segunda-feira, 31 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1006: Estórias de Mansoa (1): 'Alfero, água num stá bom' (Rui Felício, CCAÇ 2405)


Guiné > 1968 > A bordo do Uíge: da esquerda para a direita, os alferes milicianos Raposo, David, Felício e Rijo, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852. O Uige transportava dois batalhões, o BCAÇ 2851 e o BCAÇ 2852. Largou em finais de JUlho de 1968 do Cais de Conde de Óbidos, em Lisboa e chegou a Bissau nos princípios de Agosto. A CCAÇ 2405 seguiu depois para Mansoa onde chegou à noite, sendo saudada com um salva de artilharia pelos velhinhos da CCS do BCAÇ 1911 (1).

Foto: © Paulo Raposo (2006)


Continuação (cronologicamente, neste caso, antecipação) das estórias de Dulombi (2)... O Rui Felício foi alf mil na CCAÇ 2405, juntamente com o Paulo Raposo e Victor David, outros dois membros da nossa tertúlia. Os três estiveram em Mansoa, no início da comissão da respectiva unidade, a CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, de Agosto a Dezembro de 1969.


MANSOA III

CCAÇ 2405

Agosto de 1968


O Vitor David e eu, juntamente com os nosso respectivos Grupos de Combate, fomos destacados para dirigir e fazer a segurança de cerca de 200 trabalhadores balantas, recrutados pelo Chefe de Posto de Mansoa para procederem à capinagem da estrada Mansoa-Jugudul.

Era um autêntico exército de homens armados de catanas, enquadrados por meia dúzia de cipaios que os obrigavam a não perder o ritmo do trabalho.

O mato na Guiné cresce a um ritmo alucinante e, quando menos se espera, devora as bermas e até a própria estrada se esta não fôr utilizada regularmente.

Para prevenir emboscadas do IN tinha que se fazer a capinagem desse mato umas duas ou três vezes por ano, limpando uma faixa de cerca de 50 a 100 metros de cada lado da estrada.

A tropa requisitava mão de obra para o efeito à autoridade administrativa que se encarregava de a mobilizar.

Era um trabalho duro, realizado sob um sol escaldante, desde o amanhecer até ao pôr do sol…

Os homens brandiam ritmadamente as catanas contra os tufos de capim e arbustos, provocando um som cavo que inundava os ouvidos durante todo o dia, e os seus corpos negros, musculados, luzidios de suor, brilhavam sob o tórrido sol da Guiné…

E tinham que beber água muitas vezes para matar a sede e prevenir desidratação…

Por isso, eram colocados ao longo da estrada, mais ou menos de 30 em 30 metros, bidons de 200 litros cheios de água, para que, quem quisesse, ali se dessedentasse.

Sucede que esses reservatórios eram nem mais nem menos que bidons usados de combustivel, que depois de esgotados serviam para encher de água e levados para a capinagem.

E, claro, quando não havia cuidado na sua lavagem, a água neles despejada podia misturar-se com alguns restos de combustível que tivessem ficado no fundo.

Pois foi exactamente isso que aconteceu com os bidons que estava a ser usados na tal capinagem de que falamos.
Guiné > 1968 > Mansoa > CCAÇ 2405 > O Alf Mil Victor David no regresso de uma operação
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Inesperadamente, um dos balantas assomou-se junto ao David e disse-lhe num crioulo arrevesado:

- Alfero! Água num stá bom! – e, para melhor traduzir o que dizia, fazia uma careta de vómito….

O David, pensava para os seus botões:
- Esta gajo é muito fino… Deve querer água Perrier, com certeza…

Tentou despachá-lo:
- Está bem, está bem… Vai mas é continuar o teu trabalho e deixa-te de esquisitices!

Mas o homem não desistia:
- Alfero! Bardadi! Água num sta bom mesmo! Num sabi!
- Eh pá.. Explica lá de uma vez o que é que tem a água - condescendeu o David.

E o balanta, num esforço para se fazer compreender, puxou dos seus rudimentos de português e despejou:
- Água sabe a gasolina, Alfero!... Bardadi!

Uma flash iluminou o cérebro do David que rapidamente compreendeu o que se passava… Aqueles bidons tinham sido mal lavados e ainda continham restos de combustivel…

Não querendo admitir essa falha (a tropa portuguesa precisava demonstrar a sua grande capacidade de organização…), o David, inspirado, rematou:

- Claro que sabe a gasolina.. É de propósito e para vosso bem! Assim, vocês no trabalho, andam mais depressa e cansam-se menos, percebeste?

Nunca saberemos se o pobre do trabalhador balanta acreditou na justificação do David ou se, entre dentes, lhe rogou alguma praga… A verdade é que acenou afirmativamente com a cabeça e voltou ao trabalho.

E, passado pouco tempo, veio de novo beber água com gasolina do bidon.. A tal que fazia andar depressa…


Rui Felício
Ex Alf Mil Inf
CCAÇ 2405
Mansoa

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Notas de L.G.

(1) Vd. posts de

7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa


8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca
(2) Vd. posts anteriores:

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral


(...) "O Natal aproximava-se… Antes da data prevista, chegara-nos um presente inesperado! Um periquito….

"O furriel Cabral foi-nos mandado para substituir o furriel vagomestre, uns meses antes falecido em acidente de viação na estrada de Galomaro-Bafatá numa viagem de reabastecimento de viveres à nossa Companhia…

"O Cabral era uma jóia de pessoa, simpatiquíssimo, um tanto ingénuo e crédulo, sempre bem disposto e que rapidamente granjeou a estima de todos.

"Natural de Bissau, de etnia pepel, um verdadeiro e retinto preto da Guiné" (...)

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili

(...) "O Carvalho Araújo já estava em Bissau para nos levar de volta à Metrópole… Viera cheio de tropa para substituir os velhinhos, ansiosos pelo fim da sua comissão.

"O tempo custava a passar para finalmente se dar a rendição, e por isso, cada um à sua maneira ia encontrando formas de apressar o tempo, de esquecer a lentidão inexorável do relógio…

"Ao cair da tarde, com a luz alaranjada do sol a começar a esconder-se na linha do horizonte poente, o Paulo Raposo, alferes da CCAÇ 2405, de quem guardo as mais pistorescas histórias, estava sentado perto do bunker do Capitão, com o olhar fixo num ponto afastado a sul do aquartelamento, perto do arame farpado" (...).

19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua

(...) "20 de Julho de 1969. Era domingo… Durante todo o dia a rádio ia noticiando a chegada do homem à Lua… A célebre frase do astronauta afirmando que o passo que acabara de dar em solo lunar era um passo de gigante para a humanidade, era escutada repetidamente nos pequenos transistores que nos mantinham ligados ao mundo.

"Claro que não havia televisão na Guiné e, mesmo que houvesse, jamais seria vista em Samba Cumbera, pequena tabanca onde a luz nos era fornecida através de garrafas de cerveja cheias de petróleo, nas quais se embebiam torcidas de desperdício que, depois de acesas, nos enchiam os pulmões de fuligem e fumo.

"Mas nos confins da mata, longe de toda a civilização, a importante notícia precisava de ser partilhada e divulgada... Os soldados se encarregariam de o fazer à sua maneira, junto das bajudas" (...).

domingo, 30 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > Foto tirada no centro da povoação, atravessada pela estrada (ou picada) que vai para Bafatá... Uma autêntica autoestrada, diz o Albano Costa que por lá passou em 2005, onde o jipe pode chegar aos 120!.

Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)


Segundo texto (1) do Renato Monteiro, de uma série de cinco, que intitulei estórias de Contuboel, pequenos apontamentos que o meu amigo escreveu com base na sua experiência de instrutor de recrutas guineenses, em Contuboel, no 1º semestre de 1969. O Renato Monteiro foi furriel miliciano na CART 2479 / CART 11, Cuntuboel e Piche; e depois na CART 2520, Xime e Enxalé (1969). É autor, com Luís Farinha, do livro Guerra colonial: fotobiografia. (Lisboa,D. Quixote,1998,307 pp). É também autor de livros de poesia e de fotografia. Conheci-o e tornámo-nos amigos nos meses de Junho e Julho de 1969 em que estive (eu e os meus camaradas da CCAÇ 2590, mais tarde CCAÇ 12) a dar a instrução de especialidade aos nossos queridos nharros...



SEGUNDO PELOTÃO


Divididos por quatro pelotões, faço parte do segundo bem como o alferes Ilhéu, açoriano, ex-seminarista, os furriéis Paz de Alma, do Norte, o Bera, de Cabo Verde, por quem nutro uma antipatia correspondida e o nosso cabo, ainda sem alcunha, e a quem um dia destes hei-de perguntar donde é. Feita a contabilidade, o que temos? 53 Guineenses, 2 insulares, 3 europeus continentais. Ou cromaticamente falando: 53 negros, 4 caras pálidas e um que nem é uma coisa nem outra, e sim as duas. Mas adiante...

Sem o poliglota do Carlos, entretanto integrado noutro pelotão, lançamos mão ao Jaló que, apesar de menos apto para intérprete do que o primeiro, sempre vai desenrascando em fula e em crioulo, a nossa pretendida comunicação com o grupo. Para levantarem os joelhos, c’um raio, se possível até ao queixo, darem meia volta volver, distinguir o que se toma por esquerda e por direita, manter o peito erguido e cheio de ar, por nada mexer quando em sentido, porra, sequer tossir; enfim, toda a panóplia de movimentos exigíveis numa formatura estacionada ou em marcha. Porque com má execução, há merda: 10, 20 ou mais flexões de bruços, mantendo a regular distância da barriga ao chão, quando não mesmo rastejar até aquela mangueira ou cajueiro ainda mais afastado. Punições tão sabidas de cor, por força da aprendizagem para a guerra levada a cabo nos quartéis, como os nomes dos rios aprendidos durante a instrução primária.

Por mim, e apesar de exigente quanto à execução dos exercícios, dispenso a aplicação de castigos sem crime, achando mil vezes preferível, nesta fase inicial de instrução, antes fomentar a troca com que todos crescem: umas lições básicas de português pelos depoimentos prestados, com o apoio do Jaló, sobre a experiência vivida na guerra por um bom número de recrutas que, havendo sido milícias, já se envolveram em confrontos. Com o fogo a doer fora da carreira de tiro, mas no cenário real da mata. Ou tão só os que foram alvo de flagelações dirigidas aos aldeamentos donde são originários.

E quem sabe se, deste modo, não evitaríamos mais facilmente confundir o Ali com o Guilage, estes com quaisquer outros já que, à excepção do Malagueta, excessivamente franzino, e do Turé, de desmedida altura e de voz apagada, todos se apresentam indistintos aos nossos olhos. Como se fossem cópias fisionómicas do mesmo padrão, cheirando desagradavelmente à maior parte dos camaradas a catinga. Ou não fosse natural um cão tressuar a canino; um gato transpirar a felino; os cravos marcarem o ar com o seu perfume... Sem nunca perguntarmos a que cheiramos nós. Mais tarde ou mais cedo, hei-de sabê-lo...

