A apresentar mensagens correspondentes à consulta História das missões católicas na Guiné ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta História das missões católicas na Guiné ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens

domingo, 28 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25454: Notas de leitura (1686): Timor Leste, que já foi lugar de desterro e encarceramento (Luís Graça)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Independente desde 2002, esteve sob a brutal ocupação da Indonésia durante 24 nos.   




Timor Leste > 2005 > A Ilha de Ataúro, vista de Dili >  Foto de Hu Yui. Fonte: Wikipédia (com a devida vénia...)


Nota de leitura > Marisa Ramos Gonçalves: 

«A ilha-prisão de Ataúro durante a ocupação indonésia de Timor-Leste: histórias de encarceramento, resistência e legados contemporâneos»

e-cadernos CES [Online], 37 | 2022, posto online no dia 02 novembro 2022, consultado o 18 abril 2024. URL: http://journals.openedition.org/eces/7084; DOI: https://doi.org/10.4000/eces.7084

Marisa Ramos Gonçalves é investigadora do CES - Centro de Estudos Sociais | Universidade de Coimbra | marisagoncalves@ces.uc.pt

Fez o seu doutoramento, em 2016, na Universidade de Wollongong, Wollongong, Australia.  (Título: “Intergenerational Perceptions of Human Rights in Timor-Leste: Memory, Kultura and Modernity” (Perceções Intergeracionais de Direitos Humanos em Timor Leste: Memória, Cultura e Modernidade).  Tese de Doutoramento em Filosofia, Faculty of Law, Humanities and the Arts, School of Humanities and Social Inquiry, University of Wollongong, Wollongong, Australia.)

 
I. Da leitura deste artigo, interessa-nos, no âmbito do nosso blogue, destacar as referências, que ainda são muito escassas, a esta antiga colónia portuguesa que foi Timor. E mais ainda,  Timor como lugar de desterro e encarceramento, desde o séc. XVIII (quando há notícias dos primeiros desterrados, se bem que nenhum ainda fosse europeu). 

Muitos portugueses sabem da brutal  invasão, ocupação e anexação  de Timor Leste com a consequente tentativa de genocídio do povo maubere,  em finais de 1975, tornando-se o território na 27ª província da Indonésia.

Mas muitos  desconhecem que "durante o período colonial indonésio" (sic),  "os colonizadores usaram a ilha para confinar as famílias de membros da resistência em campos de concentração abertos, mas com vigilância militar apertada. Estima-se que, entre 1980 e 1987, tenham sido presos cerca de 6000 timorenses, tendo algumas pessoas morrido devido à fome e má-nutrição."

Por outro lado, mesmo habituados, desde os bancos da escola, a repetir "ad nauseam" que vivíamos num Portugal, que ia "do Minho a Timor", nós sabíamos muito pouco (e continuamos a não saber) da história e da geografia de Timor e da presença histórica dos portugueses naquela ilha do sudoeste asiático, de resto escassa até ao séc. XIX, circunscrita a alguns pontos no litoral e sobretudo à ação de missionários e militares.

Este artigo centra-se neste período  da invasão, ocupação e anexação indonésai (1975-1999), sobre o qual vamos passar por alto (o leitor interessado tem acesso ao artigo completo) , bem como sobre a parte teórica ( "estado da arte sobre o tema", a colónia penal como sistema carcerário ou concentracionário e as memórias das suas vítimas ),  a parte metodológoca (utilização dos testemunhos das vítimas do conflito e entrevistas de história oral) bem como a bibliografia. 

Interessa-nos recuar até Ataúro do tempo dos portugueses, e nomeadamente nos anos 20/30 do séc. XX.

Vamos citar algumas excertos,  mais extensos,  e elaborar uma primeira nota de leitura deste artigo,  dispensando as referências bibliográficas,  dada as limitações de espaço num blogue como este, dirigido não a académicos e especialistas mas a antigos combatentes das guerras coloniais.


II. Vejamos o resumo do artigo:

(...) "A ilha de Ataúro, situada a norte da capital de Timor-Leste, funcionou como ilha-prisão durante o período colonial português e, de forma mais intensa, a partir dos anos vinte do século passado. 

"Durante o período colonial indonésio (1975-1999), os colonizadores usaram a ilha para confinar famílias de membros da resistência em campos de concentração abertos, onde centenas de pessoas morreram devido à fome e má-nutrição. 

"Partindo de uma análise de entrevistas e de material de arquivo sobre as/os antigas/os deportadas/os em Ataúro no período indonésio, este artigo conclui sobre a relevância da preservação das histórias orais sobre as/os prisioneiras/os, bem como da memorialização das histórias desta ilha. 

"O texto reflete, igualmente, sobre memórias e legados coloniais, partindo da observação de que algumas ilhas da região do Pacífico permanecem territórios considerados depósitos e locais de detenção de pessoas que fogem à repressão e violência de regimes ditatoriais e coloniais." (...)

E aqui fica também o índice do artigo (com os respetivos links), para o leitor que tiver mais tempo e vagar:

Introdução
Conclusão

O  texto integral pode ser aqui descarregado, em formato pdf.  PDF 340k. E pode ser utilizado sob licença CC BY 4.0


III. Insularidade e desterro
 
A autora começa por lembrar que a "insularidade", ao longo do tempo e nos mais diversos lugares, tem sido  um "meio de confinamento natural", adoptado por regimes ditatoriais e coloniais,  para deportar e banir inimigos políticos, muitas vezes "sem direito a julgamento ou condenação formal!"...Mas também presos de delito comum.

Os desterrados (muito mais homens do que mulheres) eram, além disso, uma preciosa  fonte de mão-de-obra nas colónias, em todos os impérios coloniais, a começar pelo Britânico.

No nosso caso, "Timor-Leste integrou, desde o século XVIII, o sistema carcerário do império português" (a par das ilhas atlânticas, bem  como Angola e Moçambique):  para lá,  eram enviados militares e civis,  opositores políticos, mas também prisioneiros de delito comum ("deportados sociais)".

A ilha de Ataúro fez parte deste sistema carcerário  durante os vários  períodos coloniais:  português (1702-1975), indonésio (1975-1999), sem esquecer o curto mas não não menos brutal período de ocupação japonesa (1942-1945).  

(...) "A ilha de Ataúro funcionou como ilha-prisão, em particular nos anos vinte e trinta do século XX, quando foi usada como local de deportação de opositores políticos e prisoneiros de delito comum, denominados deportados sociais" (...)  

Ataúro, sendo uma ilha, a norte de Dili, separada por 25 km de mar, não precisava de arame farpado nem muros. Era difícil, ou quase impossível, escapar.

 Na segunda parte do artigo,  a autora apresenta  uma sucinta introdução histórica da colónia penal de Timor , durante o século XX, "em particular os campos de internamento de deportados políticos e sociais provenientes da metrópole e de outros locais do império,  na ilha de Ataúro e no enclave de Oécussi."  

Mas o objetivo principal do artigo é mostrar "a relevância da memorialização das histórias da ilha de Ataúro, através da preservação das narrativas orais" quer dos prisioneiros quer dos seus  habitantes.
 
IV. Ilhas-prisão – Políticas carcerárias dos impérios à atualidade

Algumas ilhas que hoje aparecem nos cartazes das agências turísticas como "paradisíacas", foram no passado espaços carcerários ou concentracionários, criados  pelos sistemas coloniais.  

Os vários  impérios europeus  fizeram dessas ilhas (em geral tropicais ou subtropicais) lugares de desterrro e encarceramento:
  • a França criou as ilhas-prisão da Nova Caledónia, da Cayennne ou Ilha do Diabo na Guiana, das ilhas Reunião e Côn So’n no Vietname;
  • a Grã-Bretanha fez uso da Tasmânia, na Austrália; 
  • a Holanda,  da ilha Nusakambangan nas Índias Orientais Holandesas, atual Indonésia...

 Havia várias tipologias destes lugares:
  • colónias penais, 
  • colonatos,
  • entrepostos, 
  • colónias agrícolas, etc.

No arquipélago dos Bijagós, havia por exemplo a colónia penal e agrícola da Ilha da Galinhas, criada em 1934 (ou pelo menos já existente nessa data), Em Cabo Verde, foi criado o "campo penal" do Tarrafal (1936-1957), reaberto depois como "campo  de trabalho" de Chão Bom (1961-1974) ...


A investigadora  debruça-se depois sobre a ilha-prisão  de Ataúro como local de deportação e degredo no século XX, e nomeadamente nas décadas de 1920 e 1930,   periodo sobre o qual há "mais dados e estudos académicos".

Ficamos a saber que Timor só obteve o estatuto de distrito autónomo em 1896: dependia originalmente do Estado da Índia (Goa) e, posteriormente, de Macau.

Situado na periferia do império, no sudoeste asiático, era visto "como um espaço insular e longínquo da metrópole e de outros centros administrativos do império, como Goa e Macau".

Ser desterrado para Timor  era, pois,  uma condenação pesadíssima, tanto para civis como para militares.

Em 1897 já existia uma cadeia civil, na comarca de Díli, para presos não- indígenas. Dezasseis anos depois, em 1913, foi criado o Depósito dos Degredados de Timor, que recebia maioritariamente macaenses, que vão representar uma importante força de mão-de-obra.  

 Em 1927, existiam três estabelecimentos prisionais:  o depósito de degredadas de Aileu, a colónial penal de Taibesse e a Cadeia da Comarca, em Díli,  para além de três presídios militares (Aipelo, Batugadé e Baucau) e os “campos de concentração” de Ataúro e Oécussi.

No período de 1927-1931, os deportados portugueses  distribuíam-se por várias colónias do império:
  • S. Tomé e Príncipe (29),
  • Guiné-Bissau (46).
  • Angola (456),
  • Cabo Verde (334),
  • Timor (500)
 
(...) Na ilha de Ataúro e no enclave de Oécussi, os denominados 'campos de concentração', foram considerados 'locais malditos', onde os prisioneiros estavam expostos às chuvas e temperaturas elevadas, com dietas pobres, muitos morrendo de malária e desnutrição" (...)
 
Entre 1927 e 1933, e na sequências das revoltas contra a Ditadura Militar e o Estado Novo, chegaram ao território timorense  algumas centenas de jovens,  socialistas, comunistas e anarcossindicalistas, acusados de serem os principais instigadores e participantes no atentado ao comandante da polícia de Lisboa, João Maria Ferreira do Amaral (1876-1931), alguns por alegadamente pertencerem  à rede bombista "Legião Vermelha", e outros na sequência do movimento revolucionário de 26 de agosto de 1931.

Sabe-se, oor outras fontes, que no ano de 1927, a população europeia de Timor era de 11 ocidentais estrangeiros e 378 portugueses, grande parte funcionários estatais, ou elementos das missões católicas,  além de 155 naturais originários de outras colónias.

