sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2498: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (18): Operação Punhal Resistente

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca)> 1969 ou 70 > Belíssimma vista aérea da tabanca de Samba Juli, sendo visível o perimetro de arame farpado, as valas e os abrigos individuais > Em Fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sediada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e , Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)... Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos nharros da CCAÇ 12... Neste episódio, passado m Dezembro de 1969, Beja Santos refere a sua ida a Samba Juli, fazer um transporte de doentes, com o seu Pel Caç Nat 52, agora destacado em Bambadinca e morrendo de saudades de Missirá ... A lealdade dos fulas(ou a sua aliança política com os tugas contra o PAIGC) era paga com estes e outros serviços... (LG)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Capa (deteriorada) do livro de Georges Simenon, Maigret em Nova Iorque. Lisboa: Livros do Brasdil., s/d. (Colecção Vampiro, 111). Capa de Cândido Costa Pinto. "Luís, foi assim que ficou o Maigret quando cai em Ponta Varela. Cheira ainda a água da bolanha" (BS)

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.

Texto enviado, em 18 de Novembro de 2007, pelo nosso camarada e amigo Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):


Luis, aqui te entrego mais um texto, não sei porquê fora da medida habitual. Não te esqueças que já te enviei as ilustrações do Tennessee Williams, o livro do Simenon segue hoje pelo correio. Dou-te a notícia cheio de alegria: telefonou-me ontem o escritor Mário de Carvalho a dizer que aceita, na sessão de lançamento de Na Terrra dos Soncó apresentar o livro, com o general Lemos Pires. Tenho uma profunda admiração pela obra dele, sinto que ele está a crescer e se aproxima do Saramago e Lobo Antunes. Espero não fazer pausa até ao Natal, para depois fazer uma semana de férias. Recebe um abraço do Mário

2. Operalção Macaréu à Vista - Parte II > Episódio XVIII > OPERAÇÃO PUNHAL RESISTENTE
por Beja Santos

(i) Bambadinca, entreposto de encontros e desagravos


Já se passou um mês, Bambadinca entranhou-se finalmente na minha vida desde o cais até às tabancas próximas, desço com a toda a naturalidade até à povoação, vou palrando com militares e civis, estonteio-me com os cheiros do mercado, no cais olho ao fundo, com pudor, os palmares de Finete, subo a rampa para o quartel a conversar com Queta Baldé, Serifo Candé e Tunca Sanhá, vamos ver o estado das munições, convoco o pelotão para a revisão das armas, quero ver os carregadores dos apontadores de dilagrama, as granadas de bazuca e de morteiro.

Nisto, aproxima-se de mim o milícia Gibrilo Embaló, de Missirá, já tinha saudades deste excelente soldado, sempre amável e de uma compostura inexcedível. Olhando para o chão, pede-me para vir para o pelotão, conversamos sobre tal impossibilidade, se ele quer ser caçador nativo terá que se inscrever e depois fazer a recruta em Bolama, estou pronto a fazer uma declaração que refira as suas qualidades. Queta Baldé aproveita para lhe dizer que no seu tempo (isto é, 1966) a recruta e a especialidade eram 8 meses a fio, agora é menos, em seu entender isso é mau, reflecte-se na preparação das tropas...

Há quem esteja a ouvir a conversa e manifeste discordância, é malta da CCAÇ 12, Serifo manda calar os meninos, pergunta-lhes se eles já estiveram debaixo de fogo em Porto Gole, Enxalé, Bissá, se já subiram a Madina, se fizeram a estrada Xime-Ponta do Inglês, se entraram no Buruntoni, se sabem o que é uma emboscada de duas horas ou ver Missirá em chamas, a contar as balas, se sabem o que é ir todos os dias a Mato de Cão, depois a gritaria sobe de tom, insultam-se, vejo punhos ameaçadores, olhares chamejantes, é o momento exacto em que partimos para ver o estado das munições, eles ainda não sabem mas ao anoitecer partiremos para Fá Mandinga, daqui andaremos às voltas entre Fá de Baixo, Santa Helena e Mero, o pretexto é um recenseamento das populações, a verdade é que apareceu um grupo armado em Bricama, teme-se que tenham atravessado o Geba, um informador avançou mesmo que é gente que terá vindo através de Bucol, da base de Sinchã Jobel.

As munições estão em ordem, com uma secção ainda vamos buscar doentes a Samba Juli, chegou depois a hora do almoço. As refeições na messe, já constatei, podem ser litigiosas. O tenente Gilde apanhou dez dias de prisão por ter gritado com o major Sampaio, recordando-lhe que já se servira três vezes de leitão, havia oficiais que ainda não tinham comido, era o meu caso, que ouvi toda esta discussão aos berros na porta de vaivém, o tenente Gilde saiu aos palavrões, o major Sampaio perseguiu-o a gritar, comi o mais rapidamente que foi possível, agoniado por estas guerras da comida.

Sim, ao fim de um mês, quase esqueci os petromaxes de Missirá, o bingo a feijões na messe, as rondas de madrugada, tenho muitas saudades das conversas com o Lânsana, o gralhar das crianças, recordo agora o Natal passado, que vivemos tão intensamente. Pelo meio, o Moreira e o Abel, os meus camaradas de quarto, são muito tolerantes com os meus gostos musicais. O Moreira, no entanto, logo me advertiu:
-Pá, aquela gaja que canta em italiano e parece que está a morrer, ainda podes ouvir um bocadinho alto, não sei o que ela canta mas é bonito. Mas aquela outra gaja que está mais de vinte minutos aos berros e que consegue cantar mais alto que a música, por favor, ouve-a quando estiveres aqui sozinho.

O Moreira, afinal, gostava de La Bohème, de Puccini, e detestava o final da Salomé, de Strauss, cantada pela Inge Borkh. Até o correio aqui tem outro sabor. Recebo notícias do Fodé Dahaba, parece que a distância aumentou. O filho de Quebá Soncó, Mamadu, bateu-me à porta, dá-me um beijinho, deixa-me uma carta e foge. Afinal, pede-me material escolar e quer ir comigo a Bafatá para eu lhe comprar livros de aventuras.

Oiço a voz alta do nosso médico no corredor, o nortenho Vidal Saraiva anda furioso, vai ser ouvido nos termos do art.º 130º do RDM, foi encontrado pela polícia militar uma noite em Bissau sem a boina na cabeça, arrisca uns dias de prisão, anda apavorado, desinibe-se com este vozeirão, é assim que ele afasta os maus presságios.

Saio em direcção à secretaria, tenho o Braima Mané à minha espera. Os médicos de Bissau conseguiram pôr o seu braço direito a mexer, mas de resto tudo lhe corre mal. Veio pedir-me cinco escudos para comprar arroz, está todo sujo do barro dos adobes, pois anda a fazer uma morança no Bambadincazinho, não quer viver em Finete onde o seu irmão mais velho lhe engravidou a mulher e depois escorraçou-o da tabanca.

Na secretaria tenho alguns autos à minha espera, afago a minha caneta Montblanc, que me chegou ontem pelo correio, oferta da minha Mãe quando eu fiz o 5º ano, deixei-a em Lisboa, a que ardeu em Missirá era uma Parker 21. Aliás, toda a correspondência que passei a enviar já tem a marca da tinta Quick, a Bic é sempre um último recurso. Chega o correio, recebo um aerograma do Chico Henriques da Silva, que está agora no Olossato, passa semanas isolado num destacamento chamado Ponta Maquê, parece-me, abro um sobrescrito e sai de lá a revista O Tempo e o Modo, é um número dedicado a António Sérgio e vejo que há um artigo assinado pelo José Medeiros Ferreira (2), o Pina escreve a dizer que tem o dedo engessado e em breve regressa...

Alguém entra na sala e dá a notícia que o Pimbas, o primeiro comandante do BCAÇ 2852, já regressou a Lisboa, com o atestado de inapto... É nisto que entra de repelão o Gomes da messe, pede para me falar em particular, como sou o gerente venho imediatamente, pode haver alguma falta, afinal o motivo é outro, a queixa dos faxinas que nos limpam os quartos deixa-me embaraçado: o Cherno entrou com um balde e vassoura, vinha pronto a lavar-me o quarto, não aceitou que sejam outros a fazer a limpeza, houve discussão:
-Talvez seja melhor o meu alferes convencer esse tipo que diz que é seu guarda-costas a não voltar a aparecer aqui, ele tinha um olhar furioso, o que mais nos impressionou foi aquela quantidade de granadas de morteiro que ele trazia à volta do pescoço e na cintura, diz que é assim que anda consigo. Se aquilo rebentasse, estávamos feitos.

É assim que vivo em Bambadinca, penso que é normal na minha idade adaptar-me a isto tudo, onde eu estou a quebrar, a sentir diferenças brutais, é nas insónias, quando de manhã me levanto, depois de ouvir os camaradas a dormir bem, toda a luz do dia me magoa e me recorda o corpo moído, sem vontade de afrontar as idas à picada.

(ii) Em Fá Mandinga, o território do Jorge Cabral

Eu tinha as notas de uma ida a Fá Mandinga, nas vésperas de partir para a operação Punhal Resistente, que se realizou um pouco antes do Natal. Segundo o Jorge Cabral, comandante do Pel Caç Nat 63, ter-nos-emos conhecido em Julho, na tasca do Zé Maria (3). O 63, nessa altura, fazia de pau para toda a obra em Bambadinca, o que é hoje o nosso destino.

O Jorge Cabral recebeu-me há pouco tempo na Universidade Lusófona, onde conversámos sobre este patrulhamento a Mero e Santa Helena. Quando lhe perguntei se ele se lembrava de um ataque de abelhas que apanhámos na operação Lua Nova, perto do rio Bissari, ele confirmou tudo com o seu sorriso maroto e manhoso. E lembrava-se perfeitamente do nosso mano-a-mano a partir de Fá Mandinga, ele descendo a bolanha até ficar em frente à aldeia do Cuor, eu patrulhando Santa Helena, Fá de Baixo e depois Mero, numa tentativa de enxotar os intrusos de Madina em direcção ao Geba estreito, onde seriam apanhados pelo 63 ou no caso de atravessarem a nado terem do outro lado à espera o Alves Correia, de Missirá [Pel Caç Nat 54]. Ajudou-me a reconstituir o quartel de Fá Mandinga, de que guardo uma imagem difusa, não tendo esquecido, no entanto, a boa qualidade das instalações, que eu sempre associara a um quartel destinado a uma companhia e que precedera, de facto, a construção do quartel de Bambadinca.

