A alimentação no quartel era um problema, nomeadamente quanto à aquisição de carne fresca. Por isso, de vez em quando, o capitão permitia que se matasse uma ou duas vacas da manada da Companhia. Dado o reduzido número de cabeças de gado, estas só poderiam ser abatidas por ordem do capitão. Há muito tempo que não se comia carne fresca, mas quando o desejo começava a ser muito forte o capitão autorizava o abate de uma vaca e durante um dia ou dois tirava-se a barriga da miséria.
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2023
Guiné 61/74 - P23997: Notas de leitura (1544): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IX: o vagomestre e o petisco que não podia ser para todos: o caso da mão de vaca com grão...
A alimentação no quartel era um problema, nomeadamente quanto à aquisição de carne fresca. Por isso, de vez em quando, o capitão permitia que se matasse uma ou duas vacas da manada da Companhia. Dado o reduzido número de cabeças de gado, estas só poderiam ser abatidas por ordem do capitão. Há muito tempo que não se comia carne fresca, mas quando o desejo começava a ser muito forte o capitão autorizava o abate de uma vaca e durante um dia ou dois tirava-se a barriga da miséria.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2023
Guiné 61/74 - P23985: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVIII: (i) o galo que traiu Pansau Na Isna em Catunco Nalu; (ii) a primeira operação helitransportada no CTIG, em Jabadá, setor de Tite
Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 1966 > O soldado Augusto de Sá, que pertenceu ao Gr Cmds “Os Centuriões”.
Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
(i) começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;
(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor auto-rodas;
(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;
(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;
(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;
(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amsterdão);
Chegados a Brá, fomos directamente à arrecadação, levantar o material e o equipamento necessário.
Chegámos à tarde a Cacine, repousámos até cerca das 20h30. Esta era a primeira operação em que, eu, o Tomás Camará e o Mamadu Bari, íamos participar com os “Centuriões”.
O grupo já tinha feito algumas [4] operações e, como alguns companheiros já tinham terminado a comissão e regressado às respectivas unidades, precisavam de pessoal experiente e foi por isso que fomos requisitados pelo alferes Rainha.
Saímos de Cacine depois do jantar em direcção a Cameconde, para executar o golpe de mão. Fomos andando até que, por volta da uma da madrugada, atingimos Catunco, que estava abandonada. A meio da tabanca, deixámos a picada que a atravessava e que ia para Camissorã e metemos à direita, onde em maio do ano passado nos tínhamos confrontado com o PAIGC.
A partir daqui o guia, tal como da outra vez, começou a recusar-se. Deitou-se no chão e, como da outra vez, perdemos muito tempo neste local. Fomos aguentando, com muita paciência, a resistência do guia. Eram para aí 03h00, ouvimos um galo a cantar. Prestámos muita atenção, porque era sinal de que vivia gente por perto. O galo continuou a cantar, não havia a menor dúvida que um acampamento estava por ali.
O alferes mandou o guia para a retaguarda e o galo passou para a frente, passámos a ser conduzidos pelo cantar dele. De cinco em cinco ou de dez em dez minutos, o galo cantava e, assim, fomo-nos aproximando. Atingimos um monte de baga-baga e a seguir vimos um cruzamento.
O cantar do galo vinha do caminho do lado direito do cruzamento. Metemos por ele e, sem sabermos, estávamos a pouco mais de 20 metros das barracas dos combatentes do PAIGC.
O alferes veio ter comigo e estivemos a estudar o que devíamos fazer. Vimos as barracas e nem deu tempo para reunir o grupo todo. O sentinela que estava perto do baga-baga, a dormir o sono da madrugada, deve ter acordado com algum barulho, mexeu-se e o Tomás Camará disparou uma rajada curta. Quebrado o silêncio, assaltámos as barracas. Ninguém teve tempo de se defender, deixaram tudo a fugir.
Nós pegámos no que pudemos. Carregados com tanta quantidade de material [5], não ficámos à espera, nova corrida em direcção ao cruzamento da picada que vai para Cacine, onde tínhamos deixado um grupo [6] para nos recolher e ajudar no que fosse preciso. Atingimos o cruzamento, sem problemas, ao encontro da tropa. Depois, a coluna pôs-se em movimento para Cacine.
Descansámos o dia seguinte e à noite fomos até à tabanca de Cacine, divertir-nos um pouco com as raparigas. Tínhamos levado um pequeno gira-discos, que o Augusto de Sá [7] levava e eu e o Tomás Camará pusemo-lo a tocar música.
No outro dia [8], apanhámos outra vez o barco para Bissau.
Tinha corrido tudo bem. O silêncio e o cuidado que tivemos na progressão fez com que o sentinela, que não estava a mais de dois metros do baga-baga, não tivesse dado por nada.
(ii) "Centuriões" e "Diabólicos", na estreia dos helis em Jabadá, setor de Tite (pp. 136/138)
– Djaló, tu vais morrer nesta operação!
– Filho da mãe, tu é que vais morrer! – respondeu o Adulai.
Estávamos todos a rir, com grande gozo e alarido, quando chegaram os oficiais.
Era nesse dia, 6 de março, que se ia realizar pela primeira vez na Guiné uma heliportagem de assalto e o local escolhido foi Jabadá Beafada [9]. Dois grupos, os “Centuriões” e os “Diabólicos”, quinze homens de cada, em seis helicópteros. Ia também o comandante da companhia de Comandos, o capitão Garcia Leandro.
Embarcámos por volta das 13h00, sobrevoámos Bissau, cortámos para a esquerda e começámos a subir o Geba. Poucos minutos depois, curvámos para a mata a ver os T-6 bombardeá-la.
De um momento para o outro ficámos cara a cara com os T-6, eles a tomarem altura e nós a baixarmos para o assalto. Saímos a disparar para a tabanca, as primeiras imagens que vi foi uma máquina de costura e o corpo de um homem balanta.
No meio dos tiros e dos rebentamentos, ouvimos pelo rádio os “Diabólicos” pedirem uma evacuação. O tiroteio foi intenso, mas não demorou muito tempo. Estava muita gente, guerrilheiros e população, todos misturados, houve muitas baixas. Eu estava preocupado com a informação que tínhamos ouvido no rádio, o pedido de uma evacuação de um “M”, ou seja de um morto. Se o Silva disse que tinha sonhado que o Djaló ia morrer no assalto…
Estava ansioso que os grupos se encontrassem para sabermos quem morreu. Quando acabaram os disparos e começámos a retirar em direcção a uma clareira, avistámos ao longe o grupo “Diabólicos” a caminhar na nossa direcção. Não, Djaló não tinha morrido, vinha ali ao fundo.
Quando os dois grupos se uniram, perguntei ao Djaló quem tinha morrido e ele disse:
(...) "Uns dias antes, os olhos do Silva molharam-se quando o furriel Azevedo lhe disse que não ia mais para o mato, que a comissão já estava terminada e que não queriam mais nenhuma edição do furriel Morais dos Fantasmas, morto no sul, em maio do ano passado, duas semanas depois de ter terminado a comissão. O alferes transigiu, a história repetiu-se." (...) (vd. poste P15044 ***)
Notas do autor ou do editor literário (VB);
[1] Nota do editor: operação “Cleópatra”.