Ora entre 1927 e 1933, terão passado por Timor  cerca de 600 deportados, quase o dobro da população civil europeia  ali residente.
 

Houve, entretanto,  uma  amnistia política geral, em 1932, para os vários deportados políticos nas diferentes colónis. A maioria  dos  prisoneiros em Timor regressou à metrópole, mas outros puderam ficar em liberdade no território.  


De fora ficou uma lista dos 50 prisioneiros considerados  “mais perigosos”, bem como os "deportados sociais" (presos de delito comum).

(...) "110 homens deportados originalmente em 1927 ficaram dispersos pelo território, constituindo famílias das quais descendem várias figuras da elite política atual de Timor-Leste.(...)

A ilha de Ataúro continuou a servir de prisão depois da ocupação japonesa de Timor, no pós-guerra. Os presos passaram a ser os timorenses que colaboraram com os ocupantes.

 A talhe de foice refira-se, por fim,  que durante a 
  ocupação indonésia de Timor-Leste " estima-se que entre 100 000-200 000 timorenses tenham perdido a sua vida em resultado do conflito e das políticas repressivas da administração militar indonésia, marcada por massacres, assassinatos de membros da resistência militar e civil, práticas planeadas de deslocação forçada e fome das populações, prisões arbitrárias e tortura." (...) 

Como é dos manuais da guerra contra-subversiva,  o governo de Suharto , através do seu exército invasor e ocupante, procurou retirar o apoio que a população dava às FALINTIL  – Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste, a resistir nas zonas montanhosas, para isso criando "campos de trânsito e internamento para essa população".  E, entre outras medidas repressivas, proibiu o uso da língua portuguesa. (**)

O maior destes campos era o da ilha de Ataúro. (A ilha tem 25 km de extensão por 9 km de largura, cerca 117 km² de superfície, e uma população atualmwnte  à volta de 10 mil habitantes.)

Para saber mais ler: A ilha-prisão de Ataúro no período da ocupação Indonésia
 
 ____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 26 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25448: Notas de leitura (1685): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (22) (Mário Beja Santos)
 
(**) "Os 24 anos da ocupação indonésia tornaram o bahasa a língua do ensino e da administração. O português foi banido, e a forma de resistir à total aculturação foi desenvolver a mais disseminada das línguas locais, o tétum. Fê-lo, principalmente, a Igreja Católica, que assumiu o protagonismo da resistência cultural e simbólica.'

"Chegada a independência, há uma geração (todas as pessoas com menos de 30 anos, o que constitui a esmagadora maioria da população) que não fala português. Aprendeu bahasa Indonésia e inglês como segunda língua e fala tétum em casa, além de alguma outra língua timorense, como o fataluco ou o baiqueno. É a chamada geração 'Tim-Tim, do nome Timor-Timur, que os indonésios davam à sua 27.ª província." (...)

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/portugues-tetum-ou-tetugues/1178 [consultado em 27-04-2024]

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25336: A nossa guerra em números (25): Reordenamentos populacionais: materiais (das rachas de cibe às chapas de zinco) e custos


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L1 ( Bambadinca) > Xime > Cais fluvial do Xime >1970 > 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) >  Ao centro, em segundo plano, de óculos escuros e boné azul (da FAP),  o fur mil op esp Humberto Reis, cujo grupo de combate estava encarregue de escoltar o transporte de milhares de rachas de cibe, desembarcadas no cais do Xime, e destinadas ao reordenamento de Nhabijões, um dos maiores da época (iniciado com o BCAÇ 2852, 1968/70, e continuado com o BART 2917, 1970/72)... Este 2º Pel ficou cedo sem alferes, o António Manuel Carlão (1947-2018), destacado para a equipa do reordenamento de Nhabijões.

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CCAÇ 2769 (Gadamael e Quinhamel, de janeiro de 1971 a outubro de 1972) > Vista aérea de Gadamael Porto, em finas do ano de 1971:  reordenamento, de dimensão média (c. 110 casas, cobertas a chapa de zinco, com o quartel à direita, em primeiro plano.  Foto do cor art ref António Carlos Morais da Silva, e por ele gentilmente cedida ao nosso camarada Manuel Vaz.

Foto: © Morais da Silva (2012) Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

Citação: (1972), "Diário de Lisboa", nº 17849, Ano 52, Quinta, 31 de Agosto de 1972, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_5170 (2022-5-3)

1. Não sabemos se há estudos sobre a historial (e também o custo) dos reordenamentos da Guiné. É possível que existam, no Arquivo Histórico-Militar, muita informação técnica e económico-financeira sobre os reordenamentos das populações. Deixemos isso para os investigadores. (*)

Temos, no nosso blogue, alguns dados, parciais e dispersos,  sobre os reordenamentos populacionais, que foram um peça fundamental da política spinolista "Por uma Guiné Melhor".

É verdade que não foi o Spinola quem "inventou" a figura do "reordenamento" (já havia a experiência francesa das "agrovilles", na guerra da Indochina, nos anos 50,  depois o "Strategic Hamlet Plan" dos americanos no Vietname, com as suas "aldeias estratégicas";  e de novo os "regouprements" franceses na guerra na Argélia, nos anos 60).

Mas também é  verdade que a palavra "reordenamentos" praticamente não se ouvia antes do "consulado" de Spínola (1968-1973): nos livros da CECA sobre a actividade operacional no CTIG, a palava não aparece no livro 1 (até finais de 1966) (há duas referências com o descritor "reordenamentos", um deles no âmbito da criação, em 1973 (quando entrou em vigor o Estatuto Político-Administrativo da Província da Guiné), do Conselho Provincial de Educação Física e Desportos e Reordenamemtos, no âmbito dos nova orgânica dos Serviços da Administração Central... 

 Já no  livro 2 (1967-1970) há  cerca de 70 referências (Reordenamento / reordenamentos). 

Logo em 3jun68, na sequência de uma reunião no QG/CTIG, é publicada a Directiva n° 2/68, que "ordena o estudo imediato da remodelação do dispositivo na área de Aldeia Formosa por forma a obter o rápido reordenamento e instalação das tabancas em autodefesa, respeitando o princípio da concentração de meios", a ser concretizada "antes da época das chuvas".

 Em 30 de setembro, sai outra importante diretiva,   Directiva nº 43/68, de 30Set ("Porque o reordenamento das populações e a sequente organização das tabancas em autodefesa é um problema complexo e que requer técnica especializada, é determinado o seu estudo num dos departamentos do Gabinete Militar do Comando-Chefe "(...).

No essencial, a doutrina do Com-chefe sobre sobre o assunto ("Reordenamento das populações e organização da autodefesa") é definida nesta época (1968/70).

Em 1969, na época seca, deu-se início â construção dos primeiros grandes reordenamentos. Noutra ocasião daremos notícia mais detalhada sobre estas atividades. 

No último livro da CECA sobre a atividade operacional na Guiné (1971/74) são 63 as referências aos descritores reordenamento/reordenamentos. (*)

Em meados de 1972, e regundo informação do Avelino Rodrigues, em trabalho de reportagem sobre a Guiné de Spínola, haveria uma centena de "aldeias de zinco", coo Nhabijões.

2. Vejamos agora um memorandum elaborado pelo Serviço de Reordenamentos do Batalhão de Engenharia 447  entregue, em julho de 1971, aquando da visita à Guiné de uma delegação da ONU (***).

(...) Tem o Serviço de Reordenamentos do Batalhão de Engenharia habilitado inúmeros oficiais, sargentos e cabos com o estágio de reordenamentos. Esses elementos, formando equipas constituídas por um oficial (alferes), um encarregado de obras (furriel),  um pedreiro (cabo) e um carpinteiro (cabo),  executaram no interior da província com a colaboração das populações, cerca de 8.000 casas cobertas a colmo e 3.880 cobertas a zinco nos últimos anos.

O Serviço de Reordenamentos do Batalhão de Engenharia 447 tem apoiado essas construções com material e, quando solicitado, tem prestado assistência ténica localmente.

A esse volume de trabalho correspondem as seguintes quantidades de materiais:
  • Rachas de cibe - 542.000
  • Chapas de zinco - 550.960
  • Ripas - 756.600 metros
  • Pregos - 120.280 kg
  • Anilhas de chumbo - 27.160 kg
  • Cimento - 19.400 sacos

Ainda segundo a mesma fonte, para, por exemplo, 60 casas T2, havia necessidade de adquirir:
  • 11.700 ripas; 
  • 780 kg de pregos n.º 15; 
  • 600 kg de pregos n.º 7; 
  • 480 kg de pregos zincados; 
  • 420 anilhas de chumbo 6/8"
  • e 8.520 chapas de zinco (em média, 142 chapas por casa T2)

3. Segundo o gen Bettencourt Rodrigues. o último com-chefe do CTIG, até ao final de 1973, as Forças Armadas tinham construído 15.700 casas, 167 escolas, 50 postos sanitários, 56 fontenários e 3 mesquitas, e aberto 144 furos para abastecimento de água. (pág. 115) (****)

Destas 15,7 mil casas, 2/3 deviam ser cobertas a colmo, e as restantes (c. 5200) a zinco (estimativa nossa)

A casa com cobertura de zinco era, na época, o supremo luxo para um guineense a viver no interior (ou na cidade, em Bissau)... O colmo tinha que ser substituído todos os anos, exigindo maior volume de mão de obra. Mais ecológico e mais aconcelhado do ponto de vista térmico, aumentava, todavia, o risco de incêndio. 

O zinco, importado, deveria ser o materia mais caro da casa. No total, podemos estimar em 738,4 mil as chapas de zinco fornecidas pelo BENG 447 para os reordenamentos populacionais... 

Hoje um metro quadrado chapa de zinco deve custar em média 7 euros...Admitindo que as chapas usadas nos reordenamentos fosse de 100 cm x 100 cm (1 metro quadrado) , teríamos um custo de c. de 5,2 milhões de euros, a preços de 1971 (ano médio do "consulado" de Sínla, 1968/73) seria qualquer coisa como 315 mil contos (mais ou menos o orçamento anual da província!)...

Mas havias outros materiais a contabilizar...como, por exemplo, as rachas de cibe.


3. Já não nos lembramos quantas rachas de cibe levava uma casa... Só a estrutura do telhado, com cobertura de folha de zinco, deveria levar pelo menos umas 20... Mais outro lado, para suportar o telhado ao longo do varandim a toda a volta.. 

O total de casas em construção em Nhabijões era de 350, fora os equipamentos coletivos ou sociais...  Na altura falava-se que cada racha de cibe ficava ao exército em 7$50 (sete pesos e meio)... 

Um total de 15 mil rachas de cibe,  é nossa estimativa do material transportado do Xime para Nhabijões, com um custo direto de mais 100 contos.  (Em 1970, a preços de hoje, seria qualquer coisa como 33,5 mil euros)... 