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
Tenho dúvidas se era CART 11 ou CCAÇ 11... Já alguém me chamou a atenção para esse facto: as companhias africanas era todas de caçadores (CCAÇ 5, CCAç 6, CCAÇ 12, CCAÇ 13, CCAÇ 15, CCAÇ 21...). Bom, vamos ter que esclarecer isto.

sexta-feira, 28 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1004: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (1): o pudor das nossas recordações

Esposende > Fão > 26 de Novembro de 1994 > Convívio da CCAÇ 12, da CCS do BCAÇ 2852, do Pel Caç Nat 52 e outras unidades destacadas em Bambadinca, entre 1968 e 1971... Na imagem, ao centro o Beja Santos, rodeado por malta da CCAÇ 12, os furriéis milicianos Humberto Reis (à direita), o Tony Levezinho (de costas, à esquerda) e o T. Roda, ao fundo, sorridente. Na 4ª feira passada, dia 26, reencontrámo-nos doze anos depois, e revivemos o nosso passado comum por sítios míticos da Guiné: Bambadinca, Xime, Enxalé, Rio Geba, Rio Corubal, Missirá, Cuor, Finete, Mato Cão, Madina/Belel, Nhabijões, Ponta Varela, Madina Colhido, Ponta do Inglês, Baio/Buruntoni...

Foto: © Humberto Reis (2006)




Guiné-Bissau > Zona Leste > Xime > 2001 > Rio Geba. O famoso macaréu. No Rio Amazonas é conhecido por pororoca. Em termos simples, o macaréu é uma onda de arrebentação que, nas proximidades da foz pouco profunda de certos rios e por ocasião da maré cheia, irrompe de súbito em sentido oposto ao do fluxo da água. Seguida de ondas menores, a onda de rebentação sobe rio acima, com forte ruído e devastação das margens. Pode atingir vários metros de altura, mas tende a diminuir a sua força e envergadura à medida que avança. Neste rio, ou nesta parte do rio que ainda é de água salgada, dois soldados da CART 3494, aquartelada no Xime, desapareceram, apanhados pelo macaréu numa operação ao Mato Cão, em 1972. Um terceiro camarada, doutra companhia, também desapareceu (Informação do Sousa de Castro).

Foto: © David J. Guimarães (2005)

Texto do Beja Santos:

Caro Luís, foi muitíssimo agradável ter-te revisto ontem [4ª feira, dia 26 de Julho], passadas estas décadas. Do muito que falámos, estou neste momento publicamente comprometido com todos os parceiros do blogue a depor sobre o que vi e conservei da minha experiência na guerra colonial.

Durante anos, acalantei a ideia de escrever um romance sobre a minha experiência (na ficção, como em todas as manifestações de arte, escrevemos sempre sobre nós, condicionando a nossa imagem, seleccionando o que queremos comunicar aos outros). Assim, escrevi na cabeça Soncó, que teria como base os Soncó, a família dos régulos do Cuor. Com os empregos antes do 25 de Abril e os estudos, a ideia esmoreceu.

Aí pelos anos 80, ocorreu-me A Rua do Eclipse. Nem imaginas como. Um dia estava numa reunião num edifício da Comissão Europeia, em Bruxelas, olhei para a cabine de tradução, bati à porta e disse a uma senhora que gostava de almoçar com ela para lhe pedir ajuda para uma obra de ficção que estava a preparar. Ingrid Schorkps (vamos imaginar que é este o nome) ouviu-me com os olhos arregalados. Pretendia conhecer um casal belga com alguma profundidade, pois tinha imaginado um português que se apaixonara por uma belga, num contexto de triângulo amoroso. Precisava da ajuda dela e do marido, o romance iniciar-se-ia por um encontro de interesse fulminante, seguir-se-ia muita correspondência do português para a sua apaixonada (um flamenga), as vicissitudes dos encontros esperádicos, a dor das distâncias, as visitas à casa de Ingrid na Rua do Eclipse.

Na correspondência para Bruxelas, falaria da Guerra da Guiné. A verdade é que visitei a família de Ingrid, ao princípio estranharam, depois tomaram-me como um escritor a sério quando eu comecei a abrir mapas em cima da mesa, explicando os encontros que teríamos pelas ruas da Antuérpia e arredores.

A ideia também esmoreceu. As guerras coloniais que Portugal travou devem ser as mais documentadas das últimas décadas, com excepção da guerra do Vietnam. Temos os aerogramas, as fotografias, as cartas, os filmes, os relatórios. Não temos é o pano de fundo. Ontem, durante o almoço, avançámos algumas explicações. Uma delas tem a ver com a falta de rigor nos relatórios. Outra, com a privacidade e o pudor das nossas recordações.

Quando, aqui há uns anos, num ambiente recatado me pediram uma recordação inviolável, intrasmissível, falei de um enterro de uma massa encefálica numa caixa de sapatos, num cemitério em Missirá. Explico. Depois de uma grande flagelação, ao amanhecer, patrulhei as imediações do quartel. Encontrei um soldado manjaco do PAIGC morto, com a massa encefálica ao lado do corpo. Fora seguramente um tiro na nossa resposta que produzira aquela morte assim.

Pedi imediatamente uma caixa de sapatos e anunciei que iríamos enterrar o corpo com honras militares. A reacção dos meus soldados foi enorme:
- Turra é para ser comido pelos jagudis!

Mas houve mesmo enterro militar. Este é um dos muitos exemplos do pudor que nos faz calar experiências que nos mudaram o curso da existência, logo em jovens adultos.

Vou pois escrever memórias, sempre balizado pelo pudor de que os nossos camaradas, ou outros leitores avulsos, pensem que o que aqui se escreve é produto de uma mente delirante que se disfarça de herói da guerra. Nada disso. Eu fui eu e a minha circusntância: uma guerra que se travou muitas vezes a um ritmo alucinante, e com uma aprendizagem dolorosa.

Por exemplo o macaréu. Eu estava em Mato Cão, quando ouvi as águas do Geba a entrar em ebulição, com ronco medonho. Fugi apavorado para uma colina, com os meus soldados a gargalhar enquanto eu olhava vidrado as águas a espumar no terrafe. Aprendi depois o que era o macaréu, fenómeno raríssimo no mundo daquela água que vem em torrente pelo Corubal e emerge no Geba gelado.

Pois fica sabendo que a operação Macaréu à vista, as minhas memórias desorganizadas de um registo fotográfico onde às vezes ainda capto cheiros e oiço vozes, acaba de começar neste blogue. Sem data fixa e com calendário muito volúvel. Amanhã seguem mais histórias. Pode-se dar a esta carta a publicidade que entenderes.

Mário Beja Santos
(ex-alf mil Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca, 1968/70)

Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (II): tirem-me daqui!



João Tunes, ontem e hoje: na Guiné, foi Alf Mil trms (primeiro, na CCS do BCAÇ 2884, Pelundo,1969/70; e depois, na CCS de outro Batalhão, Catió, 1970/71). Engenheiro - químico, escreve diariamente, com lucidez, paixão e talento, contra a corrente do(s) tempo(s), no seu blogue Água Lisa (já vão vai na versão 6).


Fonte: Bota Acima, blogue de João Tunes, 7 de Abril de 2004

I - TIREM-ME DAQUI !

Os civis fardados à força que tinham habilitações consideradas suficientes, eram militarizados como soldados cadetes durante seis meses e o seu aproveitamento era coroado com o título (modesto) de Aspirante a Oficial Miliciano.

Esta patente, uma espécie de grau de estagiário em oficialato, durava até chegar a ordem de envio para África. Quando a guia de marcha era recebida, era-se automaticamente promovido a Alferes Miliciano. Todas as regras têm excepções. O Barros foi despachado para a Guiné como Aspirante. Ficou famoso por ser a excepção à regra e porque era meio xoné. Em rigor, perto dos quatro quintos xoné. Licenciado em Filosofia, o Barros era incapaz de se adaptar às regras da vida militar. A instituição castrense bem tentou fazer dele um homem de armas mas o sujeito era relapso à farda, aos procedimentos, à ordem unida e ao espírito guerreiro.

Quando cadete em Mafra, o Barros era sempre o último a chegar à formatura e, quando chegava, os atavios estavam sempre mal amanhados e quantas vezes a Mauser ao ombro vinha com o cano a apontar para o chão... Porque, o que o Barros gostava mesmo era de discutir Sócrates e Platão. A instituição teve de resolver o problema do Barros. Nada fácil. Deve mesmo ter sido caso para reunião de generais reumáticos no Estado Maior General ou coisa parecida. A guerra aquecia e as frentes de combate não paravam de aumentar. Era precisa mais gente, cada vez mais gente, para conter a guerrilha. Começava a haver escassez no recrutamento. A procura de mancebos ultrapassava a oferta. A decisão foi sábia: o Barros ia mesmo para a guerra (mas para a Guiné, porque ele só merecia o pior) mas não era promovido a alferes. Seria Aspirante para sempre. Logo ele, que o que mais aspirava era voltar aos livros e às discussões filosóficas, coisas bem alheias aos trabalhos da guerra.

Na Guiné, andou de quartel em quartel, acumulando punição atrás de punição. O Aspirante Barros não servia, cada vez servia menos, pois a cachimónia cada vez ia trabalhando pior. Como era um perigo nas operações, ia sendo dispensado de sair para o mato, acumulando detenções sobre detenções até o Comandante pedir a Bissau a sua substituição. Então, o Aspirante Barros enchia o saco do fardamento com os seus livros e rumava a outro quartel. Até que a cena se repetia. E repetiu-se muitas vezes.

Uma vez, o General Spínola visitou um quartel onde estava o Aspirante Barros e quis conhecê-lo. O Barros apareceu mal amanhado e com olhar ausente. Spínola disparou a censura:
- Você não tem vergonha de ser o único Aspirante na Guiné?

O Barros concentrou-se, olhou Spínola de frente e disse mansamente:
- Estamos em igualdade, o senhor, que eu saiba, é o único General na Guiné.

Puseram o Barros numa prisão em Bissau por ter insultado o General. O Barros, então, deixou de ler. Podia ler, quem já pouco olhava? O Tenente Coronel Melo, comandante do Batalhão no quartel de Catió, era um oficial com pretensões intelectuais (por onde passava, estudava os costumes étnicos e ia escrevendo livros sobre os usos e costumes das tribos africanas). Era opositor ao regime e não gramava o Spínola, embora fizesse a guerra com todo o profissionalismo. Era também um católico devoto. Em resumo, o Tenente Coronel Melo era um católico progressista, gostava de armas e de paradas, não gramava o fascismo e tinha bom coração. Sabendo da história do Barros, o Tenente Coronel condoeu-se e pediu para o colocarem no seu Batalhão. E o Aspirante Barros lá veio com o seu saco (agora vazio de livros) parar a Catió. E passou a ser meu companheiro de quarto. Companheiro silencioso. O Barros quando chegou a Catió também já tinha deixado de falar.O Barros foi dispensado de serviços e passava os dias deitado na cama. Dispensado de todos os serviços, não. Para lhe dar algum sentido de utilidade militar, o Barros entrava na escala de oficial de dia ao quartel com a missão única de presidir ao içar e ao arriar da bandeira (havia outro oficial que fazia o serviço restante).

O Barros cumpria a sua única tarefa militar segundo um ritual tacitamente assumido por todo o quartel. O sargento de dia perfilava a tropa, dirigia-se à janela do quarto do Barros e berrava enquanto fazia a continência da praxe:
- Meu Aspirante, apresenta-se a guarda de dia.