[2] Nota do editor: 7 maio 1965.
[3] Nota do editor: 22 fevereiro 1966.
[4] Nota do editor: sete.
[5] Entre o material apreendido, para além de documentação importante, trouxemos o barrete chinês, uma agenda com apontamentos e uma bonita pistola do Pansau Na Isna, comandante do PAIGC.
[6] Nota do editor: Grupo de Combate da CCaç 799
[7] Augusto de Sá, já depois da Independência da Guiné-Bissau, contraiu tuberculose. Veio tratar-se para Lisboa e, ainda doente e contra o conselho dos médicos, regressou à Guiné onde acabou por morrer.
[8] Nota do editor: 26 de fevereiro de 1966.
[9] Op Hermínia. A informação que nos deram era que havia dois núcleos de moranças, uma a norte com população e outra, cerca de 300 metros a sul, com pessoal armado. Por volta das 13h20, as três equipas dos “Diabólicos” foram largadas no núcleo norte e as nossas no núcleo sul. Havia pessoal do PAIGC armado nos dois lados. Do núcleo norte, enquanto retirava, o PAIGC disparou armas automáticas, atingindo mortalmente o António Silva. Vimos vários mortos no local e aprisionámos oito pessoas. No regresso a Jabadá, junto à orla da mata, avistámos mais casas. Os T-6 atacaram com rockets, nós entrámos depois. Enquanto retirávamos o PAIGC fez várias vezes fogo de morteiro, mas sem pontaria. Entrámos no aquartelamento de Jabadá por volta das 16 horas e os helis transportaram-nos de regresso a Bissau. (***)
________
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 12 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23974: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: De volta ao QG, fiz a escola de cabos em Bolama, tirei vinte valores e mandaram-me de novo para os comandos do CTIG, desta vez para o grupo "Os Centuriões"
(**) Vd. poste de 9 de maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2820: Aqueles que nem no caixão regressaram (1): O Sold António Alves Maria da Silva, campa nº 247, Bissau (Virgínio Briote)
quinta-feira, 12 de janeiro de 2023
Guiné 61/74 - P23974: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: De volta ao QG, fiz a escola de cabos em Bolama, tirei vinte valores e mandaram-me de novo para os comandos do CTIG, desta vez para o grupo "Os Centuriões"
(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amsterdão).
Em junho de 1965, com as guias de marcha na mão, dirigimo-nos ao QG, onde nos apresentámos. E depois, como de costume, fui logo até ao parque das viaturas, onde os condutores passavam o dia todo.
Para já, uma boa novidade. Ia passar a receber mais 150 escudos por mês, o que, na altura, dava para algumas coisas. Foi-me distribuída uma GMC, uma camioneta com 10 rodas.
Em Agosto, entrei na secretaria e encontrei o 1º sargento a lançar uns números num papel.
– Meu primeiro, para que são esses números?
Assim fiz, voltei com a notícia para o parque.
Chegado o dia da partida, encontrámo-nos no cais para embarcarmos às 09h00, rumo a Bolama. Quando acabámos de nos concentrar, éramos cerca de cinquenta e tal soldados, vindos de todas as partes da Guiné, alguns meus conhecidos.
Mal chegámos a Bolama fomos fazer a apresentação ao 1º sargento que nos levou à arrecadação e nos distribuiu lençóis e cobertores. Ficámos numa caserna com 60 e tal camas e essa tarde foi para fazermos as camas, as limpezas e para arrumarmos tudo o que havia para arrumar.
No dia seguinte começou a escola. Decorreu tudo bem, desde o primeiro ao último dia. Tivemos um teste de trinta e três perguntas para dar a resposta em 60 minutos. À frente de cada pergunta havia três respostas escritas, duas eram falsas e uma era verdadeira. Bastava fazer uma cruz onde achava que era a certa. Começámos às nove para acabarmos às dez.
O alferes instrutor, no fim do teste, disse-nos:
– Agora vocês vão-se preparar para regressar ainda hoje. Os resultados vão para as vossas companhias.
Uns colegas não queriam regressar sem saber os resultados. Eu era contra, mas a maioria queria mesmo saber. Então o alferes convocou os sargentos para o ajudarem a corrigir.
Eu fui arrumar as minhas coisas e disse aos companheiros que nos encontrávamos no cais. Estava na caserna a arrumar tudo, quando entrou o Alberto, a correr, a chamar-me:
– Amadu, Amadu, o alferes está a chamar pelo teu nome.
E eu:
– Qual alferes?
– O instrutor, Amadu!
Saí a correr com a bagagem na mão e, quando cheguei à porta, entreguei-a a um companheiro e pedi licença para entrar.
Todos se levantaram, apertaram-me a mão e o alferes comunicou-me que eu tinha sido o primeiro classificado e que, se houvesse CSM - Curso de Sargentos Milicanios eu passava para este curso.
Agradeci, e quando saí alguns perguntaram a razão de me terem chamado.
– Todos passaram, ninguém chumbou!
Eu a acabar de dizer isto e o alferes apareceu com uma carta na mão a chamar pelos nomes com a respectiva classificação.
– Amadu, vinte!
Todos me abraçaram, estavam vários rapazes de Bafatá, a minha cidade, todo o pessoal estava contente. Fomos logo a correr direitos ao cais para tomarmos o barco para Bissau.
No dia seguinte, depois da nossa apresentação na CCS do QG, recomeçámos o nosso serviço diário, até ao dia 1 de Janeiro de 1966. Fomos promovidos a 1º cabos e no dia 2 de Janeiro apresentei-me como 1º cabo condutor.
Num dia dos finais de Fevereiro [1], eu estava no parque com alguns colegas, quando o Tomás Camará me disse:
– Tio[2], vamos outra vez para os Comandos!
– Quem te disse isso?
– Está ali o alferes Rainha a falar com o nosso comandante. Entregou-lhe uma autorização da 4ª Rep.!
– Mas vamos já hoje?
– Sim, porque o comandante mandou-me tirar o braçal.
Dois dias depois, surgiu uma missão[3] para cumprir, no sul. Apanhámos outra vez o barco para Cacine. O objectivo era Catunco Nalú, o local da última acção dos “Fantasmas” , a tal operação “Ciao”, onde tivemos um morto e nove feridos, em maio [4] de 1965. E agora, em fevereiro [5] de 1966, íamos voltar ao mesmo local para a operação com o código “Cleópatra”.
Chegámos à tarde a Cacine, repousámos até cerca das 20h30. Esta era a primeira operação em que, eu, o Tomás Camará e o Mamadu Bari, íamos participar com os “Centuriões” [comandada pelo alf mil 'cmd' Luís Raínha]
__________
[1] Nota do editor: 20 fevereiro 1966.
[2] O Tomás Camará chamava-me sempre tio, até quando fomos feridos em Cameconde, no meio do tiroteio, chamou-me tio.