Se, entre 1969 e 1974, as Forças Armadas no CTIG ajudaram a construir 15  mil casas, no total das tabancas reordenadas e, admitindo que cada casa, com colmo ou chapa de zinco, levasse pelo menos 50 rachas de cibe, temos um total de 750 mil rachas de cibe, com um custo de 5,6 mil contos (a preços de 1971  representariam hoje cerca de 1 milhão e 700 mil euros...

Uma tal quantidade de rachas de cibe (e admitindo  que um tronco dava 4 rachas) terá implicado o abate de 187,5 mil palmeiras, dependendo da altura de cada uma (o que, num pequeno território como o da Guiné, corresponderia a um gigantesco palmeiral;  o nome científico desta palmeira é Borassus aethiopum;  tem tradicionalmente  grande importância na construção civil; pode atingir os 20-30 metros de altura, pelo que o seu espique ou tronco dará mais do que 4 rachas).

Para além das chapas de zinco e das rachas de cibe, haveria ainda que contabilizar as ripas, as portas e janelas, os pregos, as ferragens, o cimento... Tudo isso custava dinheiro. O resto, a mão de obra (civil e militar), os transportes, a segurança, outros materiais como os tijolos de adobe, etc.  tudo era de borla (mas tinha um custo, indireto e oculto). 

 O PAIGC não gostou da "brincadeira": em 13 de janeiro de 1971, as NT accionam duas potentes minas A/C à saída do reordenamento de Nhabijões, de que resultaram 1 morto e bastantes feridos graves... (Por sorte, para a população local e possivelmente com a sua conivência, não havia civis a bordo do Unimog 411 que às 11h00 ia a Bambadinca, como era habitual, buscar o almoço para os militares destacados. )

Em outubro de 1973,  e pela primeira vez na história da guerra, o grande reordenamento de Nhabijões, de maioria balanta e onde vivia gente com parentes no "mato", foi flagelado, ao mesmo tempo que o destacamento do Mato Cão. Aviso intimidatório ? Retaliação ? 

Nhabijões, no subsetor de Bambadinca, era então, no final de 1969,  um importante aglomerado habitado por gente com parentes no "mato", e que era tradicionalmente considerado, antes do reordenamento, como um conjunto de núcleos habitacionais ribeirinhos "sob duplo controlo".  

Só a CCAÇ12, deu 1 alferes, 1 furriel e 1 cabo (metropolitanos) e 1 soldado (guineense) para integrar a equipa técnica do reordenamento de Nhabijões... E destacava periodicamente militares para a sua defesa... O seu primeiro morto foi o sold cond Manuel Soares, em 13/1/1971. Nhabijões foram, por isso,  também "regados com o nosso sangue"...

De qualquer modo, Marcelo Caetano mais os seus ministros da Defesa, do Ultramar e das Finanças tramaram a política spinolista "Por Uma Guiné Melhor"...
 Ao que se sabe, o sucessor de Spínola já não terá tido a mesma abundância de dinheiro para continuar a fazer a "psico"... 

Ora, quer se goste ou não, há uma Guiné antes e depois de Spínola:

  • Quando ele chega em meados de 1968, o território tinha 60 quilómetros de estrada alcatroada;
  • Cinco anos depois, são 550 km de estrada alcatroafa;
  • No ano escolar de 1970/71, a tropa administra 127 das 298 escolas primárias do território, ou seja cerca de 43%.; o resto eram as escolas oficiais , como a de Bambadinca (30%)  e as particulares,como escolas das Missões Católicas (27%);
  • Spínola deixa o território com uma criança em cada três, em idade escolar, a frequentar a escola
Spínola chegou a ser  uma ameaça série ao PAIGC... Mas homens como António Spínola ou Sarmento Rodrigues foram exceções na história da administração colonial na Guiné...
____________

Notas do editor:


(**) Vd. CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro 1 (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014, 533 pp.)

CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro 2 (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014, 604 pp.)

CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro 3 (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015, 554 pp)

(**) Último poste da série > 28 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25312: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Inf Bettencourt Rodrigues, Governador-geral e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XIII: Cerca de 95% do total dos médicos e 75% dos professores em serviço no território eram militares...

(***) Vd. poste de 18 de etembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12057: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (9): Os reordenamentos populacionais

(****) Vd. poste de 28 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25312: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Inf Bettencourt Rodrigues, Governador-geral e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XIII: Cerca de 95% do total dos médicos e 75% dos professores em serviço no território eram militares...

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25121: Notas de leitura (1662): "Os três rostos da Igreja Católica na Guiné" (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
O levantamento efetuado por Frei Vicente respeitante à missionação católica na Guiné é uma leitura pessoal que em nada colide com a obra de referência do Padre Henrique Pinto Rema. Este missionário procedeu a uma leitura de três momentos históricos de tal missionação: a que vai da criação da Diocese de Cabo Verde até 1932, um segundo momento que se estende com o regresso dos missionários até 1977; e a partir desta data um período que ele designa por igreja particular contemporânea, igual a todas as outras, pobres e ricas, projetada por bispos de grande prestígio e exemplaridade. Intervindo na educação, saúde e apoio social, tendo um ensino de gabarito, gestão de instituições de saúde com funcionamento impecável, criando escolas de artes e ofícios, um pouco por toda a parte, justifica-se a confiança deste missionário na crescente projeção desta comunidade de fiéis que não conhece qualquer hostilidade por parte da comunidade islâmica com quem dialoga nas diferentes áreas da sua intervenção.

Um abraço do
Mário



Os três rostos da Igreja Católica na Guiné (2)

Mário Beja Santos

Na mesma revista Itinerarium n.º 227, referente ao primeiro semestre de 2022, dos franciscanos missionários, donde, aliás, já fizemos referência ao Diário do Padre Macedo que testemunhou os primeiros anos da independência da Guiné-Bissau, vem um artigo assinado por Frei João Dias Vicente intitulado “Os três rostos da Igreja Católica na Guiné”, cujo teor merece ser referenciado por alguns aspetos inovadores da leitura historiográfica e religiosa que ele faz. Recorde-se sumariamente o que se escreveu no texto anterior. Sem detrimento da visão global enunciada na obra de referência do Padre Henrique Pinto Rema, "História das Missões Católicas da Guiné", Frei Vicente divide todo o período histórico da missionação em três momentos maiores: a partir de 1533, data da criação da Diocese de Cabo Verde, que inclui os Rios de Guiné, até 1932, data do regresso aos Rios de Guiné dos franciscanos; o segundo momento compreende o período de 1932 a 1977, data da criação da Diocese de Bissau e escolha do primeiro bispo; e o terceiro momento estende-se de 1977 aos nossos dias.

Quanto ao primeiro momento, o autor detalha diferentes fases de missionação, não esquece os padres jesuítas, dois deles, Padres Baltazar Barreira e Manuel Álvares, deixaram informações escritas de grande importância. Assim chegamos ao virar do século XVIII, permanecem na região da Guiné os Franciscanos da Soledade, prestando assistência nas principais praças existentes. Entrara-se num período de decadência das missões, a presença portuguesa estreitara-se e pode dizer-se que a situação política nos Rios de Guiné, na segunda metade do século XVIII, era altamente problemática. Em 1778, as Praças da Guiné sob o domínio português eram: Bissau, Cacheu, Geba, Farim e Ziguinchor. As intrigas e o divisionismo entre autoridades civis e eclesiásticas eram constantes. E escreve dizendo que se os frades deram frequentemente escândalo na sua vida moral e religiosa e no desrespeito, as autoridades civis, por sua vez, não eram melhores.

São tempos de crise de vocações, tempos de crise na atividade missionária franciscana na Guiné. Não admira que em 1802 só houvesse 3 frades na Guiné, em 1806 eram apenas 4 (2 em Bissau e 2 em Cacheu); os últimos frades na Guiné terão existido provavelmente até 1823, como certifica o Procurador-Geral da Província da Soledade. A partir de 1824, os relatórios do mesmo Procurador-Geral já só falam das suas missões de Cabo Verde, sinal de que na Guiné já não estaria nenhum frade. A extinção das Ordens Religiosas em Portugal veio confirmar oficialmente o fim da presença franciscana da Soledade na Guiné.

Foram os sacerdotes do clero regular que aguentaram sozinhos os esforços por manter na Guiné a assistência religiosa possível nas principais praças sob domínio português. O Colégio das Missões Ultramarinas de Cernache do Bonjardim forneceu uns 19 sacerdotes entre 1855 até 1910 que trabalharam na Guiné e 3 deles eram mesmo naturais da região. Do Seminário-Liceu de Cabo Verde, desde 1866 até 1910 saíram 7 sacerdotes que trabalharam na Guiné. Em 1932 haveria em toda a Guiné apenas 3 sacerdotes do clero secular. Frei Vicente caracteriza esta primeira etapa da envangelização nos Rios de Guiné como predominantemente sacramental e sobretudo batismal. Os missionários não conseguiram ter recurso a catequistas leigos que pudessem ajudar a manter a fé dos cristãos e a garantir melhor a preparação dos futuros batizandos.

A segunda etapa (1932 até 1977) é marcada pelo regresso ou vinda de congregações religiosas já com forte preocupação social, regressaram os franciscanos portugueses, vieram as franciscanas hospitaleiras portuguesas; em 1940, passou a existir uma missão com completa autonomia da Diocese de Cabo Verde. A envangelização processou-se através das escolas. Lançou-se o ensino médio liceal com o Colégio Católico de Bissau, mas durou pouco tempo (1943-1945). Graças ao Acordo Missionário (1940) ficou aberto o caminho a missionários não portugueses e o Papa Pio XII criou a Missão sui juris presidida por um Prefeito Apostólico. Os primeiros missionários não portugueses chegaram em 1947, eram os padres do Instituto Pontifício das Missões Estrangeiras, seguiram-se outras missões italianas. Criou-se em 1969 o Seminário da Guiné (primeiro em Bafatá e depois Bissau), mas só passou a ter sucesso quando se construiu a Escola Interna do Seminário, o primeiro sacerdote que saiu deste Seminário foi o Padre José Câmnate na Bissign, será o primeiro bispo guineense nomeado pelo Papa João Paulo II. Esta segunda etapa assentou predominantemente na educação, na saúde e na promoção social, criaram-se infraestruturas que ainda hoje são referências na Guiné: leprosaria de Cumura, o Hospital-Geral de Cumura, o dispensário-maternidade de Quinhamel, os postos sanitários das missões de Catió, Mansoa, Bambadinca, Suzana, entre outros; foram criadas pequenas escolas práticas de aprendizagem de ofícios, casos das pequenas escolas de carpintaria, apareceu inclusivamente o jornal "O Arauto"; Frei Vicente chama a esta igreja a de tempos de missão que se adaptou às variadas dificuldades do período da luta de libertação, que soube ter uma posição ao mesmo tempo colaborante nas tarefas da reconstrução nacional e simultaneamente de crítica em relação à ideologia oficial do marxismo-leninismo.

