paro de me assombrar: como é que é possível abrir um romance com este toque mágico, inultrapassável:

“O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Voltou a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da sela e pulou no espaço”.



Capa do livro O crime do Dragão, por S.S.Van Dine. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 97) . "Um grafismo com reminiscências surrealistas, como é compreensível em toda a obra do Cândido da Costa Pinto. A tradução é de Roberto Ferreira. Tive uma grande alegria quando recuperei este livro na Feira da Ladra. Foi uma leitura estimulante, perto do Natal de 1969, livro comprado em Bafatá" (BS).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


É melhor parar aqui, isto é um português de lei que tenho de mastigar, assimilar, respirar todos os odores. Oxalá tenha forças e lucidez para ler, perceber e amar. O livro policial que me acompanhou nas emboscadas foi O crime do Dragão, de S.S. Van Dine. Desta feita, a tragédia inicia-se numa piscina nos arredores de Nova Iorque, num local quase lendário, a Piscina do Dragão, propriedade da família Stamm. Alguém mergulhou e não reapareceu. Tinha havido uma festa e um galã propôs um banho nocturno, a própria vítima. Philo Vance, um detective super chique e super culto, acompanha as investigações e vai deslindar uma trama diabólica em que o Dragão é um mergulhador vingativo que desfaz as suas vítimas e acabará por ser punido, sendo esmagado por um rochedo da piscina. Um dos pontos fortes do romance é Van Dine ir conduzindo a investigação para um falso criminoso invertendo aparatosamente o rumo da investigação até ao desenlace espectacular. Pelo meio, Philo Vance dá uma lição aos polícias e aos leitores sobre a importância do Dragão em todas as mitologias e religiões.

Palace, de Claude Simon, veio lembrar-me a prosa de William Faulkner a embriaguez da palavra, uma narrativa poderosa feita de minúcias em que os actores são o estudante , o homem-espingarda, o americano, o mestre-escola e o calvo. Tudo se passa em Barcelona, durante a Guerra Civil espanhola, o estudante volta lá quinze anos depois e tudo vai relembrar, é um reencontro hipnótico, o estudante vê e revê os ambientes por onde deambulou, o que era o Palace durante a guerra e em que se transformou o Palace, no pós guerra.



Capa do romance de Claude Simon, Palace. Lisboa: Ulisseia, 1966. "Palace é uma escrita arrebatadora,uma grande surpresa.Desconhecia Claude Simon, nunca me impressionou o novo romance, mas este este livro alterou-me o conceito dos cânones literários. Logo a seguir pedi ao meu Padrinho O Vento, que fora publicado na Colecção Contemporânea, da Portugália. Ainda bem que lhe atribuíram o Nobel de 1985. A capa é uma beleza, tem a chancela do Espiga Pinto, que se iria impor nas artes plásticas. A tradução é de ferando Cascais Xavier. Ulisseia,1966" (BS).



Foto : © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Tudo começa com um inventário minucioso de objectos e detalhes do interior do Palace, dos locais por onde o estudante se passeia, parece que o autor leva um caderno e regista detalhes ínfimos, enquanto se ouvem as vozes da guerra. Segue-se uma narrativa do homem-espingarda, a prosa de Claude Simon torna-se ainda mais densa, chega o americano...

É assim, em linguagem oficinal que o tempo é relembrado até chegarmos ao Palace, em que se encerra a imponente narrativa, olhando a fachada, recordando as marcas das balas, o voo dos pombos ao sol por cima dos telhados, é uma escrita compulsiva como se segue:

“... o Sol desapareça atrás das colinas, a Oeste, por trás das carcassas descarnadas das torres e das grandes rodas do luna-parque abandonado sob o céu agora cor de salmão, a própria cidade também ao abandono, solitária, sob a invariável luz verde-eléctrico dos globos e dos lampadários complicados que se acendem uns após outros como a ribalta de um teatro, semelhante a uma dessas rainhas em parto, abandonada no seu palácio, porque ninguém a deve ver nesse momento, parindo, expulsando dos seus flancos, encharcados pelo suor o que deve ser parido, expulso, algum monstrozinho macrocéfalo, inviável e degenerado - e, por fim, tudo se imobiliza, recai, e ela fica ali, jazendo esgotada, expirante, sem esperança que aquilo venha acabar, esvaziando-se numa ínfima e incessante e vã hemorragia...”.

Fiquei a gostar tanto de Claude Simon que logo escrevi ao meu Padrinho a pedir-lhe que me mandasse O Vento, que fora publicado na Colecção Contemporânea da Portugália Editora. Foi mesmo muito bom acabar o ano de 1969 a conhecer a literatura de Claude Simon.

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Notas de L.G.:


(1) Vd. poste de 3 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2024: A discoteca de Missirá ou alguns dos discos da minha vida (Beja Santos) (1): De Verdi a Beethoven



(2) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2370: O meu Natal no mato (7): Destacamento do Rio Udunduma, 1969, Pel Caç Nat 52 (Beja Santos)

(3) V. último poste desta série > 1 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2498: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (18): Operação Punhal Resistente

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5290: Parabéns a você (43): Victor Condeço, ex-Fur Mil SM da CCS/BART 1913

1. 18 de Novembro é data em que se comemora o aniversário do nosso camarada Victor Condeço, ex-Fur Mil SM que pertenceu à CCS do BART 1913 e esteve por terras de Catió entre os anos de 1967 e 1969.

Não podíamos deixar passar este dia sem o vir felicitar por acrescentar mais um ano à sua vida, com a certeza de que terá ainda muitos mais pela frente.

A Tabanca está atenta e é com muito prazer que vê os seus tertulianos palmilhar a vida com passos firmes como quando garbosamente marchávamos.


No Poste 1301 do já longínquo dia 26 de Novembro de 2006, o Victor contava-nos assim um pouco do seu passado na Guiné:

Camarada Luís Graça,
Em primeiro lugar deixe-me cumprimentá-lo e elogiar o seu muito digno e meritório trabalho que tem conseguido levar por diante no blogue.
Ter já conseguido fazer deste blogue um referencial histórico de um período da história de Portugal, escrito pelas pessoas que fizeram essa própria história, não é obra fácil.
Que tenha a saúde, a disposição e a disponibilidade de tempo suficientes para poder continuar a sua obra e que não faltem as colaborações dos nossos camaradas e amigos da Guiné.

Sou assíduo frequentador desde Março de 2006, altura em que, procurando por mapas da Guiné, me deparei com este excelente sítio. Raro é o dia que o não visite, já li também a grande maioria dos postes mais antigos, onde recordei ou fiquei sabendo de acontecimentos que já não lembrava ou nunca soubera.
[...]
Sou um velho combatente (63 anos feitos ontem, dia 18 de Novembro), estou aposentado, meu nome é Victor Manuel da Silva Condeço, ex-Furriel Miliciano 00698264, do Serviço de Material – Mecânico de Armamento e, por isso mesmo, sem grandes histórias de guerra para contar. Este blogue teve a virtude de me despertar recordações, umas boas, outras menos boas, mas que nem por isso deixam de ser uma forma de reviver um passado de há quase quarenta anos.

Participei na Guerra da Guiné por obrigação, como aliás quase todos nós, desde 1 de Maio de 1967 a 3 de Março de 1969, fazendo parte da CCS do BART 1913 que era constituído também pelas CART 1687 (Cachil e Cufar), CART 1688 (Bissau e Biambi) e CART 1689 (Fá, Catió, Cabedú e Canquelifá).

Estive na região do Tombali na Vila de Catió, Comando de Sector, pertencente ao Comando de Agrupamento de Sectores de Bolama. As unidades deste sector eram: Bedanda, Cabedú, Cachil (i), Cufar e o destacamento de Ganjola (i), por todas passei em serviço.

Desembarquei em Catió a 2 de Maio de 1967, os vinte e um meses de comissão foram aqui cumpridos, até 20 de Fevereiro de 1969, data em que regressei a Bissau.

Um abraço Luis, por hoje é tudo.
Victor Condeço


Depois teve no Blogue uma colaboração excelente, donde destacamos os postes da listagem em rodapé.

Deixamos estas quatro fotografias do seu álbum fotográfico:

Catió > Victor Condeço com uma menina

21 de Setembro de 1967 > O Fur Mil Victor Condeço numa das suas inspecções ao armamento, verificando uma G3 no aquartelamento de Cufar.

Catió > O Fur Mil Vitor Condeço sentado na raiz do Poilão, tendo por fundo o edifício do comando.