[4] Nota do editor: 7 maio 1965.
[5] Nota do editor: 22 fevereiro 1966.
(*) ÚLtimo poste da série > 7 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23958: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: O maluco do Honório nunca mais!... E depois o meu adeus à guerra dos “Fantasmas”, maio de 1965
terça-feira, 10 de janeiro de 2023
Guiné 61/74 - P23967: (De)Caras (192): Os bravos comandos cap Maurício Saraiva e fur mil Joaquim Morais (morto em combate, no Quitafine, em 7/5/1965) (Virgínio Briote)
Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. O nosso Virgínio Briote (Vb) tem as melhores páginas, alguma vez escritas, sobre os Comandos do CTIG (1964/66)... E, seguramente, sobre alguns dos velhos comandos de Brá...
Felizmente vivo, é nosso coeditor (jubilado por razões de saúde). Nasceu em Cascais, foi alf mil em Cuntima, CCAV 489 / BCAV 490 (jan/mai 1965); fez depois o 2º curso de Comandos do CTIG; esteve à frente do Gr Cmds "Os Diabólicos" (set 65/set 66); regressou a casa em janeiro de 1967; trabalhou numa multinacional da indústria farmacêutica onde foi brilhante quadro superior; é casado com a encatadora Maria Irene, professora do ensino secundário reformada... (Ambos são pais e avós babados.)
O Vb teve um blogue que infelizmente decidiu desativar. Chamava-se "Tantas Vidas"; http://tantasvidas.blog.pt/ . Publicou postes entre janeiro de 2006 e março de 2009. Textos de antologia que mereciam conhecer o prelo. Depois achou que tinha dito tudo... Fechou o blogue (e o bau).
Mas o Arquivo.pt que anda há muito, desde 1996, à caça de páginas na Web, de preferência em português, não lhe pediu licença e foi-lhe fazendo sucesssivas capturas de páginas do seu blogue... Só há dias é que ele soube, porque eu lhe disse. A última captura foi em 24 de maio de 2009, às 21h54... Veja-se aqui o endereço:
https://arquivo.pt/wayback/20090524215817/http://tantasvidas.blog.pt/2009/3/
Mas, em 2015, ainda recuperámos muitos desses textos do "Tantas Vidas", criando a série "Guiné, Ir e Voltar". Publicámos cerca de 3 dezenas de postes, entre 28/6/2015 (Poste P14803) e 7/1/2016 (Poste P15588).
O Virgínio Briote é um dos históricos do nosso blogue para o qual entrou em 23/10/2005. Tem 265 referências. Tivemos curiosidade em saber o que é tinha escrito sobre alguns dos seus camaradas mais velhos, no Comandos do CTIG, como o Maurício Saraiva, o Amadu Djaló, o João Parreira, o Joaquim Morais..., que pertenceram ao Gr Cmds "Os Fantasmas", entretanto extintos em maio de 1965. Aqui vai um excertp, em complemento do poste P23960, assinado pelo João Parreira) (*).
Guiné, ir e voltar > Os bravos comandos cap Maurício Saraiva e fur mil Joaquim Morais (morto em combate, no Quitafine, em 7/5/1965)
por Virgínio Briote (**)
(i) O cap 'cmd' Maurício Saraiva
O capitão Maurício Saraiva, promovido a capitão por distinção, até então o único vivo com a Medalha de Valor Militar em Ouro, depois de duas cruzes de guerra, tinha metido o chico, estava em Lisboa na Academia Militar.
Aproveitara as férias para vir a Bissau dar-lhes instrução operacional, e sair com eles para o mato durante o curso de comandos para oficiais e sargentos do CTIG.Foi um dos fundadores dos comandos da Guiné. Tinha estado em Angola, com o Godinho, os irmãos Roseira Dias, o Miranda e outros. Depois formou o grupo dos Fantasmas e com ele percorreu a Guiné de uma ponta a outra.
Deixou fama pela forma como fazia a guerra, por vezes parecia encará-la como se fosse uma brincadeira. Fazia que retirava, dava às vezes até sinais de fuga descontrolada, como se quisesse animar o IN a mostrar-se confiante. Escondia-se com o grupo, paciente, uma ou duas horas se fosse preciso. E depois, Fantasmas ao ataque! Uma série de êxitos coroavam-no e era objecto de mal disfarçada homenagem, numa altura em que a regra era ver as NT recolhidas a posições defensivas.
Mas nem sempre as coisas correram bem. Tanta intrepidez e desafio também lhe trouxeram sérios problemas.
Novembro de 64, dia 28. Perto da fronteira com a Guiné-Conacri, na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobige, os Fantasmas detectaram uma mina anti-carro.
Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros. No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou o resto do grupo no Unimog maior atrás. A primeira viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. A viatura incendiou-se, as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto e do depósito de combustível saía fogo. Quase todos os homens foram projectados a arder. Sete mortos logo ali e três feridos graves. Regressaram doze a Bissau. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação.
Já quase no final da comissão, em Cameconde, lá para o sul, no Quitafine. No diário do furriel João Parreira, um deles, podia ler-se:
(...) “6 Maio 65. Saímos às 15h00 para a operação “Ciao”, num Dakota até Cacine e depois em viaturas até Cameconde, onde já se encontrava um pelotão à nossa espera. O Capitão Rubim foi connosco. Saímos às 19h00 em direcção ao objectivo. Segundo as informações que nos foram fornecidas, a base IN era composta por cerca de 80 homens bem armados, comandados por Pansau Na Isna, chefe militar, adjunto do João Bernardo Vieira, de etnia Papel, mais conhecido pelo Comandante Nino.
Já na madrugada do dia 7, a poucos quilómetros do objectivo demos indicações ao pelotão para permanecer ali e esperar pelo nosso regresso, com a missão de proteger a nossa retirada ou dar-nos apoio, caso fosse necessário. Assim, seguimos silenciosamente até perto do acampamento, situado na mata a sudoeste de Catunco. Apesar de termos feito uma aproximação cuidadosa, fomos detectados por uma sentinela. Tentámos assaltar o acampamento. Mas eles estavam bem preparados, reagiram ao nosso fogo e o tiroteio prolongou-se. Quando o fogo deles abrandou, entrámos por ali dentro e vimos material abandonado durante a fuga. Oito armas, cunhetes de munições, granadas, petardos, equipamentos, minas, fardas, e muitos documentos, entre os quais um caderno que pertencia a um tal Armindo Pedro Rodrigues, com elementos importantes da Ordem de Batalha do PAIGC.
Carregados com o nosso material e com o que tínhamos capturado, regressámos para junto do pelotão de recolha. Juntámo-lo e começamos a vê-lo em pormenor. Faltava o aparelho de pontaria de um morteiro, até então ainda não apreendido na Guiné.
O Morais afiançava tê-lo visto lá. O tenente Saraiva chamou o Amadú [Djaló] e o Morais e disse-lhes para voltarem ao acampamento. Embora estivéssemos conscientes do perigo, arriscámos, partindo do princípio que o IN se tinha retirado após as baixas sofridas. O Morais perguntou quem é que queria ir com ele e com o Amadú. Ofereci-me bem assim como o capitão Rubim, o furriel Matos e mais 7 camarada, 10 no total.