O terceiro momento vai de 1977 a 2021, Frei Vicente define-o como o rosto de uma igreja particular contemporânea, porque passou a ser uma igreja igual a todas as outras igrejas do mundo. A Igreja Católica na Guiné-Bissau não é alvo de nenhuma hostilidade por parte do credo maioritário islâmico. O primeiro bispo, Dom Settimio Arturo Ferrazzetta, distinguiu-se pela sua simplicidade e bom relacionamento com toda a gente, já fisicamente prostrado, durante a guerra civil de 1998-1999, pôs-se ao caminho para dialogar com os dois contendores, acompanhado por outras entidades religiosas. Com ele, a Igreja Católica deu um salto. Depois de Dom Settimio, virão mais 3 bispos, Dom José Câmnate na Bissign (que resignou em 2020), o brasileiro Dom Pedro Carlos Zilli, bispo de Bafatá e Dom José Lampra Cà. Esta igreja particular está orientada tendencialmente por pastores locais. O lema de Dom José Câmnate na Bissign era a bem-aventurança evangélica: bem-aventurados os construtores da paz. Dom Pedro Carlos Zilli granjeou com enorme prestígio na sua Diocese de Bafatá. Em 2001, em Bafatá, as paróquias existentes eram 8, os sacerdotes diocesanos eram 6, as irmãs religiosas 24, os seminaristas maiores 3; mas em 2017 os sacerdotes já eram 27, os seminaristas maiores 13, os leigos missionários 16 e as religiosas 25. O seu funeral em Bafatá foi impressionante, tempos depois era comum verem-se pessoas com camisolas com o lema de Dom Pedro Zilli: o amor jamais passará.

E o trabalho de Frei Vicente culmina com a apresentação do que eram em 2021 a organização religiosa e leiga da Guiné-Bissau.

Fachada da capelinha de Nossa Senhora da Natividade em Cacheu, o mais antigo templo católico da Guiné
Missa na Guiné-Bissau, imagem do Arquivo Missionárias da Consolata, com a devida vénia
Fiéis católicos guineenses estiveram reunidos, de 8 a 9 de novembro corrente, na peregrinação Mariana 2017, na cidade de Cacheu. A peregrinação deste ano decorreu sob o lema “Maria ka bu medi pabia bu otcha graça diante di Deus (Maria não tenhais medo porque encontrastes a Graça do Pai, tradução livre)”
____________

Notas do editor:

Post anterior de 22 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25100: Notas de leitura (1660): "Os três rostos da Igreja Católica na Guiné" (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25112: Notas de leitura (1661): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (9) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25100: Notas de leitura (1660): "Os três rostos da Igreja Católica na Guiné" (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
Frei Vicente, missionário franciscano, teve longa permanência na Guiné-Bissau (entre 1975 e 2012), escreveu obra, porventura memorial, no artigo que publicou na revista Itinerarium lança um longo olhar sobre os grandes momentos da missionação. Regista-se hoje o primeiro e mais longo desses períodos, que se estende até 1932, são séculos com diferentes levas de congregações que viveram as maiores atribulações quer com os portugueses quer com a agressividade do meio. Não tinham condições para irem até ao interior e com a crescente islamização da Guiné encontraram uma barreira que lhes parecia intransponível, as portas abertas eram facultadas fundamentalmente juntos das etnias animistas. Veremos como Frei Vicente reconhece que o período posterior à independência foi compensado pela atividade missionária franciscana nos domínios da saúde e educação, distinguiram-se figuras notáveis, como Dom Settimio Ferrazzetta, que num estado de debilidade total, e com o pleno reconhecimento dos credos religiosos mais influentes da Guiné, foi porta-voz do apelo à paz entre os contendores do chamado conflito militar de 1998-1999.

Um abraço do
Mário



Os três rostos da Igreja Católica na Guiné (1)

Mário Beja Santos

Na mesma revista Itinerarium n.º 227, referente ao primeiro semestre de 2022, dos franciscanos missionários, donde, aliás, já fizemos referência ao diário do Padre Macedo que testemunhou os primeiros anos da independência da Guiné-Bissau, vem um artigo assinado por Frei João Dias Vicente intitulado “Os três rostos da Igreja Católica na Guiné”, cujo teor merece ser referenciado por alguns aspetos inovadores da leitura historiográfica que ele faz.

Ele diz que em março de 2021 acabou de redigir algumas recordações avulsas sobre a sua experiência de missionário na Guiné-Bissau (1975-2012), a que deu o título de Guiné-Bissau, a minha segunda pátria. Procura agora neste texto tentar uma descrição das dimensões mais salientes da Igreja Católica neste país africano, desde as origens até aos nossos dias. Não deixa de exaltar o documento de referência obrigatória, a História das Missões Católicas na Guiné, escrito pelo Padre Henrique Pinto Rema, aqui se encontra uma visão global dos factos históricos mais salientes destes últimos cinco séculos.

No percurso histórico da missionação, Frei Vicente encontra três momentos maiores: a partir de 1533, data da criação da Diocese de Cabo Verde, que incluía a terra firme da Guiné, ou os Rios da Guiné, até 1932, data do regresso dos franciscanos à Guiné; o segundo momento ocorreu entre 1932 a 1977, data da criação da Diocese de Bissau e escolha do primeiro bispo; a terceira, de 1977 aos nossos dias.

Estamos, portanto, na primeira fase desse percurso, ocorre relevar a existência de uma desproporção enorme entre o campo da atividade missionária e o número de agentes missionários disponíveis para nela trabalhar. Fala-se concretamente da chamada Senegâmbia que durante os primeiros 200 anos ultrapassava em muito a atual Guiné-Bissau, incluía a Gâmbia, parte do Senegal e estendia-se para sul até à Serra Leoa. Não restam vestígios dos tempos primitivos. Há referências documentais à capelinha da Nossa Senhora da Natividade em Cacheu.

Os sacerdotes do clero secular foram os primeiros a ser enviados para os Rios da Guiné. Havia a visita anual de um sacerdote para administrar os sacramentos aos fiéis – eram os Visitadores. Frei Vicente recorda a especificidade da presença portuguesa em pequenos entrepostos, os missionários, por razões de saúde e segurança, tinham que com eles conviver, o que, regra geral, era fonte da maior animosidade, os missionários não se coibiam de criticar as condições degradantes do tráfico negreiro.

Depois dos Visitadores seguiu-se um período de congregações religiosas serem chamadas para a missionação em toda esta região continental. Primeiro, chegaram os padres carmelitas, seguiram-se os jesuítas, introduziram um estilo de missionação itinerante que os levou de Bissau até à Serra Leoa, dois deles, os Padres Baltazar Barreira e Manuel Álvares, deixaram informações escritas de grande importância. A terceira vaga de congregações foi a dos franciscanos capuchinhos franceses, a Santa Sé tinha decidido também enviar missionários para a costa da Guiné, decisão que trouxe muito mal-estar entre Lisboa e a Curia Romana. A quarta congregação foi a dos franciscanos capuchinhos espanhóis que enviou três levas de missionários, entre 1646 e 1687. A quinta congregação foi a dos franciscanos portugueses da província da Piedade, mantiveram-se na região entre 1657 e 1673, altura em que foram substituídos pelos franciscanos portugueses. A sexta congregação teve por nome franciscanos portugueses da província da Soledade, será a mais duradoura nos Rios da Guiné, por mais de 150 anos.

Um grande e positivo impulso na evangelização foi dado pelo Bispo D. Frei Vitoriano Portuense, na última década do século XVII, fez duas viagens à Guiné. Acontecimento nunca esquecido foi a visita que o Bispo fez ao rei Becampolo Có, em fevereiro de 1696, o rei aceitou ser batizado e mudou o nome para D. Pedro, uma homenagem ao rei D. Pedro II. No virar do século XVIII, os franciscanos da Soledade foram aguentando quanto puderam as suas posições na assistência às principais praças da atual Guiné-Bissau e na assistência possível às populações dos Rios da Guiné até à Serra Leoa. Segue-se um período de decadência das Missões, uma das principais razões para o fenómeno deveu-se essencialmente às ideias filosóficas do iluminismo, do positivismo e do liberalismo.

A Senegâmbia portuguesa estreitava-se. Em 1778, as praças da Guiné sob o domínio português eram: Bissau, Geba, Farim e Ziguinchor. Já deixara de fazer parte deste núcleo da presença portuguesa a Gâmbia e a Serra Leoa.

Em 1802, só havia três frades na Guiné, os últimos frades na Guiné terão resistido provavelmente até 1823, como certifica o Procurador-geral da província da Soledade. Após a extinção das Ordens Religiosas, com o triunfo do liberalismo, foram os sacerdotes do clero secular que, com os bispos de Cabo Verde, aguentaram sozinhos os esforços por manter na Guiné a assistência religiosa possível nas principais praças sob domínio português. Isto para sublinhar que os quase 100 anos que se estendem desde 1834 até 1932 serão um tempo de crescente decadência.

(continua)

Missa na Guiné-Bissau, imagem do Arquivo Missionárias da Consolata, com a devida vénia
Fiéis católicos guineenses estiveram reunidos, de 8 a 9 de novembro corrente, na peregrinação Mariana 2017, na cidade de Cacheu. A peregrinação deste ano decorreu sob o lema “Maria ka bu medi pabia bu otcha graça diante di Deus (Maria não tenhais medo porque encontrastes a Graça do Pai, tradução livre)”
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25088: Notas de leitura (1659): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (8) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24580: Historiografia da presença portuguesa em África (382): Um importante ensaio sobre a missionação franciscana na Guiné e Rios da Guiné, século XVIII na "Revista Itinerarium", ano LXVIII, n.º 228, julho-dezembro de 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Esta revista Itinerarium está a revelar-se uma importante fonte de consulta sobre as missões católicas, são olhares que complementam a obra clássica do Padre Henrique Pinto Rema. Este investigador, Padre Manuel Pereira Gonçalves dá-nos um relato sobre a missionação dos franciscanos observantes em pleno século XVII, a partir de 1656. Convém recordar que D. João IV se viu a braços com a hostilidade espanhola na região, que também se manifestava na missionação, daí os esforços para robustecer a capitania de Cacheu e o apoio que deu à obra missionária, esta centrava.se na diocese de Cabo Verde e o autor aproveita para fazer uma síntese histórica que aqui se plasma por se lhe conferir bastante rigor. Ele irá falar sobre a Província da Soledade na missão de Cabo Verde e da Guiné, mas antes dá-nos uma apreciável nota do trabalho desenvolvido pela Província de Nossa Senhora da Piedade. Daremos seguimento ao trabalho do Padre Manuel Gonçalves fazendo depois uma recensão de um artigo publicado na mesma revista intitulado "Recordações da guerra civil de Bissau (1998/1999)" pelo então vigário geral da diocese, Padre João Dias Vicente.

