quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3165: Os nossos Seres, Saberes e Lazeres (6): Com o José Manuel, in su situ, um pé no Douro e uma mão no Marão (Luís Graça)

Quinta da Senhora da Graça, São João de Lobrigos, estrada de Peso da Régua, Santa Marta de Penaguião > 28 de Agosto de 2008 > Fim de tarde, com a serra do Marão ao fundo... Imponente, poética, misteriosa, esmagadora... Cercada de verde por todos os lados...


Quinta da Senhora da Graça > 28 de Agosto de 2008 > O José Manuel Lopes in su situ, o Alto Douro Vinhateiro, património mundial da humanidade...

Quinta da Senhora da Graça > 28 de Agosto de 2008 > A entrada, íngreme, da quinta que o Zé Manel recebeu de herança do seu avô materno ("com pagamento de tornas, aos restantes herdeiros", convém que se diga...).


Quinta da Senhora da Graça > 28 de Agosto de 2008 > O Zé Manuel, em "farda nº 3", a de trabalho, mostrando as vistas da sua quinta... "Com um pé no Douro, e uma mão o Marão", como ele gosta de "legendar". Na foto, à direita, o meu cunhado, Augusto Soares (Gusto, na intimidade), economista e gestor reformado, e o nosso especialista em vitivinicultura na Nossa Quinta de Candoz, que fica na região demarcada do vinho verde (Marco de Canaveses, Paredes de Viadores, sub-região de Amarante).

Fotos, texto e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


1. Na passada 4ª feira, dia 27 de agosto, ia eu a caminho do Marco de Canavezes para passar os últimos dias de férias na nossa Quinta de Candoz, quando dei conta que tinha um registo de chamada no meu telemóvel. Era do Zé Teixeira. Lembrei-me então, mas já tarde, que às quartas feiras está, de há muito, marcado encontro semanal da tertúlia de Matosinhos, na Casa Teresa. Imaginei que o Zé Teixeira me estivesse a convidar a desafiar para aparecer lá. E não me enganei, depois de entrar em contacto com ele, à hora do almoço. Estiveram lá quase todos os tertulianos habituais, incluindo o José Manuel Lopes .

Aproveitei então esta última semana de férias para concretizar outros projectos, um dos quais foi o da visita ao José Manuel Lopes, na sua Quinta da Sra. da Graça, perto da Régua. Estava planeada desde o nosso último encontro, em Monte Real. Bastou-me telefonar-lhe para ele, de imediato, se mostrar disponível para nos receber, a mim, à Alice e aos meus cunhados Nitas e Gusto. A visita ficou marcada para as 13h de 5ª feira passada, dia 28.

A Quinta da Sra. da Graça fica a 2 ou 3 km de Peso da Régua, na estrada nacional nº 2, Régua-Santa Marta de Penaguião-Vila Real. Por detrás da quinta passa a A24. Já faz parte do concelho de Santa Marta de Penaguião, freguesia de S. João de Lobrigos. A estrada apanha-se junto às três pontes da Régua, um dos locais que está ligado às memórias de infância do Zé Manel.


Peso da Régua > 28 de Agosto de 2008 > O sítio das três pontes... É aqui que se toma, à esquerda, a estrada para para Santa Marta de Penaguião, paralela à A24... A 2 ou 3 quilómetros fica a Quinta da Senhora da Graça... Em primeiro plano a velha ponte do Eiffel, hoje desactivada... Tinha um tabuleiro de madeira onde passavam carros de bois e peões... Um ex-libris da Régua. Tiveram o bom senso de não a deitar abaixo, contrariamente ao que é habitual neste país com o património edificado...


Quinta da Senhora da Graça > 28 de Abril de 2008 > Estrada Peso da Régua - Santa Marta de Penaguião - Vila Real, paralela à A24 > Tabuleta com a indicação do acesso à quinta.

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


Foi-me fácil dar com o sítio. Parti de Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canavezes, seguindo pela margem direita do Douro, por Eiriz, até à Régua. São cerca de 70 km de paisagens magníficas, a começar pelas terras de São Martinho do Zêzere, onde fica a Quinta de Tormes, imortalizada numa das obras-primas do Eça de Queirós, A Cidade e As Serras. (Na Quinta de Tormes está a sede da Fundação Eça de Queirós.) Parando em dois ou três miradouros, é mais de 1 hora de viagem, numa estrada, de piso recentemente melhorado, mas de traçado antigo, cheio de curvas e contracurvas.

Reconheci de imediato o Zé Manuel, a trabalhar no seu armazém, a ultimar uma encomenda de vinhos. De costas, não se apercebeu da minha chegada. Estava, para mais, a ouvir num velho leitor de CD músicas do seu/nosso tempo: Zeca Afonso, Pink Floyd… Percebi, pelo traje desportivo, que tinha acabado de fazer o seu jogging (12 km, o que é uma obra, no verão, no Alto Douro, em que o termómetro ultrapassa por vezes os 40 graus)...

Nesse preciso momento chegava um casal de turistas, franceses, de carro, à procura de pernoita. Julgo que iam a caminho do Alto Minho, demandando a Pousada de Terras do Bouro. Tinham visto, na estrada, a tabuleta Quinta Sra. da Graça. O Zé Manuel, além de vinho, faz turismo rural. Tem 3 quartos, que quer alargar para 7 dentro em breve. Foi uma solução de recurso, devido à perda de rendimento que implicou a expropriação de mais de metade da quinta, para a construção da autoestrada, que passa ali ao lado, a A24.

Feitas as apresentações e as ofertas (trouxemos-lhe uma caixa do nosso vinho verde, produzido na Quinta de Candoz), o Zé Manel de imediato nos foi mostrar a sua casa e a sua quinta. E o dia foi curto para pôr a conversa em dia… Entretanto, chegou a Maria Luísa Valente, e foram-nos depois apresentados os filhos do casal: a mais nova, a Marta, estudante, que dentro de poucas semanas irá para Coimbra fazer o seu curso de Design e Multimédia; e o Vasco, de 24 anos, talentoso e medalhado enólogo, além de disc-jokey nas horas vagas…


Quinta da Senhora da Graça > 28 de Agosto de 2008 > O edifício que veio do tempo do avô: reconstruído depois do incêndio de 1959: hoje funcionam como armazém , a parte de baixo; e ampla sala de jantar para eventos, a parte de cima (com vistas fabulosas sobre a Régua, o rio Douro, os vinhedos, a serra do Marão). A piscina (salgada...) é uma das amenidades que está associada à parte hoteleira... Na foto em baixo, o Zé Manel explica como encontrou esta relíquia arqueológica, enterrada no xisto: um moinho manual para o milho...

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


A Quinta da Senhora da Graça pertencia ao avós maternos do Zé Manuel. Eram originalmente sete hectares de solos de xisto, íngremes, duros de trabalhar, situados entre os 250 e os 400 metros, onde não entra tractor, só mula ou macho… Dali pode-se, de facto, metaforicamente falando, “ter um pé do Douro” (com a Régua, lá em baixo, à nossa esquerda) e “uma mão no Marão” (imponente, azul, no seus 1800 metros de altitude, rodeada por um mar verde de vinhedos)… A frase, de antologia, é do Zé Manel, cuja paixão pelo Douro e pelo Marão eu só conhecia dos seus poemas de Mampatá

Foi a casa onde o Zé Manel cresceu e viveu até ir para a tropa. O resto da familía (pai, mãe e mais seis irmãos) vivia na Régua onde o pai era tesoureiro da câmara municipal e projectista do cinema local (Não admira, por isso, que o Zé Manel seja também um cinéfilo, e passe hoje, desolado, pelo velho edifício do cine-teatro da Régua, em ruínas; tal como eu, tem no Cinema Paraíso, do italiano Giuseppe Tornatore, 1988, um dos filmes da sua vida).

A casa ficou em ruínas, depois de um incêndio em 1959, sendo depois reconstruída pelo avô (que é uma figura de referência para o Zé Manel). Quando veio da tropa, o nosso camarada fez questão de lá continuar a viver e a dedicar-se à vitivinicultura. Entretanto, trabalha numa empresa inglesa, do ramo de vinhos, a Cockburn & Smith. Casou com a Luísa em 1983, e por um questão de ética e deontologia profissional, a exploração da Quinta da Sra da Graça ficou em nome da Maria Luísa Valente Lopes. O Zé é um homem de valores.




Quinta Senhora da Graça > 28 de Agosto de 2008 > Em cima, o Zé Manel e a Luísa, sua companheira, que ele trata por você, com grande ternura... Foi uma das suas musas inspiradoras, no tempo em que fazia poesia... Em baixo, gravura dos tempos heróicos do Douro, emoldurada. Local: A Tendinha, casa de pasto, muito popular, da Régua (cidade onde, de resto, há excelentes restaurantes, para todas as bolsas, ou quase...).

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


O Zé Manel trabalhou cerca de 30 anos na empresa inglesa, até à morte do Sr. Smith, um antigo piloto da RAF (força área britânica), cujo avião foi abatido pelos alemães no Canal da Mancha, sendo o inglês recolhido por pescadores franceses… Mesmo sabendo isso, o Zé Manel nunca confidenciou ao patrão que tinha feito a guerra colonial na Guiné… Ele vem a sabê-lo mais tarde, quando alguém, um antigo camarada de Mampatá, apareceu, nos escritórios de Gaia, a pergunta por um tal José Manuel que tinha estado na Guiné e que ninguém, pelos jeitos, conhecia… (O sr. Lopes trabalhava na filial, na Régua; em Mampatá era apenas conhecido por José Manuel...). o sr. Smith um dia veio expressamente à Régua para conhecer, de mais perto, o seu colaborador que, afinal, também tinha  –  Você nunca mo disse! –  repreendeu-o.
–  É uma aspecto do meu currículo que não interfere minimamente no meu trabalho – desculpou-se o Zé Manel.

Vê-se que fala, com grande simpatia e cumplicidade, do seu antigo patrão que ía todos os anos a França pagar a sua dívida de gratidão à família que o salvou, na II Guerra Mundial, e a que atribuiu uma pensão vitalícia…

Depois da morte do sr. Smith, a empresa passou de mãos, ficando sob o controlo de uma multinacional, inglesa, e o Zé Manel optou pela rescisão amigável do contrato e pela indemnização a que teve direito. A partir daí, dedicou-se a tempo inteiro à sua paixão, que é fazer vinhos do Douro… A exploração continua em nome da Maria Luísa Valente Lopes...