De novo no interior do acampamento a arder. Vi uma árvore gigante, com umas cavidades enormes. Espreitei para dentro de uma, o Morais para a outra, à procura de material, e o restante pessoal, por ali perto, fazia o mesmo. Subitamente, rajadas de metralhadora e granadas de bazuca caíram-nos em cima. Uma destas rebentou entre nós. Um pequeno estilhaço partiu a coluna do Morais, que caiu sobre uma fogueira. Eu fui atingido no lado direito das costas, mas na altura nem localizei o ferimento.
Vi o Morais a morrer quando o olhei de relance. Um vago murmúrio, depois mais nada, um ar sereno no rosto, pareceu-me. Deitei-me e reagi ao fogo, mas passado pouco tempo fiquei sem força no braço, a G-3 ficou muito pesada, e depois já nem o gatilho conseguia apertar. Passei a espingarda para o braço esquerdo e fiz fogo, mas julgo que não fui nada eficaz. Os outros 8 camaradas, embora ligeiramente, foram todos atingidos. Depois os restantes elementos do Grupo foram lá buscar-nos. Junto do pelotão de apoio, injectaram-me morfina. Tinha perdido muito sangue. Prestaram-me os primeiros socorros em Cacine.
Fomos evacuados para Bissau. Eu de barriga para baixo, bem atado, com mais uma injecção de morfina, e o Morais, morto, cada um em macas de lona, encaixados no exterior do heli [um AL II]. Durante o trajecto, e em duas localidades diferentes, na minha sonolência ouvi rajadas de metralhadora que me pareceram passar rente ao helicóptero. Pareceu-me uma eternidade a viagem até ao hospital de Bissau, onde, depois de me terem operado, fiquei internado.
8 Maio. O Marcelino [da Mata] foi o primeiro a vir ver-me ao Hospital. O crucifixo que eu trazia ao peito era uma crosta, uma grande cruz de sangue seco. Pedi-lhe que o lavasse.
9 Maio. Muitos camaradas me visitaram hoje, o major Dinis, o tenente Saraiva, o alferes Pombo, os furriéis Matos, Moita e o Miranda, claro. Da parte da tarde vieram a D. Beatriz Sá Carneiro, mulher do Comandante Militar e a D. Mariana do MNF [Movimento Nacional Feminino].
O Morais era órfão de pai. No caso dele correu tudo no mesmo sentido. Mal. Não era necessário a presença dele nesta operação, já tinha acabado a comissão. Em Brá tentaram persuadi-lo, mais que uma vez, a não ir. Tantas vezes, que diferença vai fazer sair mais uma, insistia. Não embarcou com o Batalhão a que pertencia, por ter combinado que esperava que o tenente Saraiva e os furriéis Matos, Moita e Ilídio acabassem a comissão. A estes faltavam-lhes apenas 15 dias. Imaginava o regresso à Metrópole, todos juntos num navio, como se regressassem de um cruzeiro de férias.
O Miranda recebeu o corpo no Hospital. Foi ele com o Mário Dias, o Fabião e o Ilídio que o lavaram, vestiram e deitaram no caixão. Fizeram uma colecta para a compra do caixão de chumbo. E coincidência, morreu no mesmo dia em que o seu Batalhão de origem desfilava em Lisboa, com a missão cumprida.”
(iii) Ponham-se em sentido quando ouvirem pronunciar o nome do 'Nino'
Quando reentrou em Brá, para passar o tal mês de “férias”, apresentaram-lhe os novos que estavam a frequentar o curso e pessoal já bem conhecido dele, o capitão Rubim, o sargento Mário Dias, os furriéis Miranda, Moita, Matos, Fabião, o João Parreira, o cabo Marcelino da mata, os soldados Kássimo, Tomás Camará, o Adulai Jaló e outros.
Dos novos conhecia um ou outro, e aos que não conhecia tinha algum tempo à frente para os ver trabalhar no mato e depois veria a quem entregaria o crachá. Passava a vida a pô-los em sentido. Uma volta na conversa e lá vinha o Nino à baila. O Nino, estão a olhar para mim? ( Consideeava o Nino como um verdadeiro chefe militar e, apesar de inimigo, merecedor de respeito.)
O Nino , que porra, estes gajos são todos surdos? O Nino, ele a insistir e os alferes com falta de entendimento. Sentido, porra! Aqui nos comandos quando se fala no Nino, toda a macacada, vocês também, saltam como uma mola, estejam onde estiverem, não interessa, põem-se a pé! Em sentido!
E foi assim que se fez escola, dali para a frente, sempre que alguém pronunciava o nome do Nino, os outros punham-se em sentido.
Uma vez, em Biambe, na zona do Oio, uma tempestade como não havia na memória deles, tinha partido o grupo em dois, aí pela uma da madrugada, noite negra como só em África quando o céu está todo tapado. Um, sozinho, lá encontrou o trilho depois de andar a tactear o chão. Daqui não saio, vou-me mas é sentar!
A chuva não parava, pareciam pedras a cair, faziam tanto barulho no camuflado que receou que o denunciassem. Ainda bem que só tinha as cuecas debaixo, menos peso para carregar. Nada de sinais, nem de trás nem da frente. Esta é boa, onde é que os gajos se meteram, que merda, assobiou baixo, a imitar o pássaro que afinaram no curso. Nada de respostas, minutos a passar, chuva em barda. Estou frito, estou mesmo perdido, o coração como um cavalo a galope, até sentia calor, olhava para todo o lado e só via escuridão, pirilampos nem vê-los, nada, só ouvia o barulho da água a bater. E agora, o que faço? Eles hão-de dar pela minha falta, não me vão deixar aqui. E se não derem?
Calma, esperas pelo nascer do dia, viras as costas ao Sol, cortas mato, nada de trilhos, sempre em frente, até à estrada Mansoa-Bissorã, escondes-te, há-de aparecer uma coluna um dia destes, quase todos os dias passam. Depois é só saltar para a estrada e pronto. E se a guerrilha te vê, o que é que fazes? Pois. Minutos a durarem horas, o coração outra vez.
Um pequeno som, pareceu-lhe, serão eles, ou estarei a sonhar? Um assobiar baixinho. É isso, são eles, nunca mais vinham, assobia também, assobio cada vez mais próximo, uma mão, o Kássimo, o Saraiva atrás. Então e os outros? O capitão, danado, a bufar, e os outros? Kássimo à frente a assobiar, dentro do trilho, foram andando para trás, mãos no cinturão do da frente. Encontraram o capitão Rubim e o alferes Vilaça, os dois sentados, costas com costas. A dormir na forma, ah?
No outro sábado o Saraiva encontrou os quatro alferes sentados, tinham acabado de almoçar na messe de Brá. E o programa para hoje, qual é, perguntou. Vou até Bissau espairecer, diz um, outro vou mas é dormir com a cama, a correspondência a preocupar o terceiro, o quarto, sei lá? Ele arranjava um melhor, têm 5 minutos para se equiparem para sair.