Catió > O Fur Mil Victor Condeço em frente da habitação do administrador, ao cimo da avenida.
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1301: O cruzeiro das nossas vidas (4): Uíge, a viagem nº 127 (Victor Condeço, CCS/BART 1913)

3 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1335: Um mecânico de armamento para a nossa companhia (Victor Condeço, CCS/BART 1913, Catió)

3 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1336: Catió: Autor de pintura mural, procura-se (Victor Condeço)

21 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1387: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (9): Catió, 1967 (Victor Condeço)

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1505: Lembranças da Vila de Catió (1): Albano Costa / Mendes Gomes / Vitor Condeço

15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1528: Lembranças da Vila de Catió (2): Albano Costa / Vitor Condeço

19 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1535: Subsídios para a história da CART 1689, a que pertencia o Belmiro dos Santos João (Vitor Condeço)

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço

26 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1627: Lembranças de Catió (3): Albano Costa / Victor Condeço

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1756: Exposição de armamento apreendido ao PAIGC, aquando da visita de Américo Tomás (Bissau, 1968) (Victor Condeço)

5 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2408: Sistema de cores dos bidões de Combustíveis & Lubrificantes, usados pelas NT no CTIG (Victor Condeço)

11 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2432: Diorama de Guileje (1): Geradores: Grupos Diesel Lister ou Frapil: fotos ou manuais, precisa-se (Nuno Rubim / Victor Condeço)

19 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2453: O que fazia um militar da ferrugem como eu ? (Victor Condeço, ex- Fur Mil Mec Armamento, CCS/BART 1913, Catió, 1967/69)

11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3599: As Boas Festas da Nossa Tabanca Grande (4): Victor Condeço, Catió, Ex-Fur Mil Mec Arm, CCS/BART 1913, Catió, 1967/69

Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5273: Parabéns a você (42): Orlando Pinela, ex-1.º Cabo Reab Mat Auto da CART 1614/BART 1896 (Editores)

domingo, 28 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17405: Falsificações da história (1): a fantasiosa versão do repórter de guerra e escritor sul-africano Al J. Venter sobre o ataque a Bambadinca em 28/5/1969


Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > O alf mil  trms Fernando Calado, de braço ao peito, junto à parede, crivada de estilhaços de granada de morteiro, das instalações do comando, messe e dormitórios de oficiais e sargentos, na sequência do ataque de 28 de maio de 1969.

Esta era a parte exterior dos quartos dos oficiais (vd. ponto 6 da foto aérea abaixo reproduzida),  que dava para as valas, o arame farpado e a bolanha, nas traseiras do edifício do comando... Era uma parte mais exposta, uma vez que o ataque partiu do lado da pista de aviação.

Pelo menos aqui, caíram duas morteiradas:

(i) Uma das morteiradas atingiu o quarto onde dormia, com outros camaradas,  o fur mil amanuense José Carlos Lopes. Tinha acabado de sair.. Ainda hoje conserva um lençol crivado de estilhaços... Está vivo por uma fração de segundos... (Bancário reformado do BNU, vive em Linda a Velha e é membro da nossa Tabanca Grande.);

(ii) Outra morteirada atingiu o quarto onde dormia o Fernando Calado e o Ismael Augusto.  O Fernando ainda apanhou o efeito de sopro, tendo sido menos lesto que o Ismael, a sair logo que rebentou a "trovoada"...

Também podia ter "lerpado", como a gente dizia na época... Apesar de tudo, a sorte (ou a má pontaria dos artilheiros da força atacante, estimada em 100 homens, o que equivalente a 3 bigrupos) protegeu os nossos camaradas da CCS/BCAÇ 2852 e subunidades adidas (, entre elas, o Pel Caç Nat 63 cujos soldados, guineenses, dormiam a essa hora, com as suas bajudas, nas duas tabancas de Bambadinca, e que portanto estavam fora do arame farpado)...

Na foto acima , o Fernando Calado, membro da nossa Tabanca Grande (tal como o Ismael Augusto), traz o braço ao peito, não por se ter ferido no ataque mas sim por o ter partido antes, num desafio de... futebol. Infelizmente  temos poucas fotos dos efeitos (de resto, pouco visíveis) deste ataque.

Foto: © Fernando Calado (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  Invólucros de granadas de canhão s/r, deixadas na orla da mata contígua à pista de aviação, na noite do ataque a Bambadinca, 28 de maio de 1969... Ainda tenho bem presente, na minha memória, estes "objetos" de guerra, na nossa passagem por Bambadinca, a caminho de Contuboel, em 2 de junho de 1969...



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Bidões de combustível atingidos pelo fogo do IN, no ataque da noite de 28 de maio de 1969. Recorde-se aqui o sistema de cores dos nossos bidões de combustíveis e lubrificantes: Vermelho (gasolina), verde claro (petróleo branco), azul (gasóleo), amarelo (óleos)...No caso dos combustíveis para aeronaves, os bidões também eram verde-claro, mas de tampa (topo do bidão) de cor branca.

Fotos: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > c. 1970 > Vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca

Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste). Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3). A CCAÇ 12 (julho de 1969/março de 1971) começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento "roubado" à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole.

De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (7), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9). As messes de oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (10).  Na noite de 28 de maio de 1969, uma granada de morteiro explodiu no ponto 7.

Do lado direito, ao fundo, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá. O aquartelamento de Bambadinca situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). São visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24). A luz eléctrica era produzida por gerador... Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25). Em 1969/71, na altura em que lá estivemos, ainda não havia artilharia (obuses 14).

A caserna das praças da CCS (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3). Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U. Mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14). Creio que por detrás ficava o refeitório das praças. Em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17).

Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e depósito da água (de que se vê apenas uma nesga). Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto, e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do alf mil António Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).

Esta reconstituição foi feita por Humberto Reis, Gabriel Gonçalves e Luís Graça.

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Já muito se escreveu aqui sobre o célebre ataque a Bambadinca em 28 de maio de 1969 (*), por coincidência uma data simbólica para o regime político então em vigor: em 28 de maio de 1926 deu-se um golpe de Estado que pôs fim à I República, instaurou a Ditadura Militar e institucionalizou o Estado Novo, derrubado 48 anos depois, em 25 de abril de 1974.

A data nunca foi esquecida por quem, como o Fernando Calado e o Ismael Augusto, estava em Bambadinca nessa noite e foi brutalmente acordado pelas explosões dos canhões sem recuo e dos morteiros 82, e pelas rajadas de armas automáticas... 

O simbolismo da data é reforçado pelo facto de tudo ter acontecido  pouco mais de dois meses depois da grande Op Lança Afiada, em que as NT varreram  toda a margem direita do Rio Corubal, desde a foz do mítico rio até à floresta do Fiofioli, considerado um bastião do PAIGC. Cerca de 4 mil almas deveriam viver, sob controlo do PAIGC, desde o início da guerra, nos subsetores do Xime e do Xitole. Cerca de 1300 homens, entre militares e carregadores civis. participaram nesta grande "operação de limpeza". de 10 dias, que não se voltaria a repetir, no setor L1.

Refeito dos desaires sofridos (nomedamente, a desarticulação e/ou destruição de boa parte dos seus meios logísticos, incluindo moranças e meios de subsistência da guerrilha e das populações sob o seu controlo: toneladas de arroz, dezenas e dezenas de cabeças de gado, centenas de galináceos e porcos...), o PAIGC decidiu atacar em força Bambadinca, porta de entrada da zona keste. 

Na história do BCAÇ 2852, o ataque (ou melhor, "flagelação") a Bambadinca é dado em três linhas, em estilo seco, telegráfico:

"Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGFog, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros. " (...).


2. Sobre este ataque a Bambadinca lemos há dias o seguinte excerto da versão contada pelo escritor e jornalista sul-africano Al J. Venter que, em missão de reportagem à Guiné,  visitou o aquartelamento, um ano depois, já no tempo do BART 2917 (1970/72) e que falou, entre outros com o comandante de batalhão. O excerto é reproduzido pelo nosso crítico literário, Mário Beja Santos (**):


(...) “O último ataque [a Bambadinca] ocorrera exatamente um ano antes de eu chegar: um grupo infiltrado tinha-se dirigido para Norte do outro lado da fronteira  [com a República da Guiné-Conacri] a partir de Kandiafara [corredor de Guileje] para tentar cortar a estrada de Bafatá. 