O resto da história é conhecida: recentemente, um dos seus vinhos tintos DOC, o Pedro Milanos Reserva 2005, ganhou um espectacular 2º lugar (medala de prata) numa competição internacional, em provas cegas, no meio de milhares de produtores de todo o mundo… Não faltaram as invejas, as intrigas, os ciúmes, num meio (o vitivinícola, do Douro) que é afinal pequeno (40 mil produtores, meia dúzia de grandes empresas e seus enólogos que dominam o sistema):
 – O  que se passa a nível da enologia nacional é vergonhoso: há enólogos-turbo que fazem vinhos de Norte a Sul do país… Ora o enólogo não pode estar em toda a parte ao mesmo tempo… E tem meia dúzia de semanas, num ano, para mostrar o que vale.. O que se passa é que eles põem os putos, como o meu, a trabalhar para eles, por tuta e meia (menos de 500 euros)… E quem ganha os prémios, não são os putos, são eles… É difícil a uma jovem enólogo afirmar-se em Portugal, rompendo com as regras (viciadas) do sistema. Por isso alguns, e dos melhores, acabam por emigrar. Para o Chile, por exemplo. Ainda há dias uma amigo e colega do meu filho Vasco veio cá despedir-se da gente…

Não se pode ser mais frontal e corajoso, ao denunciar uma situação, como esta, que é pouco conhecida dos consumidores, e que mexe com muitas coisas (poder, dinheiro, prestígio, história, cultura, consumo, gastronomia, deontologia profissional, ética nos negócios, responsabilidade social...). Mas o Zé Manuel é também um homem lúcido e desassombtado: acabada a minha geração, desaparece esta paisagem que eu tanto amo... Somos cerca de 40 mil produtores, mas poucos, muito poucos, são verdadeiros profissionais. Não há cultura empresarial. E a terra atinge preços altamente especulativos... Há tempos pediram-me dez mil contos por um bocado de chão que confina com a minha quinta... Eu disse ao dono que nem mil lhe dava: dez mil contos é um investimento que nunca mais vou recuperar em vida...


Quinta Senhora da Graça > 28 de Agosto de 2008 > A adega onde o Zé Manel faz o seu vinho... Na foto de cima, meias pipas de carvalho francês onde envelhecem os lotes de vinho feitos com as diferentes castas... Para quem não sabe e acha caro um vinho de reserva DOC, um casco de carvalho novo, francês, importado, custa 750 euros mais IVA... Usa-se uma vez, só uma vez, para dar o gosto da madeira ao vinho... Depois serve apenas para o vinho de segunda escolha e, por fim, para a aguardente... E com meia pipa (cerca de 300 litros), engarrafam-se no máximo 400 garrafas... que podem ser vendidas directamente pelo produtor a 5 euros cada (30 euros uma caixa de seis)... Como se vê, um pequeno produtor (de 30 pipas...) nunca poderá enriquecer a produzir e a vender vinho... Resta a paixão, o saber-ser, o saber-estar, o saber-fazer... O ser é mais importante que o ter: esta é a filosofia do Zé Manel e da Luisa, que têm uma lindo projecto de vida em comum...

Na foto em baixa: os tachos com que se serve a comida, no campo, por altura das vindimas... O Zé Manel garante não ter problemas de falta de mão de obra: nas vindimas, os trabalhadores, sazonais, comem à mesa da família, são bem tratados e bem pagos... A vindima pode mobilizar quinze a vinte pessoas. O vinho tinto é todo pisado ao pé, como manda a tradição e a ciência... Durante o ano, o Zé Manel tem apenas um colaborador, externo à família, que o ajuda nos trabalhos agrícolas... Além de excelentes vinhos, a Quinta também produz um maravilhoso azeite - cerca de 600 litros - que desaparece num ápice: colhe-se à colher, ensopado no pão, no prato, de todas as maneiras e feitios... As oliveiras, aqui, bordejam os vinhedos.

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


É um homem generoso, lúcido, apaixonado mas realista, combatente, crítico e às vezes cáustico que nos fala da sua terra (a Régua) e da sua região (o Alto Douro Vinhateiro, “património mundial da humanidade”)… É crítico em relação às elites, às famílias importantes... Não perdoa os crassos erros de urbanismo que se têm cometido na Régua, em nome do poder autárquico, democrático, e que descaracterizaram a cidade:
- Dantes, toda a gente tinha acesso à vista de rio, a partir da janelas das suas casas… A especulação imobiliária e a ditadura do betão mudaram o perfil da cidade. A excessiva volumetria dos novos edifícios destruiu a Régua do meu tempo de menino e moço… Valha-nos, ao menos, o termos conseguido trazer para a Régua o Museu do Douro... Foi a única coisa boa que nos aconteceu nestes últimos dez anos… É a Régua e não Gaia que é a capital do Vinho do Porto e da Região do Douro.





Quinta Senhora da Graça > 28 de Agosto de 2008 > A última criação da dupla Vasco Valente Lopes / José Manuel Lopes... Penedo do Barco, vinho tinto, DOC, Douro... 14 graus. Um néctar, já o provámos em Candoz. O Zé Manel acha-o superior ao Pedro Milanos... Todos os anos ele faz um vinho tinto reserva, com nome diferente... É um criador e um criativo. E tem no filho, enólogo, que já estagiou na Austrália -país de grandes enólogos - seguramente um continuador a quem já transmitiu a paixão pelo Douro, a sua paisagem, a sua gente, o seu vinho... Para quem quiser provar este vinho superior, pode encomendar directamente ao produtor: 50 aéreos por caixa de seis, entregue ao domicílio, sem mais encargos. (O Pedro Milanos, tinto, DOC, Douro, 2005, sai a 30 aéreos por caixa de 6 garrafas). Telefone: 254 811 609. E-mail: quinta.grande@mail.pt

Só um produtor-poeta como o Zé Manel podia pôr no rótulo da garrafa um texto de antologia como este:

"Nascido entre muros de xisto, à mão plantados por Durienses anónimos, escultoresdeste fantástico Douro, Património da Humanidade, este vinho é resultado do microclima Duriense, do solo xistoso, das nobres castas Touriga Nacional, Touriga Franca, Touriga Roriz e Touriga Barroca, de muita tradição e paixão. Vinificado em lagares tradicionais, procurámos dar-lhe a qualidade que só as pequenas qualidades garantem plenamente e o tempo certo para nascer e crescer. Este é o nosso vinho, uma parte da nossa vida que queremos sempre cheia e partilhada".

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


Dá gosto ouvir o Zé Manel, na sua terra, na sua casa, na sua quinta, a falar do Douro, do vinho, das vinhas, da agricultura, da enologia, mas também do seu passado, do seu presente e do seu futuro… E, claro, a falar também da Guiné e da experiência da guerra colonial.

- Só me chateei uma vez com o pai, que era um homem severo, mas de princípios: foi quando ele tentou livrar-me de ir parar à Guiné… Ainda mexeu os seus pauzinhos. Foi comigo a Lisboa. Chegado lá, desistiu, quando percebeu a minha determinação em cumprir o meu dever. Na altura, eu estava convicto que ia defender a Pátria… E lá fui parar a Guiné, a Mampatá, em rendição individual, com ano e meio de tropa…

Na sua casa ainda me mostrou alguns “recuerdos” que trouxe do tempo em que esteve em Mampatá… A maior parte do tempo a fazer segurança aos tipos da Tecnil que estavam a abrir a nova estrada Buba – Mampatá – Quebo - Salancaur.
- Trouxe comigo uma Kalash... Um dia tive que a deitar ao rio… Houve uma denúncia, a GNR apareceu cá em casa… Ainda me chatearam. Mostrei-lhes apenas o carregador, que ainda hoje conservo… Também tenho um carregador de uma Tokarev. Numa cena de copos, em Bissau, um capitão qualquer acabou por ficar com ela, ou melhor, roubou-ma. E tenho aqui esta peça de museu: um cantil do PAICG, perfurado por uma bala de G3…







Quinta da Senhora da Graça > 28 de Agosto de 2008 > Memórias da Guiné (1972/74): restos de despojos de uma batalha... Um cantil, perfurado, um carregador de Kalash, outro carregador de Tokarev...

Recorde-se aqui um dos poemas do nosso Josema, Naquela picada havia a morte, em que o pesadelo da guerra está omnipresente, o terror das minas e das emboscadas, enquanto se rasgava a estrada até Salancaur:

Naquela picada havia a morte
havia a morte naquela picada
de vinte e quatro
foi tirada a sorte
para um foi a desgraça
o diabo o escolheu
ou foi Deus que o esqueceu
havia a morte
naquele caminho
naquela picada havia a morte.

Estrada de Nhacobá, 1973
josema

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


Segundo depreendi, este material pertencia uma guerrilheiro abatido pelas NT. A construção da estrada (alcatroada) acima referida (e que chegou a Salancaur, por alturas do 25 de Abril de 1974) foi uma das maiores "provocações" que o Spínola fez ao PAIGC. A estrada entrava no coração das "regiões libertadas" no sul, e afectava o corredor de Guileje, por onde entravam mais de dois terços dos abastecimentos da guerrilha, para todas as frentes (armamento e outro equipamento, víveres, medicamentos, material escolar, bens de consumo corrente, etc.).
- Spínola era um estratego com visão... - reconhece o José Manuel que prefere falar, com mais calor humano, das suas missões de paz: auxiliava o Fur Mil Simões no posto escolar de Mampatá, chegava à bola com os putos das tabancas, conseguindo com isso levá-los a frequentar a escola portuguesa (em detrimento da escola corânica, o que não deixava de levantar problemas com o cherno local)...Fala com grande admiração do Simões (hoje doente) cuja despedida de Mampatá foi uma verdadeira manifestação de massas, de alegria, saudade e dor... Millhares de africanos apareciam ao longo do caminho a despedir-se do Fur Simões, que partia para a Metrópole, depois de finda a sua comissão:
- Um espectáculo impressionante... Nunca conheci ninguém tão popular entre a população local como o Simões... Infelizmente não aparece nos nossos encontros anuais. Está doente...

Volta falar-me da experiência do pós-25 de Abril… e da sua admiração por alguns guerrilheiros do PAIGC com quem se correspondeu, ainda por uns largos tempos depois do seu regresso a Portugal...

O dia foi curto para tantas emoções e novos conhecimentos. Resta-me dizer que almoçámos numa casa de pasto castiça, A Tendinha, na Régua, e que comemos pernil de porco, guisado, que estava uma delícia. Acompanhado com um rosé, fresquíssimo, que o Zé Manel trouxe de casa.

Ele e a Luisa tinham gente em casa, ao jantar. Amigos do Museu do Douro, além dos hóspedes do turismo rural e os clientes, já habituais, que vêm expressamente do Porto e de outros sítios comprar-lhes caixas de vinho... Não quisemos mais abusar da sua hospitalidade. Por volta das seis da tarde estávamos de regresso ao nosso sítio, em Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, com vista para a Serra de Montemuro e, ao fundo do vale, o Rio Douro, a famosa barragem do Carrapatelo por onde obrigatoriamente os cruzeiros do Douro que seguem até à Régua.