Um abraço do
Mário



Um importante ensaio sobre a missionação franciscana na Guiné e Rios da Guiné, século XVIII (1)

Mário Beja Santos

Confesso que desconhecia por inteiro os trabalhos que o Padre Manuel Pereira Gonçalves tem dedicado à Guiné e este seu trabalho publicado na "Revista Itinerarium" (revista semestral de cultura publicada pelos Franciscanos de Portugal), ano LXVIII, n.º 228, julho-dezembro de 2022, como o leitor comprovará, introduz elementos novos face ao que já sabemos, sobretudo depois das incontornáveis investigações do Padre Henrique Pinto Rema.

O seu trabalho intitula-se "A Missionação dos Franciscanos Observantes (1656-1700), na Guiné ou nos Rios da Guiné". Começa por concordar com a opinião do Padre Henrique Pinto Rema quanto à área da diocese de Cabo Verde, limites traçados pela bula de ereção da diocese com data de 31 de janeiro de 1533: “A nossa diocese abrange o arquipélago de Cabo Verde e a terra firme da costa da Guiné, desde o rio Gâmbia, perto do promontório ou lugar do Cabo das Palmas até ao rio de Santo André. Segundo a Bula Pro Excellenti, os extremos Norte e Sul da nova Diocese distam 350 léguas, ou seja, cerca de 2100 quilómetros. O território para cima do rio Senegal pertencia à arquidiocese do Funchal.” Observa que a presença portuguesa na Guiné foi praticamente nula nos séculos XVIII e XIX e que para tal situação contribuiu a presença de países melhor apetrechados, económica e militarmente, e que punham permanentemente em causa a existência da nossa soberania. Os portugueses também se viram condicionados pela guerra de corso. No século XVII, os Rios da Guiné, apesar do sentido indefinido segundo os textos legais, faziam parte da área da jurisdição da capitania de Cabo Verde, cujo governador tinha poder sobre o Capitão-Mor de Cacheu.

Indo mais atrás, o autor fala do período entre 1432 e 1438 quando os Rios da Guiné eram sinónimo de Etiópia Menor. Cadamosto foi o primeiro a demandar esta baixa região da Etiópia e a contatar a população negra. Iniciou a sua primeira viagem em 22 de março de 1453, a segunda decorreu em 1456, terá sido nesta que descobriu quatro ilhas cabo-verdianas: Boavista, Santiago, Maio e Sal. Valentim Fernandes refere duas Etiópias, a primeira corre e estende-se pela costa do rio Senegal até ao Cabo da Boa Esperança. E do dito rio até este cabo são 1340 léguas. O outro nome da baixa Etiópia é Guiné. No seu roteiro, Valentim Fernandes fala das duas Etiópias, dizendo que a segunda, a Etópia Superior começa no rio Indo, além do grande reino da Pérsia, do qual a Índia este nome tomou. Mais tarde, Jerónimo Munzer, viajante e cientista alemão, manifestou interesse pelas navegações portuguesas e enviou por Martinho da Boémia uma carta dirigida a D. João II aconselhando-o a descobrir o caminho marítimo para a Índia pelo Ocidente. No ano seguinte, em 1494, ele próprio veio a Portugal, falou com D. João II, das conversas havidas e das suas impressões de viagens deixou o livro Itinerarium. O Padre Manuel Pereira Gonçalves refere também as viagens e trabalho do Padre Manuel Álvares, Jesuíta, que escreveu uma obra Etiópia Menor, o Padre Baltazar Barreira, que missionou na Guiné e que também deixou um precioso relato. Antes destes autores, também André Donelha deixou uma descrição da região, sabemos que esteve pelo menos três vezes na Guiné ao serviço da armada de António Velho Tinoco, provedor da fazenda real das ilhas de Cabo Verde.

Mais precisa que a descrição de André Donelha é a obra "Duas Descrições Seiscentistas da Guiné deixada por Francisco de Lemos Coelho, no século XVII. Como realça o autor, trata-se de uma obra indispensável para um levantamento geográfico e etnográfico desta Etiópia Menor. A documentação histórica subsequente refere de forma indiferenciada os Rios da Guiné ou os Rios da Guiné e Cabo Verde. Lembra também o autor que as ilhas dos Bijagós aparecessem no trabalho do Padre Manuel Álvares. Outros relatos vão conferir importância ao Rio Nuno, não muito longe do Rio Tombali. A importância do Rio Nuno para os portugueses reside na história do seu nome e ainda na abundância de marfim e tintas. Navegando em direção a Sul chega-se ao Rio Verga, próximo está o cabo que tem o mesmo nome. Por fim, temos a Serra Leoa, há testemunhos desse itinerário através dos escritos do Padre Fernão Guerreiro e do Padre Manuel Álvares. Para o autor é absolutamente certo que a descoberta da Serra Leoa se deve ao navegador Pedro de Sintra que foi um pouco mais além do atual território, chegando mesmo à Libéria. O navegador Luís Cadamosto faz referência em pormenor a esta viagem. Em 1462, Pedro de Sintra iniciou uma nova viagem com apenas duas caravelas e desembarcou numa das ilhas dos Bijagós. E prosseguiu viagem, passou pela montanha da Serra Leoa (está-se em crer que este nome deriva do grande rugido que ali se faz sentir por causa das trovoadas). E chegou ao Cabo das Palmas e Rio de Santo André, limite da diocese de Cabo Verde e Guiné, recorde-se que este cabo foi descoberto no reinado de D. Afonso V, em 1469, a mando de Fernão Gomes.

E o autor começa a sua exposição sobre a Província de Nossa Senhora da Piedade, o apoio dado pelo rei D. João IV à Missão de Cabo Verde. É neste apostolado em Cabo Verde que dois franciscanos vão à Guiné: Frei Paulo do Lordelo e Frei Sebastião de S. Vicente, eram portadores de um projeto muito específico, lançar os alicerces do hospício de Cacheu. Na povoação de Cacheu, no século XVI, viviam 800 cristãos ou assim considerados. Os dois religiosos estiveram alguns meses no ensino da região cristã e depois seguiram para o reino dos Banhuns. Foram muito bem recebidos pelo rei da terra, ali ergueram uma pequena capela. E depois estes dois franciscanos fizeram uma longa viagem, tinham como meta a Serra Leoa, passaram por Bissau e o Rio Nuno. Esta missão franciscana entusiasmou outros religiosos. Surgiu uma segunda leva de missionários, em 1662, 12 religiosos capuchos da Província da Piedade marcam presença. E em 1663, Frei André de Faro e Frei Salvador de Taveiro chegam a Cacheu e daqui partem para o território dos Banhuns. Mas o autor não deixa de nos advertir que por volta de 1670 a evangelização do continente não era nada brilhante. E depois de nos ter falado sobre esta Província de Nossa Senhora da Piedade vai referenciar a Província da Soledade na missão de Cabo Verde e da Guiné.

O que será importante reter? A Guiné e a missão de Cabo Verde nos finais do século XVII e durante o século XVIII não atraíram vocações. Só um iluminado era capaz de partir para locais tão difíceis sem saber o que de bom iria encontrar.

Mapa da Costa da Guiné (adaptado de Nuno da Silva Gonçalves, Os Jesuítas e a missão de Cabo Verde (1604-1642), Lisboa, ed. Brotéria, 1996.)

Peregrinação Mariana em Geba, 2013
(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24557: Historiografia da presença portuguesa em África (381): 1.ª Exposição Colonial Portuguesa, Porto, 1934, os memoráveis clichés fotográficos de Domingos Alvão (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24572: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (7): Sozinho, como um cão

 

Foto: © Luís Graça (2011)  


 Contos com mural ao fundo (7)  > Sozinho, como um cão

por Luís Graça (*)

Estive no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje  os seus 80 anos,  se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.

Era um dos meus heróis da adolescência, o Doc. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”.

A origem dessa crise remontaria, pelo menos, a setembro de 1967,  altura em que ele regressara da Guiné, onde havia conhecido a “guerra, pura e dura”.

Era um dos meus amigos, da época  da minha adolescência. Dele  guardarei para sempre uma grande saudade, não obstante as nossas vidas, cruzadas como tantas outras, se terem separado no final da década de 1960.

Nessa altura eu fui para a tropa e ele estava a retomar, a custo, em Coimbra, os seus estudos de medicina que a vida militar viera interromper abruptamente.

A imagem mais dolorosa que guardo dele, é a da cama de um  hospital, em Lisboa, num quarto, minúsculo, ao fundo de um corredor sombrio. Sem janelas. Sozinho como um cão, anichado em posição fetal, a escassas… 48 horas de exalar o seu último suspiro, como virei a saber mais tarde, pela… telefonista de serviço 

Reconheceu-me só pela voz, não se moveu nem um centímetro, estava lúcido, mas já em grande sofrimento. Só lhe sussurrei, quase em cima do ouvido,  um tímido “Olá, Doc”. E acrescentei, estupidamemente: "Coragem!".

As suas únicas (e últimas) palavras, roucas, cavernosas,  inumanas, soaram-me a despedida, irremediável, sem retorno. Senti-as como um punhal cravado no meu peito. Guardei-as para o resto da minha vida: 

 Luisinho (tratava-me sempre por Luisinho), vai-te embora, vai-te embora!  implorou. (Nunca saberei se era uma súplica, uma ordem ou uma expressão de raiva e impotência.)

Trinta anos depois, não me envergonho de o dizer, essas palavras, as últimas, as únicas, que ele proferiu, no seu leito de morte, na minha presença, ainda hoje me martelam a cabeça. 

Senti um enorme  sufoco por ver a morte triunfar, impante, sobre a vida, e ao mesmo tempo vergonha  por ter sido incapaz de lhe tocar!... Como se ele já fosse cadáver!... Por pudor ou medo atávico da morte, não consegui sequer tocar-lhe. Muito menos dizer-lhe uma palavra de consolo, de conforto, de carinho. Só um tímido,  inócuo e cobarde... "Coragem!".  

Mais tarde, talvez para tranquilizar a minha consciência e não sentir o peso da minha fraqueza e sentimento de culpa, iria interrogar-me sobre o significado que ainda poderia ter o meu gesto de compaixão, no momento mais pungente e solitário da vida de um homem… Que é quando um gajo agoniza, lúcido mas a sofrer, longe do mundo, já muito longe daqueles que nos amaram e que nós amámos!…

Em boa verdade, ele não tinha ninguém à sua cabeceira, morreria dois dias depois, “sozinho como um cão” (uma expressão que ele próprio usava, nos seus aerogramas, para falar da sua condição de combatente na guerra da Guiné, em 1965/67).  