O Barros, ouvindo o berro do sargento, levantava-se em cuecas, assomava à janela, e naqueles preparos, imitava uma espécie de continência. Então, o sargento de dia mandava içar ou arrear a bandeira portuguesa e o Barros voltava à solidão do seu silêncio.A partir de certa altura, o Barros passou a instalar-se, durante o dia, no bar dos oficiais, bebendo copos atrás de copos. Tinha, como companhia, o Tenente Coronel Melo que preferia escrever os seus livros e fazer os seus despachos ali, no silêncio diurno do bar enquanto o resto dos militares cumpriam as suas rotinas de serviço. O Tenente Coronel escrevia, pensava, escrevia. Barros bebia em silêncio.

De tempos a tempos, o Barros arremessava o copo contra a parede e gritava:
- TIREM-ME DAQUI! 

O Tenente Coronel comentava,  paciente:
- Calma, nosso Aspirante.

E o Barros acalmava até novo arremesso, novo grito e novo apelo à calma por parte do Comandante.

E a cena ia-se repetindo ao longo do dia e dos dias, num ritual assumido pelos dois oficiais e respeitado por toda a tropa sem dar lugar a galhofa. A única consequência negativa destas cenas era a redução assustadora no stock de copos no bar de oficiais. Mas, isso não era problema sem solução: na guerra, para beber é preciso copo?

Era habitual que, a meio da noite, o Nino Vieira se lembrasse de mandar os seus rapazes mandar-nos morteiradas para dentro do quartel. Ao primeiro rebentamento, havia que agarrar a G3, nossa companheira inseparável, e correr para irmos cumprir funções defensivas e contra-ofensivas. Para que o Nino não se ficasse a rir de nós. O Barros não se mexia. Limitava-se a abrir os olhos e fixá-los no tecto. Imóvel. O Aspirante Barros já tinha deixado de aspirar a sobreviver.O Barros esteve duas semanas em Catió, sem castigos que avermelhassem mais a sua caderneta disciplinar.

Um dia, o Tenente Coronel Melo apareceu sorridente. Tinha conseguido (com a ajuda do médico do Batalhão) uma consulta de psiquiatria para o Barros com vista à sua evacuação da Guiné. O Barros não acabou o tempo da sua comissão na guerra da Guiné. Foi libertado para a vida civil como Aspirante a Oficial Miliciano.

Não voltei a ver o Barros. Mas, volta e meio, o Barros entra-me pela memória dentro. E então, a raiva, ai a raiva, a raiva aos que alimentam guerras, faz-me um nó na boca do estômago. Não sei sequer se está vivo, onde está e o que faz o meu antigo camarada e companheiro de quarto. Espero bem que não ande a passear, sem olhar, sem falar, sem ler e a gritar TIREM-ME DAQUI!, ouvindo os palermas saudosistas do Império a clamarem contra o crime da descolonização e caçarem votos aos ex-combatentes. Porque esses merdosos não valem um caracol ao pé do Barros. Desejo sinceramente que o Barros esteja recuperado e a discutir Sócrates e Platão. Algures. Em paz.
___________

Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P1002: Tabanca Grande: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)


Guiné > Mansoa > CCS do BCAÇ 1912 (1967/68) > O capelão, Mário de Oliveira, alferes miliciano, entre soldados. Viria a receber ordem de expulsão da Guiné em 8 de Março de 1968.

Foto: © Padre Mário da Lixa (2003) (com a devida vénia...)



Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > Um periquito em Mansoa... Também o Paulo Raposo passou por Mansoa, nos primeiros meses da sua comissão, devendo ter conhecido e privado com o Aires Ferreira. Era Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, unidade que foi depois colocada na Zona Leste, Sector L1 - Bambadinca, em Galomaro e Dulombi.

Foto: © Paulo Raposo (2006)



1. Temos aqui mais um ‘recruta’: o Aires Ferreira, que pede autorização para fazer parte da nossa caserna, a maior caserna virtual da Net - pelo menos, em português (esta nossa mania de querermos ser os maiores…). Há aqui uma surpresa, no final, para um tertuliano muito especial… Quanto ao Aires: É, pá, entra cá dentro, que lá fora está uma brasa… L.G.

2. Mensagem do Aires Ferreira:


Caro Luís Graça

Cá vim parar. Era inevitável. Há uns tempos, através de um qualquer link, descobri este notável blogue e desde então tenho lido com emoção tudo o que aqui se escreve, embora na situação de desenfiado.

Hoje, resolvi deixar essa situação, pelo que solicito a necessária autorização para me alistar na Tertúlia.

Sou um escrupuloso respeitador das NEPS (lembram-se ?) e, sendo assim, aqui vai a minha apresentação:

Aires Ferreira
Alferes Miliciano de Infantaria - Minas e Armadilhas
BCAÇ 1912 - CCAÇ 1686
Mansoa, 13 de Abril de 1967 a 13 de Maio de 1969

Para apoio a esta petição, parece-me adequada a seguinte história, que tem algo de dramático e que vou contar com o máximo respeito por todos os intervenientes.

MISSA EM CUTIA

Cutia era um destacamento que tinha um grupo de combate e ficava entre Mansoa e Mansabá e entre o Morés e o Sara - Sarauol [vd. carta de Mamboncó].

O Batalhão tinha um Capelão que, um certo Domingo, lá para o fim de 67, resolveu ir celebrar Missa a Cutia. Para isso, arranjou uma escolta de voluntários que, comandados pelo furriel S.S., lá foram, com 2 Unimogs e o jipe do capelão.

A missa foi celebrada e no regresso, um dos Unimogs despistou-se e uma grande parte do pessoal da escolta ficou com ferimentos muito graves, tendo os restantes seguido até Mansoa para pedir auxílio.

Nesse Domingo eu estava de Oficial de Dia ao quartel de Mansoa e desconhecia totalmente este assunto. Cerca da hora de almoço, passava junto à porta de armas, encontrei o Ten. Cor. , o Comandante do Batalhão, que me disse:
- Alferes Ferreira, o seu grupo está todo destroçado na estrada de Cutia, o que está aqui a fazer? Vá já para lá.
- Não posso, estou de serviço - disse eu e apontei a braçadeira.
- Dê cá, eu fico com ela. O piquete vai já atrás de si com a ambulância.

Assim foi. Lá fui, munido da pistola Walther, com um condutor que por ali apareceu e chegámos depressa. A cena era trágica. Havia 5 ou 6 militares gravemente feridos e deitados na berma. O único militar que ali estava capaz de dar uns tiros para defender o local, se o IN por ali aparecesse, era … o Capelão, que de joelhos na estrada, junto ao jipe, fazia as suas orações, de G3 ao lado.

Logo de seguida chegou o necessário auxílio e todos os feridos foram evacuados e tratados.

O Alferes Capelão que faz parte desta história era… o Padre Mário Pais de Oliveira (1), bem conhecido desta Tertúlia e a quem envio um grande abraço.

Se o meu alistamento for autorizado, prometo que envio as necessárias fotos, que não seguem já porque não sei fazer essa operação (por enquanto).

Cumprimentos
Aires Ferreira

_____________

Nota de L.G.

(1) Até à data, o Padre Mário de Oliveira era, ironicamente, o único representante do Batalhão de Caçadores 1912 que, de resto, o expulsou do seu seio.... Vd. posts de:

27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )

Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos ( Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)


Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969 > Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o Rio Geba. Furriéis milicianos Luís Manuel da Graça Henriques (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479 / CART 11, Cuntuboel e Piche; Xime e Enxalé, 1969):

Foto: © Luís Graça (2005)



Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969 > Os nossos queridos nharros... O 2º Grupo de Combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade .

Foto: © António Levezinho (2005)


Primeira parte de uma série de pequenas estórias - que intitulei estórias de Contuboel, em vez de eterno retorno (menos prosaico, menos bloguista, mais filosófico, mais metafórico), como vinha no mail que me foi enviado pelo meu amigo Renato Monteiro, o já famoso homem da piroga (1)...


RECEPÇÃO DOS INSTRUENDOS



São uma porrada deles. Para cima de centena e meia, perfilados na parada. Número excessivo mas justificável uma vez que, finda a instrução, serão repartidos por uma outra companhia, ainda na Lisboa (2), constituída tal como nós, apenas por quadros metropolitanos.

Vindos de Galomaro e de Gabu, que ainda não localizei no mapa; do Xime, de Bafatá e de Bambadinca por onde passamos sem que me ocorresse bater uma única chapa, e ainda das tabancas que povoam a região de Contuboel.

Mais fulas do que mandingas, perfilhando todos a crença em Alá, mas também o princípio que consagra para todo o sempre um Portugal daquém e além mar uno e indivisível, coisa para mim demasiado estranha ao dar conta dos raros falantes da nossa língua e dos muitos que a entendem menos do que a Segunda, a minha lavadeira.

Acaso não houvesse entre eles um Carlos, fula, de Bafatá, único cristão e com nome português, excepcionalmente dotado na comunicação com as línguas nativas, incluindo o crioulo - o esperanto da Guiné - para transmitir-lhes as nossas ordens, recomendações e outras tretas, bem poderíamos enterrar as palavras no bolso até às calendas, ir pregar para o deserto ou aos peixinhos do António Vieira.

Sequer a ordem de marchar (acaso fossem capazes de tal acrobática proeza) a partir da parada até uma área arborizada próxima do aquartelamento, utilizada para futura aplicação dos exercícios militares, é compreendida pela generalidade dos nossos instruendos.

Coubesse o mar num concha cavada na areia que, por certo, seria igualmente possível olhar para estes homens e reconhecê-los como nossos compatrícios.

E coubesse em mim próprio este sentimento absurdo, maior do que eu, que tanto me leva à rejeição deste mundo como, no instante seguinte, ao desejo de nele me confundir.

Como se coexistissem em mim, duas entidades antagónicas numa só. Sem a santíssima trindade em que não acredito. E nunca, espero bem, vir a pirar dos cornos.
Renato Monteiro
____________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de


23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)


23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)


(2) CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971). O Renato deu a recruta aos meus futuros soldados. Nós demos-lhes apenas a instrução de especialidade e treino operacional: vd. posts de

28 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXXVI: No 'oásis de paz' de Contuboel (Junho de 1969)

31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

(...) "Capri, c’est fini!... Ainda te lembras da velha canção do verão de há três anos, em Lisboa ? Pois é, estão a chegar ao fim as férias de Contuboel, o dolce far niente da tropa tropical... Cheguei à Guiné há mês mês e meio. E ainda não vi, não senti nem cheirei a guerra (a não ser talvez no percurso, em LDG, no Rio Geba, a caminho do Xime e depois no troço Xime-Bambadinca, no dia da nossa partida de Bissau para Contuboel: confesso que havia alguma tensão nos rotos dos periquitos...).

(...) "Acabámos os exercícios finais da instrução de especialidade, que decorreram entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel. Recebemos a visita do homem grande de Bissau. Consta que já nos deu destino, a nós e aos nossos queridos nharros.

"Acabaram-se os passeios tranquilos pelo Rio Geba, de piroga. As conversas, ao fim da tarde, debaixo do poilão, com os djubis, as bajudas e as mulheres grandes e os homens grandes. As conversas intelectuais com o meu amigo Monteiro. Os meus vizinhos aldeões com quem gostava de conversar. As pacatas idas às hortas das proximidades para comprar bananas e abacaxis...