O Zé Manel e a Luísa ficam-nos a dever uma visita... Até lá, o nosso muito obrigado por este dia "cheio e partilhado". Boa saúde, bom trabalho. Luís Graça
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Nota de LG:

Vd. último poste da série de 26 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3149: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (5): Com o Pepito na Lourinhã, capital dos dinossauros (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P3164: Em busca de... (37): Capelão Gama, do BCAV 490 (Teresa de Seabra)

Farim, edifício do comando do BCaç 2879 e anteriormente, entre outros, do BArt 733 e do BCav 490.

Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem da senhora Dona Teresa de Seabra, com data de 31 de Agosto de 2008, dirigida ao nosso Blogue.

Olá, estive em Farim em 1964-1965, onde meu Pai era o Administrador do Concelho e conheci muita gente do Batalhão 490 (*).

Morando no Estoril, há 3 anos soube que o Tenente Coronel Cavaleiro se encontrava no Lar em Oeiras. Em 1966, em Lisboa, reencontrei-o e a várias pessoas daí, conhecendo as respectivas famílias. Mas perdi o rasto do padre Gama, capelão do Batalhão, quando foi para o Brasil, lá para 1974.

Já estive em Bissau a matar saudades - fui como Professora, que sou, e devo estar viva graças ao Nino Vieira que me mandou regressar a Portugal à custa da Guiné-Bissau.

Deram-me 6 meses de vida, por causa de um vírus tropical apanhado em Bubaque, mas... já estive em Macau e por meio mundo e... cá estou eu.

Será que o Padre Gama ainda é vivo??? Estava muito doente, em 1974-5, no Brasil, depois de ido de Angola.

Se souber algo dele, agradecia me dissesse.

Obrigada e cumprimentos,
Teresa de Seabra

2. Comentário de CV

Senhora Dona Teresa de Seabra, muito obrigado pelo seu contacto.

Poderá consultar os postes abaixo discriminados, bastando para tal clicar em cima de cada endereço. Aí vai encontar algumas notícias do BCAV 490 e do Cor Cavaleiro, Comandante desta Unidade. Poderá também entrar em contacto com as pessoas que estiveram neste Batalhão no sentido de encontrar notícias do Capelão Gama.

Pode ainda acontecer que alguém que leia este poste nos contacte se tiver notícias para lhe dar.

Os nossos cumprimentos

Carlos Vinhal
Co-editor
___________________

Notas de CV:

(*) - Vd. postes de:

10 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2745: Tabanca Grande (61): Apresenta-se o Valentim Oliveira da CCAV 489 / BCAV 490 (1963/65)

13 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2756: Tabanca Grande (62): 14 de Abril de 1965, domingo de Páscoa em Farim (Valentim Oliveira, CCAV 489 / BCAV 490, 1963/65)

23 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2874: Um dia na Ilha do Como: Operação Tridente, Fevereiro de 1964 (Valentim Oliveira, CCAV 489/BCAV 490)

1 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2909: Convívios (62): Encontro do BCav 490. Valentim Oliveira.

26 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3094: O Nosso Livro de Visitas (21): Henrique Simões, Fur Mil da CCAV 488/BCAV 490, Guiné 1963/65

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3163: O Nosso Livro de Visitas (25): Francisco Passeiro, ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857 (Mansabá, 1965/67)

Vista aérea de Mansabá
Foto: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem recebida no nosso Blogue no dia 1 de Setembro de 2008, endereçada pelo nosso camarada Francisco Passeiro, ex-Fur Mil de Trms da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857 (Mansabá, 1965/67)

Os meus cumprimentos.
Não sei porque carga de água fui parar ao blogue da Guiné onde também residi como Fur Mil de Transmissões até Maio de 1967, na CCAÇ 1421/BCAÇ 1857 numa terra chamada Mansabá.

O blogue tem de facto informação que nos absorve por horas e horas e pelo que já cheirei, vou voltar a ele, mas para já achei o nome muito complicado, embora original.

Para mais fácil ser encontrado não será possivel ser um Guiné... qualquer coisa... sendo rebaptizado? Não sei se possivel... mas seria mais fácil dar com ele nesse monstruoso Mundo da Internet.

Fui lá parar por mero acaso e tenho pena de só agora o descobrir... parabéns pelo trabalho efectuado. Estou certo que é desconhecido de muita e muita gente que certamente poderia ajudar a manter para os futuros umas páginas de História...

Na pesquisa que fiz, curiosamente reparei nos memoriais que aparecem incritos em Mansabá que o BART 645 esteve lá até 1966. Irei ver se de facto estou errado pois lembro-me que a minha Companhia foi render os Águias Negras em Mansabá em 1966 ou 1965 (?). Depois direi alguma coisa.

Com tristeza não encontrei nada sobre o destacamento K3 que à data, tanta tinta e pólvora fez correr, e que foi instalado pela CCAÇ 1421 e outros, a 3km de Farim, para interromper um trilho de cambança da Zona donde se destacava a muito importante base de Morés, no centro do muito célebre, na altura, triangulo da morte (povoações do Olossato, Bissorã, Mansabá)

Divulgarei o blogue quando possível, nomeadamente nos almoços anuais que se realizam. É muito gira a ideia.

Embora não tendo sido um operacional, contrbuirei com o que me lembrar.

Parabéns
Francisco Passeiro


2. Comentário de CV

Caro Passeiro
Obrigado pelo contacto.

Estou a responder-te em nome do nosso camarada Luís Graça, fundador e principal animador do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, conhecido entre os Tetulianos por Tabanca Grande, onde acolhemos todos os camaradas que combateram na Guiné e que queiram colaborar na feitura de um trabalho que queremos seja um espólio para, no futuro, dar a conhecer aos nossos vindouros o que foi a guerra colonial, neste caso, naquela pequena parcela da Guiné.

Aceitamos a tua opinião sobre o nome do Blogue, mas primamos pela originalidade e diferença, pelo que para já sentimo-nos muito bem assim.

Com respeito ao fim em si, deste Blogue, acertaste quando disseste que seria um legado para os futuros. É isso mesmo. No primeiro contacto connosco, adivinhaste o nosso propósito.

Como todos seremos poucos, ficas convidado, desde já, a aderiri à nossa Tabanca Grande. Manda uma foto do teu tempo de tropa e outra actualizada, tipo passe preferencialmente, começa a preparar as tuas estórias e as tuas fotografias e manda para nós. Assim serás mais um, nesta tarefa de dar a conhecer aos mais novos o que foi a maior preocupação da nossa geração (a guerra colonial) e como soubemos aguentar aquele duro sacrifício, com enormes cutos de vidas e saúde, com incapacidades temporárias e permanentes.

Na nossa Tabanca tratamo-nos todos por tu, independentemente dos postos que tivemos (e alguns ainda têm) e da posição que cada um ocupa na sociedade. Somos verdadeiros camaradas e amigos, unidos pelas recordações das nossas vivências naquela pequena terra da Guiné, que nos marcou, para o bem e para o mal, para sempre.

Falando do K3, se procurares, encontras alguma coisa, uma vez que até temos entre nós pelo menos um tertuliano que passou lá bons tempos, no dizer dele. Trata-se do ex-Alf Mil Vitor Junqueira da CCAÇ 2753, Companhia esta que nos foi render a Mansabá, ainda antes de acabar a sua Comissão.

Falando de Mansabá, onde também estive entre Abril de 1970 e Fevereiro de 1972, se tiveres fotos de lá, podemos trocar, como fazíamos com os cromos quando éramos putos.

Ficamos à espera de notícias tuas. Até lá pesquisa o nosso Blogue para te sentires também responsável pela sua continuidade.

Recebe um abraço de boas vindas, em nome de todos os tertulianos
Carlos Vinhal

Guiné 63/74 - P3162: Estórias do Juvenal Amado (15): Adeus, até ao meu regresso

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, (Galomaro, 1972/74), com data de 21 de Agosto de 2008, com mais uma das suas estórias (*), desta feita, com uma pequena ficção que ilustra a mágoa de quantos, já casados e com filhos, tudo deixaram para combater numa guerra que se travava naquelas longínquas e desconhecidas terras de África.

Caros camaradas Carlos, Virgílio, Luís Graça e restante Tabanca

Cá vai mais uma pequena estória, embora uma ficção, que se repetiu vezes sem conta ao longo dos anos de Guerra.

Como digo na introdução, ela surge da correspondência mantida com o nosso camarada Vasco Joaquim (**).

Ele pertenceu ao BCAÇ 2912 que nós fomos render. Algumas das fotos para além de ilustrarem a estória, servem também de documento histórico, onde são mensionados os nomes dos camaradas que morreram nas Duas Fontes, em 1 de Outubro de 1971.

Deixo ao teu critério as fotos que entenderes usar.

Um abraço a todos os camaradas que já eram casados ou não
Juvenal Amado



2. Introdução

Casado desde os vinte anos, ela com dezoito e após 40 anos de matrimónio, já com cinco filhos, a forma que ele fala do grande sofrimento que foi a separação durante os anos que esteve na Guiné, mais precisamente em Galomaro, (BCAÇ 2912 de 1970 a 1972), é elucidativa do drama que o atingiu com a separação.

Também me levou a recordar uma situação passada com o meu camarada Lourenço Periquito, que também já era casado e tinha um filho quando embarcou para a Guiné.

O Lourenço todos os dias escrevia e recebia carta da mulher. A dada altura essa corrente de escrita quebrou-se, pois o nosso camarada deixou de receber as cartas da esposa. O nosso camarada estranhou, mas lá ficou esperando sem dizer nada a ninguém.

Os dias e as semanas foram passando, o correio não chegava. O desespero levou a umas cervejas a mais, o nosso camarada soltou o seu drama dando largas à sua dor.

Falou-se com o Comandante e a partir daí, logo ele recebeu noticias de casa. Também a esposa estava aflita, pois não sabia como contactar o marido. (Telemóveis vieram muitos anos depois).

O incidente foi motivado pelo carteiro que fazia aquela zona ter ido de férias e o que o substituiu, nunca ter levantado o correio da caixa que ficava no pequeno povoado.

O Lourenço recebeu de uma só vez a correspondência de quase um mês, e era vê-lo devorar as cartas com a felicidade estampada no rosto.

Embora esta estória tenha sido gerada pelo testemunho do nosso camarada Vasco, que confidenciou que tanto ele como a esposa, numeravam os aerogramas para terem a certeza que não perdiam nenhum, é intenção minha dedicá-la a todos os que viveram situações semelhantes.

Os dois casos têm final feliz.