Morreria sozinho como um cão, aos 48 anos, longe da família, de que, aliás, só restava a irmã, e os sobrinhos que mal o conheciam. Não tinha filhos, pelo menos que se soubesse.

Tive um ataque de choro, convulsivo, enquanto saí dali, confuso, quase aos trambolhões, daquele corredor estreito e sombrio do hospital, sufocado, em busca do ar fresco do pequeno bosque que circundava o pavilhão, conhecido como o “terminal da morte”.

Recuando há muitos anos atrás, lembro-me do seu regresso da Guiné. Eu era o único amigo de que ele se lembrava. Ou melhor, eu era talvez o único amigo que ele ainda não queria esquecer.

Tinha regressado da guerra em 1967, no final do  verão que iria marcar, ironicamente, o fim, político, do homem, o Salazar,  que o mandara defender a Pátria, a milhares de quilómetros de casa. 

Tinha regressado da Guiné e não avisara ninguém da família. Nem sequer a namorada, a Xana. Muito menos os amigos, poucos, que vinham do tempo do colégio e do grupo de teatro amador, como era o meu caso. E eu, seguramente, era o mais novo.

De facto, nem sequer se dignara escrever-me, a mim, que era o seu correspondente e confidente (trocávamos correio  enquanto ele esteve na Guiné, entre 1965 e 1967) e, no grupo de teatro, secretário, moço de recados, ponto, datilógrafo, figurante, aprendiz de ator, colador de cartazes… Além de sermos amigos e vizinhos de bairro, se bem que eu fosse mais novo do que eu uns bons seis anos.

Sentia-me lisonjeado com a sua amizade, mas também sabia que ele era um pessoa “difícil”, frequentemente “imprevisível e desconcertante”, "irascível e às vezes duro e até cruel, se não mesmo desumano”, como escreveu um dos seus "amigos críticos", no jornal da cidade, na notícia necrológica. 

Sim, o Doc era bipolar (como a maioria dos seres humanos).  Era uma pessoa de extremos, daí o facto de nunca  ter tido muitos amigos. Mesmo assim, houve gente decente da nossa terra, que compareceu ao seu funeral, que seria organizado pela sua irmã, professora universitária. 

Não tinha, por isso, ninguém à sua espera, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, nessa manhã de setembro de 1967. De resto, vinha sozinho, como me explicará mais tarde. Eu ainda não percebia nada de tropa, mas fiquei a saber, pelos aerogramas que trocávamos, que ele era de “rendição individual”: isto é, "fui sozinho e regressarei sozinho, no caso  de não lerpar"... "Lerpar"?... Morrer, explicar-me-á ele, no aerograma seguinte...  

E, como tal, não havia regressado no navio com os seus camaradas da última companhia onde estivera, no sul da Guiné, os quais, sendo mais novos, ainda ficaram a cumprir calendário. Ou, como ele dizia, com sarcasmo, “a cumprir o resto da pena de desterro”.  

Tanto quanto me apercebi, o Doc tinha receio que a família e alguns amigos lhe quisessem fazer uma surpresa, indo esperá-lo no cais de desembarque. Seria a última coisa que ele iria aceitar, “a última cena, grotesca, da tragicomédia da tropa e da guerra”. 

Curioso, sendo um “homem do teatro”, tinha um enorme pudor em manifestar em público as suas emoções e sentimentos. Aliás, ele não era propriamente ator mas encenador. Em boa verdade, eu nunca o vira representar, nem no palco do teatro nem no palco da vida. 

Ficaria trancado em casa nos primeiros dias, sem querer ver ninguém. Eu e a Xana teremos sido as primeiras pessoas, fora do círculo familiar, que ele condescendeu em receber depois do regresso.  

Para a namorada, seria aliás o fim de um relacionamento que já antes tinha tudo para não dar certo.  Julgo até que ela foi a primeira vítima da sua rutura com o passado.  

Segundo me contou depois a irmã do Doc (a dra. Mena, que eu tratava com deferência por ser bastanto mais velha do que eu e já formada), terão tido uma discussão violenta, acabando tudo entre eles nessa tarde. Para grande desgosto da mãe, que via na Xana, a alma gémea do seu filho. Os inimigos do Doc respiraram fundo, com a notícia do rompimento do impossível namoro entre "a Bela e o Monstro" (sic). (A Xana era um rapariga cobiçada pela sua beleza, talvez a rapariga mais bonita da cidade.) 

O Doc desabafou co0migp, explicando-me que estava a fazer um “cura de sono”… Na altura, em 1967, não havia psiquiatras e psicólogos como há hoje, e eu, na ingenuidade dos meus dezoito anos, nem sequer pus a hipótese de ele estar a passar  por uma “crise de depressão”.  

Na época, não se falava de "saúde mental" (falava-se de loucura) e muito menos ainda de “stress pós-traumático de guerra”, nem eu imaginava sequer o que fosse essa estranha entidade clínica…

− Só as mulheres é que têm depressão pós-parto – dizia o pai dele, que nestas coisas tinha sempre um certo ar de sobranceria e fazia questão de emitir a opinião arrogante e definitiva do "catedrático da universidade da vida".

As relações pai-filho também não eram as melhores. Aliás, nunca foram lá muito boas. Contrariamente à mãe, o pai só lhe terá dito, à chegada, bruto, curto e seco:

 Olá, filho, sê bem vindo… Finalmente, em casa! 

Eram os dois parecidos, pai e filho, em  muita coisa, mas chocavam-se quando, por exemplo, discutiam a “guerra do ultramar” (como dizia o pai) ou a “guerra colonial” (como preferia chamar-lhe o filho). Uma questão terminológica que lhe punha os cabelos em pé, ao ponto de um dia  ter partido a louça posta para o jantar.

Mesmo se tivesse “cunhas” (o que não era o caso), o pai nunca  se humilharia perante ninguém para interceder pelo filho, livrando-o do ultramar ou, pelo menos, da Guiné… E depois a tropa e a guerra iriam "fazer dele um homem", como fora o seu caso, que  combatera os alemães, os "boches", em Moçambique na I Grande Guerra.

− Lusinho (tratar-me-ia sempre por Luisinho, até ao fim da vida), não me leves a mal, mas  não ouças o tonto do meu “Velho”…

Quando ele desembarcou, a única coisa que ele queria, era chegar a casa, não ver ninguém, não estar com ninguém, fechar as cortinas, enfiar-se na cama… E acrescentou algo que me chocou e perturbou: 

− Sabes que mais?… Tenho asco a tudo o que é humano! 

Não alcancei o que ele queria dizer com aquela estranha expressão. Mas ele insistia que precisava de dormir um “sono reparador”:

− … Dormir um dia inteiro, uma semana, um mês… Porventura, um ano ou até o resto da vida… Queria poder hibernar o resto da vida. Esquecer. Esquecer a tropa, a guerra, a Guiné…

Ainda ensaiei uma tímida tentativa de diálogo mas ele correu comigo, pondo-me fora do quarto… Aí assustei-me, fiquei chocado com a sua brutalidade mas sobretudo ao ver e rever o seu ar acabrunhado, as olheiras fundas, a cor da pele amarelada,  a barba de vários dias, por fazer…

Afinal, era um “ataque de paludismo”, tranquilizou-me a pobre mãe que, à força de muitas súplicas e lágrimas, lá o convencera a ser visto pelo médico, amigo da família, e que, sendo de saúde pública, sempre devia perceber alguma coisa de doenças tropicais…

Nas costas da mãe e do médico, nesse fim de semana, despejou uma garrafa de uísque.

Na altura, confesso, eu até pensei que ele poderia estar com ideias parassuicidárias, como se diz hoje. Fiquei assustado com o estado de saúde, física e mental, do meu amigo. 

E ainda estava fresca, na memória de toda a gente da terra, a morte por enforcamento do pai de um antigo colega meu de escola. Estava eu de piquete na redação do jornal, fazia os "faits divers", os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos,  e ainda vi, enquanto se aguardava a chegada da autoridade de saúde, o corpo a baloiçar numa barrote da caldeira onde  trabalhava. Era o adegueiro.

Reconstituindo o que se passara nessa manhã de neblina, em que desembarcara, no Tejo, de um velho navio, misto, de mercadorias e passageiros, da carreira colonial, o Doc contou-me que durante a viagem e à chegada tinha tido “pensamentos confusos e impulsos contraditórios”.

Chamara um táxi e estendera ao condutor um bocado de papel  com a morada de casa. Pediu para o acordar quando chegasse ao destino. Nem sequer fez questão de perguntar em quanto ficaria o serviço de táxi, sendo para fora de Lisboa. Tinha os bolsos cheios de notas, o “patacão sujo da guerra” (sic), em Bissau trocara um maço de “pesos” por escudos metropolitanos.

Ao fim de três horas e tal de viagem (ainda não havia autiestradas nesse tempo), estava na cama, na casa dos seus pais, na região Centro, na sua cama de solteiro, no seu quarto, com as estantes dos seus livros e discos de vinil, os cartazes e os póstres, estava tudo como ele tinha deixado há dois anos atrás. Arrumado. impecável, sem um grão de pó, graças ao desvelo da sua mãezinha que o adorava.

Justamente ia fazer dois anos que não se viam, ele e os pais e a irmã. Ele não viera de férias, por “razões disciplinares”: tinha apanhado uma “porrada” (sic) e, em consequência do castigo, tinha sido transferido para outra companhia, como mandava o RDM, o regulamento de disciplina militar (segundo depois me explicou).

Senti que esse episódio o marcara muito, mas nunca me deu grandes pormenores. E eu respeitei a sua revolta e sobretudo o seu silêncio. Era evidente que o assunto o incomodava, não gostando de falar dele.  

Em aerograma que mandara aos pais, terá arranjado uma desculpa esfarrapada para justificar a impossibilidade de comparecer à festa, comemorativa  dos  30 anos de casados, marcada para o verão de 1966. (E se a mãe tanto insistira com ele para marcar as férias para o mês de julho de 1966!). 

A releitura dos seus aerogramas não me permitiu esclarecer cabalmente esta história que lhe sujou a “caderneta militar” (documento, aliás,  a que eu nunca pus a vista em cima,  se é que ele não o destruiu em vida).

Há dois episódios que poderão estar na origem  da tal “porrada” ou castigo… Vejamos cada um, sem  entrar em grandes pormenores. 

primeiro  tem  a ver com uma exaltada discussão  com a Polícia Militar, em Bissau, quando ele tirou uns dias para ir ao estomatologista. Traduziu-se numa participação contra ele, tudo por causa de um cena de pugilato com outro militar (de que desconheço a patente, mas o mais provável era ser um 1º cabo).