Quando se entrava em Fá, tinha-se a noção de que houvera ali um centro agrícola experimental, lojas coloniais, talvez um presídio. O Cabral tudo confirmou, Fá tivera importância noutros tempos (tal como Geba, era a ponta avançada da presença colonial, até ao séc. XIX), havia uma zona de instalações antigas que estavam vedadas à tropa (tinha mesmo um guarda civil do Governo da Província), possuía excelentes instalações para a tropa ficar acantonada (4) , o quartel tinha valas e não havia abrigos, toda aquela região do Joladu era calma, sabia-se da cambança da gente de Madina, em Bissaque havia muitas tensões, os patrulhamentos eram completamente infrutíferos, os apoios das populações aos rebeldes eram uma realidade, só que nós não sabíamos os códigos de entendimento.

O que fizemos foi mais um patrulhamento pelas bolanhas e uma acção psico entre Mero, Santa Helena e Fá Mandinga. Era pelo bombolom que a gente de Madina chegava ao Joladu, mas nós naquele tempo nada sabíamos. E foi assim que passámos a tarde, a noite e a madrugada, entre as lamas e os mosquitos das férteis bolanhas da região de Fá, ouvindo sempre dizer que gente do mato nunca vinha à região... regressámos ao amanhecer a Bambadinca, informei os soldados que fossem dormir bem pois, a meio desta tarde iríamos partir durante dois ou três dias.

(iii) As andanças infernais da Punhal Resistente

Chegado ao quartel, fui logo falar com o major Sampaio para saber mais detalhes da batida prevista paras a região do Buruntoni, a partir do Xime. Segundo o oficial de operações, haveria dois destacamentos, um com gente de Mansambo [, CART 2404,], outro com o 52 e a gente do Xime [, CART 2520].
-Esteja descansado, os guias são muito bons. Estarei amanhã sobre vós, procurarei acompanhar as vossas rotas, vocês vão cercar o Buruntoni por terra firme, escolhi a tropa mais experimentada que disponho.

No regresso, escrevi à Cristina:

“Saí do Xime de madrugada com mais três pelotões, fugimos sempre da estrada Xime-Ponta do Inglês, junto a Ponta Varela atravessámos a estrada em direcção Gundaguê Beafada, a ideia era ao princípio da manhã juntarmo-nos com as tropas do capitão Neves em Gundaguê Futa-Fula, e daí avançarmos para o Baio e depois o Buruntoni. Ao meio dia, o guia diz que já não sabe o caminho, os soldados da região avisam-me que estamos a avançar para a Ponta do Inglês, a avioneta não nos dá indicações. Do Buruntoni os rebeldes desataram a fazer fogo de morteiro, aperceberam-se da insistência da avioneta sobre aquela área que eles controlam completamente. Pelas 5h da tarde, o guia confessa-se perdido, justificando que o capim alto alterou todas as referências.

"Se na operação de Mansambo estava um frio de esfarelar os ossos, alí era uma humidade asfixiante. Sem saber como, acampámos a 200 metros das tropas do capitão Neves, pelo meio dia do dia seguinte chamámos outra vez a avioneta, não tínhamos apoio da carta, começavam a chegar as insolações, a tropa exausta por andar às voltas, fugindo dos itinerários que se suspeitavam minados.

"A meio da tarde a avioneta deu ordens de retirada, isto debaixo do fogo do Buruntoni. Ao anoitecer partimos do Xime para Bambadinca, sempre a picar a estrada até Almedalai. No dia seguinte, já em cima do Natal, coube-nos emboscada, escolta e reforço.

"A 24, de manhã, o pelotão dividido em três secções andou pela ponte de Udunduma, Nhabijões, Madina Bonco e Galomaro, a levar e a trazer pessoas e coisas, eu fiquei nas ferroadas burocráticas dos processos por ferimentos em combate. À tarde, começou a nossa semana na Ponto de Udunduma”.


Em conversas recentes com o Pires e o Queta, pedi-lhes que me ajudassem a recordar pormenores daquela malfadada Punhal Resistente. O Pires foi sintético:
-Partimos a meio da tarde para o Xime, picámos tudo até ao quartel, naquele tempo, nada estava alcatroado. Fez-me muita confusão o fogo de obus, ao anoitecer e até sairmos para a operação. Recordo-me que andámos sem parar, desviámo-nos para junto do Corubal, ouvíamos os barcos no Geba, andámos na bolanha aos tombos, ao amanhecer houve discussão entre vários soldados e o guia, caminhámos à esquerda e à direita, a água dos cantis desapareceu rapidamente. Ou os guias não gostaram dos itinerários de aproximação e tudo fizeram para se afastar deles ou desconheciam o terreno, o capim estava muito crescido. O que interessa é que foi mais uma operação inútil, a juntar a tantas outras. Ficava-se sempre com a ideia de que inimigo era verdadeiramente inacessível.

Com Queta, natural da região, as memórias ainda estão em ebulição:
-Adulai Djaló, o Campino, ameaçou matar o guia que era de Madina, frente a Taibatá, de nome Samba. Estou certo que era um homem leal e não lhe deram as indicações mais certas. No meio da discussão, durante a manhã do primeiro dia, quando já estávamos perdidos, ele disse-me que procurava o trilho de Gundaguê Futa-Fula em direcção ao Buruntoni, mas que sabia que os sentinelas iriam certamente ver-nos na extensa bolanha à volta do Baio e do Buruntoni. Era o acampamento melhor situado naquela região do Corubal, todas as aproximações são difíceis, foi aqui que se instalou o PAIGC e logo começou a luta armada, a barraca deles ficava no mato fechado entre bolanhas. Ainda agora lembro a morte de Mário Adulai Camará, um dos nossos bazuqueiros, em 1967, nunca percebi por que é que não lhe deram uma condecoração, combateu mais de meia hora lançando fogo da bolanha para dentro da mata, nós não podíamos andar mais, tal o fogo dos morteiros 82. Aquela operação foi uma grande canseira, nosso alfero, nós não gostávamos daquelas correrias dentro da mata, era pena nunca perguntarem às pessoas da região, como eu, quais os sítios possíveis para se chegar lá. Quando atacámos Belel, em Março do ano seguinte, nosso alfero escolheu a pessoa certa, Cibo Indjai, ele escolheu o trilho possível, entrámos na barraca de Belel quando eles estavam a descansar ao almoço. Foi pena os oficiais brancos não quererem falar connosco antes das operações. Nós éramos fiéis à bandeira portuguesa, nunca pensavam em nós como gente interessada em acabar rapidamente com a guerra.


(iv) A semana Tennessee Williams

Não resisto a contar a história de um livro Maigret em Nova York, de Georges Simenon. Levava sempre no camuflado um ou dois livros revestidos em plásticos, para aguentarem as águas da bolanha e as chuvadas. Levei para o Xime o n.º 111 da colecção Vampiro, uma leitura emocionante, Maigret já está reformado em Meung-sur-Loire é procurado pelo um jovem, Jean Maura, que lhe pede que vá a Nova Iorque ver que perigos corre o pai, ideia que é corroborada pelo notário da família.

Maigret viaja num paquete transatlântico, o jovem Jean Maura desaparece à chegada, o encontro com o pai, Little John, e o seu secretário é acidentado mas Maigret continua a investigar com auxílio de colegas norte-americanos e detectives recrutados. São deambulações mirabolantes, há recordações de artistas que se lembram de uma dupla de dois irmãos, em que um deles era Little John. Há momentos fulgurantes, mas nada tem a força com um telefonema que Maigret faz a Joseph Daumale, de Nova Iorque para Bourboule, é um interrogatório a cinco mil quilómetros de distância como nunca mais lerei nas obras de Simenon. Vou devorando aos bocados, todas as pausas disponíveis são boas para ler. Nas bolanhas de Ponta Varela entrei dentro de água até à barriga, quando saí o meu livro policial deformara-se. Gostei tanto dele, no entanto, que resolvi guardá-lo até hoje, uma homenagem às leituras emocionantes, em tempos tão difíceis.

Mas as leituras da semana centraram-se em Tennessee Williams. Primeiro, li um Eléctrico Chamado Desejo, premiado com o Pulitzer. Vira a peça no teatro de São Luís, no dia dos meus anos, em 1966, na companhia do Carlos Sampaio, Eduardo Canto e Castro e José Nogueira Ramos. Mariana Rey Monteiro desempenhara Blanche DuBois, que no cinema dera a Vivien Leigh um Óscar. É um drama que nos fala da desambientação, da repressão sexual, da doença mental, as múltiplas mentiras a que por vezes nos entregamos na construção dos nossos sonhos. Blanche, que tem poses de aristocrata, vai viver para casa de Stella, a sua irmã, casada com o musculado e abrutado Stanley Kowalski. Numa atmosfera de permanente tensão, Blanche procura transmitir aos outros a ideia de um mundo refinado de onde provém, que se vem a descobrir ser fruto de uma imaginação delirante. Blanche é um caso único de mulher a caminho da meia idade que arquitecta situações amorosas, acantonada numa juventude inexistente. De ficção em ficção, Blanche irá ser internada, e a casa dos Kowalski voltará à normalidade.

A noite de Iguana que vi no filme de John Huston, com Ava Gardner, Richard Burton, Deborah Kerr e Sue Lyon nos principais protagonistas, é um outro drama de sexo reprimido, solteironas em fúria, um padre em sofrimento perseguido por uma adolescente, uma viúva sempre em festa, um avô poeta que vai recitar o seu mais belo poema e morre ao pé da sua neta tão amada. A iguana, um animal perseguido e acorrentado que o reverendo Shannon liberta naquela noite de todas as libertações, é o símbolo da verdade que se solta, da vida que é possível ser vivida. Gosto cada vez mais de Tennessee Williams e dos seus personagens em afrontamento, em que nada fica como dantes.