Fotografia de casamento do nosso camarada Vasco Joaquim, mas que podia ser de qualquer um dos muitos militares que deixaram as suas esposas para ir combater.
Foto: © Vasco Joaquim (2008). Direitos reservados.


3. Adeus até ao regresso
Mais uma estória de amor

Olho os teus cabelos espalhados na almofada.

Nunca te disse quanto te amo. Na penumbra, o meu olhar desce pela curva do pescoço, ombros até ao arredondado dos seios. Finalmente adormeceste, após a longa vigília que prolongou o amor feito de desespero e ansiedade, pela partida próxima.

O teu corpo nú, encostado ao meu, tão perto da despedida. Acaricio-te a pele macia, mexes-te ligeiramente sem acordar.

Volto a olhar a curva do teu rosto sereno, de vez em quando atravessado por um leve franzir, como se uma preocupação teimasse em não desaparecer.

Algumas horas nos separaram dos dois anos em que possivelmente nunca nos veremos.

Antevejo a dolorosa despedida, não com um até já ou um até logo, mas sim com um até qualquer dia.

Acordo-te suavemente. Abres os olhos e sorris, mas logo o sorriso é substituído pelo pânico:

- Já está na hora? - Perguntas aflita.

- Sim tenho que me preparar, não posso perder o comboio - respondo.

Tinha sido um acto de loucura termo-nos casado antes de eu ter sido mobilizado. Nem casa tínhamos, por isso o termos ficado em casa dos meus pais, ocupando o meu quarto de solteiro, rodeados dos meus livros e discos.

Depois da minha partida, voltará para casa dos pais dela, onde se sentirá mais apoiada.

São tempos conturbados estes. O nosso horizonte é limitado pelo o fantasma da guerra.

Aquele trocar de olhares no baile, o convite mudo para dançar, fez-me ficar preso à tua juventude e guardá-la para mim, nesse momento único.

Beijámo-nos sem parar. Os lábios sabem a sal.

- Vou-te escrever todos os dias.

Os sacos pesam como chumbo, ou se calhar são os meus braços que os não aguentam. A despedida é mais violenta que eu alguma vez imaginei.

- Não chores. Não quero guardar de ti esta ultima imagem.

- Todos os dias quero receber carta tua e eu todos os dias te respondo. Prometes?

- Prometo - respondo, não conseguindo afastar-me daquele abraço.

Fica à porta, parece mais pequena. Está frio, mas não parece dar por ele.

Terei esta imagem dela no combóio, nas árvores, nos rios, nas núvens e nos momentos de solidão.

Desejarei tê-la comigo ao deitar e ao acordar. A saudade vai-me perseguir cada dia e cada hora até ao intolerável.

O navio já está à espera nos Cais. O Tejo está cinzento e um manto de neblina paira sobre ele.

A cidade dorme.

Não avisei do dia do embarque. Não seria capaz de suportar outra despedida.

Entro para o barco, estou cheio de frio, não tem conta os cigarros que acendi. Olho para o Cais. Há muitos familiares dos meus camaradas. Foram mais corajosos do que eu.

O barco parece estar inclinado, pois todos nos agrupamos do lado do Cais. Ouvem-se as sirenes e aqueles cabos que ainda nos ligavam a terra já estão soltos. Os gritos e os assobios dos meus camaradas enganam a angustia.

Muitos dos pais vieram a Lisboa pela primeira vez. Uma ocasião para ser recordada pela tristeza.

Vejo o teu rosto em todas as jovens que se despedem com lenços a acenar.

Também eu aceno, despeço-me de ti em todas elas.

- Adeus até ao meu regresso meu amor

Juvenal Amado
_____________

Notas de CV:

(*) - Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3126: Estórias do Juvenal Amado (14): Morteiro no meio da Parada de Cancolim

(**) - Vd. poste de 9 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3124: O Nosso Livro de Visitas (23): Vasco Joaquim, 1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2912 (Juvenal Amado/Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P3161: Tugas, italianos, suecos, guineenses... Estereótipos e preconceitos (António Rosinha)

Guiné > Região, possivelmente do sul, controlada pelo PAIGC > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 1 > Elementos das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo). A Suécia foi, até há pouco tempo, um dos grandes amigos da Guiné-Bissau... Em 2005 decidiu supender a ajuda, técnica e financeira, à Guiné-Bissau, depois de uma longa tradição de cooperação bilateral, que remontava à luta pela independência nacional... (LG)


Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI).



1. Mensagem do nosso amigo tertuliano António Rosinha, ex-Furriel Miliciano em Angola (1961) e que, como civil, trabalhou na Guiné-Bissau, entre 1979/84, como topógrafo da TECNIL (1).


Sempre tive muita curiosidade de saber o ponto de vista de terceiros sobre as nossas colonizações, escravaturas, andanças pelos sete mares, enfim, curiosidade em saber como os outros vêem Lo terror de los mares, e não ia perder a oportunidade da convivência na Guiné, (1979-1993) com holandeses, italianos, alemães, franceses, suecos, brasileiros, espanhois, equatorianos, azerbeijãos, lituanos, e fico por aqui...

Já em 1960, eu vira no ex-Congo Belga a profusão e confusão de nacionalidades, quando daquela independência, mas aí eu era novato e não tinha curiosidade nem tinha começado ainda a nossa guerra.

Era eu Cabo Miliciano em Noqui, fronteira de Angola com o Zaire, mal sabia eu que era o princípio da nossa guerra mas também o princípio da confusão que ainda hoje dura no Zaire, Ruanda e Burundi.

Mas como dizia, sobre o que terceiros pensavam sobre as nossas andanças, vou contar, por agora, apenas três casos passados na Guiné:

O primeiro passa-se com um engenheiro de uma empresa italiana que me fiscalizava numa obra do prolongamento e modernização do aeroporto de Bissau em 1980. Quando já nos identificávamos razoavelmente, esse engenheiro (Pesce, de seu nome), homem viajado, falando portunhol razoável, aborda-me isoladamente com o seguinte diálogo:
- Russinha - italianizou - eu nunca tinha ouvido falar deste país, Guiné, antes deste trabalho, mas onde fica isto?

Fui ao mapa e com dificuldade localizei e fui ver a história.
- E agora, Russinha, me responde, é verdade que os portugueses estiveram aqui 500 anos?

Ainda eu não tinha acabado de gaguejar sem conseguir responder, já me fazia outra pergunta:
- Russinha, 500 anos num país destes, a fazer o quê?.

De facto tanto tempo ali, custava muito a explicar, de repente. Mas dou hoje os parabéns ao italiano pela pergunta. Mas hoje, passados quase trinta anos, tinha muitas respostas.

Outro caso em 1988 com uns jovens noruegueses e dinamarqueses, de uma ONG, Ajuda do povo para o povo, APP.

Publicavam e vendiam estes jovens um livro com muita qualidade de papel e fotos, sobre a actividade deles na Guiné: Faziam escolas de adobe, talvez os guineenses já se tivessem esquecido como se fazia o adobe, ensinavam na escola, muitas coisas.

Desfolhei o livro e impressionaram-me duas fotos que retratavam o ponto de vista deles sobre nós, o Tuga.

Vou descrever o melhor possível as fotos e respectivas legendas:

Numa primeira foto um jovem loiríssimo e branquíssimo com um serrote na mão, cortando uma tábua e, observando este gesto, um jovem escuríssimo que só se viam os olhos arregalados e os dentes na boca aberta, admiradíssimo com o gesto que via... E numa foto ao lado, o mesmo jovem escuríssimo com o mesmo serrote na mão, cortando a mesma tábua, e ao lado o loiríssimo com um olhar e um sorriso de satisfação. E a seguinte legenda: Ensinamos hoje, o que os portugueses não ensinaram em quinhentos anos.

Como choro hoje não ter comprado este livro. Mas ainda deve haver algum exemplar por Bissau ou nas mãos de alguém daquele tempo.

Outro caso pelos anos 1992/93 com uma senhora sueca que fizera amizade com um cooperante português e que tertuliava com os tugas, por afinidade, pelos 2 ou 3 cafés dos bares ou hoteis que funcionavam em Bissau. Acontecia que havia na cooperação militar uns tantos oficiais e sargentos portugueses que, por norma, vestiam à civil quando estavam fora da sua actividade. Mas aconteceu aparecerem completamente fardados, desempenados, todos garbosos, pelo local do café onde o grupinho habitual nos encontrávamos na companhia da senhora sueca. Esta levantou-se da mesa indignada, ficámos de boca aberta, a ouvi-la vociferar, que não havia direito andarem ali aqueles nazis, etc, etc. Foi preciso muita presença do amigo tuga dela para a segurar.
Como sei um pouco daquilo que fiz em muitos anos de trópicos, sei avaliar o que a gente dos trópicos beneficiou com imensas tribos do mundo inteiro.

Gostaria de descrever como é fazer [acção] psicossocial à sueca. Outro dia.

Um abraço para todos os tertulianos,
António Rosinha
_______________

Notas de CV

(1) Vd. postes de:

29 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1327: Blogoterapia (7): Furriel Miliciano em Angola, em 1961; topógrafo da TECNIL, em Bissau, em 1979 (António Rosinha)

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1358: Nostalgias (1): No cais do Xime, dois velhos Unimog pedindo boleia a algum barco (António Rosinha, ex-topógrafo da TECNIL)

14 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2178: Efemérides (6): 24 de Setembro de 1973... Quo Vadis, querida Guiné ? (António Rosinha / Leopoldo Amado)

22 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2201: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (2): Eu estava lá em 1961 e lá fiquei até 1975 (António Rosinha)

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2274: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (6): Luís Cabral, os assimilados e os indígenas (António Rosinha)

8 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2420: Notas de leitura (6): Amílcar Cabral, um lusófono fazedor de utopias (António Rosinha)

23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2976: Fórum Guileje (16): Como está a lusofonia em Bissau ? (António Rosinha / Luís Graça)

8 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3035: Efemérides (9): 33.º aniversário da independência de Cabo Verde (António Rosinha/Carlos Vinhal)

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3160: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (5): (Des)temor...


Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (5)
por Alberto Branquinho (*)

(Des)temor (**)

Amanhecia. Cacimbo muito espesso, agarrado às árvores, às ervas, ao chão. Os primeiros homens começavam a sair dos abrigos onde passavam as noites enterrados, a quatro e quatro, a cerca de metro e meio do chão. Os abrigos estavam cobertos de troncos de palmeiras, depois chapas de bidões e, por cima disto, uma espessa camada de terra. Vinham de gatas passando pelo buraco aberto para o lado interior do aquartelamento que estava, ainda, em construção. Dirigiam-se às valas, que serviam de sentinas, verter as urinas da manhã ou algo com mais consistência. Outros faziam flexões junto aos abrigos para desentorpecer o corpo ou movimentos de braços à frente e atrás para aquecer, entre bocejos e mais bocejos das noites mal dormidas, devido aos consecutivos ataques nocturnos.