O meu amigo Doc, que estava numa esplanada, perto da conhecida fortaleza da Amura, quis fazer justiça  pelas suas próprias mãos, contra  um grupo de “velhinhos”, ruidosamente festejando o fim de comissão e a véspera de embarque. Deram-lhes para se meter com os “djubis”, os miúdos que vendiam “mancarra"  (amendoim), nas ruas da Bissau velha. frequentada pela tropa… Aliás, miúdos e miúdas. 

Fizeram-lhes uma série de tropelias, o que começava a incomodar quem estava na esplanada, seguramente todos militares, uns fardados, outros à civil. O Doc interpretou isso como um ato de violência gratuita, se não mesmo racista, para mais sendo as vítimas crianças, indefesas, que tentavam ganhar a vida… Porém, de nada lhe valeu, a ele,  puxar dos galões. O grupo estava alcoolizado e ninguém mediu as consequências dos seus atos. Às tantas generalizou-se a pancadaria, até que chegou a Polícia Militar e restabeleceu a ordem. 

Abreviando a história, houve várias detenções. O Doc foi levado para o quartel da PM, que era ali mesmo ao lado, na Amura. Ficou lá cerca de duas ou très horas. Mas houve testemunhas que abonaram a seu favor. Nomeadamente, outros alferes que estavam sentados na esplanada, e que, por cobardia ou cautela,  não se quiseram meter ao barulho. "Afinal, um militar fardado, para mais oficial,  está ou não está 24 horas por dia de serviço?", interrogava-se o Doc, a limpar o sangue do sobrolho e ainda a espumar de raiva contra o grupo de arruaceiros.

O segundo episódio prende-se com uma situação algo semelhante, em que vem ao de cima o lado “justiceiro” e "solidário" do Doc, mas desta vez envolvendo um oficial superior (julgo que seria um major) que terá tratado mal (com insultos e ameaças de porrrada) alguns militares de um pelotão de caçadores nativos, adido à  companhia de comando e serviços do batalhão a que pertencia o Doc. 

Resumo o essencial da versão do Doc, num dos  aerogramas que me escreveu: os militares, todos guineenses, estavam a abrir valas, à volta do perímetro do aquartelamento… Calaceiros, mandriões  e outros epítetos ainda mais injuriosos terão acompanhado as ameaças do  major (2º comandante, ao que percebi), impaciente com a fraca produtividade dos "nharros", dos "barrotes queimados" e outros insultos de semelhante teor (que o Doc interpretou como sendo racistas)...

À hora do bridge, e depois dos uísques do costume, a seguir ao jantar na messe de oficiais, o Doc, que assistira à cena da tarde, “impotente mas indignado”, caiu na asneira de comentar, em tom subtil mas jocoso, em voz alta, a versão do major sobre o "incidente", ao mesmo tempo que incriminava o alferes, comandante do pelotão em causa, por deixar os seus homens ao deus-dará... Este, cobardolas, estava enfiado na cadeira com o rabo entre as pernas...

O Doc terá citado um provérbio popular, muito usado na sua região: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão"... Caiu o  Carmo e a Trindade, na messe de oficiais… O major ficou lívido, "à beira de um ataque de nervos", era de resto um homem "histérico e irascível". O comandante veio de imediato em defesa dele e dahontra do convento, dando ordens ao alferes, ao Doc,  para se recolher de imediato ao seus aposentos.

O médico do batalhão, que era conhecido do Doc, do tempo de Coimbra e da crise estudantil de 1962, terá interferido a seu favor, junto do tenente-coronel.  Em vão, ao que parece. Não sei o desfecho da história. A verdade é que, passado pouco tempo, em maio de 1966, o Doc é transferido de unidade…

O castigo disciplinar, desproporcionado,  teve consequências graves na sua vida militar na Guiné: perdeu, de imediato, o direito ao gozo da licença de férias, e passou, de uma região  relativamente calma, o Leste, para outra, o Sul,  onde a atividade operacional era mais intensa…  

Tal como chegou, sozinho, assim partiu: nenhum dos seus camaradas, alferes milicianos, se dignou ir ao bar de sargentos beber um copo de despedida com ele. Teve apenas, à mesa, dois ou três furriéis que o estimavam... E julgo que o médico.

E, pior ainda, ele que tinha uma especialidade relativamente burocrática (era oficial de operações e informações), passou a andar no mato, de camuflado e de G3 em punho, como comandante de um grupo de combate numa companhia de caçadores…

Nunca soube ao certo por onde ele andou o resto da comissão… Porque nos aerogramas só vinha o SPM, o código do Serviço Postal Militar. E tinha sempre o cuidado de nunca se identificar. Assinava, na correspondência para mim,  como  “o teu amigo Doc”…

Num dos últimos aerogramas que me escreveu, já perto do final da comissão, confidenciara-me:

“Tenho a mania que vou endireitar o mundo. A liberdade de expressão na tropa paga-se caro, com língua de palmo. Nestes quase quinze  meses cá em baixo, na região a que chamam de Tomba...li, já conheci os múltiplos tormentos do inferno desta guerra: a sede, a fome, a insolação, os ataques de abelhas, a exaustão física e emocional, os tufóes e outras intempéries tropicais, a merda que te cobre o corpo, a solidão, a alienação, a desumanidade… Para não te falar do medo das minas e armadilhas, e das emboscadas, mais do que dos ataques e flagelações aos nossos quartéis, onde, apesar de tudo, tens um buraco para enfiar os cornos”…


A mãe não conteve o espanto e as lágrimas quando ele, o Doc, de rompante, espavorido, lhe entrou pela casa dentro, à hora do chá, um hábito colonial que o casal mantinha desde Moçambique… Com duas malas na mão, uma com a roupa e os demais objetos pessoais, e outra com o resto dos seus livros, algumas garrafas de uísque, mais algumas peças de arte africana.

Eu só soube da sua chegada da Guiné, passados uns dias. A mãe, quando ia ao velho mercado local, a praça do peixe, frutas e legumes, viu-me de relance, na redação do jornal, parou, espreitou, entrou e disse-me:

− Luisinho (também me tratava por Luisinho, como o filho), o teu amigo Doc chegou!... Está vivo e inteiro, graças a Deus, Mas não está nada bem da cabeça, o meu pobre filho!... Está há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, diz que não quer ver ninguém… Passa por lá, no fim de semana, pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...

A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, já reformada.  Tinha sido minha professora da 4.ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII, ao tempo do senhor Dom João V.

Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico... Era mais velho do que ela uns bons quinze  anos, e fora aposentado compulsivamente da função pública na sequência, dizia-se,  do apoio à candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República em 1949.

Eu conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo… Aliás, confesso que tinha medo dele, ou melhor, não gostava dele. Respeitava-o apenas por ser o pai do meu amigo e o marido da minha querida professora. 

Na realidade, ele tinha sido  marginalizado,  legalmente pelo poder político central e socialmente  pela elite local. Passando a ser declaradamente um “oposicionista, um indivíduo contra a situação” (sic), deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais de que era sócio ou membro  (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.). Em boa verdade, foi a sua "morte social". Amargurado, foi obrigado a deixar as suas funções de encenador das récitas e cegadas que na época carnavalesca animavam o palco do teatro local bem como as ruas da cidade.

Raramente saía à rua, a não ser em algumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Ou para ir a Lisboa, consultar vários arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, sobre a história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.

O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde,  como professor. E alí viria a conhecer a mulher em meados dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra. 

Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por quase cinquenta  anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").

Tinha ideias, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador incondicional da colonização britânica e da formação de elites locai.

Apoiava o esforço militar do País, contra o “terrorismo internacional” (sic), mas era crítico em relação à vontade e à capacidade de Salazar de enveredar por uma “solução política” para o problema, nomeadamente em relação a Angola e Moçambique, que eram,  para ele,  as verdadeiras “joias da Coroa”, depois de perdida, “miseravelmente” (sic), a Índia Portuguesa.

O meu amigo Doc era, para mim, o irmão mais velho que eu nunca tivera, separavam-nos uma meia dúzia de anos. Tínhamos alguns interesses intelectuais em comum, a começar pelo teatro, a literatura, a arte e, claro, a política.
 
Nessa época, poucos jovens da minha idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivíamos num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que dispúnhamos, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que o meu amigo Doc solenemente detestava…

O que é que eu sabia do que se passava em África, no nosso glorioso Império Colonial? Racismo, colonialismo, trabalho forçado, revoltas nacionalistas…? Não, nunca ouvira falar...  Só me lembro, na igreja, teria eu 10 anos, por volta de 1958, de pedirem dinheiro ao meu avô, para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...

Eu vivia numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra (que ficava mais perto do que Lisboa)… A maioria dos jovens da minha geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos campos e nas fábricas, no mar, nas escolas, nos quartéis, nos hospitais… 

Aliás, o que é que a gente sabia e podia saber? Só o que "eles" queriam que a gente soubesse... "Saber ler, escrever e contar", acrescentava o meu amigo Doc, "o que não quer dizer... saberes pensar pela tua própria cabeça"...

Além disso, as nossas aldeias, vilas e pequenas cidades do interior começavam a ficar envelhecidas, com a saída dos mais jovens, para o ultramar e a emigração (interna e externa). Muitos dos meus colegas de escola nunca mais os vi. Alguns como eu fixaram-se em Lisboa ou no Porto, onde eram maiores e melhores as oportunidades de emprego. Ou foram para França, a maioria "a salto".


Enquanto ele, o Doc, esteve na Guiné, correspondiamo-nos regularmente, uma oiu duas vezes por mês. Eu guardei religiosamente os aerogramas que ele me mandava. Tinha intenção de os organizar por data e devolvê-los ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”, como eu esperava que ele chegasse.

Quando eu o fui visitar, não me deixou sequer falar dos aerogramas, que naturalmente lhe traziam recordações dolorosas da Guiné, que ele queria extirpar para sempre da memória. A sua resposta, brusca e mal humorada, foi:

− Queima-os, Luisinho, queima-os!
− É um pedido?
− Não, é uma ordem!

Não lhe fiz a vontade. Devia tê-lo feito? Continuaram guardados ao meu cuidado. Sempre pensei que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Mas, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra... (Acabei por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral, e hoje tenho pena de não os ter fotocopiado, limitei-me a copiar alguns excertos. )

Curiosamente ele nunca me escrevia cartas, mas apenas aerogramas, que eram de borla. "Com o dinheiro que poupava nos selos, comprava livros, revistas, peças de artesanato e... uísque", dizia-me ele, a gozar. 

Eu tinha receio que a correspondência, trocada entre nós, pudesse um dia ser intercetada pela PIDE. Ele tranquilizou-me a esse respeito. Tinha confiança no SPM (acrónimo de Serviço Postal Militar) que lidava todos os dias com várias toneladas de papel (cartas, aerogramas, encomendas, jornais,. revistas. etc.), a circular pelos diversos territórios ultramarinos. 

