sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4939: Banalidades do Mondego (Vasco da Gama) (V): A minha guerra foi outra, camarada Amílcar Ventura

1. Mensagem do nosso querio amigo e camarada Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74, que regressa assim ao nosso convívio, depois de uma 'sabática terapêutica' (demasiado longa, porvetura, para aqueles que apreciam a alta qualidade literária e a inteligência emocional dos seus textos, aqui no blogue)...

Camaradas Editores, Camarada Editor Carlos Vinhal: Escrevi num ápice o texto que agora envio.Voltarei em breve.Saúde para todos e um abraço amigo do Vasco



BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO (Vasco da Gama) (V) > A MINHA GUERRA FOI OUTRA


Remetido há já algum tempo ao silêncio, por conselho de um editor sábio e amigo, perdendo a regularidade da leitura do nosso Blogue, dadas as férias no reino dos Algarves durante o mês de Agosto, coloquei agora em Setembro toda a minha disponibilidade de tempo a ler tudo o que havia deixado para trás, como o fazia quando era estudante e tinha os exames à porta, tentando recuperar dia e noite o tempo consumido nas jogatanas de lerpa, nas intermináveis discussões políticas, no acompanhamento constante do meu Glorioso S.L.B. aquando das suas deslocações ao norte, nos tempos em que, calmamente, se vestia a camisola vermelha, sem medo de qualquer enxovalho, estivesse na Póvoa, em Guimarães, em Braga, em Matosinhos ou mesmo na maravilhosa cidade do Porto, essa cidade invicta que me marcou para sempre e que ainda hoje adoro, com as suas gentes simpáticas, solidárias, genuínas e vernáculas.

Tal como nos finais da década de sessenta, quando estudante, era invadido por um nervoso miudinho pois eram tantos os assuntos e matérias a reter, que começava a estudar determinada cadeira já com o pensamento numa outra que se avizinhava, não conseguindo por vezes a concentração necessária para levar a bom porto toda a panóplia de teorias e teses e temas que me permitissem uma época de exames descansado, também agora em finais da primeira década do século XXI, tostado pelo sol quente do sul, regressado do enxameado Algarve, onde o nosso camarada da Guiné e do Blogue, António Manuel Conceição Santos me proporcionou uma caminhada maravilhosa pela Ria Formosa, já comecei a escrevinhar tanta coisa ao mesmo tempo com o mesmo nervosismo o mesmo frenesi e a mesma “desorganização” de há quarenta anos, que me obrigou a dizer de mim para mim, BASTA, começa e termina qualquer coisa!

Assim decidi, assim o faço neste momento, começando pela análise de um poste publicado pelo nosso camarada Amílcar Ventura com o nº 4936 (*), intitulado a bomba de gasóleo do P.A.I.G.C., com uma introdução do editor M.R.

Respeitador dos princípios que norteiam o nosso Blogue, coerente com a formação recebida ao longo da vida, incapaz de, penso eu, beliscar quem quer que seja, gostaria de tecer algumas considerações baseadas única e exclusivamente no exposto pelo nosso Camarada.

Camarada Amílcar Ventura,

A tua confissão que entendeste partilhar com todos os Combatentes da Guiné e que, estou por certo, terá aliviado a tua consciência, causou em mim um sentimento de tristeza e mal estar, pois relembrou-me de uma forma mais pungente e dolorosa as agruras que a minha Companhia de Cavalaria 8351 se viu obrigada a viver nos matos profundos do sul da Guiné no Cumbijã e Nhacobá, a escassos quilómetros de Guileje e cito Guileje, pois voltarei a esse assunto quando conseguir alinhar ideias.

Não tenho, era o que mais faltava!, capacidade para julgar quem quer que seja e sei bem que a as acções ficam com quem as pratica, mas nunca opinarei contra a minha consciência.

Há limites inultrapassáveis para qualquer cedência e colocarei sempre acima do interesse de pessoas ou de grupos a minha sinceridade, daí que gostaria de te dizer como combatente na Guine o seguinte:

Vivemos sempre no mato, sem qualquer população, sem nunca termos tido luz, vivendo em barracas de lona e construindo com as nossas mãos as casernas feitas com blocos que os meus Tigres amassavam com os pés, isto depois de regressarem das operações/patrulhamentos que DIARIAMENTE fazíamos fora do arame. Não tivemos depósito de géneros durante muitos meses, nem água nem pão quente. Fazíamos uma coluna diária a Aldeia Formosa para abastecimentos e também trazíamos bidões de gasóleo…

Tínhamos entre nós gajos de direita e de esquerda e do centro e de cima e de baixo e outros que não eram nada, mas nunca a porra da política nos separou. Os que defendiam o tal Portugal de Trás–Os-Montes a Timor, que não era o meu caso, eram irmãos dos que murmuravam contra a guerra colonial e que eram a favor da solução política para uma guerra estúpida. Sabes, tínhamos em comum as lágrimas que derramávamos pelos nossos camaradas mortos e feridos, pela impotência de não regressarmos todos juntos ao nosso e teu Portugal, estávamos irmanados nos embrulhanços que sofríamos e a nossa raiva, por que não dizê-lo?, ia toda no mesmo sentido – dirigia-se ao P.A.I.G.C.