Na cozinha – que era um buraco no meio do aquartelamento, parcialmente coberto com chapa de zinco – alguém tentava acender o lume. Uma chama rasgou a espessura do cacimbo. Imediatamente e não muito longe, ouviu-se gritar, em sotaque crioulo:
-Fogo!

O grito rasgou a quietude da manhã e, imediatamente, rebentou uma fogachada fortíssima (e próxima) de armas automáticas e lança-granadas. Os utentes das sentinas correram desesperadamente para os abrigos, com as calças nas mãos. Formou-se imediatamente uma nuvem de pó e fumo, acompanhada do habitual cheiro intenso das explosões. Apesar de ser dia, viam-se as chamas de boca das armas e as balas tracejantes. Os morteiros, instalados no centro do aquartelamento, pouco demoraram a responder. As G-3 eram usadas através das seteiras dos abrigos, deixadas entre o chão e o primeiro tronco de palmeira.

O alferes sentiu passos por cima do seu abrigo e a terra que o cobria começou a escorregar, quase tapando a seteira. Alguém, colocado em cima do abrigo, despachava as munições de uma metralhadora em forte cadência de tiro, quase sem parar. A metralhadora parou.

O alferes espreitou pelo buraco do abrigo e viu um vulto no meio do pó, fumo e cacimbo que insultava:
- Dispara essa merda, cabrão! Dá cá isso!

O alferes berrou-lhe:
- Vai lá para dentro! Lá para dentro!

Lá fora ouviu gritar:
- Ajuda aqui.

Começou a entrar pelo buraco terra arrastada pelo sopro e pelo cone de fogo das granadas de bazuca. Quando o fogo quase tinha cessado, havendo somente disparos ao longe, o alferes saiu. Uma gritaria infernal vinha de dentro dos abrigos. Os homens começaram a sair.
- Quem era o gajo que andava cá fora?

Várias cabeças se voltaram numa só direcção.
- Eras tu que estavas ali em cima com a metralhadora?
- Sim, meu alferes.
- Não voltas a fazer uma coisa dessas!

Embaraçado, como uma criança apanhada a fazer asneiras, esclareceu:
- Ó … meu alferes… eu estava cheio de medo, carago!
__________

Notas de vb:

(*) Alberto Branquinho foi alferes miliciano na CART 1689 (1967/69). Foi um dos construtores do quartel de Gandembel e do de Gubia /Empada. Fez, além disso, "várias movimentações terrestres, fluviais e costeiras para outros quartéis-base de operações conjuntas (por ex., Bambadinca, Buba, Bedanda, Bafatá, Banjara)".

(**) Vd. poste anterior desta série:

22 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3081: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (4): Os meninos à volta da fogueira...

Guiné 63/74 - P3159: Ser solidário (18): Projecto Sementes: Com o Pepito, na sua casa de São Martinho do Porto, em 19 de Agosto passado (Zé Carioca)



São Martinho do Porto > Casa de verão do Pepito e da Isabel > 19 de Agosto de 2008 > O casal Carlos Schwarz Silva e Isabel Levy Ribeiro, juntamente com as respectivas senhoras mães (reconheço na foto a matriarca da família, a mãe do Pepito, Clara Schwarz da Silva), recebem dois ilustres Gringos de Guileje, o ex-Cap Mil Abílio Delgado e o ex-Fur Mil Trms José Carioca, que se fizeram acompanharam das respectivas esposas. O Zé Carioca, muito em especial, tem sido o líder do projecto de recolha de sementes para os agricultoires da Guiné-Bissau, em cooperação com a AD - Acção para o Desenvolvimento, a Organização Não-Governamental (ONG) fundada e dirigida pelo Pepito.

O Abílio mora na Ericeira e o Zé Carioca em Cascais. Presumo que também tenha aparecido o Diamantino Figueira (penso poder reconhecê-lo de costas, na foto de cima; o Zé Carioca mandou-me as fotos sem legendas...). Ele foi connosco à Guiné, por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008), juntamente com o seu filho. É dono de um restaurante na zona de Cascais e amigo do Zé Carioca. Pertenceu ao BIG (Batalhão de Intendência Geral), Bissau, 1971/73. Telefone de contacto: 214752070. (Devo acrescentar que ele e o seu filho foram dois companheiros excepcionais da nossa semana inolvidável na Guiné-Bissau, por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje, de 29 de Fevereiro a 7 de Março de 2008.)

Fotos: © José António Carioca (2008). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Bissau > Sede do Governo > 6 de Março de 2008 > Participantes portugueses do Simpósio Internacional de Guileje, aguardando audiência do o 1º Ministro do Governo da Guiné-Bissau, na altura Martinho Ndafa Cabi, do POAIGC. Na foto, em primeiro plano, o Diamantino Figueira. À sua esquerda, os Gringos de Guileje Zé Carioca e Abílio Delgado, seguidos pelo Cor Art Ref Coutinho e Lima e ainda o José Barros Rocha (que também esteve em Guileje, de Junho de 1969 a Março de 1970, como Alf Mil da CART 2410, Os Dráculas). (LG)

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

1. Mensagem do Gringo de Guileje, Zé Carioca, com data de 29 de Agosto:

Olá, Luís, boa tarde:

Estas são fotos do almoço ao qual não pudeste estar presente. De qualquer maneira ficas na mesma com uma pequena reportagem fotográfica das pessoas que nele participaram. Como podes calcular, também para nós, Gringos presentes, foi um motivo de grande satisfação estar com o Pepito na sua casa em S. Martinho do Porto. Já antes o tínhamos recebido em Cascais, num almoço no restaurante do Diamantino.

Gostaria de te informar, a ti e à Tabanca Grande, que o Pepito vai levar uma primeira remessa de sementes (*). Quero agradecer ao Zé Rocha, Diamantino, Gringos, Zé Teixeira e seu grupo de amigos (de que não sei os nomes), que tiveram a amabilidade de contribuir para a compra destas sementes. Eu sei como todos nós nos sentimos por ter dado este primeiro apoio ao povo que tão bem nos recebeu, vão ficar muito felizes e agora ainda mais connosco no coração (**).

Brevemente dar-te-ei mais notícias, até mesmo em relação ao Intercâmbio Cultural (***) que estou a desenvolver com o Pepito.

Um grande abraço para ti e todos os Camaradas da Tabanca Grande.

Zé Carioca

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 17 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3069: Ser solidário (13): Projecto de angariação de sementes (APAG / Zé Carioca)

(**) Vd. poste de 11 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2834: Ser solidário (9): Sementes para a população de Cabedu, Cantanhez, Região de Tombali (Zé Carioca)

(***) Nomeadamente, a nível da produção teatral, numa colaboração entre o grupo de teatro de Cascais a que pertence o Zé Carioca, e o Grupo de Teatro os Fidalgos, de Bissau

Guiné 63/74 - P3158: Em busca de... (36): Causas da morte de Fernando Teixeira Soeima, CART 496, Cacine e Cameconde, 1963/65 (Fernando Chapouto)

Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério Municipal de Bissau > 6 de Março de 2008 > Um dos três talhões atribuídos aos militares portugueses, mortos durante a guerra colonial: trata-se, neste caso, do Talhão Esquerdo, onde estão as campas não identificadas.

Como já o dissemos aqui, no nosso blogue, estes serão porventura os restos mais dolorosos do que restou do nosso Império. Segundo a Liga dos Combatentes, na Guiné haveria mais de uma centena de cemitérios improvisados (locais de enterramento, desde Buba a Nova Lamego, passando por Cacine a Guidaje), onde repousam, sem honra, nem glória, nem dignidade, os restos mortais dos nossos camaradas cujas famílias não tinham, na época, recursos suficientes (cerca de 11 mil escudos!) para, a suas expensas, trasladar os seus corpos para Portugal.

Ao nosso infeliz camarada Fernando Teixeira Soeima coube a Campa n.º 1481... Se alguém passar por lá, que tire, por favor, uma foto para a família, que vive em Argeriz, Valpaços.

Foto : © Nuno Rubim (2008). Direitos reservados.



1. Mensagem do nosso camarada Fernando Chapouto, com data de 30 de Agosto de 2008, dirigida a todos os ex-combatentes da Guiné.

Agradecia a todos os ex-combatentes que me ajudassem a esclarecer a morte do Soldado Cozinheiro 375/63 FERNANDO TEIXEIRA SOEIMA (*).

Unidade Mobilizadora - RAL 1 / CART 496, com destino à Guiné.

Faleceu em 18 de Março de 1963, ficando sepultado em Bissau, na campa 1481.

Como até hoje ainda ninguém esclareceu a causa da sua morte, diziam na aldeia que foi numa armadilha colocada pela Companhia, que saiu do aquartelamento para ir às laranjas, outros dizem que foi em combate...

Este ex-combatente é primo direito da minha esposa. Quando fui à aldeia de Argeriz [, concelho de Valpaços,] despedir-me, para ir para a Guiné, estive com a minha tia, mãe do falecido, que me disse que tinha muita pena em ter o mesmo destino do filho.

Felizmente regressei e fui cumprimentá-la, dizendo ela:
- Ainda bem que regressaste.

Este mês fui à aldeia, e uma prima minha, irmã do falecido, esteve comigo dizendo que na altura fizeram várias diligências para obter as causas da morte do irmão, mas sem resposta.

Já que o irmão ficou no cemitério de Bissau, sem o terem perto deles, me pediu, se fosse possível, que alguém que fosse a Bissau, como de vez em se deslocam lá, tirassem uma fotografia da campa 1481, referente ao FERNANDO TEIXEIRA SOEIMA.

A família do Fernando agradece.

Junto envio placa na campa dos pais no cemitério de Argeriz.

Em nome da família os meus agradecimentos
Fernando Chapouto
Ex Fur Mil
CCAÇ 1426
Guiné, 1965/67

Placa evocativa da memória do Soldado Cozinheiro Fernando Teixeira Soeima, que se pode ver no Jazigo de sua família, no Cemitério de Argeriz, Concelho de Valpaços
Foto : © Fernando Chapouto (2008). Direitos reservados.

________________

Nota de CV

(*) - Vd. poste de 30 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2802: Lista dos militares portugueses metropolitanos mortos e enterrados em cemitérios locais (2): 1965 (A. Marques Lopes)

domingo, 31 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3157: História da CCAÇ 2679 (1): Apresentação (José Manuel Dinis)


1. Mensagem de José Manuel Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 26 de Agosto de 2008:

Olá Pessoal da Tabanca!