"Vou ter saudades de Contuboel, das frondosas margens do Geba, da paisagem luxuriante, das amáveis lavadeiras mandingas, de mama firme, que encontrávamos pelo caminho. Mas, como diz a canção, é muito pouco provável cá um dia voltar. Em contrapartida não penso neste momento em Lisboa nem no meu regresso. Contuboel acabou: há agora muitos milhares de quilómetros para palmilhar, numa prova que é, para mim, para todos nós, o grande teste de resistência... e de sobrevivência" (...).


21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)

Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)

Guiné > Zona Leste > Sector da Galomaro > Saltinho > 1972 > Pel Caç Nat 53.

Foto: © Paulo Santiago (2006)



1. Mensagem do Paulo Salgado, de 27 de Juho de 2006:

Luís

Como te disse ontem pelo telemóvel, falei com o Sado. Disse-me para o Jorge Neto o procurar na Direcção Geral das Alfândegas, que ele o encaminhará para o Paulo Malu. Esqueci-me de perguntar se já tinha sido promovido,masa não há problema, o Jorge Neto que procure o Major Sado Baldé , ou possivelmente Tenente Coronel. O meu amigo já sabe o motivo para o encontro com o Malu.

Fiquei muito sensibilizado com a tua Carta Aberta (1). Bem Hajas.

Mando-te uma foto do Pel Caç Nat 53. Atrás de mim [eu, de boina castanha, bigode, ao meio, na primeira fila] , está o Fur Mil Mário Rui [de barbas], tendo ao seu lado direito, com uma bazooka o Bobo Embaló e, do lado esquerdo, o Mamadú Sanhá. Na última fila, à esquerda da foto, com um sumbea na cabeça está o 1º cabo Suleimane Baldé, actual Régulo de Contabane, tendo a seu lado, atrás, o 1º cabo Pina.

Um abraço
Paulo Santiago

PS- O Sousa e Castro é capaz de ter razão quanto ao camarada das transmissões, apanhado à mão. Tenho ideia alguém me ter dito que era do Porto e trabalhar (ou ter trabalhado) no Aeroporto em Pedras Rubras. Não tenho a certeza sobre este assunto.

2. Comentário de L.G.:

Paulo: Ainda não contactei directamente o Jorge Neto que, pela leitura do seu blogue, o Africanidades, está a caminho de Portugal, via norte de África, para passar as suas férias de verão. Mas vou contactá-lo. Se ele puder, no regresso, irá decerto procurar o Sado e fazer uma belíssima entrevista ao comandante Paulo Malu. Faço-lhe daqui já a proposta e o convite.

Como prometido, reservei-te o nº 1000 ao teu IV (e suponho que último) post sobre a tragédia do Quirafo, dos seus antecendentes até à sua consumação. Como eu disse, na carta aberta (1), é a minha pequena homenagem a ti, ao Mário Rui e ao aos demais bravos do teu Pel Caç Nat 53, ao Armandino e aos restantes camaradas da CCAÇ 3490, bem como aos milícias e civis de Madina Bucô que estavam lá, na maldita picada do Quirafo, nessa maldita segunda-feira, 17 de Abril de 1972 e que – muitos deles – não voltaram a casa para contar aos seus filhos e netos o que era uma emboscada nas picadas da Guiné"… (LG)


3. Quarta parte do texto do Paulo Santigao sobre a tragédia do Quirafo (2) :

Segundo alguns sobreviventes, africanos, à explosão seguiu-se o silêncio. Quem não foi atingido, procurou refúgio afastando-se em direcção a Madina Buco, onde entretanto chegara o Unimog, que fizera meia volta aos primeiros disparos e rebentamentos e que terá transmitido através do rádio do destacamento a notícia da emboscada para o Saltinho.

Nessa mesma manhã o Pel Caç Nat 53, comandado pelo Fur Mil Mário Rui, deslocara-se ao Pulom, ao encontro de uma coluna vinda de Galomaro. Esperavam esta, quando começaram a ouvir o tiroteio e os rebentamentos e imaginaram de imediato quem era o alvo.

O Mário Rui já não esperou pela coluna, voltou para trás e em Chumael cortou para Madina, onde encontrou o pessoal do Unimog que dizia, desvairado, ter morrido todo o grupo de pessoas transportado na GMC. Choravam, cada um para seu lado. Do quartel fora pedido apoio aéreo. Dois FIAT passam à vertical de Madina Buco, seguindo rumo ao Quirafo, sobrevoam o local da emboscada, visível para eles, fazem várias passagens, sem largar qualquer bomba, ninguém pode com segurança indicar-lhes onde está o IN, e onde estão as NT.

O Mário Rui, logo secundado por todos os homens do 53, resolve seguir em busca dos possíveis feridos e mortos, no que é acompanhado por alguns milícias que tinham ficado na tabanca. Seguem nas viaturas até ao local onde se encontra a GMC da CCAÇ 3490 (3), seguindo depois apeados a partir deste local. É pedido apoio de heli-canhão, que chega entretanto. Começam a aparecer sobreviventes saídos da mata, quase todos em estado de choque. Falam sem nexo. Avistam, passados alguns minutos, a GMC, ainda fumegante, algumas dezenas de metros à frente. Ninguém correu, apesar de ser essa a vontade, socorrer alguém que necessitasse, redrobando as cautelas.

Aí a uns trinta metros, o Bobo Embaló, que ía na frente, estaca: há terra recentemente remexida na picada, onde normalmente passa um dos rodados das viaturas. Descobre-se uma mina anti-carro, montada após emboscada. Se o Mário Rui tivesse continuado a progressão em cima das viaturas, poderia ter acontecido outra tragédia.

Há um episódio que ninguém gosta de contar, e cada um imaginará como foi: a recolha dos corpos.

Um dos sobreviventes fala no caso do transmissões que viu ser apanhado à mão, e que estaria ferido num braço.Procurando a existência de minas anti-pessoais ou armadilhas,que não encontram, vasculham o local onde o IN esteve emboscado e a mata circundante. Não encontram ninguém ferido ou morto. O homem das transmissões desaparecera e iria ser dado como morto.

Da parte da tarde o comandante de batalhão chegou ao Saltinho, de heli, mandou formar o resto da companhia e disse:
- Apesar da emboscada, a abertura da picada [Quirafo-Foz do Cantoro] vai continuar; não continua amanhã porque as moto-serras ficaram destruídas ; assim que as novas chegarem, continuamos, quando chegarmos à foz do Cantoro colocamos uma placa com o nome dos nossos mortos.

Grande besta criminosa era este anormal! O proveta Lourenço não põe em causa esta barbaridade, tudo o que o Lemos diz é para se cumprir. Ele precisa do Lemos para entrar para a GNR no fim da comissão.

Passados uns oito dez dias, chega logo pela manhã um heli ao Saltinho de onde sai o Castro Lemos [o tenente-coronel, comandante do BCAÇ 3872, sedeado em Galomaro], acompanhado por um militar com duas moto-serras novas. No dia seguinte seria retomada a abertura da picada Quirafo- foz do Cantoro. O Lourenço mais uma vez disse amen.

Acabara de sair o heli com o Lemos, eis outro a aproximar-se para aterrar, era o Spínola, chegado na véspera da metrópole. Entra de chancas com o Lourenço :
- Quem fora o incompetente com a ideia de construir a picada ? Queriam mais mortos ? Queriam minas ?

O capitão desculpa-se com o comandante, mas o Caco pergunta-lhe se não tem cabeça para pensar, se não sabe onde está a população, não conhece a sua zona de acção ? Isto passa-se na parada, para quem quiser ouvir. O Lourenço diz-lhe :
- O nosso comandante quer que continuemos amanhã com a picada.

Aí o General empertiga-se e diz-lhe :
- Será que você não sabe que sou seu comandante ?! Se mexer um dedo para continuar a picada mando um heli com a PM para o prender. Todos os acontecimentos irão ser averiguados através de um auto.

Passou-se uma semana entre esta última cena e a minha chegada. O Lourenço tinha vindo de férias.

O Mário Rui andava sempre agarrado à guitarra. Nunca mais lhe pegou após o 17 de Abril de 1972.


Paulo Santiago
ex Alf Mil do Pel Caç Nat 53
Saltinho (1970/72)

__________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 27 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P995: Carta aberta ao Paulo Santiago: Nenhum relatório militar falava do nosso 'sangue, suor e lágrimas'

(2) Vd. posts anteriores:

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)


26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)


(3) CCAÇ 2406, no original: deve ter sido lapso do Paulo Santiago. A CCAÇ 2406 esteve no Saltinho, entre 1968 e 1970,pertencendo ao BCAÇ 2852, com sede em Bambadinca. Na akltrura o Saltinhoa fazia parte do Sector L1. Só mais tarde foi integrado no Sector de Galomaro.

Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!

Guiné > Pelundo > Dezembro de 1969 > João Tunes (no jipe, do lado esquerdo, o caixa-d'óculos), na altura Alferes Miliciano de Transmissões da CCS do BCAÇ 2884, e já apanhado do clima, apesar dos bons ares do chão manjaco... Mas o pior, foi quando o mandaram, com guia de marcha, para o reino do Nino, lá para as bandas de Catió...

Foto: © João Tunes (2005)


Mensagem do João Tunes:

Caro Luís,

Difícil, muito difícil, resistir aos teus desafios (2). Talvez por esse dom de mestria, tão teu e transpirando sinceridade, de nos fazeres psico pela via do companheirismo sedutor. Tão bem o fazes que dou frequentemente cá comigo a pensar que ao Caco lhe faltou perspicácia suficiente para te aproveitar os talentos e substituir, sob tua inspiração, o raio daquela guerra estúpida e inglória por uma imaginária Guiné Melhor que metesse em convívio alegre, culto, amigo e solidário, o Amílcar e os seus rapazes, a nossa malta das tropas-macacas mais das operações especiais, Alpoim e outros heróis e os não tanto, os guineenses e os caboverdianos de um e outro lado e até de lado nenhum, as bajudas lindas até serem mães precoces, mais os cubanos e outros mais, até os que tais.

Teria sido bem melhor, um ronco do tamanho de todas as bolanhas juntas, voltávamos todos excepto os acidentados, porque - como hoje tão bem se demonstra - até fomos e somos todos, os de um e outro lado, não só bons rapazes como amigos até não mais podermos ser. E, assim, o cacimbo seria, apenas, uma simples imagem meteorológica. Não aquilo que foi, um desarranjo mental, mas vital, na medida em que foi um grito de nojo humano em estar na guerra, fazer a guerra, acreditando eu que não há mãe no mundo que ande a parir filhos com o fito de os meter a matar, muito menos para morrerem.

Pedes tu, caro Luís, contributos para estórias de cacimbados. Difícil, digo em resposta à chamada. Por um lado, julgo que cacimbados teremos sido todos nós porque não tomei até hoje nota de algum camarada que por lá tenha perdido a humanidade. Por outro lado, falece-me a capacidade de não me repetir e nisso muito te devo mais ao blogue, na exacta medida saudável de tanto teres ajudado à catarse que nos liberta da memória traumática ligada aos melhores anos das nossas vidas. E, com a catarse, ganhando-se em paz e em distância, perde-se a piada do acicate de mexer e remexer nas feridas. Ou seja, em termos criativos e comunicacionais, há bens que vêm por mal.