"Num final da tarde, os guerrilheiros atacaram Bambadinca a partir do outro lado do rio [ Corubal ? ],  retirando-se depois para uma posição pré-determinada, onde esperaram pelo dia seguinte antes de se juntarem a outros dois grupos. Esta força combinada iria então atacar outras posições durante o assalto. Foi então que algo correu mal. 

"Um grupo de pisteiros da força atacante colidiu com uma patrulha de Bambadinca e foi capturada intacta, sem ter sido disparado um único tiro. Um dos homens era um alto oficial do PAIGC. 

"Os quatro homens foram levados de helicóptero para Bambadinca onde foi oferecida ao oficial a opção de contar tudo ou aceitar as consequências. Era uma situação sem saída, e o rebelde foi suficientemente inteligente para aceitar”. (...)

O referido ataque a Bambadinca foi a 28/5/1969 (ou "flagelação", segundo a história da unidade...), estava o Mário Beja Santos em Missirá, a comandar o Pel Caç Nat 52,  e eu a chegar a Bissau no "Niassa", ainda deu no dia 2 de junho, ao passar por lá, vindo de Bissau de LDG até ao Xime, a caminho de Contuboel, para ver os estragos (relativamente poucos... ) mas sobretudo sentir as reações e emoções da malta da CCS/BCAÇ 2852 e subunidades adidas...

Ora eu nunca ouvi esta versão Al J. Venter / Domingos Magalhães Filipe, ou a melhor, a versão contada pelo comandante do BART 2917 (que rendeu o BCAÇ 2852) e registada pelo escritor e jornalista sul-alfricana... Será que o inglês do Magalhães Filipe e o português do Venter eram assim tão maus ?

Parece que alguém está a delirar... ou trocou as cassetes... ou está deliberadamente a falsificar a história. Não fazemos "juízos de valor", interessa-nos apenas a verdade dos factos.

Recorde-se que o BART 2917 chegou a Bambadinca em finais de maio de 1970... O BART 2917 foi mobilizado pelo RAP 2. Embarcou para a Guiné em 17/5/1970 e regressou à Metrópole em 24/3/1972. Foi colocado no Sector L1, em Bambadinca, substituindo o BCAÇ 2852 (1968/70). O seu primeiro comandante foi o ten cor art Domingos Magalhães Filipe. Unidades de
quadrícula: CART 2714 (Mansambo); CART 2715 (Xime; teve 5 ncomandantes); e CART 2716 (Xitole).

O Venter deve, portanto, ter falado, talvez em junho ou mesmo princípios de junho de 1970, com o então ten cor art Domingos Magalhães Filipe, que irá ser substituído pelo famoso ten cor inf Polidoro Monteiro. O Spínola, recorde-se, pôs-lhe os "patins"...

Por que não me parecia que esta história tivesse pés e cabeça, confrontei alguns camaradas de Bambadinca desse tempo, e nomeadamente   o Fernando Calado e o Ismael Augusto, dois bem colocados oficiais milicianos da CCS/BCAÇ 2852, ambos membros da nossa Tabanca Grande.

Mais uma vez o Fernando Calado, que foi  alf mil trms (e, portanto, um oficial bem por dentro do sistema de informação e comunicação do setor L1) contou-me ao telefone a sua versão, que vem desmentir a versão do Al J. Venter / Domingos Magalhães Filipe,  e que ele prometeu passar a escrito, para "memória futura":

(i) o relato do escritor sul-africano Al J. Venter é uma falsificação da história;

(ii) ele e o Ismael já estavam deitados, o ataque terá sido perto da 1 hora da noite; e apanhou toda a cheia desprevenida;

(iii) a sorte de Bambadinca foi os canhões s/r (ele diz que eram seis, a história da unidade fala em três...) ao fazerem tiro direto, no fundo da pista, se terem enterrado ligeiramente (, estava-se já na época das chuvas), pelo que as canhoadas passaram a razar as instalações do quartel; mais certeiras foram algumas morteiradas que fizeram estragados (inckuindo nos quartos dos sargentos);

(iv) não houve prisioneiros nenhuns, nem muito menos foi apanhado à unha nenhuma figura grada do PAIGC; em suma, ninguém foi trazido de helicóptero para Bambadinca para ser interrogado;;

(v) o comandante do BCAÇ 2852, ten cor Manuel Maria Pimentel Basto (, de alcunha, o "Pimbas"),  não estava em Bambadinca nem ele nem a esposa; [o que é difícil de comfirmar a partir da história da unidade: a 14 de maio, o cor Hélio Felgas, cmdt do Comando de Agrupamento 2957 (Bafatá) tinha, juntamente com o ten cor Pimentel Basto, visitado Mansambo, Ponte dos Fulas, Xitole, Saltinho, Quirafo, Dulombi e Galomaro; e a 25, Bambadinca tinah sido visitada pelo Cmdt Militar e e pelo Cmdt Agr 2957; onde é que poderia estar o Pimentel Basto em 28 ? Em Bissau ?]

(vi) a única senhora que vivia no quartel era a esposa do tenente SGE Manuel Antunes Pinheiro, o chefe de secretaria do comando do BCAÇ 2852, e que era açoriano (se não erro);

(vii) o Fernando Calado conirma que houve algumas "cenas de histeria" a nível do comando de Bambadinca... (entre o major  inf Viriato Amílcar Pires da Silva, oficil de op inf, e o 2º cmdt, o maj inf Manuel Domingues Duarte Bispo).

Sabemos, pela história da unidade, que a 2 de junho de 1969, cinco depois do ataque a Bambadicna,os destacamentos de milícias e tabancas autodefesa de Amedalai,  Dembataco e Moricanhe foram flagelados, durante a noite, em simultâneo por 3 grupos não estimados, usando um arsenal impressionante: 7 canhões s/r, 8 mort 82, 13 LGFog, metralhadoras pesadas 12.7, além de armas automáticas, "causando 1 morto e 3 feridos milícias, 1 morto e 4 feridos civis, e danos materiais nas tabancas"... O mês de junho de 1969, já em plena época das chuvas,  foi, de resto, um mês de intensa atividade operacional do PAIGC no setor L1...

Para o comando e CCS do BCAÇ 2852, houve de imediato consequência deste ousado ataque do PAIGC:

(i) ainda em maio  o maj op info Herberto Alfredo do Amaral Sampaio vem substituir o maj Manuel Domingues Duarte Bispo, "transferido para o QG" (sic);

(ii) em julho o ten cor Pimentel Basto, "transferido por motivos disciplinares" (sic), é substituído pelo ten cor inf Jovelino Pamplona Corte Real;

(iii) em agosto, o cap inf Eugénio Batista Neves, cmdt da CCS, é também "transferido por motivos disciplinares", sendo substituído pelo cap art António Dias Lopes (que fica pouco tempo em Bamabadinca: logo em setembro é também substituido, pelos mesmos motivos, pelo cap inf Manuel Maria Fontes Figueiras);

(iv) nesse mesmo mês de setembro, chega a vez do maj inf Viriato Amílcar Pires da Silva: "transferido por motivos disciplinares", é substituído pelo maj art Ângelo Augusto Cunha Ribeiro, o nosso conhecido "major elétrico"...

Em suma, o comando do BCAÇ 2852 é completamente "decapitado" devido ao ataque a Bambadinca de 28/5/1969... que não conseguiu prever e para o qual também não se preparou convenientemente (em termos de defesa e de resposta)...



Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de outubro de 2013 > Sessão de lançamento do livro do José Saúde, "Guiné-Bissau, as minhas memórias de Gabu, 1973/74" (Beja: CCA - Cooperativa Editorial Alentejana, 170 pp. + c. 50 fotos) > Aspeto parcial da assistência: em primeiro plano, o Fernando Calado  e o Ismael Augusto, dois oficiais milicianos da CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) que estava em Bambadinca na noite do ataque do PAIGC, em 28/5/1969; o primeiro era o oficial de transmissões e o segundo o oficial de manutenção.

Foto (e legenda) : © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados



3. Seria interessante que os camaradas da CCS/BART 2917 se lembrassem da visita deste jornalista e escritor Al J. Venter, a Bambadinca, logo no início da comissão, portanto em finais de maio ou princípios de  junho de 1970.

Eu estava lá e não dei por nada, mas também não admira, já que a malta da CCAÇ 12 andava sempre por fora, no mato... Mas, de vez em quando, apareciam por Bambadincas jornalistas e personalidades estrangeiras que em geral "simpatizavam" com o regime de então... Eram visitas discretas, a maioria da malta não se apercebia... Vinham de heli ou DO 27 diretamente de Bissau, com carta branca do Spínola... Lembro-me de um grão-duque qualquer, com um título pomposo... mas também de dignitários religiosos muçulmanos... como o Cherno Rachid...