Não fiz a apresentação da CCAÇ 2679, pelo que refiro, teve origem no BII19, no Funchal. Os atiradores eram todos oriundos da Ilha, autênticas pérolas, sendo os graduados e os especialistas originários do Continente. Ali fizemos, recruta, especialidade e IAO, a par de actividades civis de grande nível gozatório. Que pena a paródia da despedida não estar no âmbito do blogue.

Embarcados no Uíge, nas condições por demais descritas por outros camaradas, aportámos em Bissau no dia 2 de Fevereiro de 1970.

Navio Uíge > Foto retirada do Site Navios no Sapo, com a devida vénia

Experimentávamos o calor pegajoso. Aos primeiros alvores, já havia muita gete desperta a olhar para a margem de vegetação densa. As cores eram diferentes. O verde não era bem verde. A torrente de água não era translucida. O Geba parecia café com leite, efeito da erosão e dos movimentos das marés. E, subitamente, parecíamos chegar ao inferno, com o estrondo de sucessivos rebentamentos. Era a guerra no seu esplandor.

Ia nas nossas cabeças que na Guiné a guerra era ao metro quadrado. Os aspectos contidos e graves. No íntimo, cada um pensaria na sua capacidade para sobreviver.

Até que aparece o Pidgiguiti, a ponte cais para o desembarque. Começa a circular o aviso para não nos deixarmos olhar pelos estivadores, com certeza com ligações aos turras, que nos identificariam como alvos preferenciais. Houve quem ficasse apreensivo. Tudo correu com normalidade inquietante. A curiosidade em redor era parcimoniosa, muito diferente de um grupo excursionista. A terra sufocava. E o nosso destino foi o Quartel de Adidos em Brá.

Terá havido alguma indecisão sobre o destino a dar à Companhia, pelo que, com excepção dos serviços, tivémos dezoito dias de férias antecipadas, tempo suficiente para os procedimentos de iniciação à vida africana.

Em Bissau, sê bissalense. Fiquei desconfiado com as heroicidades e perigos profusamente explanados na 5.ª Rep, o Bento. E experimentei as ostras no Zé da Amura. Fui jantar ao Solar dos Doze, completamente rendido ao fado e ao tinto. Fui à Meta atraído pela pista de automóveis, mas não experimentei as aceleradelas naquela confusão constante, bebi Monks e, provavelmente, deixei o ADN no meio dos apalpões à grande bunda da camareira.

Recusei o Pilão que imaginava um Vietnam. Nos Adidos reencontrei um contemporâneo de colégio, mais velho, em regime de prisão, que chorava e cantava o fado com fervor, após petisqueira e beberricagem, generosamente providenciada pelo senhor Peniche, com vário anos de Guiné, em virtude dos sucessivos processos disciplinares.

Soldado, sargento, capitão, era conforme, na modalidade de prisão aberta, era figura pública que providenciava os géneros para as festas celulares, espaço aberto à minha responsabilidade.

Nos entretantos, aprendi a evitar as árvores em caso de ser atacado, nada como o baga-baga, a não me sentar à frente no unimog, nem do lado do depósito de combustível, a cortar as orelhas aos turras abatidos e a deixar um cartão de cumprimentos nos corpos abandonados... coisas interessantes que a instrução ignorou.

Um dia fui tomar conta de um Posto de Transmissões, a primeira missão, e ali contactei com as térmitas e um imponente baga-baga, coisa nunca vista.

Outro companheiro de colégio, que acompanhava as senhoras do Movimento Nacional Feminino, ofereceu-me um camuflado parecido com os dos Páras e, por força disso, causei grande espanto, quando em 20 de Fevereiro de 1970, a Companhia, na totalidade, embarcou em LDG, de Bissau para o Xime, e fui respeitado como um veterano duro e circunspecto, disfarçando a condição piriquitante.

Após o desembarque organizou-se a coluna motorizada para Nova-Lamego, onde chegámos ao anoitecer. Lembro-me da impressão que me causou uma árvore fracturada e queimada, em consequência de uma roquetada, onde se destacava o corpo da granada meio enterrado num tronco, conforme explicação abalizada do condutor, velhinho manhoso.

E lembro-me do ensinamento de que todos os cuidados são poucos, concerteza a martelar o alferes mais atrevido, pela sua imagem, deitado e barricado com as bagagens, entre as pernas dos soldados sentados no banco da viatura, com a arma apontada para o mato.

À humidade dos corpos, juntava-se a poeira até Bafatá. Tanta coisa nova, como ração de combate para todo o dia. Por acaso porreira, com chouriço e patê, a que juntei cervejinha para molhar o bico. Passámos a noite numa Repartição Pública, em colchões espalhados no chão, juntinhos, que o espaço não era a perder de vista.

Cumprimentos ao pessoal
José Dinis

P.S. - Desculpem a falta de revisão ao texto, mas as diabruras do computador associadas às traições da minha vista, deixam-me sem paciência, e com mau feitio. J.D.
_____________

Nota de CV:

Vd. poste de 24 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3147: Tabanca Grande (83): José Manuel Dinis, Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda (1970/71)

sábado, 30 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3156: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (13): Actividade da CCAÇ 2402 em Mansabá

1. Mensagem do nosso camarada Raul Albino, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, (, Mansabá e Olossato, 1968/70) com data de 29 de Agosto de 2008.

Junto envio o último texto seleccionado sobre a estadia da CCAÇ 2402 em Mansabá.
Já dá para ver o ambiente que se vivia na época.

Um abraço e um bom fim de semana,
Raul Albino



2. A actividade da CCAÇ 2402 em Mansabá

Por Raúl Albino

A actividade principal da CCAÇ 2402 junto ao BCAÇ 2851 em Mansabá consistia na protecção à capinagem e desmatação, efectuada por trabalhadores nativos, para preparar o terreno para a construção de estradas alcatroadas. Essa actividade, que já vinha de Có, viria a prolongar-se durante a estadia da companhia no Olossato, última etapa da nossa comissão na Guiné.

Mas falemos agora neste período em Mansabá. Além do enorme ataque que sofremos logo no início da minha permanência nesta localidade, sede do Batalhão, a nossa principal senão única actividade na zona, foi precisamente a de protecção aos trabalhos de desmatação efectuados por trabalhadores nativos, como fase primeira antes do avanço das máquinas da Engenharia para romperem os caminhos e procederem ao alcatroar das vias, composto por várias fases, que em si também precisavam de protecção.

Máquina do Batalhão de Engenharia para romper estradas

Foto e legenda © Raúl Albino (2008). Direitos reservados.


A partir desta necessidade, todos os dias pela manhã, vários Grupos de Combate se deslocavam para o ponto em que no dia anterior tinham terminado os trabalhos, para dar seguimento à obra em curso. Ao anoitecer, maquinaria e tropas faziam o caminho inverso em direcção ao quartel para o merecido descanso. Esta descrição parece uma rotina de actividades sem nada de interessante a acontecer, não fosse a particularidade de o nosso inimigo também ter uma rotina conjugada com a nossa e que consistia em esperar que as nossas tropas regressassem ao quartel para, senhores do terreno, aí implantarem um autêntico jardim de minas e armadilhas, especialmente anti-pessoais, com a intenção de desmoralizar as tropas e trabalhadores nativos e assim atrasar a obra. No dia seguinte, perdia-se um tempo enorme a picar a estrada e as áreas periféricas, para levantar ou neutralizar as minas e tudo o que pusesse em risco a integridade dos trabalhadores, militares ou nativos. Todos os dias esta rotina se mantinha, de noite eles semeavam, de manhã nós colhíamos. Isto seria interessante se, volta não volta, não houvesse uma mina ou outra que rebentava, causando mortos ou feridos, tornando grande parte deles incapacitados por amputação de pernas.

O terceiro Grupo de Combate da CCAÇ 2402, que eu comandava, tinha a rara característica de reunir no seu conjunto três especialistas em Minas e Armadilhas, eu próprio, o Furriel Maia e o Furriel Godinho. Em toda a restante companhia só haviam mais dois elementos com esta especialidade, o Alferes Silva e outro furriel do qual não me recordo o nome, um em cada grupo ficando ainda um grupo sem qualquer especialista. Cada mina levantada ou arma apreendida ao inimigo tinha um prémio atribuído pelo Comando. Neste momento só me recordo que uma mina anti-pessoal valia quinhentos escudos e uma anti-carro, salvo erro, dois mil escudos. Devido a esta concentração de recursos e do grande número de contactos com o inimigo que o meu grupo teve, estimei no fim da comissão, que cerca de 80 a 90% dos prémios da Companhia por este tipo de materiais, foram atribuídos ao meu grupo e por todos distribuído. Há que esclarecer uma coisa, os prémios eram atribuídos a pessoas individualmente, mas desde o início que ficou estabelecido entre nós que estes prémios seriam para distribuir pelo pessoal do grupo. A razão que eu tive para estabelecer esta regra é muito simples: Alguém acha que há algum prémio, tenha ele o valor que tiver, que pague o risco de vida de quem tinha, por imposição da sua especialidade militar, de levantar minas para protecção da vida dos seus colegas de armas? Nem pensar! Se ficasse com algum dinheiro para mim, não ia ficar bem com a minha consciência, daí que esta foi a melhor solução que encontrei para o dinheiro não ficar no bolso de alguém que não tinha o mínimo direito a ele e esse seria decerto o seu destino, se eu pura e simplesmente o rejeitasse.

Quem me esteja a ler, pensará que o pecúlio monetário do meu grupo cresceu exponencialmente neste paraíso de minas onde nos encontrávamos nesta altura. Completamente errado, julgo mesmo que este local pouco ou nada contribuiu para esse mealheiro, por uma razão muito simples que se alguém se pusesse a adivinhar, dificilmente o conseguiria. É que todas as manhãs, acompanhando a picagem feita pelos militares, um grupo enorme dos trabalhadores nativos iam, na frente dos militares, imitando os seus gestos, e detectando a grande maioria das minas, levantando-as rapidamente sem qualquer tipo de cuidado e vindo a gritar com elas nas mãos:

- Meu alfero, apanhei uma! - para que ficasse registada em seu nome e poder mais tarde levantar o prémio. É que, infelizmente para eles, quinhentos escudos valia bem o risco de vida. Além destes especialistas de pé descalço, havia também pelotões de sapadores, estes sim, especializados na detecção e levantamento de minas.

Era óbvio que este ritmo tremendo de stress não podia continuar, as tropas existentes não podiam dar mais, estavam arrasadas, no entanto, a única solução era vigiar o local vinte e quatro horas por dia para tentar quebrar este ciclo diabólico. Como as tropas que possuíamos eram insuficientes, recebeu-se o reforço de uma Companhia de Pára-quedistas, tropas especialmente vocacionadas para operações especiais. As operações especiais na Guiné, tinham normalmente a característica de serem intensas, perigosas e curtas. Ora a actividade que se passou a pedir a estas tropas foi a de reforçar os nossos grupos de combate, de forma a permitir a presença permanente de vigilância no local dos trabalhos, de dia e de noite. No entanto as máquinas da engenharia e os nativos tinham de regressar ao anoitecer e voltar de madrugada, obrigando a executar muitos dos procedimentos de picagem que já se faziam anteriormente.