Levou-os para o aeroporto, os motores já quentes do Dakota pronto para descolar. Foram para leste, Nova Lamego até Canquelifá, perto da fronteira com a Guiné-Conakri. Chegaram com o Sol quase a ir-se. Esperaram fechados dentro do avião, os motores parados.
Abriram-lhes as portas, entraram directos para uma GMC com as lonas corridas. Meteram-lhes lá dentro queijo partido aos bocados e pão. O Saraiva, gargalhada baixa, a pedir os cantis, para encher de água fresca, disse. O meu não precisa, está cheio até cima, nem se ouve, mesmo que o abane, diz um. Passe, o capitão a insistir. Que a marcha ia ser longa, cerca de 20 km, e a água vai ser decisiva.
Ouçam bem, só bebem quando eu der sinal, todos a beber ao mesmo tempo.
Comandos ao ataque, o Saraiva desalmado a gritar, como gostava de começar o dia. Fizeram-se a eles, por ali dentro, as casas de mato com 2 ou 3 gajos que nunca lhes tinham sido apresentados a pisgarem-se. Depois, um dos intrusos passou à história. Da gargalhada. Quando sentiu os projécteis de uma metralhadora pesada inimiga a bater lá em cima nas árvores, até disse para os outros, olha a NT a apoiar! Os outros a rirem-se, uma força danada dentro deles. No caminho do regresso lembraram-se da genica que sentiram, estamos numa forma do caraças, não estamos?
Da outra vez, mandou tapar-lhes os olhos com algodão, fita adesiva e um lenço negro por cima. Só tiram os lenços e o adesivo quando eu mandar. É para ver se adivinham para onde vamos passar o fim-de-semana. Viaturas pela estrada fora, para onde havia de ser, para o Oio. Quando entraram em Mansoa, pararam. Então, quem é amigo? Para onde vamos então? Toca a tirar os lenços, olhos e ouvidos bem abertos agora. Foram por ali fora até Bissorã. A mesma história do queijo e do pão, uma cerveja para cada um, cantis cheios de água, por aqueles trilhos, a noite toda.
Um cigarro agora é que sabia bem. Pois, também a mim me apetecia estar na praia de Carcavelos, ao sol com a miúda, os ouvidos dele em todo o lado. Fumas no fim do fogo. O dia clareou, estavam no sítio certo, as casas de mato em frente. Os guerrilheiros é que faltaram à chamada naquela altura. Não saímos daqui enquanto os gajos não aparecerem, o capitão a provocá-los. Vieram mais tarde, quando já não dava muito jeito, mas arranja-se sempre qualquer coisa, que remédio. Um daqueles alferes integrado na equipa do furriel Moita, apanhado num campo de mancarra, com nada para se abrigar, ou estava com pressa de regressar a Bissau, ou tinha visto no cinema uma cena parecida, chateou-se, aqui vou eu, quem quiser que venha. Quis lá saber da parelha e da equipa, meteu-se por aquelas casas de mato dentro. Depois ficou lá dentro sozinho, sem saber bem o que fazer. Os companheiros daquele fim-de-semana encontraram-no a olhar para o ar, para os ramos das árvores a abanarem com as balas. Estes gajos nunca mais aprendem, porra, 20 flexões aí já, o Saraiva oportuno como sempre. Agora sim, podem fazer fogo com o isqueiro, toca a fumar! (...)
[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]
Notas do editor:
(*) Vd. último poste da série > 8 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23960: (De) Caras (191): A morte do fur mil 'comando' Joaquim Carlos Ferreira Morais, no assalto a uma base IN, em Catunco, Cacine, em 7 de maio de 1965 (João Parreira, ex-fur mil op esp, 'comando', CART 730 / BART 733 e Gr Cmds “Os Fantasmas” e "Os Camaleões", Bissorã e Brá, 1964/66)
segunda-feira, 9 de janeiro de 2023
Guiné 61/74 - P23965: Notas de leitura (1541): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (3) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Aqui se põe termo a estas histórias e memórias com que Luís Cadete nos mimoseou, tudo decorreu naqueles vastos pontos da região Sul por onde ele terá andarilhado, diz ter passado 8 meses e meio em Mejo, todo o aliciante desta narrativa passa pelo rigor com que ele apresenta os diferentes locais, o modo como entremeia risos e lágrimas, dores e alegrias, felizes acasos e momentos funestos. Excelente contador, lamentarei se este livro não vier a conhecer uma reedição e divulgação que permita, a quem gosta de boa leitura que a literatura de guerra permite, esta oferenda de memórias que vêm enriquecer o que há de melhor na literatura memorial da Guiné.
Um abraço do
Mário
Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (3)
Mário Beja Santos
Mudemos de localidade, vamos agora às colunas de reabastecimento a Madina de Boé, do Gabu até à transposição do Corubal eram 60 quilómetros de mais estrada, a transposição do rio era um quebra-cabeças. “A cerca de 5 quilómetros do Ché-Ché a estrada bifurca-se: para a esquerda segue a picada para Béli, cerca de 40 quilómetros de poeira e buracos; para a direita, segue a estrada para Madina a mais de 25 quilómetros de distância. Madina de Boé era nessa altura uma tabanca reduzida à sua expressão mais simples, dominada a norte, Leste e Oeste – a não mais de 300/400 metros da tabanca – por duas linhas de alturas com cerca de 112 metros de altitude e cerca de 1500 de comprimento no sentido dos meridianos. A Sul, afastada mais ou menos 1000 metros, fica uma outra linha de alturas com cerca de 171 metros de altitude e cerca de 2600 metros de extensão, correndo no sentido Leste-Oeste e 1300 no sentido Norte-Sul que, qual triângulo isósceles, dá pelo pomposo nome de Dongol Dandum, de topo plano, careca, amplo e juncado de gravilha. Com a fronteira a pouco mais de 8 quilómetros, em linha reta, Madina passou a ser flagelada e atacada quase diariamente – quando não sucedia sê-lo várias vezes por dia – e, do alto das colinas que a enquadravam, o inimigo fazia tiro ao alvo, segundo se dizia".
Também não esquece de contar aqueles achados ditados pela boa sorte, caso daquela operação lá para os lados de Empada, um soldado ao aliviar a bexiga, reparou em algo que brilhava por baixo da cobertura. Meteu a mão àquilo que brilhava, apareceu-lhe uma espingarda AK, chamou os camaradas, tinha sido descoberto um depósito de armamento, dali saíram espingardas, metralhadoras, pistolas, minas e granadas de mão. Não esconde que terá sido um erro não se ter ocupado Salancaur, decisão tomada por Arnaldo Schulz, depois da ocupação de Mejo, aquele ponto era uma pedra no sapato das nossas tropas, e ele explica o porquê:
“Com cerca 400 metros no sentido Este-Oeste e o topo careca em forma de tampo de mesa, ligeiramente inclinado para Leste, Salancaur dominava uma vasta área em redor, nomeadamente o corredor de Guileje. É óbvio que a ocupação de Salancaur não impediria, em definitivo, as infiltrações do PAIGC, mas permitiria um melhor controlo da zona e forçaria o Inimigo a diligenciar itinerário alternativo. De encostas íngremes, exceto na ponta Leste, inçadas de matagal e de enormes poilões de tronco pregueado que davam proteção a ambos os contendores, Salancaur obrigava a nossas tropas a atacar a subir, coisa pouco agradável e que conferia vantagem manifesta às gentes do PAIGC.”