Em 28/5/1969, as forças que estavam em Bambadinca, sede do setor L1 eram as seguintes:

(i) o comando e a CCS/BCAÇ 2852;

(ii) o Pel Caç Nat 63;

(iii) o Pel Rec Daimler 2046;

e (iv) o Pel Mort 2106 (com secções destacadas em Xime, Mansambo, Xitole e Saltinho.

No total seriam apenas 200 homens em armas...Só a partir de 18 de julho de 1969, Bambadinca passa a ter a mais 160 homens, a CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), constituída por 60 graduados e especialistas metropolitanos e 100 praça do recrutamento local...

Por sua vez, as subunidades de quadrícula, no setor L1, em 28/5/1969, eram as seguintes:

(i) CART 1746 no Xime;

(ii) CART 2339 em Mansambo (irá depois. no dia seguinte, destacar um pelotão para a defesa da ponte do Rio Udunduma, na estrada Xime-Bambadinca, ponte que fora dinamitada e parcialmente destruída);

(iii) CART 2413 no Xitole (com um pelotão destacado na Ponte dos Fulas´);

(iv) CART 2405 em Galomaro (com um pelotão destacado em Samba Cumbera e outro, depois, na ponte do Rio Udunduma, e outro ainda, mas reduzido, em Fá Mandinga):

(v) CCAÇ 2406 no Saltinho  (com um pelotão depois destacado para a ponte do Rio Udunduma);

(vi) Pel Caç Nat 52 em Missirá;

(vii) o 8º Pel Art / BAC  (-) em Mansambo;

(viii) e pelotões de milícias em Missirá e Cansamange (101), Finete (102), Quirafo (103), Taibatá e Amedalai (104),  Dembataco e Amedalai (105=) Dulombi (144), Moricanhe (145),  Madina Bonco (146), Madina Xaquili (147)...



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  Ponte do Rio Udunduma, afluente do Rio Geba, na estrada Xime-Bambadinca > Possivelmente no(s) dia(s) seguinte(s) ao ataque ao quartel de Bambadinca, em 28 de maio de 1969. Nessa noite, esta ponte, vital para as comunicações com todo o leste da província (o eixo Xime-Bambadinca era a porta de entrada do leste), foi objeto do "trabalho" dos sapadores do PAIGC... Os estragos, embora visíveis, não abalaram felizmente a sua estrutura. Era uma bela ponte, em cimento armado, construída no início dos anos 50. Continuou a funcionar, sem quaisquer reparações por parte da engenharia militar... Passou a ser defendida permanentemente por um grupo de combate (que ia rodando pelas subunidades de quadrícula do batalhão e subunidades adidas), até à inauguração anos depois da nova estrada alcatroada Xime-Bambadinca.

Esta foto é "histórica". O José Carlos Lopes, furriel mil  amanuense do conselho administrativo da CCS/BCAÇ 2852, teve de "alinhar no mato", nesta dramática ocasião,  posando aqui para... a "posteridade".

Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. [Edição  e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

quinta-feira, 12 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20726: Pequeno dicionário da Tabanca Grande (11): edição, revista e aumentada, Letras R / S /T / U / V / Z


Guiné > Região de Quínara > Empada > CCAÇ 1587 (Cachil, Empada, Bolama e Bissau, 1966/68) > Ualada > Destacamento "Rancho da Ponderosa> O soldado Jorge Patrício, à porta do destacamento. A tabanca terá sido abandonada pela população e o destacamento desativado no segundo semestre de 1968 (, facto a confirmar), na sequência da retração e racionalização do dispositivo no CTIG, no início do "consulado" de Spínola, altura (2º semestre de 1968/ 1º semestre de 1969) em que foram abandonadas outras posições como Ponta do Inglês, Gandembel, Ganturé, Cacoca, Sangonhá, Beli, Madina do Boé, Cheche... (Em 2009, o José Patrício vivia em Viseu, já aposentado da função pública.)

O destacamento deve ter sido construído pela CCAÇ 1423 (RI 15, Tomar), que ocupou o aquartelamento de Empada entre janeiro de 1966 e dezembro do mesmo ano, seguindo depois para o Cachil. [Foi comandada pelo cap inf Artur Pita Alves,cap inf  João Augusto dos Santos Dias de Carvalho, cap cav Eurico António Sacavém da Fonseca, de novo, cap inf João Augusto dos Santos Dias de Carvalho, e de novo,  cap inf Artur Pita Alves. Ostentou como Divisa “Firmes e Constantes”.]

Antes da CCAÇ 1423, estiveram em Empada:


(i) a CCAÇ 616 (RI 1, Amadora), ocupou o aquartelamento entre abril de 1964 e janeiro de 1966, quando acabou a comissão. [Foi comandada pelo nosso grã-tabanqueiro , de Ferrel, Peniche, alf mil Joaquim da Silva Jorge, pelo cap mil inf Francisco do Vale, cap inf José Pedro Mendes Franco do Carmo, de novo pelo alf mil inf Joaquim da Silva Jorge e cap cav Germano Miquelina Cardoso Simões; ostentou como Divisa “Super Omnia”]M

(ii) segui-se a Companhia de Milícias n.º 6, do recrutamento local, quem ocupou o aquartelamento entre Janeiro de 1965 e Dezembro de 1971, até à extinção da força.

Por informação posterior, do nosso amigo e camarada Joaquim Jorge, ficamos a saber que "quem "fundou e construiu a 'Ponderosa' foi a CCAÇ 616 da qual eu era comandante em 17 de Março de 1965." O nome é seguramente influenciado pela popular série televisiva 
Bonanza, que passou na RTP no início dos anos 60, e  que narrava a saga familia da família Cartwright, pai, viúvio, e três  três filhos (de mães diferentes), que vivem no velho Oeste, em Neva, na defesa de seu rancho Ponderosa.

Fonte: Cortesia do CM - Correio da Manhã, edição de 4/10/2009. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Bolama > Nova Sintra > 1972 > Entrada do quartel dos Duros de Nova Sintra, a CART 2711, 1970/72... É possível que este pórtico, "Rancho dos Duros", tenha sido inspirado pelos vizinhos, mais antigos, do "Rancho da Ponderosa", destacamento de Ualada, subsetor de Empada, ao tempo da CCAÇ 1587 (1966/68).

Foto (e legenda): © Herlander Simões (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagen complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Ultima parte da publicação do Pequeno Dicionário da Tabanca Grande (*), de A a Z, em construção desde 2007, com o contributo de todos os amigos e camaradas da Guiné que se sentam aqui à sombra do nosso simbólico e fraterno poilão. Entradas das letras R/S/U/V/Z. Esperam-se comentários, críticas e sugestões dos nossos leitores.

Letra R


Rabecada - Vd. piçada (calão)

Racal - 
TR 28, um equipamento portátil, de origem sul-africana, podendo ser usado em viaturas ou às costas do operador. Creio que não era usado em aviões, transmitindo em fonia. As frequências poderão ser estas (de 38 a 54,9 Mc/s) e estavam agrupdos e grupos de 4 que comunicavam entre si. 

RAL - Regimento de Artilharia Ligeira


Rancho da Ponderosa - Destacamento construído pela CCAÇ 616 (Empada, 1964/66); localizava-se na tabanca de Ualala 

Rancho Os Duros - Quartel dos Duros de Nova Sintra, a CART 2711, 1970/72

RCacheu - Rio Cacheu

RCorubal - Rio Corubal

RCumbijã - Rio Cumbijã

RDM - Regulamento de Disciplina Militar


Ref - Militar na Reforma

R
eforço - Aumento das medidas de segurança dos nossos aquartelamentos ou da força que as materializava; havia outras formas de reforço: do rancho, de verba ou algumas situações táctica-administrativas em que algumas pequenas unidades poderiam estar.

RELIM - Abreviatura de Relatório Imediato

Reordenamento (REORD) - Aldeia estratégica, construída pelas NT, 
reagrupando uma ou mais tabancas Aldeia estratégica, construída pelas NT, reagrupando uma ou mais tabancas, visando impedir o contacto das populações com o IN e aumentar as suas capacidades de defesa.
Rep - Repartição (do Quartel-General)


REPACAP - Repartição do QG/ComChefe / Assuntos Civis e Acção Psicológica  

Res - Militar na Reserva (ou seja, antes da Reforma)


RFoto - Reconhecimento fotográfico (FAP)

RGeba - Rio Geba

RI - Regimento de Infantaria (ex., RI 2, Abrantes)

RN - Reserva Naval (Marinha)


Rocket - Granada lançadas pelo RGP 2 ou RPG 7 (PAIGC; roquete (Projéctil com um motor de propulsão);as s NT usavam rockets 37 mm disparados por um LGF "improvisado", uma bateira nas LFP da Marinha e pela FAP.