Por outro lado, e até pelo conhecimento pessoal que ele tinha da PIDE na Guiné, com quem tinha de lidar, a contragosto, na sua qualidade de oficial de informações e operações, ele conhecia relativamente bem os pontos fortes e fracos daquela polícia, a começar pela sua estrutura, a sua organização e a qualidade do seu pessoal… 

Os recursos humanos, dizia-me,  deixavam muito a desejar: fracas habilitações literárias, baixo nível cultural, insuficiente conhecimento de línguas estrangeiras (a começar pelo francês e o inglês), iliteracia política, tacanhez de espírito, sistema de informação artesanal… "Até o português escrevem mal e porcamente!"... 

Por outro lado, havia alguma rivalidade e até desconfiança em relação ao exército… (e vice-versa). “Os gajos eram uns cepos, eram capazes de desconfiar de uma inofensiva bíblia protestante mas passavam por cima de um livro do Franz Fanon, que era dinamite” – afiançava o meu amigo. 

Cepos?... "Só não eram maus a torturar, a arrancar informações dos pobres diabos que a gente, o exército, lhes entregava, para eles fazerem o trabalho, sujo,  que lhes competia... Felizmente, que o meu pelotão de informações e operações não foi treinado para torturar e  eu, por mim, nunca tolerei essas práticas", garantiu-me o Doc (a quem um dia perguntei que raio de especialidade era aquela que lhe haviam atribuído).

Cepos ou não, eu é que não ia na conversa do Doc: com os meus verdes anos, e com os medos  que alguns amigos mais velhos, no liceu, me haviam metido na cabeça, achava que a PIDE era como Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente. Pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, era melhor pôr a salvo a correspondência do Doc, para mais sabendo que ele tivera “chatices” na Universidade e, depois, na Guiné.

Sabia que o meu avô, materno,  era da “situação”… Era um bom homem, ia à missa, raramente discutia política, e muito menos comigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando jantávamos lá em casa:

− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…

O meu avô, coitado,  era dos que acreditavam que o Salazar é que nos tinha livrado da guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que eu nunca cheguei a conhecer,  tinha sido  expedicionário nos Açores, durante a II Guerra Mundial, e tinha regressado a casa, “são e salvo"...,  para morrer, afinal,  uns meses depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-me que tinha tido muito medo, por causa do irmão,  dos submarinos alemães que infestavam o Atântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde. Ele ouvia a BBC.

De resto, tinha a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o meu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo.

O meu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.

Eu gostava muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava comigo. Dizia-me na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…

− Então?... E as outras duas, avô?

− Tem-nas o padre e o médico!...

A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:

− Tens a chave mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…


O Doc nunca me deixou publicar nenhuma notícia, a seu respeito, no jornal, um quinzenário, onde eu trabalhava, como estagiário e, em boa verdade, como “pau para toda a obra”, desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão e jornalista (que era emitido pelo sindicato corporativo). Tínhamos uma secção, “Correio dos Heróis do Ultramar”, onde publicávamos notícias dos filhos da terra a cumprir “missões de soberania além-mar".

O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do meu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE (o que, em boa verdade, nunca foi confirmado pelo próprio, que não terá tido tempo, vontade e pachorra para ir  à Torre do Tombo ver o seu processo). 

O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do privilégio do adiamento da incorporação militar… Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão na reitoria ou na direção da faculdade. Enfim, estivera também envolvido na crise académica de 1962, embiora fosse um "segunda linha"...

Preciso, entretanto, de acrescentar algo mais sobre o jornal onde eu trabalhava (e que foi, de resto, o meu primeiro emprego). O “meu” jornal estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.

A filha mais velha, por sinal minha catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.

A minha terra sempre acolheu bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estava a elite local, aquela que tinha património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.

Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época) armazenista de vinhos que exportava para África, e proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero).

Numa altura em que ainda não havia agências bancárias na província, e com os negócios a prosperar durante a II Guerra Mundial e no pós-guerra, o “Tio Patinhas” (como a gente lhe chamava, nas costas…), era o “banqueiro do povo”, emprestando dinheiro a taxas de juro, usurárias, dizia a má língua do povo. E também se acrescentava que ele fizera fortuna na II Guerra Mundial com os refugiados que se instalaram na nossa costa (Lisboa, Cascais, Ericeira, Figueira da Foz, Espinho, etc.), aguardando um visto para as Américas.

Também dizia a “santa inquisição local” que ele tinha costela de... “cristão novo”.  O que toda a gente sabia, isso sim, é que ele tinha duas filhas casadoiras, as suas "princesas", que estavam à espera dos seus "príncipes encantados". E esses só poderiam vir de fora. Uma, a mais velha, a minha catequista, como disse, irá casar com o “jovem e promissor advogado de Coimbra”; a mais nova irá dar o nó com um médico, também coimbrão, que igualmente se fixara na nossa terra.

O meu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento 
a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso despicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica). 

Na realidade, era um "jornaleco", um "pasquim" (como lhe chamava o Doc), que todavia se irá tornar, mais tarde, no consulado marcelista,  num influente semanário regionalista com algum prestígio, audiência e até qualidade. 

Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de  regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para mim a minha escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar comigo por causa do meu “jornaleco”… Penso que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…


Tínhamos uma diferença de quase trinta anos, eu e o meu diretor,  a quem, confesso, devo alguns favores.  Numa conversa franca, “cara a cara”, que tive com ele, diretor,  na redação, no dia em que o Marcelo Caetano substitui o Salazar no Governo, ele fez questão de desvendar alguma coisa sobre a sua algo obscura vida coimbrã…

Vivia numa república de estudantes, envolvendo-se na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…

− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto – comentou ele, de um modo algo enigmático.

Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde me incluía, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como eu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…

Ele próprio me confessara que em Coimbra publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentei eu, com alguma irreverència e ousadia).

Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento e cultura literária do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...


Percebi o seu "recado" (que, no meu caso, visava "más companhias" como o meu amigo Doc)... Mas só mais tarde é que eu vim a contextualizar toda esta conversa "de pai, mais do que de patrão": tinha como pano de fundo uma campanha que alguns “estado-novistas” estavam a fazer para refrescar as velhas e bolorentas fileiras da União Nacional, de que o proprietário do jornal era um histórico na região… 

Não admira por isso que o “meu patrão” se tornasse rapidamente um entusiástico defensor da “primavera política” do Marcelo Caetano e das suas "conversas em família"...

Voltando ao meu amigo Doc… que nessa altura já estava, de regresso, a Coimbra e em risco de ser suspenso da Universidade, pela segunda vez.

Sempre o tratei por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica, já no último ano do liceu… Eu, por meu turno, ainda estava longe de saber o queria fazer da minha vida... Mas começava a preocupar-me com a guerra que alastrava em Angola e com a mobilização dos meus vizinhos e conhecidos, mais velhos...

Em 1962 houve a crise académica, que só mais tarde vim a saber o que era... Em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, menos de um ano depois, estava na Guiné.

Parte da minha formação intelectual e até literária devo-lha a ele, ao meu amigo Doc. Emprestava-me livros, trazia-me livros e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns jornais e revistas, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…

Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoolólica, devo acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxe da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo. Houve mesmo quem apostasse comigo que ele nunca chegaria a ter o diploma de médico, "quanto mais a poder receitar uma aspirina a um morto"…

Mas foi também a época em que eu deixei de ver o Doc, com regularidade. Soube depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causas eleições legistivas de 1969, rompendo de vez com a sua cidade natal. Há muito que  deixara definitivamente o teatro da cidade, que de resto passou a ter um novo diretor, quando ele foi mobilizado para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.

E eu nessa altura já estava na Guiné, onde votei em branco nas eleições para a Assembleia Nacional. Ia tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, onde tirara o curso de  germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais novo. Depois perdemos o contacto... Deixámos mesmo de ser íntimos, se bem que a nossa amizade estivesse para durar até ao fim da vida...

Soube, por outras vias, que o Doc  se envolvera também na crise de 1969, fora desta vez suspenso por dois anos, e tivera que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).

Não tenho aerogramas dele do meu tempo de Guiné. Nunca nos correspondemos nesse tempo. E um ou dois que lhe escrevi, não tive coragem, confesso, de os pôr no correio...

Depois do meu regresso à Guiné, e da minha própria "cura de sono", soube notícias, já a viver e a trabalhar em Lisboa,  da família do Doc:  a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.

Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que paravam as modas.)

A entrada do Spínola para a Junta de Salvação Nacional ainda lhe dera algum alento quanto à possibilidade de se organizarem "eleições livres", com vista à independência da Angola, Guiné e Moçambique, mas os acontecimentos precipitaram-se e a descolonização que se seguiu foi um dor de alma para o “Velho”, como lhe chamava o filho; morreu em finais da década de 1970, sem ter realizado  o sonho de "um dia ainda poder voltar a Moçambique", terra que ele amava de alma e coração.


Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, depois do 25 de Abril e até morrer, em 1990?

Apaixonou-se por Trás-os-Montes, onde fez o Serviço Médico à Periferia, fez medicina do trabalho numa empresa mineira e numa empresa da pesca do alto, praticou clínica geral nas caixas de previdência da margem esquerda do Tejo, integrou-se na carreira de clínica geral, criada em 1983, pediu uma licença sem vencimemto para se poder alistar como voluntário numa ONG francesa que tinha uma missão médica na Amazónia...

Enfim, "ando por aí", como me garantiu, "a ver se ainda consigo reconciliar-me com a humanidade"... Mas nunca mais voltou à Guiné. Uma vez por outra falavámos ao telefone, ele é que me ligava (em geral, pelos meus anos), eu nunca sabia ao certo por onde ele parava... Gostava de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.

Tinha-me manifestado o interesse em tirar o curso de medicina do trabalho, queria fazer algo de  "socialmente útil"... E eu ainda o ajudei a preparar a candidatura. Detestava a "medicina da caixa" que ainda se fazia nesse tempo, por todo o lado... 

Entretanto, deixara de fumar... Tarde demais. O cancro pulmonar começava a cortar-lhe as asas dos seus sonhos de liberdade, já de si frágeis e erráticos... Teve altos e baixos, euforias e depressões. Tiraram-lhe um pulmão...

Finalmente, foi pela Mena, a irmã, que eu soube que ele estava a morrer. No hospital, num pequeno quarto escuro, ao fim de um corredor sombrio, por ironia a escassas centenas de metros do meu gabinete de trabalho… Um pneumologista,  seu conhecido do tempo de Coimbra, havia-o admitido no seu serviço. Por caridade. Para ali morrer, sozinho como um cão.

© Luís Graça (2020). Revisto: 19 de agosto de 2023.
___________