Pela minha parte, encontrei cacimbados em tudo quanto era sítio guineense. E havia um que encontrava todos os dias, logo pela manhã, quando me punha a olhar o espelho para praticar as artes do barbear. Mas, como tudo é relativo, os mais cacimbados entre os cacimbados encontrei-os no Sul da Guiné, no chamado reino do Nino (3). Em Catió, em Guileje, em Gadamael-Porto, em Cacine. Piores que estes só mesmo os metidos em Bissau, no Depósito de Adidos, vindos dos pontos quentes e aguardando regresso, a gerirem uma espécie de loucura sincrética entre as feridas na alma e no corpo em mistura com o alívio ansioso de dali saírem vivos, tentando ainda treinarem os gritos, as lágrimas, os abraços, os beijos dos seus no regresso ao seu meio e viver naturais.

Como disse, já se me secou a capacidade de contar mais que o tanto e tão bem contado pelos outros camaradas. E se não acrescento um ponto, para quê somar mais um conto? Mas, para que não digas que me baldei à chamada, envio-te, com a companhia de um abraço amigo, dois textozinhos que publiquei em Abril de 2004, exactamente sobre estórias de cacimbos e de cacimbados (os factos são veros, só os nomes dos personagens foram alterados) e em que o tom de escrita é notoriamente o da pré-catarse (hoje escreveria diferente, mas preferi manter as versões originais porque o cacimbo se nota mais, ou demais) (2)

I - TIREM-ME DAQUI !


II - E O JIPE NUNCA VOOU


Abraços amigos e camaradas para todos os estimados tertulianos.

João Tunes
Blogue > Agua Lisa (6)
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Notas de L.G.:

(1) Resposta a um pedido meu, de 17 de Julho:

Amigos & camaradas:

Há um desafio meu e do Mexias Alves para falarmos do cacimbo da Guiné e dos seus devastadores efeitos... Quem nunca se sentiu cacimbado, que atire a primeira pedra... Estórias sobre o cacimbo, aceitam-se e pagam-se alvíssaras (...)

(2) A publicar, em breve.

(3) Vd. post de 12 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVI: No 'reino do Nino': Catió, Cacine, Gadamael, Guileje (1970)

quinta-feira, 27 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P998: Antigos combatentes: sem pernas, sem braços mas com memória (Jorge Neto)

Guiné-Bissau > Bissau > Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira > 17 de Julho de 2006 > Manifestação de antigos combatentes do Exército Português, por ocasião da chegada, com intervalo de 2 minutos, do Presidente da República de Portugal, Aníbal Cavaco Silva, e do Primeiro Ministro, José Sócrates, no âmbito da VI Cimeira da CPLP. "Nós, os antigos combatentes, exigimos o cumprimento do acordo de Argel", é a mensagem que se podia ler no belíssimo pano que foi feito para a ocasião (LG).

Com a devida vénia > Excerto do Africanidades, o blogue do nosso amigo Jorge Neto , agora em férias (e possivelmente contactável em Évora, dentro de dias; hoje ainda estava na Mauritânia; todos nós lhe desejamos um bom regresso a casa e umas retemperadoras férias):

18 de Julho de 2006 > ESQUECIDOS PARA SEMPRE

Cerca de 40 antigos combatentes guineenses do exército português juntaram-se à saída do aeroporto para tentar colocar algumas questões a Cavaco Silva e José Sócrates. Instado pela imprensa a comentar a situação destes homens, José Sócrates limitou-se a dizer que não tinha reparado neles. Vistas curtas, para o que não interessa. Ao fim da tarde, quando Vítor Constâncio anunciou o bom desempenho económico do país, Sócrates ouviu perfeitamente e fez questão de comentar!

O problema dos antigos combatentes africanos nunca será resolvido, para vergonha de quem é português e pouco pode fazer para ajudar estes homens que ainda hoje vivem sem pernas, braços... mas com memória. O passado não se apaga nem se esquece. Por muito que os políticos tentem.

Texto e foto: © Jorge Neto (2006)

Guiné 63/74 - P997: Paulo Malu, o comandante da emboscada do Quirafo (Paulo Santiago)

Guiné-Bissau > Jugudul > Fevereiro de 2005 > O Paulo Santiago, à esquerda, com o Ten Ká, da Guarda Fiscal e o Sado, seu grande amigo e oficial superior da mesma força.

Foto: © Paulo Santiago (2006)


Luís:

Segundo o meu amigo Sado, quem comandou a emboscada no Quirafo, foi o comandante Paulo Malu.

Em Fevereiro de 2005, na véspera de regressar a Portugal, cheguei a ter um encontro marcado com ele, inviabilizado à última hora por uma deslocação urgente que teve de fazer ao interior do País.

Na altura era Coronel e estava colocado na Direcção Geral das Alfândegas.

Podes pedir ao Jorge Neto (é o delegado da Lusa ?) que procure falar com o Paulo Malu.

Um abraço
Santiago

PS- Falei há pouco ao telefone com o Mexia Alves. Aguentámos juntos o ataque ao Xitole, em 3 de Agosto de 72.

Guiné 63/74 - P996: CART 1746 (Xime) e CART 2339 (Mansambo): Operações conjuntas no Sector L1 (Carlos Marques dos Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1970 > Vista aérea do aquartelamento. Ao fundo, da esquerda para a direita, a estrada Bambadinca-Xitole.

Foto: © Humberto Reis (2006) (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

"Quanto à foto de Mansambo, a vista aérea – que é espectacular(...) - gostava de saber de que ano é, se o Humberto tiver esses dados. A zona está totalmente nua, só com uma grande árvore ao fundo que se encontra à entrada do aquartelamento, pois vê-se a bifurcação para a estrada Bambadinca-Xitole (esquerda-direita). Falta ali uma árvore, a tal de referência para o IN, e que os nossos soldados chamavam a árvore dos 17 passarinhos, tal era a quantidade deles, que se situava na parte mais afastada da entrada. A mancha branca de maior dimensão seria o heliporto. Faltam os obuses, um de cada lado à esquerda e à direita. Ao lado dessa árvore ficava o depósito, que era uma palhota, de géneros e munições, que ardeu a 20 de Janeiro de 1969 (nesse dia chegaram os 2 Obuses 105 mm). Era véspera do aniversário da CART 2339. Ao fundo vê-se uma mancha à esquerda do trilho de entrada que era a tabanca dos picadores. À direita no triângulo de trilhos, ficava a nossa horta. A fonte ficava à direita da foto onde se vêem 3 trilhos, na mancha mais negra em baixo. Se confrontares com um mapa da zona vê-se aí uma linha de água" ( Carlos Marques dos Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 > Abril 1968 > A pesquisa de água

Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006)


CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) e CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/70) > Acções realizadas em conjunto


Operação GURI
Iniciada em 08/Fev/1968 – 06/00h com duração de 1 dia
Finalidade: detectar elementos IN em Ponta Varela (Xime).
1 Gr Comb 2339/ 1 Gr Comb 1746
Detectada e destruída 1 mina A/C metálica

Operação HIPÓTESE
Iniciada em 08/Fev/1968 – 06/00h com duração 12 horas
Finalidade: montar emboscada na estrada Xime/ Ponta do Inglês
1 Gr Comb 2339/ 1 Sec 1746
Sem contacto, com vestígios IN

Operação HÚMIDA
Iniciada em 09/Fev/1968 – 05/00h com duração 12 horas
Finalidade: detectar elementos IN ou vestígios da sua passagem
2 Gr Comb 2339/ 1 Gr Comb 1746
Sem contacto, com vestígios IN

Operação GALOCHA
Iniciada em 10/Fev/1968 –05/00h com duração de 12 horas
Finalidade: contactar populações e milícias nos destacamentos de: Samba Silate, Amedalai, Taibatá, Demba Taco (Xime)
1 Gr Comb 2339/ 1 Sec 1746

Operação GARFADA
Iniciada em 11/Fev/1968 – 05/00h com duração 12 horas
Finalidade: contactar e controlar população da região dos Nabijões (Bambadinca)
1 Gr Comb 2339 / 1 Sec 1746

Operação HÉRCULES
Iniciada em 13/Fev/1968 – 05/00h com duração de 2 dias
Finalidade: nomadização na região de Madina Colhido – Beafada (Xime)
Sem contacto, com vestígios
4 Gr Comb 2339 / 1 Gr Comb 1746

Operação HUMOR
Iniciada em 19/Fev/1968 – 06/00h com duração de 30 horas
Finalidade: efectuar reconhecimento ofensivo, detectar locais de passagem IN e determinar um lugar mais conveniente para poder instalar um aquartelamento.
Sem contacto, com vestígios
2 Gr Comb 2339/ 2 Gr Comb 2338 / 1 Sec 1746

Relatório da Operação: Há junto à antiga tabanca de GONEGE uma elevação de terreno onde poderia ser instalado um aquartelamento. Dispõe de um poço com água. Acessos difíceis a viaturas. Não há trilho directo que ligue GONEGE a MANSAMBO

NOTA IMPORTANTE:

Começa aqui a história de MANSAMBO. Não seria este o local escolhido, mas sim outro. Mansambo e a sua fonte, produto de 2 rios: Alami e Balancunto e, próximo, o Jago.
Terreno plano, estrada Bambadinca / Xitole / Saltinho. No meio de importantes posições: Xime / Xitole / Bambadinca. A dois passos da mata do Fiofioli / Burontoni.

O aquartelamento seria construído de raiz, com início em Abril de 1968 (2).

Sem água no seu interior e com uma nascente a uma centena de metros o pessoal era obrigado a deslocar-se, com perigo, para tratar da higiene pessoal. A população, que era pouca, abastecia-se, aí, de água para consumo e lavagem de roupa, até que uma emboscada, vinda das árvores (3), obrigou a nova estratégia: Abrir um furo para abastecimento.


Operação RUA TURRA
Iniciada em 30/Julho/1968 – 18/00h – duração de 2 dias
Finalidade: esclarecer a dúvida se o IN tinha ou não abandonado a região do Poidom.
4 Gr Comb 2339/ 2 Gr Comb 1746/ Pel Caç Nat 52 e 63 / Pel Artilharia
A partir do Xime, cerca das 07/00h detectou e foi detectado por grupo IN desarmado, vindo do Burontoni, que perseguiu sem resultado. Atingido o objectivo, constatou que o mesmo se encontrava como tinha sido deixado na Operação Bate Dentro.

Operação MEIA ONÇA
Iniciada em 13/Outubro/1968 – 18/00h – duração de 2 dias
Finalidade: ataque e destruição de objectivos na região de Burontoni / Baio
Cart 2339 / CART 1746 / Pel Caç Nat 52 e 53 / 1 Gr Comb CCAÇ 2401 e 4º Pel Artilharia
Sem resultados.
Operação HÁLITO (4)
Iniciada em 11/Novembro/1968 – 05/00h – duração de 2 dias
Finalidade: detectar elementos IN e reabastecer a Companhia aquartelada no Xitole.
3 Gr Comb 2339 / 2 Gr Comb 1746/ outros
Desobstrução do itinerário Bambadinca / Xitole fechado desde há meses.
Emboscadas, minas, viaturas incendiadas, feridos, cambanças em barcos de borracha e jangadas. Bombardeiros T6. Um inferno. Dia de São Martinho.