Rôz kuntango (ou simplesmente Kuntango) - Arroz cozinhado (bianda) sem mafe(crioulo)

RPG - Lança-granadas-foguete (PAIGC): havia o RPG2 e o RPG7; e ainda o
 P27 (Pacerovka)

RVIS - Voo de reconhecimento aéreo (FAP)



Letra S


SA-7 - Míssil Sam-7, Strela, de origem russa (PAIGC)

Sabe sabe - Gostoso (crioulo)

Sakalata - Confusão, conflito, chatice (crioulo)

Salgadeira - Urna funerária, caixão (gíria)

SAM - Serviço de Administração Militar, especialidade do Exército

Sancu - Macaco (crioulo)

Sec - Secção; equipa (Um Gr Comb ou pelotão era composto por 3 Sec) (NT)

Setor L1 - Setor 1 da Zona Leste (Bambadinca, Região de Bafatá) (NT)

Sexa - (i) Sua Excelência; mas também (ii) Sexagenário (gíria)


SG - Serviço Geral (FAP)

SGE - Serviço Geral do Exército; oficiais oriundos da classe de sargentos, depois de frequentarem a Escola Central de Sargentos em Águeda

Siga a Marinha - Embora, vamos a isto! (gíria)

Sintex - Pequena embarcação, de fibra, com motor fora de bordo, de 50 cavalos, usado para cambar um rio; parecia uma banheira (NT)

SM - Serviço de Material (vd. Ferrugem)

SNEB - Rocket antipessoal, de calibre 37 mm, que equipava o T-6 e que também era usado pelos paraquedistas e demais tropas (por ex.,  africanas) como LGFog

Sold - Soldado

Sold Arv - Soldado Arvorado

Solmar - Cervejaria de Bissau, do tempo colonial

SPM - Serviço Postal Militar

Srgt - Sargento

STM - Serviço de Transmissões Militares

Strela - Flecha, em russo (стрела); míssil russo terra-ar SAM 7

Suma - Como, igual (crioulo) 


Supintrep - Relatório de informação suplementar (Vd. Perintrep)

Supositório - Granada de obus (gíria) 



 Letra T


T/T - Navio de Transporte de Tropas (v.g., T/T Niassa, T/T Uíge)

T6 - Avião bombardeiro, monomotor; equipado c/ lança-roquetes e metralhadora (NT) 

Tabanca - Aldeia (crioulo); mas também morança, cubata, casa: mas também tertúlia (v.g., Tabanca de Matosinhos



Tabanca da Lapónia - Iglô, no círculo polar ártico, onde quem manda é o o luso-lapão ["sami"...] Joseph Belo, que se refugia aqui para fugir aos furacões de Key West, na Flórida. Na Internet, não tem pouso certo.

Tabanca da Linha (ou A Magnífica Tabanca da Linha) - Tertúlia de ex-combatentes da guerra colonial, que abrange a Grande Lisboa; reune-se em Algés, ultimamente no Restaurante Caravela de Oiro; régulos: Jorge Rosales (1939-2019) e Manuel Resende (desde 2019). 


Tabanca da Maia - Tertúlia de ex-combantentes da guerra colonial, com sede na Maia; régulo: José Casimiro de Carvalho



Tabanca de Matosinhos (,ou Tabanca Pequena) - A mais antiga das nossas tertúlias de convívio de ex-combatentes, amigos da Guiné-Bissau, que se sentam à sombra do poilão da Tabanca Grande; tem sede em Matosinhos; abanca no restaurante Espigueiro [, ex-"Milho Rei"; tem página no Facebook

Tabanca do Centro - Tertúlia de ex-combantentes da guerra colonial, com sede em Monte Real, Leiria; edita a revista "on line" Karas, diretor: Miguel Pessoa; régulo: Joaquim Mexia Alves;



Tabanca dos Melros - Tertúlia de ex-combatentes,  com sede em Fânzeres, Gondomar; abanca no restaurante Choupal dos Melros; tem blogue e página no Facebook

Tabanca Grande – A mãe de todas as tabancas ou tertúlias de antigos combatentes da Guiné que se foram criando ao longo dos anos (desde 2004); tem este blogue e também página no Facebook (v.g., Tabanca de Matosinhos, Tabanca do Centro, Tabanca da Linha, Tabanca dos Melros, Tabanca da Maia, Tabanca do Algarve, Tabanca da Lapónia, etc.) 




Tabanca do Centro, Monte Real, Leiria


Tarrafe - Vegetação aquática, típica das zonas ribeirinha 

Taufik Saad - Casa comercial, de origem libanesa, em Bissau

 

Taxy Way - Caminho de rolagem (FAP)

Tchora - Chorar (crioulo)

Tem manga di sabe sabe - Muito gostoso (crioulo)

Ten - Tenente

Ten Cor - Tenente-Coronel

Ten Gen - Tenente General, antigo general de 
3 estrelas [Posto reintroduzido no Exército Português em 1999, em substituição do posto de general de 3 estrelas; é a mais alta patente de oficial general no ativo, já que os postos superiores são apenas funcionais ou honoríficos: por exemplo, chefe do estado maior general].

Tertúlia – Reunião regular de amigos e camaradas (, também sinónimo de Tabanca Grande)

TEVS - Transporte em evacução (FAP)

Tigre de Missirá - Nome de guerra (Alf Mil Beja Santos, Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70; nosso grã-tabanqueiro da primeira hora)

Tigres - Esquadra de Fiat G-91, na BA 12


TN - Território nacional

TO - Teatro de Operações

Toca-toca - Transporte colectivo, privado, nas zonas urbans da Guiné-Bissau (carrinha tipo Hyace, de cores azul e amarela) (crioulo)


Tocar uma punheta aos obuses - 



Guiné > Regoão de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) + CART 2520 (1969/70) > Op Safira Única, 21 de janeiro de 1970, no subsetor do Xime, nas proximidades da Ponta do Inglês


Uma pistola de origem soviética, Tokarev, de 7,62, igual ou parecida à que que foi apreendida ao guerrilheiro Festa Na Lona, na Ponta do Inglês, no decurso da Op Safira Única ... Pelo que me recordo, esta pistola ficou à guarda do alf mil Abel Maria Rodrigues, comandante do 3º Grupo de Combate da CCAÇ 12 (onde eu muitas vezes me integrei, conforme as faltas de pessoal...) , que a tomou como ronco... Não sei se a conseguiu trazer para a Metrópole e legalizá-la... Ao que parece, esta arma teve a sua estreia na Guerra Civil de Espanha, em 1936, nas fileiras do exército republicano, estando distribuída a pilotos e tripulações de tanques, entre outros... (LG). 

Fonte: Kentaur, República Checa (2006) [página já não disponível]

(...) Por volta das 15. 30h, já nas proximidades do objectivo, foram notados indícios de presença humana: trilhos batidos, moringas nas palmeiras para recolha de vinho e um cesto de arroz.

Seguindo um dos trilhos, avistou-se um homem desarmado que seguia em direcção contrárias às NT. Capturado, informou que ia recolher vinho de palma, que a tabanca ficava próxima, que não havia elementos armados e que a maior parte da população estava àquela hora a trabalhar na bolanha.

Feita a aproximação com envolvimento, capturaram-se mais 2 homens, 5 mulheres e 6 crianças. Um dos homens capturados disse chamar-se Festa Na Lona, de etnia Balanta, estar alí a passar férias e pertencer a uma unidade combatente do Gabu. Foi-lhe apreendido uma pistola Tokarev (7,62, m/ 1933) e vários documentos.

Havia 2 tabancas, cada uma com 4-5 casas, afastadas umas das outras cerca de 200 metros. Cada casa era revestida de chapa de bidão e coberta de capim. Para o efeito foram aproveitados os bidões existentes no antigo aquartelamento da Ponta do Inglês que as NT haviam retirarado  em novembro de 1968.

Foram destruídos todos os meios de vida encontrados e incendiadas casas, a excepção das que ficaram armadilhadas. Os 2 Dest executaram toda a acção sem disparar um único tiro. A  retirada fez-se igualmente a corta-mato em direcção de Gundagué Beafada, tendo-se chegado ao Xime pelas 18.30h. Durante a noite, a Artilharia fez fogo de concentração sobre os acampamentos IN do Baio/Buruntoni e Ponta Varela/Poindon. (...)