Aproxima-se o Natal, vivo o dissabor de não poder fazer uma festa, não tem sentido particularizar o evento no ambiente de um grande quartel. Entrego-me à pira das recordações, procuro compor uma exaltação ao Deus menino. E a 24 de Dezembro, já na noite escura, um pouco antes da nossa consoada na messe de Bambadinca os enfeites verbais conjugaram-se, todo o marulhar de saudações e saudades afluiu numa prosa poética. Afinal, o meu coração estava lá e cá, continuava a combater e, julgava eu, estava pronto a recomeçar uma vida onde se apagava a guerra da Guiné.
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Notas dos editores:

(1) Vd. o último poste desta série:

25 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2480: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (17): Cartas de Bambadinca, Dezembro de 1969

(2) Vd. poste de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

(3) Vd. poste de 18 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1534: Estórias cabralianas (19): O Zé Maria, o Filho, Madina/Belel e um tal Alferes Fanfarrão (Jorge Cabral)

(4) Vd. poste de 27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2135: Estórias cabralianas (26): Guerra escatológica: o turra Boris Vian (Jorge Cabral)

Guiné 63/74 - P2497: O dossiê António da Silva Batista: um caso de indignidade humana (Torcato Mendonça)

1. Mensagem do Torcato Mendonça, comentando o último poste do Paulo Santiago (1):

Paulo:

li e nem dá para acreditar. Defines, numa palavra, numa simples palavra, o que se está a passar – uma merda!

Qual Simplex ou Duplex, talvez Durex que, se não me engano, era marca de preservativo…

Então não há quem ponha cobro a esta indignidade? Creio que o V. Briote ou o Luis Graça levantaram, quanto a mim bem, a hipótese de o Camarada enterrado, como sendo o Batista, ser o Militar dado como desaparecido no relatório da Companhia. Mas isso compete ao Exército averiguar e esclarecer. É uma indignidade. Quando devolvem a paz àquele homem? Não vou reler o muito que se escreveu, mas:

(i) era bom que antes do dia 9 se obtivessem mais informações;

(ii) caso fosse necessário alguém devia acompanhar o Batista;

(iii) fazer um dossiê com tudo o que se escreveu, e interesse tenha, para apresentar se necessário a quem venha a ser chamado a tratar do assunto. Refiro-me a Militar ou a advogado. Tem que haver um processo e o Estado, o nosso Estado, é responsável;

(iv) além de ser assunto a ser tratado dentro da esfera militar, tem, caso se protele no tempo ou seja tratado de modo considerado menos correcto, uma decisão politica e nisso é responsável o Secretário de Estado e o Ministro da Defesa.

BASTA! Aquele homem merece um reparo. Tem direito, ele e muitos que se arrastam…não vale a pena continuar. Sentes ainda mais forte que eu este problema.

Um abraço a todos, neste caso, especialmente aos que têm tentado ajudar o Batista e a todos os que como ele tão injustiçados ainda estão…

Tenho uma fixação pelo Quirafo e só lá passei uma vez, duas…? Naquelas colunas malucas, antes da estrada Bambadinca/ Xitole ou Mansambo/Xitole ser reaberta.

Para ti, Camarada, um forte abraço do,

Torcato Mendonça

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Nota dos editores:

(1) Vd. poste de 1 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2494: Sr. Ministro da Defesa, parece que não há Simplex que valha ao António da Silva Batista! (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P2496: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (5) (Carlos Silva)

O guião alternativo do BCAÇ 2879, o Batalhão dos Cobras.

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Continuação da História do BCAÇ 2879


Farim, a sua história e as suas gentes.

O Carlos Silva dá a oportunidade, até agora única, aos que passaram por Farim, Jumbembem, Canjambari, Cuntima e K3, de reverem gentes e terras, inesquecíveis para tantos de nós.

Fixação do texto: vb

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Farim, 1969 - Vista aérea

Localização

A Vila de Farim situa-se a cerca de 150 Kms a Norte de Bissau e a cerca de 50 Kms. a Sul da fronteira do Senegal e na margem direita do Rio Cacheu.

É constituída por uma dúzia de ruas perpendiculares umas às outras e de terra batida, cor de fogo, junto a zona ribeirinha, onde existem casas térreas construídas em alvenaria, de traça colonial, com os seus alpendres e jardins, não tão bem tratados como os existentes em Bissau.

Circundando esta zona urbanizada, para o lado Norte, existem os bairros conhecidos por Sintchã(2), Morcunda, Bantadjam e Nema, situado à saída da Vila e junto à estrada que dá acesso à localidade fronteiriça do Dungal.

Podemos considerar o terreno plano, existindo uma pequena elevação a caminho de Nema onde tinha sido construído um aquartelamento.

“Debruçada sobre o rio Cacheu, Farim tem já o aspecto de uma pequena cidade, animada por um intenso movimento comercial.

Fundada em 1641 por Gonçalo Gamboa Ayalla, é uma das mais antigas povoações da Guiné.”(
3)

Mapa com a localização de Farim.

Mapa do sector de Farim, que tem a configuração de um coração achatado
Ver a partir da fronteira Dungal>Farim>Ionfarim>Canjambari>Sitató

No dizer de Armando de Aguiar, (4) Farim é das maiores circunscrições. Aproximadamente 5.000 Kms2 e cerca de 58.000 habitantes distribuídos pela sede e postos de Bigene e Cuntima, perto da fronteira com o Senegal, Mansabá e Olossato, no interior.

É das mais ricas regiões da Guiné, e foi há três décadas um dos mais importantes centros comerciais. A população europeia fugiu, abandonando a luta diária, atraída por outras miragens. E, no entanto, a evoluída Vila de Farim, velha praça-forte onde os capitães Lima Júnior e Jaime Falcão se firmaram em mais de uma circunstância arriscada, é sede de uma importante circunscrição.

Tem uma escola onde se ensina a língua portuguesa aos habitantes da região. Há enfermarias e na principal praça pública ergue-se um monumento aos aviadores Pinheiro Correia, Sérgio da Silva e Manuel António, que em 1952 realizaram, com êxito, a primeira viagem aérea Lisboa-Guiné.

Mas Farim, cuja fundação data de 1640, servida pelo porto fluvial de Binta, ainda é o principal centro comercial daquela região, onde se transaccionaram em larga escala madeiras, mancarra, coconote, óleo de palma e outras oleaginosas que abastecem os mercados da Metrópole e os portos do Norte da Europa, levados também por barcos da Noruega e da Suécia que subiam o rio de S. Domingos e iam a Binta carregar produtos para a Escandinávia.

Hoje (1964) esse tráfego diminuiu, mas dia virá em que Farim há-de readquirir a importância que teve (talvez, actualmente fala-se que Farim está assente sobre grandes jazidas de fosfatos e que tende a desaparecer, caso venham a ser explorados. Devendo ser transferida mais para Norte, no sentido de Lamel-Jumbembem ou para a margem esquerda do rio Cacheu).

A exportação da mancarra atingiu no 2º semestre de 1960 cerca de 12.000 toneladas. Os seus cinco celeiros trabalham sempre em pleno, distribuindo pelos agricultores milhares de quilos de semente de mancarra e de arroz, que mandingas, fulas e balantas, as principais tribos que habitam aquela região, sabem aproveitar.

Os rendimentos que revertem para os cofres da província com a exportação de produtos da região foram da ordem dos três milhares de contos. E mais podia ser se os agricultores se dedicassem, afincadamente, ao amanho da terra, utilizando as sementes das granjas e os ensinamentos da moderna agricultura que lhe são ministrados, pois o Estado possui na circunscrição de Farim uma série de granjas com o intuito de obter sementes e plantas para distribuição.

Uma capela a Nossa Senhora das Graças, erguida em 1949, é outra afirmação de fé nas antigas terras pagãs da Guiné, onde Farim, vila progressiva, debruçada sobre o rio Cacheu, com a sua vida social agradável, o seu clube recreativo e a sua piscina, espera a construção da tão almejada ponte a ligar com a estrada para Mansabá, onde ela se bifurca para Bissau ou Bafatá.

Então Farim ganhará, extraordinariamente, como importante centro comercial que já é. E esse dia, com o ritmo de trabalho verificado em toda a Província, não estará felizmente longe....”.

(Nota de C. Silva: decorridos mais de 40 anos, e após a independência do território, a ponte não foi construída e constitui apenas uma miragem para daqui a muitos anos e Farim não progrediu, mas regrediu).


Infraestruturas


Podemos considerar que Farim tinha uma razoável autonomia e vida própria, na medida em que tinha razoáveis infra-estruturas situadas na zona ribeirinha, designadamente: pista de aviação, cais de acostagem para barcos de a média dimensão, escola primária, igreja, correios, clube recreativo, piscina, campo de voleibol, um lindíssimo jardim com um coqueiral tombado na direcção do rio, monumentos.

Tinha também uma razoável actividade comercial e de restauração.

Existiam alguns estabelecimentos comerciais, Mharon Saad, libanês, Pintozinho, Pinheiro, e outros onde a malta comprava os seus relógios, Breitling, Rolex, Yema, gravadores, ventoinhas, tapetes, bandeirolas com motivos orientais, etc.

A população nativa do sexo feminino comprava aqueles panos de cores garridas, lindíssimos, que usavam enrolados da cintura para baixo e os homens compravam para o seu vestuário as célebres "sabadoras" (5), túnicas amplas, largas e compridas (fazendo lembrar o traje dos advogados “as togas” e dos juízes “as becas”), tipicamente africanos, além de outras coisas, o que prestava à Vila um colorido muito peculiar.

Havia também uma escola de condução, onde a rapaziada aprendia a conduzir e ali tirava a sua carta de condução, bem como, havia um estabelecimento de fotografia “ Foto Brigadeiro”.

Na esplanada do Pedro, também conhecido por “Pedro Turra” comia-se uma boa mariscada, ostras e uns bons frangos assados com piri-piri bem regados com as ditas “bazucas”, cerveja grande bem geladinha.

Apesar de tudo isto, podemos considerar que Farim, se mostrava degradada e infelizmente com tendência para uma maior degradação.


Farim, 1969 > Casario junto ao jardim, e piscina e capela. Zona Ribeirinha, junto do Campo de Volei.

Farim , Novembro de 1969 > Alferes periquitos observando o trabalho do artesão de tecelagem


Farim, 1969 > Alferes André e Marques da CCAÇ 2548 e Alf Capelão Manuel Gonçalves em convívio com a população e aprendendo a jogar o jogo típico das damas.



Fotos cedidas pelo ex-Alf Mil André , da CCAÇ 2548 (1969/71)


Farim > Bairro de Bantadjam na estrada para Lamel-Jumbembem.