Tenho vindo a desenvolver estas pequenas histórias de Luís Cadete por as considerar muitíssimo bem elaboradas, por iluminarem a atividade militar desenvolvida nesta região Sul entre 1966 e 1968, tempos de Mejo, de Sangonhá e de Cameconde, posições que Spínola deliberou abandonar. Histórias de afetos, de dramas de guerra onde não falta a mina bailarina, o fornecimento de peixe e carne por expeditos nativos na pesca e na caça, as penosidades do abastecimento, havia que comer sem remissão o pãozinho com gorgulho; é manifestamente crítico com o abandono de certas posições, descreve a importância de Contabane, que depois de um ataque devastador, foi abandonada. As histórias multiplicam-se, andaremos entre Fulacunda-Buba-Catió, Aldeia Formosa, de Guileje a Gadamael, tudo enroupado com apreciações nem sempre positivas à burocracia militar, há notas soltas sobre obsessões de gente que só bebia água engarrafada, infidelidades conjugais, porventura com caráter autobiográfico será mencionada a aventura do cultivo de abacaxis que não surtiu efeito porque as cabras encontraram ali alimento. Sempre dentro desta linha que houve abandono de posições que se tornaram verdadeiras vitórias militares do PAIGC, volta-se a falar em Madina do Boé, e conta-se a história que havia para lá um corneteiro destemido que se punha em campo aberto a executar o toque de silêncio.
A última história que nos presenteia Luís Cadete é seguramente fidedigna, passou-se em Mejo e em 1966. Ouviu-se roncar motor de helicóptero, voava a Sul da estrada Guileje-Bedanda, notificou-se superiormente, e meses depois apareceu um outro helicóptero e ali aterrou, o piloto desfez-se em desculpas, confundira aquela pista com a de Boke. “Comunicado o facto superiormente, com o grau de prioridade máxima que a situação aconselhava, foi a Companhia informada de que a FAP iria tomar conta da situação. E cerca de quinze minutos depois havia dois T-6 sobre a pista e pouco depois um helicóptero.” Era um Antonov An-2, soviético. O aparelho levantou voo escoltado pelos T-6 e terá seguido para Bissalanca. Lá na Companhia não se soube mais nada, abateu-se um manto de silêncio. “Uma aeronave estrangeira, oriunda de um país apoiantes ostensivo do PAIGC, sobrevoara parte considerável do território português em guerra e dera-se ao desplante de nele aterrar sem que ninguém o referenciasse nem a FAP o intercetasse. E isto em pleno dia, com excelentes condições atmosféricas e não menos excelentes e extensa visibilidade!”
Insista-se que se trata de leitura imperdível.
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Notas do editor:
Postes anteriores de:
26 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)
2 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23938: Notas de leitura (1539): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (2) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23956: Notas de leitura (1540): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (11) (Mário Beja Santos)
sábado, 7 de janeiro de 2023
Guiné 61/74 - P23958: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: O maluco do Honório nunca mais!... E depois o meu adeus à guerra dos “Fantasmas”, maio de 1965
Guiné > Bissau > 11 de junho de 1965 > "Foto tirada em frente ao Hotel Portugal, num dia que nunca mais esqueço, e por várias razões (i) era o dia dos meus anos; (ii) fui a Bissau buscar o 2º sgt. José Cabedo e Lencastre que vinha para o Centro de Instrução de Comandos; (iii) foi um dia depois da condecoração e promoção (a capitão) do Saraiva; (iv) os sapatos de pala castanhos que calçava atravessaram algumas bolanhas; (v) de tarde saímos para instrução e à noite fui ao cinema UDIB ver o filme “Noites de Casablanca", com a Sara Montiel".
Guiné > Região do Oio > Tita Sambo (Camjambari) > 1965 > O Grupo Cmds "Os Fantasmas". Final da operação Ebro, em 26 de março. Para completar os intervenientes da Op Ciao (6-7 de maio de 1965, e Catunco, Cacine), falta apenas a presença do cap art 'comando' Nuno Rubim que acompanhou o Grupo. Em pé: o Cmdt Grupo ten Saraiva, 5º da esq. (MS); e eu o 9º (FP). O fur mil Joaquim Carlos Ferreira Morais )JM) está em frente do Saraiva e o soldado Amadú Dajló (AD) à minha frente.
Recorde-se, aqui o percurso anterior do então sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015):
(i) alistou-se nos comandos do CTIG, a convite pelo alferes mil 'comando' Maurício Saraiva, angolano; (ii) requentou o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de Agosto e 17 de Outubro de 1964; (iii) deste curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros; (iv) deste curso sairam ainda os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: "Os Camaleões", "Os Fantasmas" e "Os Panteras".
A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. Muitos dos novos leitores do nosso blogue estão agora a ter contacto com as memórias do Amadu Djaló.
Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada. |
Como já tivemos ocasião de o dizer noutra ocasião, o título do livro pode parecer ter pouco a ver com o conteúdo. Terá sido, aliás, mais ditado pelo marketing, com o objectivo de vender, o que no caso do Amadu até era um objectivo relevante, sabendo-se que ele tinha 10% sobre o preço de capa e era um homem pobre e doente. (Infelizmente, não enriqueceu com o livro.) "Guineense, comando, português" foi claramente uma concessão aos "brancos" ou "europeus" (como ele nos chamava, quase sempre), Mas ele sentia-se português e um verdadeiro comando, sem nunca, por outro lado, ter renegado a sua pátria de origem (onde está , de resto, seputaldo).
Se um homem é sempre ele próprio mais as suas circunstâncias (não podendo escapar à historicidade), o Amadú foi porventura uma espécie de Sancho Pança guineense, servindo diversos Dom Quixotes, do Mauricio Saraiva ao Antónioo Spínola, mas também poderia ter estado ao lado do 'Nino Vieira e do Amílcar Cabral, como ele próprio admitiu, quando a páginas 30/31 evocou a tentativa de aliciamento, para ingressar nas hostes do PAIGC, em julho de 1961, por parte de Adulai Djá, um colega seu de Bissau" (que, tendo militado nas fileiras do PAIGC, chegaria a ser 2º comandante da base principal do Morés; mais tarde morto num ataque de comandos helitransportados, em data não especificada pelo Amadu, p. 30, nota de rodapé).
O Amadú acabou por ir para a tropa portuguesa em 1962 ("tropa era uma obrigação"), depois de um série de peripécias que meteram o pai, os primos do Senegal (militares do Exército francês), o administrador de Bafatá, o tenente Carrasquinha, do BCAÇ 238 (que tinha um fraquinho pela prima, bonita, Aua Djaló)... .