Estranho, eventualmente por ignorância, que se fale no comentário introdutório ao teu texto em “intercâmbios” entre as N.T. e o P.A.I.G.C. de "prendinhas e cervejas colocadas na picada”. As prendinhas trocadas entre a Companhia de Cavalaria 8351 e o P.A.I.G.C., foram, que eu saiba, arraiais de fogachada, minas q.b. e manga de porrada. Talvez noutros sítios, noutras circunstâncias, com outros comandos. Nunca pertenci à psico.

Camarada, dizes e passo a citar “nunca pus em perigo de vida os meus camaradas mas que ao contrário salvei alguns por ter antecipado a informação que ia haver ataque”, fim de citação. Discordo frontalmente. Quem, como os Tigres do Cumbijã, e tantas outras Companhias apanharam na tarraqueta, sabem perfeitamente que os mísseis ou as morteiradas ou as canhoadas que nos caíam dentro do arame, não traziam olhinhos para se desviarem “da malta que estava avisada”.

Lá no meu mato profundo, interrogo-me como era possível um militar português sair do seu aquartelamento na companhia de um nativo, com uma viatura e duzentos litros de gasóleo. Que controlo era esse? Que sítio era esse? Que comando era esse? Não duvido do que dizes, mas estranho! A minha guerra, Camarada, a minha guerra teve outros contornos, a minha guerra foi outra.

Sabes, uma vez num ataque ao arame, sim num ataque ao arame, Camaradas meus dizem ter visto um cubano. Nesse dia, por motivos diferentes dos teus, também nós gostaríamos de ter conversado com ele e podes ter a certeza que não era para lhe dar gasóleo.

Quase quarenta anos volvidos ainda me emociono com a Guiné. Quem diria!!!

Tive apenas e só a vontade de dar a minha opinião relativamente a algo de totalmente novo para mim. Gostaria imenso, acredita, de contigo debater este assunto, quem sabe
se quando voltar à tua maravilhosa terra de Silves. Ouvir-te-ei mais detalhadamente e eu apresentar-te-ei outros argumentos que não cabem aqui.

Com a conversa todos aprendemos, mas, caro Camarada Amílcar Ventura, mesmo para alguém com a preparação ideológica que então terias, a tua atitude, sem qualquer espécie de julgamento, foi de uma INGENUIDADE muito grande.


Para todos os meus Camaradas um abraço amigo e sincero do,

Vasco A.R.da Gama

[Revisão / fixação de texto / bold, a vermelho: L.G.]

__________

Notas de L.G.:


(*) Vd. último poste desta série:

15 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4532: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (IV): Desertores

(**) Vd. poste de 11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...

Guiné 63/74 - P4938: Estórias cabralianas (54): O Alfero e as mezinhas (Jorge Cabral)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > Mãe fula com bebé ainda de leite . Foto do nosso saudoso Zé Neto (1929-2007)

Foto : © Zé Neto / AD - Acção para o Desenvolvimento. (2007). Direitos reservados.


1. Desde o ínício de Janeiro do ano da Graça de 2006, que o nosso Alfero nos vai deliciando periodicamente com as suas estórias cabralianas (estórias e não histórias, como ele faz questão de frisar contra os puristas da língua)... Como ele é um artesão da escrita, a sua produção é unitária, peça a peça... A produtividade é baixa, mas a qualidade é alta... Digamos que, com sorte, os nossos leitores têm o privilégio de saborear uma estória cabraliana por mês... Devagarinho, já ultrapassámos a meia centena... Hoje, para assinalar a rentrée bloguística, publica-se a nº 54... Obrigado, Alfero.


Mensagem do Jorge Cabral:

Caros amigos,

Aqui estou novamente a falar dos meus tempos da Guiné. Tempos que não foram nem os melhores, nem os piores da minha existência. Foram sim, diferentes. Como se naquele período, eu tivesse vivido numa galáxia distante, onde fui outro Jorge, se calhar mais real, se calhar mais autêntico… Claro que essa experiência me marcou e muitas vezes aquele Alfero regressa e faz das suas… como aliás o prova a história de hoje.

Abraços Grandes
Jorge Cabral


2. Estórias cabralianas (54) > O Alfero e as Mezinhas (*)
por Jorge Cabral


Nem um mês tinha de Guiné e já andava a experimentar todas as mezinhas recomendadas pelo Nanque (**). Bem, todas não. Nunca bebeu a primeira urina da manhã, remédio infalível para o estômago mas ainda no outro dia o receitou a uma distinta senhora, que calculem, se zangou com ele, por se pensar gozada.