Farim, 1970 > Vista aérea do Bairro Morocunda.

Farim em 1970 > Zona do Cais, o campo de volei e a piscina.

Farim, 1970 > Coqueiros, próximo do Pelotão de Morteiros e junto ao rio Cacheu.

Farim > Área do cais, jardim e piscina.

Farim > Jardim, igreja e monumento.

Farim, a piscina em Janeiro 1970.

Farim, 1970. Escola Marechal Carmona. Antes dos CTT e Estrada para Nema .

Fotos: Carlos Silva (2008).

População civil

O aglomerado populacional da Vila de Farim, sede do concelho, em finais de 1967, cifrava-se em cerca de 3900 elementos de diversas etnias. A Vila concentrava, portanto, um aglomerado razoável de população nativa, constituída por várias etnias, principalmente, mandigas, fulas, e alguns balantas, pelo que se considerava chão mandinga e fula.

A população nativa vivia concentrada mais a Norte das ruas ribeirinhas onde estavam implantados os edifícios que albergavam os militares e a população civil europeia, libanesa e cabo-verdiana.

Residiam nos chamados bairros de Morocunda, Sinchã, Bantadjam e de Nema, que ae estendiam para Norte, na direcção das estradas do Dungal e de Lamel, Jumbembem e Cuntima, ficando a primeira e última povoação situadas junto à fronteira senegalesa. Habitavam em casas construídas de adobe de terra e cobertas de palha (capim). Ao conjunto de habitações de um agregado familiar, designava-se por morança (6) e ao conjunto das moranças existentes no local, designava-se por tabanca (7) (aldeia).

No entanto, a Vila de Farim não era designada por tabanca e a sua divisão estava estruturada pelos mencionados bairros.

População civil europeia, praticamente não existia. Basta dizer que além dos militares e suas famílias, apenas existiam duas famílias europeias, compostas por seis elementos, presumo que apenas a família do comerciante Pinheiro e o Brigadeiro, fotógrafo.

Os poucos metropolitanos que ali viviam, ou eram funcionários ou dedicavam-se ao comércio.Ali viviam também alguns libaneses e cabo-verdianos, mas em número pouco significativo. Aqueles dedicavam-se exclusivamente ao comércio. Os cabo-verdianos, uns eram funcionários da Administração Colonial e outros dedicavam-se ao comércio.



1969 – Em Farim também havia bajudas muito lindas.



O menino e a virgem e menino rezando

Farim, 1970 – Quem não se acredita que não havia hipopótamos no rio Cacheu? Aqui está o malandro que dava cabo dos arrozais

Farim, 1970 – População regressando dos trabalhos das bolanhas do K3.

Fotos: Carlos Silva (2008).

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Notas de Carlos Silva :

(1) Farim – Na língua mandinga significa governador. "...Assim o Estado do Mali, diferentemente do Ghana, pode ser qualificado de Impéio; aos países povoados de mandingas, juntaram-se numerosas províncias exteriores, cujas populações pagavam um tributo [ por acaso muito fraco ] ao Mansa « Imperador » e onde este era representado por governadores que tinham o título de 'Farim'...”, pág. 35.

"...O Gabú torna-se assim uma província do Império do Mali, dirigida por um governador 'Farim' escolhido entre os membros dos Mané e Sané, descendentes de Tiramakhan....”, pág. 54.

"...Cada província era dirigida por um governador 'Farim', o qual recebia o seu boné de comandante dado pelo Mansa. O farim, pelo seu lado, ordenava aos chefes de distrito e aos Kanta Mansa 'guardas do mansa – Imperador' que se estabelecessem nas fronteiras do reino, que eles tinham por missão proteger. ", pág. 55.

PAIGC, 1974 - História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde, Edições Afrontamento, págs. 32, 54 e 55

(2) Sintchã – Significa tabanca nova – Álvaro Nóbrega, A luta Pelo Poder na Guiné-Bissau, ISCSP, pág. 98.

(3) In, Fernando Lindley – Missão em África, Angola, Moçambique e Guiné: Percursos de uma História, p.207.

(4) In, Armando de Aguiar – Guiné, Minha Terra, Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1964, págs. 98 a 100.

(5) Sabadora - Peça principal do vestuário dos autóctones maometanos. Amplo, de grandes mangas, e preferentemente branco. Também denominada camisa, vuvu, cabaia ou balandrau.(dialecto mandinga).

(6) Morança - Numa tabanca, a morança é um conjunto de casas, próximas umas das outras, pertencentes a pessoas com uma ligação consanguínea, agregado familiar.

(7) Tabanca – Local constituído por todo o aglomerado de casas - aldeia, unidade de base da família alargada, conjunto de várias moranças. A palavra também poderia significar a casa, também por nós chamada de palhota.
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Notas do co-editor:

vd artigos de:

30 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2491: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (4) (Carlos Silva)

24 de Janeiro>Guiné 63/74 - P2477: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim : O Batalhão dos Cobras (3) Carlos Silva)

20 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2464: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (2) (Carlos Silva)

15 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2440: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes para Farim : O Batalhão dos Cobras (1) (Carlos Silva)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2495: Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão do BART 2917: recordando a atribulada coluna logística ao Xitole, em Setembro de 1970

Fão, Esposende > 1994 > 1º Encontro da malta de Bambadinca (1968/71): CCS do BCAÇ 2852 (1969/71), CCAÇ 12 (1969/71), Pel Daimler 2606 (1970/71) e outras unidades adidas.

Na foto, o ex-Alf António Carlão, transmontano, da CCAÇ 12, é o terceiro a contar da esquerda, sendo ladeado pelo Humberto Reis e o José Luís Sousa, ex-Fur Mil da mesma unidade (à sua esquerda) e pelo J.L. Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav, do pelotão Daimler. O Carlão era, na altura, comerciante em Fão, tendo sido ele o organizador do encontro, com a prestimosa colaboração da sua Helena.

Foto: © Humberto Reis (2006).

1. Mensagem, enviada em 18 de Janeiro último, pelo nosso amigo Luís Candeias, açoriano, da Ilha de Santa Maria (e, portanto, conterrâneo do Arsénio Puim, além de seu amigo), onde é controlador de tráfego aéreo (1):

Bom dia, Luís:

O Arsénio não se zanga por eu reenviar este e-mail que recebi ontem.

Um grande abraço

Luís Candeias

2. Mensagem do Arsénio Puim para o Luís Candeias, com data de 17 de Janeiro:

Amigo Luís:

Obrigado por me teres posto no caminho de encontro com os meus velhos companheiros da Guiné. Um dia mais tarde vou entrar no blogue, quando estiver mais disponível. Confesso também que sou muito fraco, além dum pouco avesso, a estas tecnologias modernas.

Presentemente estou a preparar um livrinho sob o título «O Povo de Santa Maria - Seu Falar e suas Vivências», que espero publicar no próximo verão. Antes disso, porém, vou ir à minha ilha.

Tenho gosto em completar alguns elementos da viagem para o Xitole que o Luis Graça refere no teu email. Eu seguia realmente numa viatura com a esposa do alferes Carlão, uma simpática moça de nome Helena. Um pouco antes de Mansambo, a coluna parou de súbito. Carlão passou por mim e pediu-me para me deslocar à cabeça da coluna. Fui e topei com um grande buraco aberto no caminho por uma mina que acabara de rebentar e dois africanos estendidos no chão, que eram os picadores do pelotão de Mansambo que nos tinha vindo fazer segurança. Um estava morto e o outro, com uma perna partida e toda retorcida, olhou para mim com uns olhos suplicantes que eu nunca mais esqueci.

Continuámos viagem para o Xitole, tendo, porém, a esposa do alferes Carlão ficado em Mansambo até o regresso da coluna. Eu fiquei no Xitole, talvez por duas semanas.

As minhas saudações para a Ana e meninas.

Um grande abraço,Arsénio Puim

3. Comentário de L.G.:


As minhas calorosas saudações ao Arsénio. Faço votos para que, o mais breve possível, ele se junte a este simpático, ordeiro e bom povo da Tabanca Grande... Fico à espera de matar saudades dos bons (mas também evocar os maus) tempos de Bambadinca. Até lá desejo-lhe boa continuação da escrita do seu livro, e sobretudo muita saúde.

Sobre os factos que ele aqui descreve (uma coluna logística, organizada pelo BART 2917, no itinerário Bambadinca - Mansambo - Xitole, em que ele acompanhou a mulher do Alf Mil Carlão, da CCAÇ 12), posso acrescentar o seguinte:

(i) Tenho perfeita noção da organização dessa coluna pelo facto de nela se ter integrado o Alf Mill Capelão Puim (que ia visitar a unidade de quadrícula do Xitole, no âmbito da sua função de capelania), bem como a esposa, a Helena, do nosso camarada da CCAÇ 12, o Alf Mil Carlão;

(ii) Não consigo ser tão preciso quanto à data em que se realizou essa coluna; os aquartelamentos de Mansambo e Xitole, do Sector L1, e do Saltinho, do Sector L5, dependiam muito das colunas de reabasteciemnto feitas a partir de Bambadinca; essas colunas realizavam-se muito mais vezes no tempo seco do que no tempo das chuvas e envolviam grandes meios (viaturas civis e militares, escolta de segurança a nível de companhia, picadores, forças de segurança para guarnecer os flancos, ao longo do percurso e, às vezes até, apoio aéreo);

(iii) Na História da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) identifiquei um período onde se deve situar a cena acima descrita; tatra-se de resto de um coluna em que eu próprio participei... Transcrevo a seguir esse excerto.

4. Excertos da História da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71):


(15) Setembro/70: A CCAÇ 12 empenhada na segurança aos trabalhos da nova estrada Bambadinbca-Xime

(...) Quanto ao resto, a actividade operacional da CCAÇ 12 limitar-se-ia a colunas logísticas, tendo estado empenhada no trabsporte de 50 tonmealadas de arroz para as populações do Xitole / Saltinho, o que motivaria a realização de três colunas para o Xitole, com viatuars Berliet postas à disposição do BART 2917, nos dias 9, 14 e 15 [de Setembro de 1970].

A 14, forças da CART 2716 [, sediada no Xitole,] detectaram e levantaram uma mina A/P reforçada com 7 kg de trotil, entre a ponte do Rio Jagarajá e a ponte do R Pulon.