Tenho igualmente chamado a atenção para o talento narrativo do Amadu. Como bom africano, ele era um homem da cultura oral e, logo, um grande contador de histórias. E essa oralidade, espontânea (mesmo em português que não era a sua língua materna), perpassa por todo o livro, graças ao talento de outro homem, o Virgínio Briote, o seu "editor literário" (Ou "copydesk"), à sua paciência, perserverança, bom senso, bom gosto, sentido de ética e camaradagem.
Voltamos aqui a ter, neste excerto, duas boas histórias:
Em Brá tivemos a manhã para preparar tudo. Depois, fomos em viaturas para o aeroporto de Bissalanca, onde estavam quatro avionetas à nossa espera. O tenente dirigiu-se ao furriel Morais, que já tinha acabado o tempo de comissão e disse-lhe:
– Vocês esperam pelo Honório[2], que parece que ainda não está pronto.
– Meu tenente, eu não vou no avião do Honório! Custa-me muito faltar à operação, mas eu não vou! – disse eu.
O Tomás Camará disse também que, com o Honório, não ia.
Então, o tenente disse que as avionetas que os iam levar, regressavam para depois levar o resto do grupo. Visto que um dos pilotos concordou, eu e o Tomás Camará ficámos a aguardar.
As três avionetas levantaram com o pessoal e, passados dez minutos vimos o furriel Honório a dirigir-se para a sua Dornier. Virou-se para nós e disse:
–Vamos?
O furriel Morais e um soldado europeu foram ter com ele.
– Só vão vocês os dois?
– É, eles dizem que não vão na sua avioneta!
– Mas, porque não?
Saiu da avioneta e dirigiu-se para nós. Cumprimentou-nos e perguntou:
– Por que é que vocês não querem ir comigo?
Olhámos para o lado, nenhum de nós deu resposta. Ele disse:
– É pá, isso é uma grande vergonha para nós! Eu sou preto, levo brancos, que têm confiança em mim e vocês, que são meus patrícios, não querem ir na minha avioneta? Vamos embora, pá, não há problemas!
– Eu não gosto de manobras no ar e o Tomás também não!
– Eu não faço nenhum tipo de manobras!
Depois, pegou nos nossos equipamentos e disse:
– Vamos embora!
Não havia outra maneira. Muito contrariados, embarcámos na avioneta. Tomou altura, virou para sul e o voo correu muito bem até ao campo de Cufar. Aí, o Honório viu um homem a andar sozinho, apontou-lhe o dedo e disse alto:
– Vou assustá-lo.
Aí, eu já não sabia onde me meter. Ele baixou a avioneta e passou por cima do homem, que continuou a andar com calma.
– Ai, ele não fugiu?!... Então, vou-lhe acertar com a asa da avioneta!
Ao homem, a árvore tinha-lhe salvo a vida e a nós, pouco faltou para perdermos as nossas. A partir deste incidente, nenhum de nós abriu mais a boca, até chegarmos a Cacine.
Esta pequena vila fica junto ao rio. O piloto parou o motor e mergulhou, mergulhou. Só víamos água à nossa frente. Naquela altura, eu disse para comigo, "até aqui foi brincadeira, mas agora ele não vai poder controlar a avioneta e vamos morrer todos". Era só água que eu estava a ver, tapei a cara para não ver mais nada e gritei com força. Ouvi o Tomás também aos gritos.
De um momento para o outro, senti o estômago na boca, o avião estava a levantar, outra vez, a pique. Mesmo assim, vi os mangueiros bem perto e, logo depois, entrou directo na pista e aterrou.
Saltou cá para fora, abriu a porta a cada um de nós e, quando, sem qualquer tipo de fala, lhe virámos costas, ele apalpou-me o rabo e cheirou a mão, para saber se eu tinha borrado as calças.
Mesmo na pista, estava uma coluna à nossa espera, que nos transportou para Cameconde.
Cameconde não tinha tabanca, só quartel. Os únicos vizinhos da tropa eram do PAIGC. Os nossos militares mal podiam sair do arame farpado. Aquele local foi um castigo doloroso para quem cumpriu lá a comissão.
Cameconde fica num cruzamento. Para entrar em Cacine tem que se passar por Cameconde, venha de onde se vier. As fronteiras são em Sangonhá, Cacoca, Camissorã e Banire, este por via marítima. A estrada continua até Cassacá e Campeane. É um cruzamento que separa tudo.
Chegámos depois do almoço e ficámos a descansar até às 17h00, mais ou menos. O tenente chamou-me e levou-me junto do guia, que era nalu.
Perguntou-lhe se tinha coragem para nos levar ao acampamento. Se não tivesse, mandava vir outro guia, amanhã, de Cacine. Mas o guia, à nossa frente, assegurou que não era preciso vir mais ninguém, que ele nos levava até ao acampamento da guerrilha. Enquanto o tenente ia falando com ele e fazendo perguntas, nós ficámos a aguardar a hora de saída.
Saímos à nossa moda, como era costume, com muito cuidado e sempre no maior silêncio. Alguns minutos depois, saiu um pelotão de periquitos, pertencente à companhia de Cameconde. Fomos sempre ao lado da estrada de Cacine a Camissorã, que atravessa Cameconde, até Catunco. No cruzamento deixámos o pelotão para trás, com a missão de fazer a segurança do local e aguardar a nossa retirada.
Entrámos na direita e, a partir daqui, o guia ficou fora do nosso controlo. Já não andava mais. O tenente bem insistia e chegou a dar-lhe com a coronha da arma na cabeça, mas nada dava resultado. Rastejava um pouco e parava, levava uma coronhada, rastejava e parava outra vez. Assim, fomos andando até chegarmos a um local cheio de mangueiros, dos dois lados da picada. O local era muito escuro e o guia continuava a atrasar-nos. Não sabíamos onde o sentinela estava.
Logo que saímos da escuridão das sombras dos mangueiros, uma rajada, à minha esquerda, cortou o silêncio. Aterrámos no chão, primeiro, depois, aos gritos de "Comandos ao ataque", arrancámos na direcção de onde partiram os tiros, pensando que era o local do acampamento. Era apenas o posto da sentinela. O acampamento ficava um pouco afastado e, mais para a esquerda, viemos a saber pouco depois. Abrimos fogo e lançamos granadas incendiárias. Barracas não vimos nenhuma, o que ouvimos logo foram tiros, vindos do lado esquerdo.
Corremos nessa direcção e encontrámos uma horta, com barracas. Começámos a revistá-las e fomos encontrando equipamentos e bagagens.
Retirámos um pouco na direcção do cruzamento e, passados alguns minutos, o tenente Saraiva perguntou-me se eu tinha ouvido uma metralhadora pesada a cantar. Eu tinha ouvido muitos tiros, só não sabia se alguns eram de metralhadora pesada. Ele, então, perguntou ao furriel Morais a mesma coisa. Que não sabia se eram de metralhadora pesada, foi a mesma resposta.