Operação GUIA II
Iniciada em 28/Novembro/1968 – 06/00h – duração de 2 dias
Finalidade: detectar elementos IN na região de Mansambo/ Danejo/ Biro/ Samba Uriel/ Jombocari.
3 Gr Comb. 2339/ 2 Gr Comb 1746
Forte resistência de um grupo IN de 20/30 elementos fortemente armados. O acampamento IN possuía abrigos, mas foi destruído. Muitas baixas no IN não confirmadas.
As NT sofreram 3 feridos ligeiros e retiraram para Mansambo.

Operação HOTEL JÚPITER
Iniciada em 07/Janeiro/1969 – 06/00h – duração de 2 dias
Finalidade: detectar e destruir acampamento IN de Jagarajá
2 Gr Comb 2339/ 2 Gr Comb 1746/ outros
Sem vestígios.

Operação LANÇA AFIADA (5)
Iniciada em 08/Março/1969 – duração de 11 dias
Finalidade: destruir todos os meios de vida encontrados (sic história da companhia).
2 Gr Comb 2339 / + Pel Caç 2314 / 2 Gr Comb 1746 + Pel Caç Nat 53 / outros
O IN sofreu 5 mortos e 2o feridos As NT tiveram 22 feridos. 110 elementos evacuados por insolação, ataques de abelhas e doença. Esta foi a maior operação que se desenrolou na Guiné, quer em meios, quer em tempo.

Temperaturas:
À sombra: 39 e 43,6 graus
Ao sol: entre 70 e 75 graus

Operação CABEÇA RAPADA (6)
Iniciada em 25/Março/1969 – 04/00h – duração de 2 dias
Finalidade: desmatação da estrada Bambadinca / Mansambo
3 Gr Comb 2339/ 2 Gr Comb 1746/ outros

Operação CABEÇA RAPADA II (6)
Iniciada em 09/Abril/1969 – duração de 3 dias
Finalidade: desmatar bermas estrada Mansambo / Ponte dos Fulas.
3 Gr Comb 2339/ 2 Gr Comb 1746/ outros


Operação CABEÇA RAPADA III (6)
Iniciada em 30/Abril/1969 – duração de 3 dias
Finalidade: desmatar bermas do itinerário Mansambo/ Galomaro
3 Gr Comb 2339/ 2 Gr Comb 1746/ outros

___________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de:

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P982: A CART 1746 deu o treino operacional à CART 2339 (Carlos Marques dos Santos)

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P979: O Gilberto Madail pertenceu à CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) (Paulo Santiago)

21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P978: Futebol em Bissorã no tempo do Rogério Freire (CART 1525) e do Gilberto Madail


(2) Vd. post de 12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLII: História da 'feitoria' de Mansambo
(3) Sobre a emboscada na fonte de Monsambo, vd. posts de:
30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDI: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (3): Memórias da CART 2339
14 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCVIII: A emboscada na fonte de Mansambo (19 de Setembro de 1968) (Carlos Marques dos Santos)
(4) Sobbre a Op Hálito, vd. posts de:
22 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXI: Quando até os picadores tinham medo (Mansambo, 1968)
20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXIX: Uma bebedeira colectiva (Mansambo, Novembro de 1968) (CMS)
(4) Sobre a Op Lança Afiada, vd posts de:
14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli
(6) Sobre as Op Cabeças Rapadas, vd. post de 22 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXIX: Estrada Mansambo-Bambadinca (Op Cabeças Rapadas, 1969)

Guiné 63/74 - P995: Carta aberta ao Paulo Santiago: Nenhum relatório militar falava do nosso 'sangue, suor e lágrimas' (Luís Graça)

Paulo:

Os meus parabéns pela dramática, viva e fiel reconstituição que estás fazer da tragédia do Quirafo… Foi assim que chamámos à terrível emboscada que custou a vida a um número indetermindao de civis, a 5 milícias e a 11 militares, mais um desaparecido, em 17 de Abril de 1972... Incluindo o teu amigo e camarada, o Alferes miliciano Armandino, da CCAÇ 3490...

Passados muitos anos isto ainda mexe contigo, com o Mexia Alves, com o Joaquim Guimarães, com todos nós… Mexe muito, mesmo... Mesmo aqueles, como eu, que já não estavam na Guiné nessa época e que só tinham ido uma vez ao Saltinho - e muitos, nem isso! -, nunca tendo passado por Quirafo nem andado na picada que ia dar à Foz do Cantoro, na margem direita do Corubal...

Confesso que, pela minha parte, senti um arrepio pela espinha acima ao ler o teu texto…Lembrei-me de outros encontros, sangrentos, no meu tempo, envolvendo a minha Companhia, a CCAÇ 12, e outras forças... Tentei imaginar - mas não o consegui - o horror que foi essa emboscada com Canhão s/r, RPG e Kalash !!!... As tuas imagens dos restos da GMC, testemunha muda da tragédia, são brutais… Se falassem, quantas GMC abandonadas por essa Guiné fora, vítimas de minas anticarro e/ou emboscadas, não contariam outras estórias tão terríveis como a tua ?

Paulo: Nenhum historiador sabe ou saberá transmitir este conhecimento vivido da guerra da Guiné que tu tens, que eu tenho, que nós temos, esse sofrimento indizível que guardámos este tempo tempo, e que tentamos pôr em palavars, penosamente… E que te leva a dizer: Não consigo escrever mais hoje...

Mais: como me dizia ontem o Beja Santos, que teve a gentileza de vir almoçar comigo e trazer-me preciosa documentação para o blogue, dos tempos em que ele era o tigre de Missirá - a propósito, ele manda-te dizer que nunca andou de cajado nas operações, andava sempre com a sua G3 e os seus guardas-costas, tinha isso sim a mania de que era invulnerável, pelo que nunca se deitava no chão debaixo de fogo... Como dizia o Beja Santos, os relatórios da nossa actividade operacional, feitos por homens que se batiam apenas por mais um galão, servis e subservientes, não contavam toda a verdade, muitas vezes branqueavam a realidade, douravam a pílula, escamoteavam responsabilidades, truncavam os factos, exageravam as baixas do IN, mitificavam os roncos, enganavam o comando, humilhavam e ofendiam os operacionais...

Há o risco, como adverte o Beja Santos, de a verdade, a meia-verdade, a mentira, oficial ou oficiosa, vir a tornar-se a verdade historiográfica... Se nós nos calarmos e levarmos para cova o nosso conhecimento vivido da guerra da Guiné, são os filhos da mãe dos Lourenços e dos Lemos que irão contrar a história por nós, através dos seus pseudo-relatórios...

Paulo: Sobretudo nenhum relatório falava do nosso sangue, suor e lágrimas... E é isso que dói!

Tu e o teu filho João - achei lindo o seu gesto de querer ir contigo na viagem de regresso à Guiné, na viagem de todas as emoções - vocês, dizia eu, prestaram uma grande serviço, a todos nós, portugueses e guineenses…

Agora seria ouro sobre azul se conseguisses localizar o comandante desta terrível emboscada e chegar à fala com ele … Ainda será possível localizá-lo, através dos teus amigos de Bissau, por exemplo, o Sado, oficial superior da Guarda Fiscal da Guiné-Bissau ? E pedir ao Jorge Neto, jornalista, para o entrevistar e mostrar as tuas fotos ? Irei pedir a outros amigos de Bissau como o Pepito e o Paulo Salgado, para juntarem os pauzinhos e darem uma ajuda ao Jorge Neto...

Precisamos urgentemente do depoimento desse comandante, se é que ainda está vivo e quer (e pode) falar… Também seria bom localizar o Baptista, o transmissões, que foi ferido e apanhado à unha e depois dado como morto…

O teu post é nº 990… Faltam dez para chegarmos aos 1000. É uma meta bonita na história (curta) da nossa tertúlia virtual. Vou reservar-te este número para o teu próximo texto, a parte IV da tragédia do Quirafo… É a minha pequena homenagem a ti e ao teu Pel Caç Nat 53, ao Armandino e aos restantes camaradas da CCAÇ 3490, bem como aos milícias e civis de Madina Bucô que estavam lá, na maldita picada do Quirafo, nessa maldita segunda-feira, 17 de Abril de 1972 e que – muitos deles – não voltaram a casa para contar aos seus filhos e netos o que era uma emboscada nas picadas da Guiné…

Fico na expectativa da(s) tua(s) próxima(s) mensagem(ns).
Luís Graça

Guiné 63/74 - P994: Ecos da emboscada no Quirafo

1. Mensagem (algo enigmática) do Joaquim Guimarães, o único elemento da nossa tertúlia, até à data, que pertenceu à infortunada CCAÇ 3490... Pergunto-lhe: Eles, quem ? O Capitão Lourenço, o Alferes Armandino ?...

Eu estava lá... O mais triste é o rumo de como a notícia se está a desenrolar ...

Ficção, narratismo...Cowboy ? Incompatibilidade...

O Quirafo aconteceu e eu sabia que tarde ou cedo ELES iriam ser mencionados.

Um abraço
Guimarães


2. Mensagem do Sousa de Castro:


© Foto: Sousa de Castro (ex-1º cabo de transmissões da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)


Recordo perfeitamente este episódio que o Paulo conta. Falou-se muito no Xime sobre este caso ocorrido no Saltinho, em Abril de 72. Dizia-se na época que tinham ido buscar água a uma fonte quando foram emboscados.

Não me recordo do nome do Trms apanhado à mão, mas falava-se num indivíduo que frequentou comigo o curso de Trms em Arca d'Água, no Porto, e que era natural do Porto. Na altura, pelas indicações que me deram fiquei com uma imagem de um fulano que conheci no RTm (Porto) (não sei até que ponto isto é verdade).

Após o 25 de Abril de 1974 ouvi também falar que o Trms afinal apareceu vivo. Era bom encontrá-lo.

Sousa de Castro (ex-1º cabo Trms Guiné - Xime/Mansambo)

3. Mensagem do António Santos (ex-soldado de transmissões, Pelotão de Morteiros 4574/72, Nova Lamego, 1972/74):


Fotos: © António Santos (2006)

Amigos tertulianos:

Quando cheguei a Nova Lamego, em Julho de 72, um dos assuntos mais falado era precisamente este, mas não liguei muito porque pensava na altura que eram das costumadas bocas da velhice, bocas que por serem tantas acabavam por ter um efeito contrário: não acreditarmos à primeira... Afinal, foram precisos estes anos todos para acreditar que aquilo não foi história.

Na época referenciavam só Galomaro, não se falava em coordenadas, e que o Batalhão era pira e que fora descuido e/ou inexpereência dos nossos camaradas... O que parece bater certo (após ler esta notícia no blogue) foi o número de baixas. Na altura, falava-se contudo em 3 apanhados à unha.

Um abração
António Santos

quarta-feira, 26 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P993: A tragédia do Quirafo ainda dói muito (Joaquim Mexia Alves)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Estrada Xime - Bambadinca > 1997 : Ponte (velha) do Rio Undunduma. Por aqui também passou o Joaquim Mexia Alves, comandante em 1972 do Pel Caç Nat 52. Acabou por ir comandar a CCAÇ 15, sedeada em Mansoa.

Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá)

Texto Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Undunduma, Mato Cão) , CCAÇ 15 (Mansoa ).