A 15, o Gr Comb da CART 2714 [, a unidade de quadrícula de Mansambo,] que picava o troco de estrada entre Mansambo e a ponte do Rio Timinco, seria emboscado por um grupo IN, simultaneamente ao accionamento de uma mina A/P reforçada (de que resultou a morte dum picador), escassos minutos antes da coluna Bambadinca-Xitole passar. O 1º Gr Comb da CCAÇ 12 que ia na testa da coluna, procedeu depois ao reconhecimento da área, tendo detectado trinta abrigos individuais e a posição de um morteiro 81 (a 1 km das estrada) (...)


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Notas dos editores:

(1) Vd. postes de:


19 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2452: Tabanca Grande (53): Luís Candeias, Ex-Fur Mil Inf (BII 18 e BII 19, Açores e Madeira, 1973/74

8 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2421: Em busca de... (15): Pessoal da companhia madeirense que esteve em Jemberem (1973/74) (Luís Candeia, amigo do Arsénio Puim)

12 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2433: Em busca de ... (16): Pessoal da CCAÇ 4946/73, madeirense + Arsénio Puim, ex-capelão, açoriano, BART 2917 (Luís Candeias)

16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2444: Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão, CCS/BART 2917, hoje enfermeiro reformado e um grande mariense (Luís Candeias)

Guiné 63/74 - P2494: Sr. Ministro da Defesa, parece que não há Simplex que valha ao António da Silva Batista! (Paulo Santiago)

1. Mensagem do Paulo Santiago, ex-Alf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho, 1970/72):
Camaradas

Parece-me, contrariamente ao que julgava, a história do Batista está para durar. O Simplex [Programa de Simplificação Administrativa e Legislativa] lembrado num excelente post, em 23/07/07, escrito pelo João Tunes (1), onde falava sobre o drama daquele camarada, não consegue destruir a santa burocracia.

Em Setembro passado, o Batista fez um requerimento ao Chefe do Arquivo Geral do Exército, solicitando uma Certidão onde constasse a sua condição de ex-prisioneiro de guerra. A minuta do requerimento foi-me transmitida por um amigo meu, Coronel reformado que, juntamente com outro que faz parte do blogue, tinham andado a procurar solução para o caso.

Na mesma altura o meu amigo transmitiu-me outra minuta de requerimento, este para ser enviado ao Ministro da Defesa e ao qual juntaria uma fotocópia da Certidão,vinda do Arquivo, fotocópias do BI e do IRS, e onde solicitava uma pensão ao abrigo do Decreto Lei ... (número que agora não tenho à mão).

Passados dias devolvem o requerimento, pedindo-lhe para enviar outro com o paleio igual ao que era para ser enviado ao ministro, mas agora dirigido ao Chefe do Arquivo, e ao qual juntaria as fotocópias mencionadas acima (BI e IRS).

Pensei que esta merda se iria resolver sem ter que ir ao Ministério. Pura ilusão. Mais uns dias , telefona-me o Álvaro Basto , dizendo-me que o Batista recebera um ofício informando-o que o processo fora enviado para ... (seguiam-se umas iniciais que não nos diziam nada).

Telefonei ao Briote que conseguiu saber, através de um amigo no Arquivo, que aquelas letras indicavam uma Repartição no antigo QG do Porto, onde o processo aguardaria pela decisão de um General.

Hoje, telefonou-me o Batista, informando-me ter recebido um ofício para ir, penso que dia 9, prestar declarações ao Regimento de Transmissões, sobre os acontecimentos passados entre Abril/72 e Set/74 (3).

Claro que não lhe fiz qualquer comentário, até por ele andar animado com estes ofícios que vai recebendo, mas para mim isto começa a ser uma grande treta. Sabem muito bem o que se passou, sabem que foi prisioneiro de guerra, que mais quererão saber ?

Só uma coisa me ocorre, apesar de mórbida, será que querem descobrir, através dele, quem será o infeliz que repousa naquele caixão que tinha o nome de António Silva Batista ?

Abraço para todos

Paulo Santiago
Aguada de Cima - Águeda
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Notas dos editores:

(1) Vd. poste de 24 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1991: O Simplex, o Kafka e o Batista ou a Estória do Vivo que a Burocracia Quer como Morto (João Tunes)

(2) Vd. o já vasto dossiê sobre o nosso camarada e amigo António da Silva Batista, que vive hoje na Maia, faz parte da nossa Tabanca Grande e aguarda, com legítima ansiedade e expectativa, o fim deste terrível pesadelo que tem já 36 anos:

8 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2422: Quem terá sido o Camarada que ficou na campa do António Baptista? (Prisioneiros de Guerra) (Virgínio Briote)

25 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2381: Diana Andringa, com o teu apoio, podemos ajudar o António Batista, o morto-vivo do Quirafo (Álvaro Basto)

21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2371: O Sold António Baptista não constava das listas de PG (Prisioneiros de Guerra) (Virgínio Briote)

28 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2140: Tabanca Grande (35): Notícias do Tony Tavares (CCAÇ 2701) e do António Batista (CCAÇ 3490) (Ayala Botto)

9 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2040: No almoço da tertúlia de Matosinhos com o António Batista, o nosso morto-vivo do Quirafo (Paulo Santiago)

30 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P2011: Vamos ajudar o António Batista, ex-Soldado da CCAÇ 3490/BART 3872 (Júlio César / Paulo Santiago / Álvaro Basto / Carlos Vinhal)

26 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1999: Vamos arranjar uma caderneta militar nova para o António Batista (Rui Ferreira / Paulo Santiago)

24 de Jullho de 2007 > Guiné 63/74 - P1990: Carta aberta ao Cor Ayala Botto: O caso Batista: O que fazer para salvar a sua honra militar ? (Paulo Santiago)

23 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1986: António da Silva Batista, o morto-vivo do Quirafo: um processo kafkiano que envergonha o Exército Português (Luís Graça)

22 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1985: Prisioneiro do PAIGC: António da Silva Batista, ex-Sold At Inf, CCAÇ 3490 / BCAÇ 3872 (2) (Álvaro Basto / João e Paulo Santiago)

22 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1983: Prisioneiro do PAIGC: António da Silva Batista, ex-Sold At Inf, CCAÇ 3490 / BCAÇ 3872 (1) (Álvaro Basto / João e Paulo Santiago)

21 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1980: Blogoterapia (26): Os nossos fantasmas, os nossos Quirafos (Virgínio Briote / Torcato Mendonça/Luís Graça)

17 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1959: Em busca de... (2): António da Silva Batista, de Crestins-Maia, o morto-vivo do Quirafo (Álvaro Basto / Paulo Santiago)

(2) Soibre a tragédia do Quirafo, Vd. posts de:

21 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1980: Blogoterapia (26): Os nossos fantasmas, os nossos Quirafos (Virgínio Briote / Torcato Mendonça/Luís Graça)

17 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1962: Blogoterapia (25): Os Quirafos do nosso Passado (Torcato Mendonça / Virgínio Briote)

12 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1947: O Coronel Paulo Malu, ex-comandante do PAIGC, fala-nos da terrível emboscada do Quirafo (Pepito / Paulo Santiago)

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1077: A tragédia do Quirafo (Parte V): eles comem tudo! (Paulo Santiago)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)

26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P2493: Estórias de Guileje (6): Eurico de Deus Corvacho, meu capitão (Zé Neto † , CART 1613, 1966/68)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> Um secretaria improvisada, com um telheiro assente em duas palmeiras... Álbum fotográfico de José Neto (1929-2007). Embora ele não nos tenha deixado legendas, não nos parece que o Cap Corvacho esteja neste grupo, segundo informação do Cor Art, na reforma, Nuno Rubim, que é do curso a seguir ao dele (LG).

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> O grande momento do dia, a distribuição do correio, a chegada dos aerogramas que vinham da Metrópole, através do SPM - Serviço Postal Militar, com notícias dos entes queridos e dos amigos (O aerograma, na Guiné, era também conhecido por bate-estradas...) (LG)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> Alguns dos quadros da companhia, vestidos com trajes fulas... Presume-se que fosse uma brincadeira de Carnaval... Dois militares parodiam a PM- Polícia Militar... O Cap Corvalho pode ser o terceiro a contar da esquerda, pelo menos ostenta é alguém que ostenta as divisas de capitão. "Aqui de certeza é o Corvacho, um bom amigo", garante-me o Nuno Rubim ... (LG).


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> O então 2º Sargento José Neto, vestido com traje fula... (LG).


Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). (Fotos do José Neto † , reeditadas por Albano Costa). Direitos reservados.


1. Texto, da autoria do saudoso Cap José Neto (1929-2007), que exerceu funções de 1º Sargento na CART 1613 (São João, Brá, Guileje, Bula, 1966/68), sob o comando do Cap Eurico Corvacho (1)


O Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho
por José Neto

Fixação, revisão do texto e subtítulos: L.G.

Creio que é esta a primeira vez que alguém traz ao blogue uma figura concreta dum comandante da campanha da Guiné. Não se trata dum vulgar panegírico, que seria natural nas palavras do seu primeiro-sargento, mas sim duma homenagem devida ao Homem que transformou e comandou a CART 1613/BART 1896, desde 25 de Dezembro de 1966 até duas semanas depois de 9 de Setembro de 1968.


(i) A tragédia da noite de Natal de 1966, em São João, em que o Cavaco matou o comandante da companhia, o Alf Art, graduado em Capitão, Fonseca Ferraz

Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.

Na nossa primeira noite de Natal, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João, um soldado nosso matou, a tiros de G3, o comandante da companhia (2).

No dia 25 de Dezembro [de 1966] vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia.

Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM e dum sistema de detecção de velocidade discutível.

O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BENG [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária.

Estas conclusões não foram do agrado do comandante. Atirou o processo para as mãos do Capitão e ordenou-lhe que reformulasse os autos porque me queria punir.

O Corvacho voltou a pôr o processo em cima da secretária do comandante e disse-lhe que a única solução era ele nomear um oficial (teria de ser o 2º comandante) para lhe instaurar, a ele Capitão, outro processo, este por desobediência, porque se negava, terminantemente, a alterar uma vírgula que fosse no que ali estava escrito.

Este gesto valeu-lhe a inscrição na lista dos coirões mal-amados do comandante, onde já figuravam, desde fins de Maio, a 2ª Companmhia de Instrução do RAP 2 (mais tarde CART 1613) no seu todo, o seu falecido comandante e este vosso modesto escriba.