A história que lhes vou contar a seguir, narro-a na forma como eu a registei e analisei através dos relatos que consegui captar de várias fontes. No entanto verifiquei recentemente que alguns militares meus ex-colegas de armas, têm algumas versões ligeiramente diferentes da minha, não no essencial mas de pormenor, daí a minha ressalva prévia.

Houve ainda alguns ataques do inimigo às tropas de protecção da zona, pelo menos dois ou três enquanto lá estive, usando essencialmente tiro de morteiro, lança-granadas foguete e armas automáticas. Mas o que verdadeiramente perturbou estas tropas especiais foi a constante insegurança de todos os dias terem de percorrer trilhos que por regra se encontravam minados. É curioso como o desconhecimento do terreno que se pisa pode causar um estado de espírito de pânico. Foi isso precisamente o que aconteceu. Um belo dia, o Alferes Sapador do Batalhão regressou ao quartel, alarmado, dizendo que um determinado local estava completamente minado e não se podia lá andar. Este desabafo foi feito ao comando do batalhão e o major/2.º Comandante que o ouviu, teve, no meu ponto de vista, a única reacção aconselhada militarmente para esta situação. Depois de o ouvir atentamente, tentou acalmá-lo e ofereceu-se pessoalmente para se deslocar ao local para confirmar as afirmações que o seu sub-alterno alferes lhe estava a fazer. Pensando na lei das probabilidades, o major iria ao local normalmente, acalmaria o alferes e dir-lhe-ia algo como:

- Estás a ver, a coisa não é assim tão dramática como a viste, vamos tentar limpar a área de algumas minas que eventualmente estejam por aí e o local ficará seguro novamente!

Só que desta vez não foi assim, a sorte estava lançada e não era para o lado do major. Contou quem lá esteve que ele acabou mesmo por pisar uma mina anti-pessoal, ficando sem um pé, acabando por ser evacuado para o Hospital Militar. O acidente veio a dar razão ao sentimento de pânico que o alferes sentiu. O rebentamento desta mina fez também dois feridos ligeiros, um deles era Oficial. No relatório oficial do Batalhão indicava que tinham sido levantadas nesse dia 18 minas anti-pessoal. Este acontecimento ocorreu em 8 de Abril de 1969, tendo-se apresentado três dias antes em Mansabá o Pelotão de Sapadores do BCAÇ 1911 com o fim de reforçar as nossas tropas empenhadas na detecção e levantamento de minas, na zona de trabalhos da estrada Mansabá/Farim.

No dia seguinte, 9 de Abril de 1969, nova flagelação do IN à zona de obras causando 8 feridos ligeiros (2 civis). Consequência: chegada de reforço nesse dia do PEL SAP/BCAÇ 1912 e PEL SAP/BCAÇ 2861 que passaram a ter missão idêntica ao PEL SAP/BCAÇ1911, chegado poucos dias atrás.

A 10 de Abril de 1969, a Companhia de Caçadores 2402 a três Grupos de Combate parte para o Olossato, deixando o 3.º Grupo de Combate em Mansabá de reforço ao COP-6 (recém criado), cujo comando foi assumido em 13 de Abril de 69 pelo Ten Cor Pára-quedista Fausto Marques. Na véspera tinha chegado o reforço de uma Companhia de Caçadores Pára-quedista, a 122. Foi no meio disto tudo que eu fiquei, triste e abandonado, deitando contas à vida e sentindo-me cada vez mais insignificante, numa guerra que não tinha encomendado.

Raul Albino

Foto 1 > Troço da estrada Mansabá/K3/Farim que tanto suor e sangue custou a militares e civis que participaram na sua construção.

Foto 2 > Destacamento provisório do Bironque para parque das máquinas da Engenharia utilizadas na construção da estrada

Foto 3 > Instantâneo, real, de uma intervenção de um especialista em Minas e Armadilhas, manuseando uma mina AP AUPS.

Foto 4 > Estrada Mansabá/K3/Farim > Mina AC de origem soviética, levantada no Bironque em 3 de Dezembro de 1971

Fotos e legendas © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.


3. Comentário de CV

Peço desculpa aos demais camaradas e leitores do nosso Blogue, mas não posso deixar de aproveitar o previlégio de ser co-editor para fazer este comentário visível.

É que ao transcrever este trabalho do nosso camarada, fiquei convencido que a estória era minha. Parece que o Raúl Albino não está a escrever o que se passou com ele e com a CCAÇ 2402, mas sim o que se passou comigo e com a CART 2732.

No tempo do Raúl a estrada alcatroada ficou no Bironque e nós continuámo-la até ao K3, sendo as situação descritas por ele as mesmas. Pessoalmente tive a sorte de nunca ter de intervir no levantamento das inúmeras minas que eram semeadas diariamente nos locais de trabalho, porque tínhamos permanente equipas de Sapadores para o efeito.

A mesma rotina diária da saída pelas 5 horas da madrugada com uma bucha de pão no bolso e regresso às 17 horas para almoçar (?), seguido do jantar às 19.

Emboscadas frequentes, tanto nas deslocações de e para a zona dos trabalhos, como nos próprios locais e, à noite para complemento, ataques não raros ao quartel de Mansabá.

Obrigado Raul por contares por mim a nossa estória comum.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 24 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3146: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (12): Ataque a Mansabá

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3155: Bibliografia (29): Ainda o "Rumo a Fulacunda" e o ex-Alf Mil Luís Rainha (Carlos Vinhal/Luís Rainha/Rui Ferreira)

1. Pretende o nosso Blogue ser um dos veículos para que seja reposta a verdade e o bom nome do ex-Alf Mil Luís Rainha, Comandante do Grupo de Comandos Centuriões, tratado indevidamente no livro Rumo a Fulacunda de autoria do nosso Tertuliano Rui A. Ferreira.

Assumimos esta responsabilidade porque:

i - No nosso Blogue foi dada certa notoriedade a este livro, embora tardiamente, já que o lançamento do mesmo se verificou no ano 2000.

ii - Parte dos nossos tertulianos, e leitores ex-combatentes da Guiné, o terão comprado para ler.

Felizmente, e porque temos algum cuidado em proteger as pessoas quando visadas com o nome próprio, não foi publicado no nosso Blogue qualquer parte do livro que ofendesse o bom nome do nosso camarada Luís Rainha ou outro qualquer ex-combatente.

Pensamos, com este poste dar por encerrada a nossa colaboração na compensação moral que o ex-Alf Mil Luís Rainha exigia e tinha direito, desejando que nunca mais se venham a verificar no nosso Blogue ou em algum livro bibliográfico da nossa Guerra Colonial, caso semelhante.

Carlos Vinhal
Co-editor


2. Mensagem do Luís Rainha (1), ex-Alf Mil, dirigida a Luís Graça em 25 de Agosto de 2008

Ex.mo Senhor Dr. Luis Graça

Dig.mo Criador, Editor e Administrador do Blogueforanadaevaotres

Assunto: Livro RUMO A FULACUNDA da autoria do T.Coronel Rui A. Ferreira

Chamo-me Luís Rainha, estive na Guiné, primeiro como Alf Mil do BCAV 705 e, mais tarde, nos Comandos do CTIG como Comandante do Gr Cmds Centuriões.

O que me leva a escrever-lhe é o recente conhecimento que tive da publicação do livro Rumo a Fulacunda escrito pelo Ten-Coronel Rui Alexandrino Ferreira, ao qual tem sido feita publicidade no Blogue.

Tinha, em tempos, ouvido algo sobre esse livro através do meu Camarada e Companheiro de Armas, Virgínio Briote e agora, de uma forma mais precisa através do Júlio Abreu, meu antigo Camarada dos Centuriões, que referiu ser o meu nome citado através de umas peripécias que, segundo o T.Coronel Rui A. Ferreira, teriam ocorrido comigo.

Naturalmente curioso entrei em contacto com a Editora Palimage, procurando saber onde o poderia adquirir. Dois ou três dias depois fui contactado pelo T.Coronel Rui A. Ferreira, que logo se prontificou a enviar-me a publicação.

Acabo de o ler e estou estupefacto ao ver o meu nome aparecer associado a eventuais factos que, segundo Rui Alexandrino Ferreira, teriam ocorrido comigo em determinada zona da Guiné.

Se tal facto ocorreu, quero afirmar aqui que não fui eu o protagonista nem me lembro de ter ouvido qualquer referência a tal acontecimento. Nem das minhas andanças pela Guiné me lembro de alguma vez me ter cruzado com o então Alferes Rui Ferreira.

Aliás, ao continuar a ler voltei a ficar surpreendido com uma passagem que o T.Coronel Rui A. Ferreira escreveu a respeito de um Camarada que muito bem conheci, o então Tenente Maurício Saraiva, que foi meu Instrutor e Camarada de Armas e que muito apreciei.

O senhor T.Coronel Rui A. Ferreira, ao telefone, referiu-me ter ouvido dizer que o Maurício Saraiva teria algures na Guiné um armazém ou arrecadação onde terá guardado armas apreendidas ao PAIGC e do qual se foi socorrendo ao longo da comissão nos Comandos, o que lhe terá servido para as numerosas condecorações que lhe foram atribuídas ao longo das comissões na Guiné e em Moçambique.

Como é que o senhor T. Coronel Rui Alexandrino Ferreira publica um livro com base em histórias que, segundo diz, terá ouvido?

O Maurício Saraiva (3) já cá não está para pedir as provas. Não me foi passada procuração pela mulher e filho para o defender, nem preciso, basta-me ter participado com ele em várias operações e ter apreciado as suas excepcionais qualidades de liderança em situações de combate, que aliás levaram as autoridades militares de então a condecorá-lo com Cruzes de Guerra, Valor Militar e a Torre e Espada.

Cabe aqui acrescentar um facto de que tive conhecimento muitos anos mais tarde. Após os acontecimentos do 11 de Março, o Maurício Saraiva pediu a demissão alegando não se reconhecer no Exército de então. Abandonou o País com um filho ainda pequeno, sem emprego e deficiente após meia dúzia de cirurgias de reconstituição de uma perna, resultante de uma mina A/P. E foi muito depois da situação político-militar estar estabilizada que, a pedido de vários Camaradas o Ministério do Exército procedeu à sua reintegração.