Fonte: Extractos de: História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971. Capítulo II. 24-26.


Tokarev - Pistola de calibre 7,62 mm, de origem soviética (PAIGC)

TPF - Transmissões Por Fios

Trms - Transmissões

Tropa-macaca - Por oposição a tropa especial (páras, comandos, fuzos) (termo depreciativo, gíria); infantes

TSF - Transmissões Sem Fios

Tuga - Português, branco, colonialista (termo na altura depreciativo) (crioulo)

Turpeça - Banquinho, de três pés, onde se sentam em exclusivo os régulos felupes (crioulo)

Turra - Terrorista, guerrilheiro, combatente do PAIGC (termo na altura depreciativo)



Letra U

Ultramarina - Sociedade Comercial Ultramarina, ligada ao grupo BNU; rival da Casa Gouveia, do grupo CUF

Uma larga e dois estreitos - Galões de tenente-coronel

UXO - Unexploded (Explosive) Ordenance (em inglês); Engenhos Explosivos Não Explodidos (em português)



Letra V

Vè-Cê-Vê  (ou VCC) - Velhinho Como o C... Militar que ultrapassou o tempo legal da comissão de serviço no CTIG (21/22 meses) (calão)

 
Velhice - Militares em fim de comissão (gíria)

Vietname - Guiné, para lá de Bissau; mato ('versus'... "guerra do ar condicionado")




Letra Z 

ZA - Zona de Acção

Zebro - Barco de borracha com motor fora de borda, usado pelos fuzileiros

ZI - Zona de Intervenção (do Com-Chefe)

ZLIFA - Zona Livre de Intervenção da Força Aérea

____________


31 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20516: Pequeno dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (8): edição, revista e aumentada, Letras I, J, K e L

28 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20506: Pequeno dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (7): edição, revista e aumentada, Letras F, G e H

3 de dezembro 2019 > Guiné 61/74 - P20411: Pequeno dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (6): edição, revista e aumentada, Letras D/E

18 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20255: Pequeno dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (5): edição, revista e aumentada, Letra C

14 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20240: Pequeno Dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (4): 2ª edição, revista e aumentada, Letras M, de Maçarico, P de Periquito e C de Checa... Qual a origem destas designações para "novato, inexperiente, militar que acaba de chegar ao teatro de operações" ?

13 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20237: Pequeno Dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (3): 2ª edição, revista e aumentada, Letra B

13 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20235: Pequeno Dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (2): 2ª edição, revista e aumentada, Letra A

30 de dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2389: Abreviaturas, siglas, acrónimos, gíria, calão, expressões idiomáticas, crioulo (6): Racal (José Martins)

29 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2388: Abreviaturas, siglas, acrónimos, gíria, calão, expressões idiomáticas, crioulo (5): Periquito (Joaquim Almeida)

26 de junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1887: Abreviaturas, siglas, acrónimos, gíria, calão, expressões idiomáticas, crioulo (3)... (Zé Teixeira)


24 de junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1874: Abreviaturas, siglas, acrónimos, gíria, calão, expressões idiomáticas, crioulo (2)... (António Pinto / Joaquim Mexia Alves)

23 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1872: Abreviaturas, siglas, acrónimos, gíria, calão, expressões idiomáticas, crioulo (1)...(Luís Graça)

domingo, 20 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4980: Cartas (Carlos Geraldes) (9): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1966

1. Nono poste da série Cartas, (JAN a MAR66), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66


2.ª FASE: O MATO

Paúnca, 04 Jan. 1966
Espero a visita de um coronel de Bafatá, o chefão cá do sítio e isto tem de ficar tudo a brilhar. O pior é que os soldados estão outra vez a perder o hábito de trabalhar.
Neste fim de mês de Dezembro, vivi atulhado em contas da Cantina. Fui obrigado a deslocar-me a Pirada, para na máquina de calcular de Secretaria, conseguir acertar as contas. Felizmente que tudo deu certo e até com um lucro bastante satisfatório.
As distracções continuam sempre as mesmas. Às segundas-feiras, um passeio matinal pela aldeia para ver a feira. À noite joga-se à Sueca ou às Copas. Perco quase sempre, porque não dou atenção às cartas que vão saindo, nem conto os trunfos já jogados. Agora, com esta mania das cartas, já não nos deitamos com as galinhas. Dá para passar o tempo, mas não me entusiasma muito.

Ao Sábado à tarde e ao Domingo parece que o quartel fica deserto pois toda a gente se deita na Caserna a dormir a sesta ou a ouvir rádio.
Quanto à Passagem do Ano, aconteceu sem novidade de maior. Quase sem darmos por isso, estávamos já em 1966.
À meia-noite do dia 31 de Dezembro, fizemos um arraial de trinta demónios e até disparámos, para o ar, foguetões luminosos de várias cores (os very lights). Mesmo assim a festa durou pouco tempo e antes das 02H00 da madrugada já todos dormiam sossegadamente.
Os soldados estão todos chateados comigo por ter comprado uma camisa verde do novo fardamento, mas não tive outro remédio porque as amarelas estão a desfazer-se aos bocados e já não existem à venda. Dizem que os atraiçoei, pois a farda antiga é que nos dá o valor de veteranos.

Paúnca, 17 Jan. 1966
Percorremos toda a região banhada pelo maior rio da Guiné, o Gêba, que entra no território da Província, aqui por esta zona.
O silêncio e a serenidade das margens, onde se escondem numerosos crocodilos, quase nos retinham ali, especados para sempre.
Éramos só 12 homens, 6 brancos e 6 pretos e na primeira paragem, acampámos no local de uma antiga tabanca, um grande espaço ainda limpo de mato, apenas com duas ou três árvores frondosas no centro. Ainda se viam por aqui e por ali, as ruínas de antigas vedações, paus e estacas que sustentavam as palhotas.
Deitámo-nos debaixo de dois mangueirais e fizemos uma fogueira enorme com algumas estacas das ruínas que, como estavam muito secas, arderam às mil maravilhas. Não tivemos que recear o frio, pois toda a noite a fogueira ardeu com força.
Apenas fomos importunados pelas formigas de um monte de bagabaga que inadvertidamente destruímos, quando limpávamos o chão junto das árvores. A nossa intenção era a de passarmos despercebidos por entre as tabancas que há nesta região, mas por nosso azar, ou apenas por imprevidência, quando estávamos a montar o acampamento apareceram quatro crianças vindas do mato, possivelmente em trânsito de uma tabanca para outra. Tentámos pregar-lhes um susto, dizendo-lhes que não éramos da tropa, mas sim guerrilheiros a caminho do Senegal. Por isso não os podíamos deixar seguir, teriam de ficar prisioneiros para não irem contar que nos viram. Mas os miúdos não acreditaram muito, talvez porque até já tivessem conhecido alguns de nós em Paúnca.
De modo que, ao fim de algum tempo, vendo que o ardil não resultava, optámos por deixá-los ir embora, não sem antes nos prometerem que, logo que chegassem à tabanca para onde iam, nos mandariam laranjas.
E na verdade, daí a um grande bocado, apareceu outro rapaz, de bicicleta, com um saco de laranjas e mandioca. Dei-lhe dinheiro e ele lá foi todo contente e ao mesmo tempo muito admirado.

No dia seguinte, como já não estávamos mais na clandestinidade, fomos direitos a uma outra tabanca, mais a Norte. Ao longo do rio a paisagem continuava soberba. Tirei inúmeras fotografias.
O chefe da tabanca é um velho amigo (pelo menos assim me parece) e, apesar de ele não perceber quase nada do que nós dizíamos, esteve um grande bocado a conversar connosco.
Passámos ali o resto do segundo dia a descansar, sempre rodeados de miúdos curiosos que enxameavam à nossa volta como moscas teimosas. Alguns eram muito engraçados, mas também havia muitos sofrendo de doenças nos olhos. Os mais fortes e desembaraçados eram com certeza os sobreviventes de toda uma enorme mortalidade infantil. Dormimos nas palhotas deles e, no dia seguinte, num local previamente combinado, apareceram as viaturas que nos levaram de volta ao quartel.