O primeiro acto de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:
- Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.

Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.
Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o sector da alimentação com os desvarios que o Furriel vaguemestre tinha apontado na reunião.

Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no sector administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.


(ii) Uma inédita manifestação de soldados, em apoio ao novo Comandante


Em princípios de Janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do Comando-Chefe, era outra.

Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.

Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a minha tropa foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:
- O nosso comandante / é o capitão Corvacho.

Com a voz embargada pela comoção, o Capitão Corvacho disse-lhes:
- Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.

Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3.


(iii) Uma postura do anti-herói

Seguiu-se um período de cerca de quatro meses de vai e volta. A companhia, aquartelada em Brá, era mandada para os mais diferentes pontos do território, andava por lá dez, quinze dias, e voltava estoirada, mas com um sentimento de dever cumprido cuja expressão máxima era o uso, em qualquer dos uniformes, do Lenço Verde que nos tinha calhado em sorte ainda em Viana do Castelo (todas as companhias do batalhão tinham o seu, de cores diferentes).

Foi numa dessas operações, na área de Pelundo/Jolmete, zona de responsabilidade dum Batalhão de Cavalaria sediado em Teixeira Pinto, que a CART 1613 mais se notabilizou, tendo o comandante do BCAV atribuído ao Cap Corvacho um extenso louvor que deu origem à condecoração com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª Classe.

Ironicamente, saliento que o meu Capitão tinha a postura característica do anti-herói que o cinema nos impinge e afinal a Pátria consagrou-o como Herói.

E para adensar a narrativa acrescento que o Cap Corvacho estava, nessa altura, em litígio com as chefias militares, porque no dia em que completou oito anos de serviço como oficial, requereu, ao abrigo do EOE (Estatuto do Oficial do Exército), a sua passagem ao escalão de Complemento (milicianos) desligando-se assim da actividade militar.

Com torneados e floreados, foi-lhe indeferida a pretensão. Só eu e poucos graduados tínhamos conhecimento desta faceta.

Este revés provocou-lhe uma imensa raiva interior, mas em nada buliu na sua condição de militar e o pessoal continuou a seguir o seu capitão até às profundezas do inferno se tal fosse necessário e a cantar, quase como hino, “Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo/E não deixam nada" - a canção Os Vampiros do Zeca Afonso, proibida no Chiado e arredores, mas difundida em alto som em Guileje, onde morámos e combatemos cerca de um ano.

Podia terminar aqui a minha narrativa. Porém, falta esclarecer o motivo porque, no princípio, eu escrevo os limites temporais do seu comando entre 25 de Dezembro de 1966 e 9 de Setembro de 1968 e mais duas semanas.


(iv) Enfrentando a burocracia militar, no fim da comissão

O dia 9 de Setembro de 1968 foi o do embarque de regresso da CART 1613. Nessa altura nós ainda andávamos às voltas com a liquidação das três cargas de materiais à nossa responsabilidade. Uma deixada em Colibuia para entregar a quem aparecesse; outra entregue aos nossos substitutos de Guilege, cheia de falta isto, falta aquilo; e a última, a de Buba e destacamentos de Nhala e Chamarra. Até das Mauser entregues à população em auto defesa éramos responsáveis sem nunca as termos visto.

Perante a situação de eu ir ficar sozinho com 124 (cento e vinte e quatro) autos de ruína, extravio, etc. em curso, e alguns a elaborar, pois o reles 1º sargento das cargas, na Bolola, tinha o prazer sádico de ir descobrir mais uma ficha que não estava a zero e chapar-ma na cara, em face disto, dizia, o Capitão Corvacho resolver adoecer e faltar ao embarque.

Usando a sua influência junto dos seus conhecidos (por sorte o chefe do Serviço de Material tinha sido seu condiscípulo na Academia Militar) em dez ou onze dias coleccionámos os carimbos, vistos e despachos para, posteriormente, ficar tudo a zero, com algum ressabiamento do reles da Bolola.

Duas semanas depois o Niassa voltou e levou o meu Capitão.

Eu fiquei até meados de Outubro, dependente do fecho de contas do CA (Conselho Administrativo) do BART 1896 nas quais a minha (conta da CART 1613) estava incluída.

Este, embora descrito a traços largos e descoloridos, foi o Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho, ainda hoje o meu Capitão. O seu envolvimento no 25 de Abril de 1974 e período subsequente [em que nomeadamente foi brigadeiro graduado em 1975, tendo estado à frente da região Militar do Norte], considerado, por muitos, algo controverso, para mim foi absolutamente coerente, não obstante o meu modo de ver possa não coincidir com o meu modo de ser.

Nos dias que correm o meu Capitão emprega a sua enorme coragem na luta contra uma doença grave. No passado dia 4 de Junho de 2005, amparado pelo nosso grande amigo Dr. Joaquim de Oliveira Martins, o ex-Alferes Médico do Batalhão que preferia estar connosco em Guileje em vez da ainda calma Buba, não deixou de ir almoçar a Braga com os seus homens. Vi muitos ex-soldados a disfarçar os soluços ao verem a dificuldade de locomoção do Homem que, nos seus imaginários, era o primeiro a avançar lá longe nas matas da Guiné.

José Afonso da Silva Neto


Comentários:

Gostei muito de ler esta memória. Ela confirma a excelente opinião que tenho de Corvacho, que conheci e com quem conversei muita vez depois do 25 de Abril, nas décadas de 70 e 80 mas de quem deixei de ter notícias há muitos anos. Foi com tristeza que li que não se encontra bem de saúde. Se me puder facultar algum contacto dele ou da família, ficar-lhe-ia agradecido.

Raimundo Narciso, 2/24/2006.

Embora conhecesse o relato aqui descrito, contado na primeira pessoa, não posso deixar de ficar emocionado com a forma como é retratado o meu pai. Cumpre-me informar a todos os seus camaradas de que, mais uma vez com muita coragem, continua a sua luta contra a doença.

Estou contactável pelo e-mail e_corvacho@netcabo.pt

Eurico C. Corvacho, 1/29/2008

3. Comentário de L.G.:

Os nossos camaradas da Guiné que estão hoje em sofrimento, devido a doença prolongada, merecem a nossa solicitude, compaixão, solidariedade, amizade, camaradagem... Lembrá-los enquanto estão vivos é a maior homenagem que podemos fazer-lhes. Daí eu ter decidido recuperar este texto, já antigo, publicado na 1ª série do nosso blogue pelo nosso patriarca Zé Neto que continua, também ele, bem presente na nossa memória.

Peço ao seu filho, Eurico C. Corvalho, que transmita ao seu pai e nosso camarada as nossas saudações bloguísticas. Um grande Alfa Bravo da nossa Tabanca Grande. Aqueles de nós que forem proximamente a à Guiné-Bissau e a Guileje levarão a incumbência de lhe fazer uma pequena homenagem a ele, ao Zé Neto e aos demais camaradas da valorosa CART 1613.

Vd. outros postes desta série Estórias de Guileje (3).

_____________________

Notas dos editores:

(1) Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXVI: O meu capitão, o capitão Corvacho da CART 1613 (1966/68) (Zé Neto)


(2) Vd. poste de 11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXI: Memórias de Guileje (Zé Neto, 1967/68) (7): Francesinho e Cavaco, o belo e o monstro

(...) O Soldado Condutor Auto Rodas José Manuel Vieira Cavaco abateu a tiro o primeiro comandante da companhia, Alferes de Artilharia, graduado em Capitão, Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, na noite de 24 para 25 de Dezembro de 1966 (Natal), no aquartelamento de S. João, frente a Bolama, onde a unidade se encontrava em treino operacional (...).

(...) O Cavaco foi condenado, em Bissau, no Tribunal Militar, a uma pena de vinte e três anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole. O Zé Neto nunca mais o vi, mas teve "notícias de que o rapaz não cumpriu nem metade da pena".(...)


(3) Vd. postes anteriores:

30 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2492: Estórias de Guileje (5): Os nossos irmãos artilheiros Araújo Gonçalves † e Dias Baptista † (Costa Matos / Belchior Vieira)

29 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2489: Estórias de Guileje (4): Com os páras, na minha primeira ida ao Corredor da Morte (Hugo Guerra)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gandembel (ex-Fur Mil Art Paiva)

23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2473 - Estórias de Guileje (2): O Francesinho, morto pela Pátria (Zé Neto † )

14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2492: Estórias de Guileje (5): Os nossos irmãos artilheiros Araújo Gonçalves † e Dias Baptista † (Costa Matos / Belchior Vieira)

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971 > Um das famosas imagens da guerra da Guiné, a saída do obus 14, de noite, tirada com a máquina rente ao chão, pelo então Alf Mil Médico Amaral Bernardo (hoje médico do Hospital de Santo António, Porto, e membro da nossa Tabanca Grande) (1).

Foto: © Amaral Bernardo (2007). Direitos reservados.

1. Texto enviado pelo Cor Art, na reforma, Costa Matos:

Agora que Guileje está, por motivos vários, na ordem do dia, envio-lhe, por sugestão do meu camarada de curso Coronel Nuno Rubim, um extracto de uma conferência proferida em 2004, na Liga dos Combatentes, pelo Tenente General Belchior Vieira (2).

Era bom que tantos episódios reveladores de rara corgem e abenegação protagonizados por humildes e esquecidos Portugueses (com letra grande), fossem trazidos ao conhecimento dos seus concidadãos e, em sua memória, fossem exaltados como merecem. Talvez com isso se minimizasse a injustiça com que têm sido omitidos da História.

É pena que não saibamos merecê-los e é triste que se tenham sacrificado em vão!

Bem haja pelo trabalho que vem realizando e pelo contributo que tem conseguido dar à História que, um dia, alguém virá a a contar com rigor,verdade e isenção.

Com os meus cumprimentos.
Costa Matos,
Coronel de Artilharia na reforma


2. Comentário do editor L.G.:

Agradecemos ao Cor Costa Matos esta gentileza. Tomamos a liberdade de publicar, com a devida vénia, o texto agora recebido na série Estórias de Guileje (3)

3. Estórias de Guileje > O irmão artilheiro

Extracto de uma conferência sob o título “O IRMÃO ARTILHEIRO”, proferida em 2004, pelo Tenente General Belchior Vieira, na Liga dos Combatentes, e publicada nesse mesmo ano na Revista Combatente, editada pela Liga.