E o tenente a dizer-lhe:
– Pois eu ouvi perfeitamente. Pega no guia, vai lá com o Amadú, leva duas equipas e vão vasculhar toda a área. De certeza que vão encontrar qualquer coisa interessante.
O furriel Morais e eu levantámo-nos.
– O guia para quê? Estamos a ver as barracas a arder!
Iniciámos a marcha em direcção das barracas, mas a perguntar a mim próprio, porque razão o comandante do grupo não vinha connosco. Ainda não eram 24h00 quando lá chegámos pela primeira vez, agora já eram quase 2h00 da madrugada.
A progressão até ao acampamento não teve problemas e, quando lá chegámos, começámos outra vez a vasculhar tudo. Eu com uma lanterna na mão à procura da tal arma pesada. O furriel Morais perguntou se eu já tinha visto alguma coisa. Não, não tinha ainda visto nada.
O furriel dirigiu-se na minha direcção. O local onde eu estava tinha ídolos [3] e deuses e ele esteve naquele local ainda um bocado de tempo, sempre à procura de qualquer coisa interessante até que me disse:
– Amadú, temos que sair daqui!
Dirigimo-nos para o local onde estavam os restantes elementos. Vimos o 1º cabo Cruz com uma jarra na mão e a bater com ela no pé de uma árvore de cola, pam, pam, pam…
Eu pensei, bom, ele está a fazer este barulho para a guerrilha saber o local onde estamos. Só podia ser para essa finalidade, tanto barulho!
O Tomás Camará disse-me que o cabo Cruz lha tinha tirado, para a destruir. Daqui resultou uma discussão entre nós, dentro do acampamento, que só não deu mais barulho porque o furriel Morais pôs o pessoal na ordem.
Entretanto, as barracas ardiam com toda a força e o furriel deu ordem para sairmos do local. Perguntei-lhe qual era a equipa que ia à frente.
– É a nossa – disse.
Foi a última coisa que o furriel Morais disse. Mal dei o primeiro passo, uma granada de RPG [4] explodiu à nossa frente e atingiu quase todo o pessoal. O furriel Morais teve morte instantânea. Logo a seguir ao rebentamento da granada, sucedeu-se o tiroteio, que durou alguns minutos. Ninguém levantava a cabeça. Quando o fogo abrandou, já todos tínhamos pensado o mesmo, para onde, por onde, como e quando sair dali.
Entre nós estava uma grande árvore, que nós na Guiné chamamos poilão [5]. Tinha raízes de fora, com grandes lombas, eram tão grandes que podiam abrigar um bigrupo. Meti-me, deitado, numa das lombas e estava a sentir qualquer coisa a escorrer pelas minhas costas. Desabotoei o dólmen, meti a mão até à anca e pareceu-me que era sangue.
Ao mesmo tempo senti que o meu ombro esquerdo estava a doer. Cuspi na mão e tentei ver a cor do cuspo. Se fosse sangue era mau sinal, podia ter sido atingido nos pulmões ou até no coração. Não era sangue, fiquei mais tranquilo. Se a ferida é fatal, a gente nem sente.
Mas eu estava a ouvir gemidos de companheiros. Um chamava pela mãe e eu cheguei-me a ele. Que estava ferido, eu também estava e o Tomás Camará andava com as pernas abertas, a dizer que o furriel estava morto, e que, como era agora o comandante, ia pedir apoio pelo rádio. Tomás comunicou com o tenente Saraiva, que lhe perguntou se nós não podíamos regressar pelos nossos próprios meios.
– Tenente, nós éramos onze! Há muitos feridos e um está morto!
– Então vocês não podem sair daí, nem se podem mexer?!
Nesse momento ouviam-se gritos de um companheiro ferido. Mas outros, gritavam alto para o PAIGC ouvir:
– Venham ter connosco aqui, pá! Estamos aqui à vossa espera!
Estes gritos serviram de incentivo. Outros começaram também a recuperar o ânimo.
Entretanto, uma secção do pelotão, que estava com a missão de nos apoiar e recolher, meteu pés ao caminho, para nos ajudar a recolher o morto e o ferido que não podia estar de pé. O único que não foi ferido foi o cabo Cruz. Dos outros, dez tinham sido atingidos, um deles mortalmente. Mas saímos dali, mal ou bem, a arrastarmo-nos como pudemos até ao cruzamento.
Ficámos a aguardar a chegada da manhã, para procedermos às evacuações. O corpo do furriel Morais esteve ali ao nosso lado, deitado e bem caladinho, num silêncio de quem nunca mais voltará. Nasceu em Portugal e veio acabar a vida neste lugar de Catunco, no sul da Guiné, em 7 de maio de 1965.
Os militares que cumpriram a comissão em Cameconde foram muito sacrificados. Estavam ali para segurança da pequena vila de Cacine. Como já disse, para entrar em Cacine, venha-se de onde vier, tem que se passar por Cameconde. E para sair é pelo mesmo cruzamento. De Cameconde para Cacine vira-se para norte. De qualquer parte que se venha, a entrada é a mesma e a saída na direcção do sul, é também a mesma.
Portanto, para cumprir o serviço militar em Cameconde, era como quem pegava arma e entrava na mata para atacar os acampamentos da guerrilha. Todas as horas de todos os dias eram perigosas aqui. E só passava o perigo quando se ficava longe de Cameconde. Enquanto aqui estivesse, o militar não podia sair do arame, porque a partir de 20 a 50 metros podia ser morto ou raptado pelo PAIGC.
De manhã, a avioneta pediu que indicássemos a nossa posição. O tenente mandou estender telas, a avioneta localizou-nos e, poucos minutos depois, chegou o helicóptero acompanhado de bombardeiros T-6.
O tenente indicou a posição onde podiam bombardear. Durante a noite, o PAIGC não esteve quieto, foi fazendo fogo sobre nós. Mas depois dos bombardeamentos, o tiroteio acabou. Os helis [6] puderam assim pousar com segurança. Um foi para Bissau com um ferido e o corpo do furriel Morais, eu e o Tomás Camará fomos noutro para Cacine, onde recebemos os primeiros socorros de um médico da Marinha. Estivemos deitados na enfermaria, até que chegou a coluna que nos transportou para a pista. Fomos recolhidos por avionetas e ainda não era meio-dia estávamos em Bissau.
Esta foi a “Ciao”, a última operação dos “Fantasmas”. Eu e o Tomás resolvemos abandonar os comandos. Entregámos as armas e os equipamentos e regressámos à CCS do QG.
[1] Nota do editor: 6 maio 1965.
[2] Furriel Piloto Aviador.
[3] Chifres, bonecos de pau, garrafas.
[4] Nota do editor: RPG ou lança-granadas-foguete. A abreviatura deve-se à expressão russa “lançador de granada anti-tanque portátil” (Ruchnoi Protivotankovye Granatamyot)
[5] Árvore grande, majestosa, muito frequente na Guiné. Aproveitamos a madeira para fazer canoas. Para os que adoram deuses é uma árvore sagrada, protege as tabancas, é morada tradicional de espíritos e local de cerimónias.
[6] Allouette II.