O livro Rumo a Fulacunda, para referir apenas as passagens que me dizem directamente respeito, não me pode assim merecer grande crédito. Custa-me a aceitar que um antigo Camarada escreva um livro com base no que se dizia na esplanada do Bento e, mais me custa ver os nomes de antigos Camaradas ligados a possíveis factos com os quais nada tiveram a ver. É pena, porque foi perdida uma oportunidade de abordar com seriedade e isenção aqueles anos dos inícios da Guerra na Guiné.

Dirijo-me ao blogue na convicção e na esperança de que uma parte dos leitores do Rumo a Fulacunda fazem parte da admirável Tertúlia de Camaradas da Guiné e, pelo menos nestes eu possa de alguma forma minorar os estragos que o livro me está a trazer.

Espero a compreensão dos editores e agradeço que publiquem esta pequena mensagem.

Recebam um abraço deste Camarada de armas que ainda hoje sofre por tudo aquilo que passámos.

Luís Manuel Nobreza D’Almeida Rainha
regisreginae@hotmail.com


3. Mensagem do nosso tertuliano Rui A. Ferreira, autor de Rumo a Fulacunda, com data de 21 de Agosto de 2008, enviada ao Luís Graça e já publicada no poste 3144 do dia 22 de Agosto passado, que publicamos novamente para esclarecimento total e definitivo deste lamentável incidente.

Assunto: Rumo a Fulacunda

Meu caro Luís

Todos os esclarecimentos para a verdade são importantes. Os que implicam com o bom-nome a que todos temos direito, ainda o são mais.

E tudo isto, porquê?

Sucedeu-me, e se assumo quanto a isso a responsabilidade do que escrevi, mantendo como verdadeiro e absolutamente coincidente com a realidade, sobre a actuação do grupo de comandos da Companhia de Comandos da Guiné, que em Dezembro de 1965, em reforço da CCAÇ 1420, deu de si fraca mostra do seu valor, mas lamentavelmente confundindo o grupo de Centuriões com o dos Vampiros, atribuí o seu comando ao então Alferes Rainha e não ao outro cujo nome não refiro, porque já não pertence a este mundo. (Quem pertenceu àquela Unidade sabe bem de quem se trata ou tratava).

Pela manifesta falta de rigor nessa troca de nomes de que efectivamente aquele se sente lesado, publicamente lhe peço as mais sentidas desculpas bem como lhe garanto que no próximo livro, que tenho em laboração referente à segunda comissão que cumpri na Guiné, as primeiras palavras serão para repor a verdade.

Agradeço que publiques esta mensagem o mais rápido que te for possível.

Um grande abraço,
Rui Ferreira

OBS:-Sublinhados da responsabilidade do editor CV
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Notas dos editores:

(1) - O Alf Mil Luís Rainha depois do C.O.M. em Mafra, fez um estágio de Educação Física Militar e frequentou com aproveitamento o Curso de Op Especiais.
Colocado no Regimento de Cavalaria 7, em Lisboa, foi incorporado no BCAV 705/CCAV 704 e mobilizado para a Guiné. Os primeiros meses passou-os na CCAV 704 e os restantes nos Comandos do CTIG.
Foi formado pelos então Major Monteiro Dinis, Cap Nuno Rubim, Alfs Mil Justino Godinho, Pombo dos Santos e Maurício Saraiva, Sargento Mário Dias e Furriel Miranda (participantes na Op. Tridente, com excepção dos dois primeiros) e foi contemporâneo dos Alfs António Vilaça, Neves da Silva, Vítor Caldeira, V. Briote e do então Cap Garcia Leandro.
Foram-lhe atribuídos dois louvores, um ao serviço do BCAV 705 e outro ao serviço dos Comandos do CTIG atribuído pelo Comandante Militar da Guiné e mais tarde foi condecorado com a Cruz de Guerra de 2.ª Classe.

(2) - Ver poste de 22 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3144: Dando a mão à palmatória (15): Alf Mil Rainha era comandante do Gr Cmds Centuriões (Rui A. Ferreira)

(3) - O editor Virgínio Briote tem em preparação um trabalho sobre o Cor Maurício Saraiva para a série do nosso Blogue, Tugas - Quem é quem.

Guiné 63/74 - P3154: Antropologia (9): O Crioulo da Guiné. Mário Beja Santos.

O Crioulo da Guiné-Bissau (I)


"A Guiné do século XVII ao século XIX : O testemunho dos manuscritos", por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vasquez Rocha, Prefácio, 2004.

Trata-se de uma importante colectânea de ensaios sobre a História da Guiné, com a consulta de importantes manuscritos. Torna-se mais fácil perceber onde e porquê falhou a nossa aculturação/ colonização, depois desta leitura.

Mário Beja Santos

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A Guiné dos Grumetes, dos Escravos e dos Presídios

Beja Santos

Ninguém ignora que se publica muito pouco sobre a História da Guiné, quer em Portugal quer em Bissau. Pela pouco importância que teve no período colonial, sobretudo até à pacificação de 1936, os relatos existentes, sempre invocados da a exiguidade de testemunhos, tem a ver com clássicos do tipo "Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde", de André Álvares de Almada, "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", de Senna Barcellos, mas também relatórios de governadores, relatórios de comandantes de campanha, notas oficiais, etc.
Em 1938, um facultativo, João Barreto, publica a "História da Guiné, 1418-1918", que até à "A Guiné Portuguesa" de Avelino Teixeira da Mota, de 1954, foi a única obra de conjunto disponível para o público não iniciado. Deve-se igualmente a Teixeira da Mota, nos anos 40, o grande impulso para os estudos históricos com base científica, com a criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, era aqui que se publicava o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, obra incontornável para o conhecimento da Guiné nas suas múltiplas vertentes.

Nos anos 80, René Pélissier escreve "História da Guiné – Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", a única obra que podemos agora adquirir (Editorial Estampa, 1989).
Felizmente que as melhores bibliotecas proporcionam acesso a alguns dos títulos indispensáveis, afortunadamente que a investigação contínua, lá e cá, e por isso se saúda "A Guiné, do século XVII ao século XIX, O testemunho dos manuscritos", por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vázquez Rocha (Prefácio, 2004).
Os autores optaram por analisar as seguintes áreas de investigação: os grandes impérios subsaharianos que precederam a chegada dos portugueses no século XV; a Guiné vista por escritores no período em apreço e também à luz de muitos manuscritos compulsados no Arquivo Histórico Ultramarino; a problemática da crença religiosa e a tensão entre o Islão, as crenças tradicionais e o cristianismo; por último, os problemas da missionação na Guiné, antes e depois do liberalismo.

Qual o significado para estudar o período anterior à nossa chegada à Guiné?
A presença portuguesa na região foi sempre muito diluída, sujeita à pressão de outras potências coloniais, por isso optou-se por uma fixação em duas feitorias-praças (Cacheu e Bissau) e depois presídios (caso de Fá), ao sabor dos meios financeiros e militares.
A aculturação fez-se graças ao “grumete”, o negro periférico das praças e presídios, em muitos casos de apelido português. Fazia-se comércio na ampla Senegâmbia, mas no território que virá a ser hoje a Guiné-Bissau o colonizador encontrou resistências quer dos mandingas quer de outras etnias que se revelaram hostis à progressão do colonizador no território, isto sem falar no clima devastador.
O quadro e o papel desempenhado por estes impérios subsaharianos é de grande utilidade para compreender como é que eles actuaram como contra-poder e qual foi a interlocução possível com o colonizador e como este aproveitou as frestas possíveis para aprofundar mais as cisões interétnicas.
De igual modo, é incompreensível a história da Guiné sem conhecer o mosaico humano que os portugueses encontraram, ouvir os testemunhos do viajante ou do cronista, perceber como é que se estabeleceram zonas de influência, como é que as lideranças nativas reconheciam, duradoira ou episodicamente o poder político dos portugueses, fazendo ouvir ao mesmo tempo os interesses económicos e a ligação de interesses entre o arquipélago de Cabo Verde e esta região. Convém observar que a fixação dos portugueses só passou a ser uma realidade nos finais do século XVII, sobretudo numa tentativa de salvaguardar os interesses nacionais face às intenções dos franceses. Os autores habilitam o leitor com a evolução do poder político e económico, citando documentos de incontestável importância como cartas de capitães-mores que dão conta da debilidade militar para suster a hostilidade das populações locais ou o importante significado das incursões de franceses, ingleses e espanhóis.

A questão religiosa é de análise indispensável para se perceber o grau de islamização estruturante e a incapacidade de aprofundar a cristianização, que teve sempre uma acção pouco ou nada eficaz, o que é surpreendente se se pensar no sucesso de Cabo Verde. Os autores descrevem as queixas sobre a presença missionária, os litígios nas praças da Guiné à volta da cristianização dos escravos, facto que não agradava aos contratadores. O acervo de manuscritos citados é de primordial importância para se perceber a natureza dos obstáculos postos é missionação, mesmos nos períodos áureos da acção missionária e o relativo sucesso da islamização que soube acolher e aculturar as sociedades negras tradicionais.
A Igreja no século XIX é também uma Igreja que falhou neste ponto de África e por diferentes razões: o período posterior à Guerra da Restauração (1640-1668) foi desgastante pelos conflitos dentro da própria Igreja e a partir de 1834, com a extinção das ordens religiosas, assiste-se ao culminar da decadência já perceptível ao longo de todo o século XVIII; o despotismo esclarecido introduz um novo enfraquecimento com tensões permanentes dentro do poder político e a perseguição ao Clero, sendo a Companhia de Jesus o seu principal alvo. De novo os autores citam inúmera documentação que dão conta desta realidade, seja na Guiné de Cabo Verde seja no Distrito Autónomo da Guiné.

Também aqui é incontornável a figura de Honório Pereira Barreto, procurando contrariar as sistemáticas tentativas de usurpação dos nossos territórios por estrangeiros, em particular pelos franceses, num tempo em que se desfez a autoridade e a presença cristã é praticamente nula. Como escrevem os autores nas conclusões: “A implantação do liberalismo, para além da grande instabilidade interna, provocou na relação Metrópole/Ultramar e, logo, na Guiné, todo um processo de vaivém de medidas, sobretudo quanto ao Clero e á própria Igreja, com as lógicas consequências da catolicidade no território”.
A seguir, África irá ser sujeita a uma grande pressão internacional, acelera-se a ocupação, terminará o confinamento do colonizador às feitorias e presídios. Irá começar a época imperial até 1936, as lutas sangrentas pela ocupação do território, obrigando todos à obediência à bandeira portuguesa.
É neste sentido que esta obra se revela esclarecedora sobre as diferentes debilidades da colonização portuguesa na Guiné.
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Nota : fixação de texto e sublinhados de vb

(1) Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)

(2) artigo realacionado em 11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3128: Antropologia (8): Exposição Bijagós no Museu Afro Brasil, São Paulo