Caro Luis Graça:

Acabei de ler o último post do Paulo Santiago, que me causou obviamente recordações amargas, não só pela perda de vidas que é o mais importante, mas também pela perda de vidas sem sentido, ou apenas para satisfazer o ego de alguém ou de alguens perfeitamente identificados.
Como disse, o Armandino foi meu camarada de curso nos Ranger's e como tal tínhamos uma ligação mais forte e até tínhamos estado a almoçar em casa do Jamil Nasser poucos dias antes (1). Assim que tiver a foto digitalizada, envia-ta.
Pergunta o Paulo Santiago: "Qual a razão que levou o Alf Armandino a não acreditar ?Porque quis prosseguir, utilizando até algumas ameaças para obrigar os civis a subirem para a GMC ? Não tenho uma explicação racional para esta atitude".
Ele sabe a resposta, tal como eu: O Armandino era um tipo generoso e cumpridor. Erámos periquitos e o raio do curso dos Ranger's tinha-nos imbuído daquele espírito de cumprir e obedecer.

Não sabemos o que o proveta lhe terá dito, mas com certeza terá colocado a ordem como vinda do Comandante de Batalhão, à qual ele, proveta, obviamente não disse que não, visto que se calhar até teria sido a fazer a proposta para mostrar serviço.

O Armandino não disse que não e sabemos o que se passou.

Faz-me mais impressão é porque é que o Armandino facilitou, deixando ir o pessoal na GMC de costas voltadas para as bermas, tal como a versão que de imediato chegou ao Xitole.

Tenho a certeza que, se tudo se tivesse passado uns meses mais para diante na comissão, o Armandino provavelmente teria dito ao proveta (2):
- Vai tu sozinho, que nós ficamos aqui a tomar conta.

Tenho quase a certeza que esse Batalhão do Galomaro fez a viagem connosco no Niassa, mas ainda ninguém me confirmou isso.

Quando tiver as fotografias contarei umas histórias, algumas sobre a incompetência de mandar fazer coisas que não serviam para nada, mas que felizmente não tiveram o desfecho que esta teve.

Soubesse ao menos o nosso País homenagear verdadeiramente aqueles que deram a vida por ele, independentemente da política!!!

Tudo isto ainda dói muito!!!

Abraço
Joaquim Mexia Alves
___________________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)

(2) Referência ao capitão miliciano Lourenço, da CCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74): vd. post de 23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P992: 'Estar apanhado' dava muito jeito e algum gozo (Joaquim Mexia Alves)

Leiria > Monte Real >Termas de Monte Real > O Joaquim Mexia Alves junto ao busto do fundador das termas, Olímpio Duarte Alves, que foi também governador civil de Leiria (1959-68).

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006)

Caro Luis Graça

Realmente, como vi numa das histórias, o termo apanhado do clima tem mais a ver com a Guiné e o cacimbado com a Angola, o que não quer dizer que também não se usasse.

Até porque o nosso clima era bem pior que o de Angola.

Acho graça, (não me estou a meter contigo...), alguns dos que me conheceram dizerem que eu estava muito apanhado.

É lógico que estava alguma coisa - quem é que não estava ? - mas é certo também que o estar apanhado fazia parte dum modo de levar as coisas e dava muito jeito às vezes.

Um tipo fazia umas coisas menos de acordo com o regulamento e "deixa passar, que ele está apanhado".

Podíamos dizer de vez em quando umas verdades a alguns incompetentes (que nem todos eram incompetentes), que nos comandavam, e a coisa ficava por ali, porque "o tipo estava apanhado" e também porque estando apanhado não se sabia bem qual seria a reação do rapaz, até porq que "quem tem cu tem medo".

Safou-me de muitas porradas e também me deu muito gozo nalgumas ocasiões o que levava a suportar tudo aquilo dum modo mais descontraído.

Mesmo as loucuras que às vezes fazia, de andar à frente do pelotão ou da CCAÇ 15 durante o tempo em que a comandei, com galões e diversos apetrechos, eram coisas pensadas e que tinham o seu resultado, não só ao nivel da camaradagem com todos, oficiais, furriéis e soldados, mas também pelo respeito que essas coisas imprimiam naqueles que eu comandava e às vezes até naqueles que se nos opunham no teatro de operações.

Hoje envio-te uma fotografia actual minha, porque estou à espera da entrega das outras já prometidas, sobre as quais contarei umas histórias.

Abraço
Joaquim Mexia Alves

___________________


Termas de Monte Real

tel: +351 244 619 020 / fax: +351 244 619 029

Guiné 63/74 - P991: A tragédia do Quirafo e os 'básicos' que não tiveram 'cunha' para ficar na 'guerra do ar condicionado' (Manuel Pereira)

Mensagem do nosso camarada Manuel Oliveira Pereira, ex-Fur Mil da CCAÇ 3547/BCAÇ 3884:

Bom dia Luis, bom dia a todos.

Sobre o assunto - emboscada na picada - recordo-me de ouvir relatos do acontecimento. Entre algumas das minhas funções enquanto membro do BCAÇ 3884, uma delas foi ter sido também delegado de Batalhão que me obrigava a deslocações constantes entre o mato e Bissau, no caso, o corredor Bambadinca-Xime-Bissau.

Tive por companheiros delegados de outros Batalhões, um deles o Joaquim Catana de Galomaro. Poderei trazê-lo aqui para que pela sua mão e voz relate o acontecimento, mas do que eu sei, sem de momento poder precisar o número de baixas - mas foram muitas -, é que se tratoum da aparente paz e inexistência de ataques naquele corredor. (Digo aparente porque, tal como o leopardo na espera da presa, também o IN foi sempre paciente).

A balda instalou-se nas colunas e, ao que parece, com a conivência do seu comando, ao ponto de se simularem armas com paus e coisas afins. As colunas, segundo se dizia, eram autênticas passeatas até ao dia da grande emboscada.

Gostaria de ressalvar que, da minha experiência enquanto residente em Bissau, muitos dos relatos apresentavam uma realidade desfocada da realidade vivida no mato. Os comentários no Clube (QG Santa Luzia) - muitos nunca saíram do perímetro da COMBIS -, eram (quase) sempre atribuídas à irresponsabilidade dos básicos que não tiveram cunha para ficar em Bissau.

Como é óbvio, não partilho desta opinião até porque alinhei no duro e, como já há muito referi, muitos foram os locais onde permaneci como operacional e comandante de pelotão (Contuboel, Sonaco, Bafatá, Bambadinca tabanca, Sare Bacar, Nova Lamego, Medina Mandinga, Galomaro e Dulombi - aqui só com o meu grupo, a Companhia deste Batalão tinha abandonado a posição, o Curobal estava perto e com este número de homens o coração esteve sempre a bater) .

Refiro ainda as muitas viagens no Geba em comboio de batelões, para reabastecimento das unidades no interior - a malta do Xime e Bambadinca sabem a que me refiro -, bem assim como as de Dakota, Nord'atlas e DO por todo o território e muito em particular as levas in extremis de munições por esta via a Nova Lamego e Aldeia Formosa no período quente de 1973, já que a via fluvial, marítima e terrestre, era morosa para as necessidades.

Lembro inclusivé a leva de 36 urnas para esta última localidade por o stock se ter esgotado, tantas eram as baixas nas nossas forças...

Tudo este relato para quê? Para vos dizer que sei, vivi e sofri a martirizarão do mato e a boa vida dos guerrilheiros do ar condicionado.

Vou procurar o Catana para que faça o relato da emboscada. Eu estarei por aqui.

Um abraço a todos,
M. Oliveira Pereira
(ex-Fur Mil CCAÇ 3547)

Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Picada de Quirafo > Fevereiro de 2005 > Restos da GMC da CCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74), que transportava um grupo de combate reforçado, comandado pelo Alf Mil Armandino, e que sofreu uma das mais terríveis emboscadas de que houve memória na guerra da Guiné (1963/74)... Foram utilizados LGFog e Canhão s/rc. Houve 11 militares mortos, 1 desaparecido... Houve ainda 5 milícias mortos mais um número indeterminado de baixas, entre os civis, afectos à construção da picada Quirafo-Foz do Cantoro. A brutal violência da emboscada ainda hoje é visível, mais de três décadas, nas imagens dramáticas obtidas pelo Paulo Santiago e seu filho João, na viagem de todas as emoções que eles fizeram em Fevereiro de 2005.


Fotos: © Paulo e João Santiago (2006)

III parte do texto A tragédia do Quirafo (1)

Em 2 de Abril de 1972, lá vim pela segunda vez passar férias ao Puto. A 3, segunda-feira de Páscoa, havia o Compasso na aldeia, e aconteceu uma valente borracheira.

Os meus pais tinham alugado um apartamento em Coimbra, tinha uma irmã em Direito e assim passei as férias naquela cidade, fazendo umas saídas rápidas a outras paragens. Por volta de 20, não sei precisar ao certo, estou no café Internacional, junto à Estação Nova, com o meu amigo Julião, ex-Alf da CCAÇ 2701 (2). Entra o meu colega Esteves, da Escola Agrícola, e também Alf Mil em Fulacunda, se não me engano, chegado para férias na véspera, que vem sentar-se à nossa mesa. Perguntou-me onde estava a minha unidade, dizendo-lhe que no dia 2 tinha ficado parte em Galomaro e a restante no Saltinho.

Noto que embatucou. Pergunto:
- Passa-se alguma coisa ?
- Eh pá - responde-me - em Bissau constava que morreram muitos militares numa emboscada no Saltinho.

Venho cá fora comprar o Diário de Lisboa, volto para a mesa, abro o jornal e no local onde vinha a necrologia da guerra vinha escrito: Morreram em combate na Guiné: Alf Mil Armandino (resto do nome e naturalidade)... Seguia-se um Fur Mil, de que não recordo o nome, mais os nomes e naturalidades de mais quatro ou cinco militares.

Eu e o Julião ficámos transtornados. Voltei a ler os nomes, sentindo alguma descompressão por não ser ninguém do 53. Nos dois dias seguintes vieram mais nomes publicados de mortos na Guiné: só conhecia um, o Demba, o comandante da Milícia em Madina Buco.Tinha o resto das férias estragadas, ía ser um mau fim de comissão.

Devo notar que o Spìnola não se encontrava na Guiné quando aconteceu a emboscada, havia aqui mais um arremedo de eleições Presidenciais e haveria alguns elementos mais moderados do regime que tentaram substituir o venerando Thomas pelo Caco. Correu esse boato.

Regressei ao Saltinho onde fui encontrar um ambiente de cortar à faca e onde já estava reunido todo o Pel Caç Nat 53.

Os factos passados antes e após a emboscada foram-me relatados pelos meus Furriéis Dinis e Martins e pelos 1ºs cabos Cosme, Pina e Sanhá. O Fur Mil Mário Rui teve um desempenho de grande valor e coragem que o deixou fortemente abalado psicologicamente. Mais tarde no reordenamento de Contabane, dormíamos no mesmo compartimento, ele tomava dois Vallium por noite para conseguir dormir. Das poucas vezes que estive com ele, aqui em Portugal, notei que continuava ainda muito apanhado pela actividade que teve em 17 de Abril de 1972.

Em 10 de Abril de 1972, por ordem do comandante de Batalhão [BCAÇ 3872], C. Lemos, executada de imediato pelo proveta Lourenço (1), começou a abertura da famigerada picada, ligando o Quirafo à foz do Cantoro. Era uma segunda-feira.