(...) Do episódio, Guileje 1969, tive conhecimento quando, em 1982, como Director da Revista de Artilharia, me foi facultada pelo então Brigadeiro Ricardo Durão, Director do Serviço de Justiça e Disciplina, a consulta do processo sobre ele elaborado.

A Revista de Artilharia obteve ainda o depoimento do então Major Barbosa Henriques (4), que fora Comandante da Companhia de Caçadores 2316.

Com a retracção do nosso dispositivo na Zona Sul do TO da Guiné, desenvolvida desde 1968, o aquartelamento de Guileje, sede da Companhia de Caçadores 2316, passou a estar, em 1969, isolado, a oito quilómetros da fronteira Leste com a Guiné-Conacri.

As acções desencadeadas pelo PAIGC, até então repartidas pelos aquartelamentos evacuados (Cacoca, Sangonhá, Gandembel e Mejo), vieram a concentrar-se, a partir daí, sobre Guileje, de tal modo que, desde 28 de Janeiro de 1969 (data em que ficou concluída a evacuação do Mejo) até 14 de Fevereiro, se registaram 59 flagelações.

Na noite de 14 de Fevereiro, o aquartelamento foi submetido a um violento bombardeamento de morteiros e de canhões S/R, precedido de uma regulação de tiro e prolongando-se por cerca de duas horas.

Com os postos guarnecidos de acordo com o plano de defesa e referenciadas, pelos clarões dos disparos, as posições das armas inimigas, imediatamente a única boca de fogo de artilharia, um obus de 10,5 do 6° Pelotão da Bataria de Artilharia de Campanha n°1 (o outro obus fora evacuado para reparação) e um morteiro de 10,7 abriram fogo, quer sobre as posições referenciadas, quer sobre posições donde, do antecedente, o inimigo desencadeara as suas acções.

Verificava-se, entretanto, uma crescente intensidade do fogo inimigo, o que obrigou ao empenhamento dos dois morteiros de 81 disponíveis. 0 Alferes José Manuel de Araújo Gonçalves, Comandante do Pelotão de Artilharia, e o Furriel António da Conceição Dias Baptista, Comandante de Secção, que eram sempre os primeiros a guarnecer a boca de fogo, aperceberam-se da intensidade de fogo e da violência do ataque.

De imediato, ordenam aos serventes, na sua maioria guineenses, que se abrigassem numa trincheira junto da posição, permanecendo os dois junto do obus, carregando, apontando e disparando, indiferentes ao bombardeamento que atingia, com excepcional precisão, o aquartelamento. Um impacte directo de uma granada de canhão S/R numa das conteiras do obus provoca-lhes a morte imediata.

0 Alferes Araújo Gonçalves, natural de Lisboa, terminou o Curso de Oficiais Milicianos na Escola Prática de Artilharia em Junho de 1968 e desembarcara em Bissau em Novembro do mesmo ano, destinado à Bataria de Artilharia de Campanha n° 1. Foi condecorado, a título póstumo, com a Medalha de Prata de Valor Militar, com Palma.

0 Furriel Dias Baptista, natural de S. Domingos de Rana, terminou o Curso de Sargentos Milicianos na Escola Prática de Artilharia em Dezembro de 1967 e desembarcara em Bissau em Abril do mesmo ano. Foi condecorado, a título póstumo, com a Cruz de Guerra de 1.ª Classe. (...).

_________________

Notas dos editores:

(1) Vd. poste de 2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1489: Tertúlia: Formalizo o meu pedido de entrada (Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico, Catió, BCAÇ 2930)

(2) Há dias o Nuno Rubim tinha-nos mandado a seguinte mensagem sobre "os materiais de artilharia de Guileje":

Caro Luís Graça: Este é apenas um email para te elucidar sobre a problemática da utilização de bocas de fogo de artilharia em Guileje, questão ainda em aberto no que concerne às datas de serviço.Julgo que não vale a pena colocá-lo no blogue.

A 1ª referência que tenho é a de que foram atribuídos a Mejo (então um destacamento de Guileje) dois obuses de 8, 8cm, em data ainda não averiguada (possivelmente 1967, segundo uma foto do Cap Neto). No meu tempo, 1966, não foi.

Aquando do abandono de Mejo (Janeiro de 1969) foram recolhidos em Guileje. Em data ainda indeterminada foram substituídos por 2 (?) obuses de 10,5 cm e posteriormente (possivelmente em 1972 ) vieram 3 peças de 11,4 cm (daí teres as fotos do Casimiro Carvalho com o 10,5 e depois com o 11,4, em Guileje) [Em Gadamael, esclareceu posteriormente o José Casimiro Carvalho: é que em Guileje ele não andava em calções de banho...].

E, como sabemos, em 16 de Maio de 1973 estes [, as peças 11,4,] foram substituídos por 2 obuses de 14 cm. Continuarei as pesquisas (...).

(3) Vd. postes anteriores desta série Estórias de Guileje:

29 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2489: Estórias de Guileje (4): Com os páras, na minha primeira ida ao Corredor da Morte (Hugo Guerra)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gandembel (ex-Fur Mil Art Paiva)

23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2473 - Estórias de Guileje (2): O Francesinho, morto pela Pátria (Zé Neto † )

14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)

(4) Sobre Barbosa Henriques, nascido em Cabo Verde, e que também foi instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos, em Fá Mandinga, em 1970, vd. postes de:

19 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1536: Morreu (1)... Barbosa Henriques, o ex-instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos (Luís Graça / Jorge Cabral)

19 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1611: Evocando Barbosa Henriques em Guileje (Armindo Batata) bem como nos comandos e na PSP (Mário Relvas)

Guiné 63/74 - P2491: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (4) (Carlos Silva)

Guião do BCaç 2879.


Continuação da História do BCAÇ 2879.

Depois da formação do Batalhão, da viagem rumo à Guiné e da chegada a Bissau, com as impressões que a cidade deixou ao nosso Camarada Carlos Silva, ex-Furr Mil do Batalhão, publicamos hoje a entrada em quadrícula do BCAÇ 2879.

Revisão e fixação do texto: vb





04-08-69 – Segunda-feira

O Comando do BCAÇ nº 2879 comunica que havia assumido a responsabilidade do Sector 02, substituindo assim o COP3, que antes se encontrava em Farim.

Daqui havia partido há pouco mais de um ano o Ten Cor Agostinho Ferreira, que tinha estado anteriormente a comandar o BCAÇ 1887 no sector de Farim, tendo rendido ali o BART 1733 e posteriormente foi rendido pelo BCAÇ 1932, vindo agora substituí-lo com o BCAÇ 2879 (1).
Apesar de toda esta movimentação ser da vontade do nosso Comandante, a História tem coisas destas.
O Batalhão efectuou desde a sua chegada ao Sector, um período de treino operacional, tendo efectuado tiro, patrulhas, picagens de itinerários, etc, com vista a uma melhor adaptação ao clima, ao terreno e ao IN que viria a encontrar. Com a entrada do Batalhão em Sector saíram do mesmo as CCAÇ 1788 e 1789 do BCAÇ 1932 e a CART 2478 do BART 2865.


Localização do Sector de Farim – Zona de actuação do Batalhão e Companhias Independentes




O mapa a abrange quase toda a região do Oio, onde se situa o sector

Caracterização Geral do Sector

1. O Terreno e Recursos

O terreno deste Sector pode-se considerar plano pois a cota mais alta é de 59 metros. Tem a configuração da metade inferior de um coração, tendo por limites:
- Norte, a fronteira com a República do Senegal, desde o marco 122, próximo do Dungal até ao marco 96 próximo de Sitató;
- Sul, Saliquinhedim-K3 e Rio Canjambari;
- Nascente, antiga tabanca de Solucocum, rios Uranto e Canjambari;
- Poente, Binta, Cufeu e Guidage.

Como estradas principais utilizáveis existiam a estrada Ponte do Rio Caúr - Farim - Jumbembem - Cuntima, que noutros tempos ligava ao Senegal. De Jumbembem saía outra estrada que liga a Canjambari e que segue para o sector vizinho, para Fajonquito, não se efectuando na altura quaisquer ligações com o sector do lado.

As estradas Farim - Dungal e Cuntima - Sitató não estavam utilizáveis. De Farim depois de passar o rio Cacheu, existem as estradas que ligam Farim - Olossato, que não era utilizada e Farim - Mansabá, que presentemente dentro do Sector, apenas era utilizada até Saliquinhedim, tabanca mais conhecida por K3.

Estava previsto a abertura desta estrada, que beneficiaria grandemente a tropa e as populações presentes na área, tal como veio a acontecer.

Os recursos eram fracos e não chegavam para o abastecimento normal, quer de militares quer de civis. Praticamente, era tudo trazido de Bissau, quer por via marítima, através de batelões ou lanchas da Marinha, que navegavam no Atlântico, subindo depois o rio Cacheu até Farim, quer por via aérea através do velho Dakota ou de Nord-Atlas.

No que respeitava a fruta e outros frescos pode dizer-se que não havia, dada a exiguidade das quantidades que iam aparecendo no mercado e que se resumiam a bananas, mangos e ananases.
No caso particular da carne, vinha toda da República do Senegal, fazendo-se o transporte de animais vivos que depois eram abatidos nas Unidades dos subsectores. A água, bem essencial e precioso, era extraída de poços, havendo a suficiente para os gastos normais, mas nem sempre de boa qualidade.

2. A População Civil

O aglomerado populacional mais importante no sector era o da Vila de Farim, sede do concelho. Existindo ainda as povoações de Cuntima, Jumbembem, Canjambari e Saliquinhedim-K3.
População civil europeia praticamente não existia.

Basta dizer que além dos militares e famílias, apenas existiam 2 famílias europeias residentes, compostas por 6 elementos, que ali viviam (família Pinheiro). Ali viviam também alguns libaneses (Maron Saad e Madame) e caboverdianos, mas em número pouco significativo.
A população nativa do Sector é constituída por diferentes raças, predominando a raça mandinga e fula, embora por ali existissem alguns balantas.