Nada de importante se tinha descoberto, a não ser que aquela zona, conhecida pelo nome de Mata do Sacaio, não era tão cerrada e inóspita como se dizia, pois afinal qualquer grupo de pessoas que, passasse por lá, seria facilmente detectado.
Fiquei no entanto com vontade de lá voltar, mas tão cedo não o poderei fazer porque, infelizmente dos meus 30 homens já só posso contar com 18 de boa saúde, o resto está, na maioria dos casos, com paludismo e outras doenças mais graves. Não têm o mínimo cuidado e apanham todas as doenças.
Com a milícia Fula não tenho problemas. Aquartelados num barracão ao lado do quartel, vivem felizes e despreocupados, alguns acompanhados pelas mulheres e os filhos.

No sábado à noite estava lá sentado ao pé da fogueira, conversando com eles, quando apareceram dois carros militares cheios de pessoal, numa grande algazarra. Prevendo o pior, voltei logo ao meu aquartelamento para ver do que se tratava.
Afinal vinham só divertir-se. O Capitão, o Alferes Castro que ainda julga que isto tudo é dele e o Doutor que nunca diz que não a uma promessa de farra.
Quando lhes perguntei o significado de tão inesperada visita, o Capitão explicou que tinham vindo ensinar o caminho a uma equipa de trabalhadores das Obras Públicas que anda a arranjar as estradas e que convidara o Castro e o Doutor para nos fazer uma visita informal

- E para bebermos uns copos! - acrescentaram logo o Castro e o Doutor, rindo às gargalhadas.

Como não achei muita graça, ripostei, perguntando se por acaso já estaríamos no Carnaval, para se fazerem assaltos. Mas perante a insistência dos foliões, não tive outro remédio senão abrir a Cantina. Acabaram por beber tudo o que havia e gastaram-me mais de 300$00 que, agora nesta altura me fazem muita falta, pois os negócios andam fraquinhos. Mas o que mais me irritou foi a atitude de gozo do Capitão, compactuando nesta farra de bêbados o que nele não é nada o seu estilo.
Como habitualmente, o Doutor quando se foram embora já ia de rastos, disparatando e cantando fados à lua. E o pior foi que, depois de eles saírem, um dos soldados que, por acaso nem é do meu Pelotão, mas do Pelotão do Castro e está cá emprestado, aproveitando o mau exemplo do seu chefe, embebedou-se também e foi para a caserna fazer reboliço. Armado com um pau começou a distribuir cacetadas a torto e a direito, mas logo por azar (seu) acertou num soldado negro que estava a tentar descansar. O Jau (um dos meus melhores soldados negros) acordado tão inesperadamente, não esteve com meias medidas, saltou da cama, pegou na primeira coisa que lhe apareceu à mão… uma pá e, zás! Enfiou com ela na cabeça do rufia, fazendo-lhe um golpe na testa que lhe curou instantaneamente a bebedeira.
O indivíduo ainda andou por ali a rosnar umas ameaças, mas nessa altura cheguei eu e tudo serenou como tinha de ser. Mais uma vez se comprovou que estas farras dentro do quartel dão sempre mau resultado.

Paúnca, 17 Fev. 1966
Ultimamente tem havido uma série de falsos alarmes, convergindo as atenções para esta mísera localidade.
Assim, de repente, sem qualquer aviso, surgiu aqui um Grupo de Combate de Nova Lamego e um Pelotão de Autometralhadoras Panhard, perguntando a toda a gente onde é que estava o inimigo!
Tratava-se, é claro, de mais um falso alarme, que fez logo saltar dos sofás, os chefões na sede do Batalhão.
Confirmado o engano, óbvio é claro, o Grupo de Combate regressou ordeiramente a penates, deixando, no entanto, para trás as Autometralhadoras Panhard, que já agora aproveitavam para fazer umas patrulhas pelas redondezas, não fosse o diabo tecê-las…
Assim temos passado agora umas noites bem divertidas com a companhia destes hóspedes inesperados, aliás excelentes camaradas, especialmente o Comandante, o Alferes Alexandre, um gigante de Angola, sempre bem-disposto.
A população que, tem um medo terrível das Panhard, com as suas imponentes metralhadoras de 20 mm, nem quer passar ao pé delas. No entanto soube que as populações mais afastadas parecem ter ficado tranquilizadas com o poderio de fogo que a tropa mostrou ter, para os proteger daqueles a quem eles chamam os bandidos (os turras).

Mas a miudagem atrevida, passada meia hora já andava encavalitada em cima dos blindados, brincando com as fitas das balas tracejantes de 20 mm, rindo com as brincadeiras dos soldados.
E tem sido assim esta guerra, sempre bem encenada, mas sem grandes palmas.
Agora que o Pelotão de Blindados também já se foi embora, voltámos àquela paz bucólica de sempre. Amanhã temos de dar uma grande limpeza no quartel e repor tudo nos seus lugares como dantes. Ficou como uma casa depois de uma grande festa, toda desarrumada e cheia de lixo.
Não deixei de ir a Pirada apresentar os meus hóspedes ao M. Santos, mas, não sei porquê, fui recebido com má cara. No entanto o Castro soube fazer as honras da casa e pagou as bebidas da praxe. Quando nos viemos embora, o M. Santos nem apareceu para as despedidas. Fiz de contas que não reparei. Afinal, não lhe devo nada e portanto, boa tarde!
Consta que já fez as pazes com o Cardoso e o recebe muito bem lá em casa. Alguém percebe isto?

Paúnca, 22 Fev. 1966
Hoje foi um dia extraordinário. Um dia de Carnaval como nunca gozei na minha vida. Resolvemos deitar fora as tristezas e brincar até fartar.
Felizmente, só houve um único caso de bebedeira, o soldado, o Facha, um pobre diabo que não faz mal a uma mosca, distraiu-se e bebeu mais do que a conta. Todos os outros, incluindo os furriéis, portaram-se sempre na linha, sem descarrilar nem perder a noção das realidades.
Começámos por organizar uma orquestra com os meus tambores, uma gaita-de-beiços, uma concertina, umas castanholas e um reco-reco, além dos já tradicionais ferrinhos. Dois dos soldados mascararam-se de casal de noivos, casados de fresco e um outro de polícia sinaleiro com um chapéu colonial na cabeça. Eu e um furriel pedimos umas vestimentas nativas e mascarámo-nos de fulas, simplesmente.
Formámos então um grande grupo e, logo depois do almoço, saímos pela povoação a fazer a nossa passeata. Foi um sucesso!
Rapidamente se juntou à nossa volta uma verdadeira multidão de crianças, de adultos e velhos primeiro julgando que nós teríamos endoidecido mas depois convencidos que aquilo era só festa aderiram também à pândega, acabando até a dançar o vira. Muitos acreditavam que nós tínhamos recebido a ordem de voltar para casa no dia seguinte.
Percorremos toda a povoação de casa em casa e foi um verdadeiro assalto carnavalesco às lojas que, àquela hora, estavam abertas como sempre. Mas tudo correu bem, sem excessos. Só muita brincadeira e muito ronco, muita festa e alegria.
À noite, repetiu-se a dose, agora com a orquestra mais afinada, só para fazer serenata no centro da povoação e não deixar os comerciantes irem cedo para a cama. Houve logo um deles que veio oferecer um garrafão de 10 litros de vinho que desapareceu em menos de um fósforo.
Eu, que de tarde me tinha mascarado, conseguindo não ser reconhecido por ninguém, desta vez limitei-me a assistir e a manter a ordem. Correu tudo bem e conseguimos contagiar de tal maneira os civis que, às dez horas da noite, Paúnca vivia num ambiente louco de Carnaval. Só se via gente a cantar e a dançar. Por todo o lado ouviam-se batuques e o som da nossa orquestra, mais conhecida como o Quinteto do Lopes que teve um sucesso inesperado. Quando tudo começou a esfriar, quem ainda bulia veio para o aquartelamento para um fim de festa rematado por um grandioso baile. Esgotaram-se as reservas da cantina para todo o mês.
Não sei como, desatei também a tocar desenfreadamente um tambor, enlouquecendo a multidão que pulava e se rebolava pelo chão numa completa histeria.
Curiosamente, ninguém se embebedou! Durante toda a noite bebi apenas um whisky, oferecido na casa de um dos comerciantes e naturalmente era o que estava mais lúcido.
Enfim, foi uma festa magnífica. Amanhã, Quarta-feira de Cinzas é dia de trabalho.

E eis que surgiram novas ideias ao nosso Capitão. Teremos de construir uma casa-abrigo para o novo gerador de energia eléctrica que, virá (ou não…) dentro de dez dias! Quer tudo feito em bidões cheios de terra, à prova de bala de canhão…
Falta saber quem é que amanhã se vai levantar mais cedo para começar a trabalhar nessa obra.
Eu cá, é que não!