Continuaram com os trabalhos durante a semana, interrompendo no Sábado e Domingo. Segunda-feira, 17, voltou a sair, para os trabalhos um Gr Comb comandado pelo Alf Mil Armandino, transportado numa GMC e num Unimog 404. Pararam em Madina de onde levavam 2 secções de milícias e pessoal civil para proceder à desmatação do itinerário que estavam a abrir.

Há uma informação que me transmitiram e que sempre tive dificuldade em acreditar ser possível, mas ainda em Fevereiro de 2005, em Madina, voltaram a confirmá-la. Dizem-me que ao chegar a Madina, o Demba, comandante das milícias, disse ao Armandino que um caçador na véspera, Domingo, tinha encontrado um local já perto do Quirafo, onde no Sábado um grande grupo do IN estivera emboscado à espera da tropa. E dizia mais:
- A população não quer ir e será melhor desistir da picada.

Qual a razão que levou o Alf Armandino a não acreditar ? Porque quis prosseguir, utilizando até algumas ameaças para obrigar os civis a subirem para a GMC ? Não tenho uma explicação racional para esta atitude.

Prosseguiram. Segurança nula. Imaginem uma GMC carregada a monte com militares, milícias e população civil numa zona de perigo.

Perto do Quirafo o condutor da viatura apercebe-se de um turra armado atrás de um baga-baga. Trava e rebenta o fogachal. Apesar de não terem entrado completamente na zona de morte, morrem logo uns civis aos primeiros tiros e roquetadas . A confusão foi infernal. O Alf Mil Armandino abriga-se atrás da roda da frente da viatura, é detectado, atiram uma roquetada na roda que lhe fica nas costas e é o fim.

O Unimog que vinha sem ligação nenhuma com a GMC fez meia volta aos primeiros rebentamentos. Há uns militares que se deitam no chão da viatura, mas há um 1º cabo de transmissões que, a certa altura, se levanta, salta com o AVP1 às costas, apanha um tiro no braço e corre em direcção aos atacantes. É apanhado à mão. O IN logo de seguida aponta uma canhoada (é verdade, uma emboscada com canhão S/R!!!) para o centro da viatura, estavam lá oito homens e umas granadas de bazooka, ficaram queimados e desfeitos.

Não consigo escrever mais hoje. Continuarei.

Paulo Santiago

Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Saltinho > Contabane > Pelc CAÇ 53 > 1972 > O Paulo Santiago com o canhão sem recuo 82 B-10.

Foto: © Paulo Santiago (2006)

Guiné > Canjadude > 1974 > Posto de controlo do PAIGC, vendo-se um grupo de guerrilheiros armados com duas armas míticas e temíveis: a Ak 47 ou Kalash e o LGFog RPG-7.

Fonte: João Carvalho / Wikipédia > Guerra do Ultramar (2006) (com a devida vénia)

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Notas de L.G.

(1) Vd. posts anteriores:

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)

(2) A CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72) foi substituída pela CCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74).: vd post de 25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P985: CCAÇ 3490 (Saltinho), do BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)

Guiné 63/74 - P989: SPM - Serviço Postal Militar (Beja Santos)

Lisboa > 2006 > Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70). Conhecido afectuosamente, entre os seus camaradas de guerra da zona leste, sector L1, Bambadinca, como o "tigre de Missirá" (1).

Foto: © Beja Santos (2006)

Texto, enviado em 30 de Junho último (com a menção "para o teu mês de férias"), pelo meu camarada e amigo Beja Santos, membro da nossa tertúlia.

Caro Luís:

O texto não é inédito, mas creio caber completamente nos intentos do nosso blogue. Tu publicas quando quiseres. A minha ausência durante algum tempo não deve ser encarada como menos companheirismo pelo teu esforço inexcedível. Não te esqueças que já tenho 61 anos e a energia tem limites. Mas não duvides que a partir das férias darei uma contumaz colaboração. Na 2º quinzena de Julho telefono-te.

Abraços do Mário Beja Santos





Guiné-Bissau > Cacheu > Barro > 1968 > Feliz Natal..."Este é mais outro aerograma que descobri. Mandei-o, pelo Natal, em 1968. O que eu quis transmitir é que eram natais de morte e que o que procurava era esquecer, dando de beber à dor". Aerograma: "Querida irmã e cunhado, um Natal feliz e que o Ano Novo seja sepre melhor que o anterior. António Manuel... Uma ginginha!.. Pois dar de beber à dar é o melhor" (2)...

Fonte: © A. Marques Lopes (2005)



A HISTÓRIA DE PORTUGAL ATRAVÉS DO SPM (3)

por Beja Santos

Para quem nasceu depois do 25 de Abril, SPM não quer dizer nada. No entanto, para cerca de um milhão de jovens que combateram na guerra colonial ou que intervieram em tal período noutras parcelas do Império, SPM era a ligação à vida que ficara por viver no outro lado do oceano.

Se adicionarmos a cada militar o seu agregado familiar, temos milhões de portugueses a comunicar por escrito, entre 1961 e 1974. Inventou-se o aerograma, uma folhinha amarela ou azul, que se dobrava e colava, circulando de avião entre as províncias e a Metrópole.

SPM era o acrónimo de Serviço Postal Militar, um engano na sua codificação significava ficar sem notícias durante bastante tempo. Estes aerogramas, caso venham a ser estudados, são seguramente o depósito mais importante das mentalidades deste período crucial da nossa História.

Os comandantes militares advertiam os seus subordinados de que nunca se devia falar da guerra nos seus aerogramas, recordando mesmo que a polícia política os podia ler. A prática ensinou que tal recomendação não podia ser seguida, pois os combatentes tinham que falar das suas vidas. Não sendo a minha estória útil neste caso, posso depor que por cada aerograma que escrevi teria sido convocado pela PIDE todos os dias, já que fiz o meu diário com referências a operações e patrulhamentos, relato de feridos e mortos, contactos estabelecidos, juízos sobre oficiais, sargentos e praças, menções geográficas delicadas, opiniões desfavoráveis quanto ao evoluir da guerra, etc. Nada me aconteceu porque certamente a PIDE tinha outras coisas mais importantes a fazer.

A vida afectiva de milhões de pessoas está contada nestes aerogramas. Houve gente que adoeceu ou que até se suicidou porque recebeu denúncias de traições das mulheres, morte de familiares, perda de colheitas, negócios mal sucedidos... E quem ler esta prosa fica, no mínimo, a perceber que os da Metrópole não percebiam praticamente nada sobre a atmosfera da guerra.

Como é público, o Arquivo Histórico Militar já está a receber toda a correspondência trocada neste período por quem, voluntariamente, a quiser entregar. Oxalá todos nós tenhamos consciência de que este património é único, bem como os relatos das operações, as fotografias, as lembranças de artesanato e até o armamento capturado.

Nenhuma outra geração poderá ser tão bem analisada como a minha, nos seus gostos e preferências, nos seus anseios e esperanças, na radiografia das suas dores e na aprendizagem da adultez no quotidiano da guerra. Mas os da Metrópole também podem ser melhor conhecidos dado que estes relatos não omitiam a esfera do íntimo: a prosperidade ou o abandono das aldeias; o crescimento suburbano, o mais ensino, saúde e habitação; a emigração ou os primórdios da sociedade de consumo; o alento que se pretendia dar ao familiar combatente, mesmo quando não havia nenhuma convicção ideológica na defesa da Pátria.

Toda a década de 60 (a que António Barreto chamou “década de ouro do desenvolvimento português”) está aqui espelhada e microscopicamente contada nestes aerogramas que tendem a ser deitados para o lixo quando os seus protagonistas morrem ou, a arrumar os seus papéis, verificam que estes documentos deixaram de ter significado nas suas memórias. É tempo de reflectirmos sobre o que eles nos podem contar, seja como memória viva, seja como testemunho de uma guerra que alguns ainda acreditam que poderia ter sido ganha pela força das armas.

D’este viver aqui neste papel descripto reúne as cartas de guerra de António Lobo Antunes para a sua mulher, entre 1971 e 73, quando combateu em Angola. O título é uma citação de uma carta de Ângelo Lima ao Prof. Miguel Bombarda, e supunha-se ser este o nome do primeiro romance de Lobo Antunes, que acabou por ser Memória de Elefante (aliás, sobejamente referido nestes aerogramas).

Estas cartas são de uma enorme vibração, muitos leitores poderão rever-se, outros conhecer um brutal testemunho da guerra. Primeiro, sentimos o palpitar daquele que viria a transformar-se num dos nossos maiores escritores. Para quem conhece as suas primeiras obras, há aqui expressões nestes aerogramas que o identificam:

- “O calor é enorme e grosso: dá-me a sensação de respirar a palha de um colchão”;
- “aqui estou eu, em Luanda, sob um calor tórrido: o chichi parece chá, os mosquitos formam nuvens densas, e ao tomar duche o corpo sabe-me a sal”;
- “Isto é o fim do mundo: pântanos e areia. A pior zona de guerra de Angola: 126 baixas no batalhão que rendemos, embora apenas com dois mortos, mas com amputações várias. Minas por todo o lado. A Zâmbia quase à vista”;
- E, finalmente, “O que mais me aborrece aqui é a estupidez e a histeria dos alferes. Falam aos gritos, discutem constantemente, emitem uma média de 83, 5 palavrões por minuto (...) O alferes G., madeirense, traz permanentemente debaixo do braço um livro de actas que parece um registo de baptismo. No interior (folheei-o ontem) toma ele nota das fitas que vê. Várias colunas: nome do filme, actor e actriz principal, classificação. Mas adiante, pensamentos recolhidos do Hall Caine. E versos, sonetos patrióticos dizendo que é bom morrer defendendo Portugal! O alferes E., cabo-verdiano branco, com um sotaque desagradabilíssimo, lê o Larteguy e fotonovelas policiais, e tira um curso de detective particular por correspondência (...)”.

Segundo, são cartas de guerra mas também podem ser vistas como um romance. Quando a prosa é muito boa, o leitor pode sempre que questionar se está a ler um diário, correspondência, ou pura ficção. Romance em que um alferes-médico escreve apaixonadamente à sua mulher, fala da sua ternura, da moral das tropas, da intensidade da guerrilha, do quotidiano. Como todos os militares, barafusta pelo atraso das cartas, enuncia os seus projectos, queixa-se das cartas dos seus familiares, como se ele estivesse a fazer safari. A mulher está grávida e fala-se na criança que vai nascer. As saudades crescem, a criança nasce, o alferes vem à Metrópole. O resto não se conta porque o leitor tem todo o direito de conhecer os dois anos de comissão de António Lobo Antunes, acompanhar os seus estados de alma e um amor que roçou o sublime.

E quem tem dúvidas de que a guerra colonial existiu e transformou várias gerações, leia este livro (4).

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Notas de L.G. :

(1) Vd. post de 29 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

(2) Vd. post de 18 de Dezembro de 2005 > Guíné 63/74 - CCCLXXXVIII: O meu Natal de 1968 em Barro (A. Marques Lopes)
(3) Artigo publicadop originalmente no Notícias da Amadora, edição 1632, de 22 de Junho de 2006
(4) Título: D'este viver aqui neste papel descripto
Autor: António Lobo Antunes
Editora: Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2005, 432 pp.
ISBN: 972-20-2898-7
Vd. o site não oficial do escritor > António Lobo Antunes