Esta população nativa não tinha uma mentalização portuguesa. Nada as identificava com os portugueses europeus (apesar de uma ocupação durante quase 500 anos do território, não se alteraram as mentalidades nem os costumes). Não reconheciam qualquer benefício que se lhes fizesse, antes o aceitavam como uma obrigação (o branco tinha obrigação de tudo fazer e de lhes dar e ainda hoje mantêm a mesma mentalidade).

Os reordenamentos são um caso típico, em que os mesmos só colaboram, após muito instados, pois julgavam que a tropa era paga para lhes fazer as casas. Todas as povoações, antigas tabancas espalhadas pelo sector, encontravam-se abandonadas devido à guerra, pois a maior parte da população do Sector encontrava-se ao longo da fronteira em território da República do Senegal, para onde se refugiou, havendo apenas umas casas de mato na área de Bricama onde o IN tinha alguma população sobre o seu contole, outra parte da população foi acolhida nas localidades onde existia guarnições militares, que lhes poderia garantir alguma segurança, com a seguinte distribuição aproximada, em finais de 1967:

Farim: 3900 elementos de diversas etnias, mandigas, fulas e balantas;

Jumbembem: 280 elementos, na sua maioria fulas

Cuntim: 300 elementos, na sua maioria fulas

Binta: 1000 elementos, na sua maioria fulas

Guidaje: 370 elementos, na sua maioria fulas

O relacionamento da população com as Autoridades Administrativas era bom, tendo os seus altos e baixos, mas sem qualquer significado. Com as Autoridades estrangeiras vizinhas, realizaram-se um ou dois contactos pessoais, com reservas próprias com que se tinha de olhar as autoridades de um país que no mínimo consente no seu território elementos que nos são hostis.

3. No Plano Militar

O Inimigo

O IN não tinha bases dentro do Sector 02, exceptuando a região a Sul do rio Cacheu e do rio Camjambari (Bricama, Biribão e Ionfarim), onde haviam diversas referenciações, obtidas através de RVIS ou por informações colhidas por vários meios, mas onde efectivamente há bastante tempo não se faziam operações.

Havia referência a 2 bigrupos, actuando um na área do Biribão e outro na área da Bricama, mas notícias posteriores diziam que os mesmos tinham ou teriam sido retirados, visto as NT não irem ali fazer operações e portanto não se justificar a sua presença. Ficariam apenas Mílicias Populares para controle e guarda das populações.

Dentro do Sector na parte controlada pelas NT, dado que o mesmo era um Sector de fronteira, o IN apenas o utilizava para fazer entrar ou sair as suas colunas, normalmente de reabastecimentos, mas com escolta.

As suas linhas de infiltração preferidas eram o corredor de Lamel que conduzia directamente à Bricama e o de Sitató que conduzia directamente a Canjambari. Logo que atinjiam aqueles pontos ficavam em terreno, subtraído ao controle efectivo das NT.

O IN mostrava-se na altura pouco agressivo e normalmente furtava-se ao contacto. Utilizava minas A/P (anti-pessoal) e A/C (anti-carro), mas na sua maioria foram neutralizadas pelas cuidadas picagens efectuadas pelas NT.

As Nossas Tropas

A nossa tropa tinha partido no cumprimento do serviço militar obrigatório, que não sentia, nem vivia o problema. Portanto, cumpria sem grande entusiasmo as missões que lhe eram impostas.
Tudo isto criava no pessoal do QP (Quadro Permanente), com funções de chefia e comando directo, um desgaste muito grande, pois tinham necessidade de determinar tudo, verificar tudo, resolver tudo, quer dizer os quadros não existiam.

Dado o modo de actuar do IN, dentro do Sector, em que praticamente só se faziam colunas, as NT actuavam principalmente por emboscadas nos corredores tradicionais e por patrulhamentos com o fim de detectar novos trilhos. Era esta a missão principal. Quanto a moral, situação sanitária e logística, apresentava e apresentou os seus altos e baixos normais, sem referência especial.

Instalações Militares

As instalações militares eram razoáveis, compostas por vários edifícios espalhados pela Vila.
Edifício do Comando, messe dos oficiais, messe dos sargentos, casernas dos soldados, refeitório e outros edifícios relacionados com a tropa. Edifícios onde estavam instalados os destacamentos de intendência, pelotão de morteiros, pelotão Daimlers, transmissões, pelotão auto, enfermaria etc.

O dispositivo das NT no Sector estava distribuído da seguinte forma:

Cuntima

  • CCAQÇ 2549
  • CCAÇ 2529
  • 10º PEL ART (-)
  • PEL MIL119
  • 2 Mort. 10,7
Jumbembem
  • CArtª 2384

Canjambari

  • CCaç. 2533
  • Pel Natº 58
Farim
  • Comando e CCS do BCaç. 2879
  • CCaç. 2547 em Nema + GComb. “ Os Roncos”
  • CCaç 2548 (-)
  • Pel Morteiros Médios 2116 (-)
  • Pel Rec Daimler 2047
  • Dest. Intendência 2010
  • 10º Pel Artª – Sec Obus 14
  • Compª Milª 5 c/ Pel Milª 115, 116, 117
  • CArtª 2478 – Aguardando transporte p/ outro Sector

Saliquinhedim – K3

  • CCAÇ 2548 – 4º Pel
  • Pel Morteiros Médios 2116 – 1 Secção
  • Pel Mil 118


O BCAÇ nº 2879

O Batalhão (1) em 4-08-1969, substituindo o COP3, assumiu a responsabilidade do Sector 02, novamente transferido para esta zona de acção, com sede em Farim e abrangendo os subsectores de Farim, Jumbembem, Cuntima e Canjambari.

As suas subunidades mantiveram-se sempre integradas no dispositivo e manobra do Batalhão, o qual desenvolveu intensa actividade operacional, particularmente orientada para a contra-penetração nas linhas de infiltração de Lamel e Sitató, para a segurança e controlo dos itinerários, para impedir a instalação de bases inimigas na sua zona de acção e ainda para a segurança, defesa e construção de aldeamentos e promoção socioeconómica das populações.

O Comando e CCS (Companhia de Comando e Serviços), ficaram instalados na sede do Batalhão.
A CCAÇ 2548, que substituiu a CCAÇ 1788 do BCAÇ nº 1932, no incremento do esforço de contra-penetração no corredor de Lamel, ficou integrada no dispositivo e manobra do Batalhão, tendo ficado também aquartelada em Farim.

Contudo, tinha destacado um pelotão em regime de rotação para guarnecer o destacamento de Saliquinhedim-K3. Podemos dizer que a CCAÇ 2548, encontrava-se numa posição de intervenção e reserva, sob as ordens do Comando, actuando em todo o território da responsabilidade do Batalhão, como se depreende das acções efectuadas até 31 de Dezembro de 1969, designadamente: Solinto, Binta, Cofeu, Dungal, Lamel; no subsector de Jumbembem da responsabilidade da CART 2384, Lambã, Farincó, Fambantã, Sare Soriã e no subsector da responsabilidade CCAÇ 2549, Cuntima, Sitató e noutros locais onde fosse necessário actuar.


Farim, 1969 > Edifício do Comando

A CCAÇ 2547 substituiu a CART 2478 do BART 2865 a partir de 4-08-1969, na responsabilidade do subsector de Farim e também na contrapenetração sobre o corredor de Lamel e de Sitató, ficando integrada no dispositivo e manobra do Batalhão, tendo ficado aquartelada em Nema, situada no termo norte de Farim à entrada da estrada que vai para o Dungal.




Farim, 1970 > Vista aérea do Quartel de Nema. Foto cedida pelo ex-Alf Mil Carmo Ferreira.


Quartel de Nema, Dezembro 1969. Porta d’ Armas. Cavalo Frisa

Para Saliquinhedim-K3, localidade situada a 3 kms. da margem esquerda do rio Cacheu, para guarnecer o destacamento e para proteger a respectiva população deslocava-se um pelotão da CCAÇ 2548, em regime de rotação, bem como uma secção do Pel. Mort. 2116 e o Pel Mil 118.

Saliquinhedim – K3 e rio Cacheu. Março/1971. ista aérea – Slide das férias.



Saliquinhedim – K3 – Caserna do lado Oeste - Maio/1971. Slide tirado na deslocação de regresso do Batalhão pra o Cumeré.

Em Jumbembem a CART 2478 do BART 2865, no dia 4-08-69 é rendida pela CART 2384 (1), regressando assim aquele subsector, de onde havia saído havia pouco.


Jumbembem. Vista aérea, cedida pelo ex-Alf Mil Roda, da CCAÇ 14.



Pormenor de Jumbembem Velho, Janeiro de 1970 .

A CCAÇ 2549, seguiu em 30-07-69 para Cuntima, a fim de efectuar o treino operacional e render a CCAÇ 1789 do BCAÇ 1932, assumindo a responsabilidade do respectivo subsector, em 4-08-1969 e ficando integrada no dispositivo e manobra do Batalhão.

Cuntima, 1969. Entrada do quartel. Foto cedida pelo ex-Alf Mil Carmo Ferreira.


Cuntima, 1969 > Ritual do arrear da bandeira.

Outro dos aquartelamentos pertencentes ao Sector era Canjambari.

Em 1-06-1969, seguiu para esta localidade a CCAÇ 2533, a fim de realizar o treino operacional, de 3 a 17-06-69, sob a orientação do COP 3.

Em 19-06-69, assumiu a responsabilidade do respectivo subsector de Canjambari, em substituição do pessoal restante da CART 2340 e outros efectivos ali colocados, temporariamente, em reforço ficando integrada no dispositivo e manobra do COP 3 e depois do BCAÇ 2879.



Canjambari, 1969. Aspecto geral do Quartel e Pista. Slide cedido pelo ex-Fur Mil Pires



Canjambari, 1969. Aspecto geral duma Caserna abrigo. Slide cedido pelo ex-Fur Mil Pires

Fotos de Carlos Silva (2008).

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Notas de Carlos Silva:

(1) In Estado-Maior do Exército - Comissão para o Estudo das Campanhas de África
Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África
(1961-1974). 7º Volume - Fichas das Unidades- Tomo II - Guiné, 1ª edição, Lisboa 2002 - p. 206, 82 e 127
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Notas do co-editor vb:

vd artigos de

24 de Janeiro>Guiné 63/74 - P2477: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (3) (Carlos Silva)

20 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2464: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (2) (Carlos Silva)

15 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2440: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes para Farim: O Batalão dos Cobras (1) (Carlos Silva)