Paúnca, 01 Mar. 1966
A estação da mancarra está quase a acabar. Já circulam menos camponeses pela estrada, puxando os seus burros, carregados com os enormes sacos cheios de mancarra, a caminho dos armazéns dos comerciantes daqui que, depois se encarregam de a fazer chegar a Bafatá para aí embarcar para Bissau.
A temperatura chegou a descer tanto que me vi forçado a dormir de pijama e cobertor. Mas agora já está a subir de novo.
Passo o tempo entretido a ler ou a jogar às cartas com os furriéis. Neste último fim-de-semana, pela primeira vez, tivemos a visita de dois turistas. A fama da boa vida em Paúnca está a tomar tal consistência que já aparecem pedidos do pessoal de Pirada para virem passar aqui os fins-de-semana. Os dois primeiros turistas foram uns furriéis, nossos especiais amigos que solicitaram ao Capitão licença para passar cá o sábado e o domingo numa espécie de mini-férias.
A razão principal sei eu qual é. A comida da nossa Messe é muito melhor que a de Pirada. Se acrescentarmos a isso, os ares mais puros, a convivência mais alegre e sadia, as bebidas frescas e à borla que, os donos da casa sempre acabam por oferecer, e sobretudo o facto de estarem longe do 1.º Sargento e do Capitão, está explicada a razão deste fenómeno que não deixa de ser curioso. E agora são também os soldados que querem fazer o mesmo.
Quase que chega a haver necessidade de se meter uma cunha para conseguir gozar uma pequena licença em, Paúnca!

Este mês a cantina ia ficando completamente vazia. A alegria de estarmos a chegar ao fim da comissão é talvez uma das razões, mas o calor também tem ajudado. Os refrigerantes desaparecem num ápice, tal é a venda. Continuo a ser o gerente da cantina e até agora só tem dado lucro. No fim deste mês entrego tudo a outra Companhia o que já representa alguma coisa. Quando aqui chegámos não havia nada. Estou em crer que até meados de Abril deveremos marchar para Bissau. Até que enfim!
Soube agora pela rádio que os soviéticos atingiram Vénus com uma nave não tripulada. Agora só nos falta a nós sairmos daqui.

Paúnca, 08 Mar. 1966
No sábado passado, fui a Bafatá passear, pois apeteceu-me mudar de ambiente. No entanto apanhei uma valente estafadela pois a estrada está em péssimo estado e ainda por cima o jeep já não tem amortecedores.
Na companhia do M. Santos, almocei num café e depois fomos às compras. Apenas comprei uns livros e não encontrei mais nada de especial, a não ser um pequeno tapete com motivos árabes, alguns panos típicos, um canhangulo novo e uns pratos feitos de ráfia que podem servir de resguardo, quando se colocam panelas ou outros recipientes quentes em cima da mesa.
Mas o que mais de encontrava eram coisas feitas na China! Louça, lenços de seda e até cestas de vime colorido. Comprei ainda, antes da hora da partida uma espécie de rosário, ou simplesmente um colar de contas, que os fulas maometanos como são, usam constantemente, para os ajudar a recitar orações ou os versículos do Alcorão, julgo eu. Infelizmente, os indígenas de cá têm muito pouco artesanato para vender. As coisas mais bonitas vêm de fora, o que as torna mais caras, como é óbvio.

Como o Manel Jaquim agora parece ter medo de vir cá cima, não sei porquê, o nosso entretenimento continua a ser jogar às cartas ou ler alguma coisa. Quanto ao quinteto do Lopes, passou agora a octeto, com novos números e novas orquestrações.

Paúnca, 13 Mar. 1966
Na semana passada estive dois dias em Pirada, a pedido do Capitão. Esperava a vinda de umas autoridades senegalesas e como não tem lá ninguém que fale francês, pediu-me para lhe ir dar uma mãozinha.
Afinal a entrevista limitou-se a uma breve apresentação de cumprimentos mesmo sobre a linha de fronteira.
Em seguida, limitei-me a ficar por lá, ir até casa do M. Santos conversar e ouvir um pouco de música dos novos discos que tem recebido. Em suma passei dois dias sem fazer nada, tal como um verdadeiro turista, passeando e cumprimentando velhos conhecidos.
Quando regressei, todos me vieram falar como se tivesse voltado de uma longa viagem. Na minha ausência tudo tinha corrido sem problemas. Hoje está marcado um almoço, aqui no quartel, para o qual foram convidados todos os comerciantes de Paúnca, uns furriéis de Bajocunda e ainda o nosso Alferes Médico que, agora se dá muito bem comigo e com todos os militares de Paúnca. Foi uma grande festa que só acabou às 6 da tarde, porque os furriéis de Bajocunda tinham de regressar a casa e ainda tinham de percorrer uns 40 kms por picadas de 3.ª categoria.
O almoço foi galinha de chabéu, um prato típico cá do sítio que, consiste em galinha cozinhada em óleo de palma, acompanhado de arroz branco. Tudo muito picante, como é da tradição. O nosso cozinheiro (um balanta que anda quase sempre bêbado) desta vez esmerou-se e toda a gente gabou e repetiu, embora para alguns, tivesse sido a primeira vez que comiam tal especialidade. Éramos 10 pessoas à mesa e consumiram-se 10 galinhas!
Depois, como estava muito calor, fomos até casa de um dos comerciantes comer bolinhos de bacalhau e umas frituras de pasta de camarão, de origem chinesa, e beber whisky com muito gelo. Finalmente para espairecer, fomos dar uma volta pela tabanca e mostrar os locais mais interessantes aos nossos visitantes que, como nunca tinham vindo até cá, se mostraram encantados. Nós, depois de nove meses de estadia, como é o nosso caso, é que já não achamos graça nenhuma.
Acabou-se a tarde a jogar as cartas em casa de outro comerciante. O Doutor ficou para jantar que, entretanto se foi atrasando, pois tivemos de esperar pelo Furriel Vicente que tinha ido levar os camaradas de Bajocunda. Só voltou depois das 10 da noite, mas, bem atestados como estávamos com o almoço, aguentámos bem a espera. Apesar, do jantar (Bacalhau à Gomes de Sá) já estar completamente frio àquela hora, mesmo assim até soube melhor.
Ao serão rematámos com um campeonato de King que só terminou às 03H00 da manhã!
O pior é amanhã, segunda-feira…

Paúnca, 21 Mar. 1966
As novidades para esta semana resumem-se à chegada do Manel Jaquim e a pouco mais. Finalmente reapareceu por cá, com um filme tão ordinário que até senti ganas de lhe apertar o pescoço. Chamava-se “O Capitão Sindbad” e era uma historieta desconchavada tirada das Mil e Uma Noites, excedendo tudo o que já vi de mau gosto e estupidez.
Durante o resto dos dias fui até Pirada várias vezes, para mudar de ambiente, conversar com o M. Santos, ver alguns amigos.

No domingo tivemos cá a visita de um velho comerciante de Pirada, o Gomes que vive muito só, acompanhado apenas por um criado preto, quase tão velho como ele. Muito amigo de alguns furriéis, foram estes que se lembraram de o convidar para vir também conhecer esta já famosa estância turística. Bebemos uns whiskies e comemos galinha assada no espeto. Com o desenrolar da conversa, caiu na esparrela de se gabar que tinha uns paios no frigorífico em casa dele, em Pirada e, no meio do entusiasmo geral acabou por convidar toda a gente para ir lá prová-los.
Claro que nem foi preciso repetir, todos tinham ouvido perfeitamente bem. Corremos para os jeeps e depois de uma louca corrida por 30 kms de picada, caímos em casa dele. Em menos de um fósforo desapareceram três paios e uma garrafa de whisky. O pobre do homem ao ver aquela pressa toda, acabou por fugir para os fundos do quintal a pretexto que precisava de tomar banho.
Por acaso, nesse dia, o Capitão e o Alferes Castro tinham ido a Nova Lamego fazer um piquenique (!) e só voltaram à noite.
Imagine-se! Darem-se ao luxo de fazerem piqueniques aqui. Aposto que ninguém acredita.

Ah! É verdade, segundo os últimos boatos a nossa partida está marcada para 21 de Abril e seguiremos para Bissau no dia 5, mas nada é oficial ainda.
Aqui os dias permanecem sempre iguais. Se começa a chover é porque começou a estação das chuvas. Quando pára de chover, pronto, começou a estação seca!
E é tudo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965