Tomou porém todas as demais, desde afrodisíacos a um chá para a tristeza, que o deixou eufórico durante quase toda a comissão… Apesar de tantos tratamentos, a verdade é que o Alfero gozava de excelente saúde.

Apenas de vez em quando algumas dores de ouvido o acometiam, mas para estas, foi facilmente encontrado medicamento eficaz. Não à primeira com leite de cabra, mas à segunda com leite de mulher. Foi da Cumba Candé e pagou-lhe alguns pesos, o que motivou a vinda ao quartel de uma dúzia de mulheres, oferecendo os seus préstimos…

Mas o Alfero já estava curado… e para muitos anos, pois foi só há dois, que lhe voltaram a doer os ouvidos. Lembrou-se então da solução e, deparando na Almirante Reis com uma gorda mãe a amamentar o filho, nem hesitou, pediu-lhe um pouquinho de leite.

Pois não é que a mulher começou a gritar:
- Velho nojento! Depravado…

Claro que fugiu a sete pés… e nem tentou explicar. E explicar o quê? Solidariedade leiteira?

Jorge Cabral
3. Comentário de L.G.:

Meu caro Alfero: Desculpa a intromissão... e permite-me que cite um livro raro, de meados do Séc. XVIII, de que foi feita em 2005 um edição facsimilada e que eu tive o privilégio de prefaciar - Postilla Religiosa e Arte de Enfermeiros - para te confirmar que o teu Nanque, o teu terapeuta, estava perfeitamente actualizado, dominando os conhecimentos terapêuticos que existiam em Portugal, em... 1742 (data da edição do manual de formação dos nossos enfermeiros... militares, que na altura pertenciam à Ordem Hospitaleira de São João de Deus, tendo a sua sede no convento e hospital de Elvas).

Deixo-te aqui duas notas que são uma preciosidade (actualizei a ortografia portuguesa):


(...) "Tratado II. Arte de enfermeiros para assistir aos enfermos, com as advertências precisas para a aplicação dos remédios (p. 72)

(... ) Capítulo X. Dor de ouvidos com que se há-de acudir na ausência do Médico

"142. É mui singular remédio o mungir de uma mulher o leite do peito no mesmo ouvido do enfermo, pondo-lhe logo uma pelota de algodão em rama. Também é aprovado e pronto remédio o fumo de alfavaca-de-cobra deitando no ouvido três ou quatro gotas, e pondo-lhe a pelota de algodão" (p. 90).


Em matéria de leite e e suas virtudes terapêuticas, o tratado é peremptório:

(...) " 302. O melhor leite, e o mais proveitoso, é o de mulher; e se for preta, melhor; logo o de burras, depois deste o de cabras negras, ou ruivas, logo o de vacas, e o de ovelhas não havendo outro" (p.156).

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. as últimas cinco estórias:

28 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4750: Estórias cabralianas (53): A estranha doença do soldado Duá (Jorge Cabral)

(...) Quando uma noite, em Missirá [, o último destacamento de Bambadinca, a norte do Rio Geba, no Cuor,] o Alfero passava ronda, ficou estupefacto, ao constatar que todos os Soldados de Sentinela se encontravam acompanhados das respectivas Mulheres.- Mas que se passa? – indagou…- É por causa da doença! O Duá apanhou a doença do Victor!- Doença do Victor? (...)


22 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4723: Estórias cabralianas (52): Em 20 de Julho de 1969, também eu poisei na Lua... (Jorge Cabral)

(...) Na Guiné, há mês e meio, mas já em Fá, havia nessa tarde muito calor. O pessoal dormia e toda a gente procurara a aragem possível. Em silêncio, o Quartel repousava… Eu porém, em tronco nu, saíra, a caminho da fonte mais pequena. Resolvera isolar-me, para escrever, calculem, um poema… Lá chegado, ainda nem escolhera um poiso confortável, quando vejo surgir, não sei de onde, um vulto de mulher, apenas com uns panos, caindo da cintura. (...)



7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4651. Estórias cabralianas (51): Alfero esfregador entre as balantas (Jorge Cabral)


(...) Tanto nas Tabancas Fulas como nas Mandingas, o Alfero actuava à vontade com as Bajudas, perante a complacência dos Homens e Mulheres Grandes… Aliás não ia além de um acariciar voluptuoso, acompanhado com promessas de encontros no Quartel. Na altura teria merecido o cognome de Apalpador. (...)

Em Novembro de 1969, visitou uma Tabanca Balanta, Bissaque [, a norte de Fá, ], e ficou deslumbrado com a beleza das Bajudas, designadamente peitoral…



3 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 – P4455: Estórias cabralianas (50): Alfero, de Lisboa p'ra mim um Fato de Abade (Jorge Cabral)


(...) - Meu Alferes! Meu Alferes! Já chegou o Senhor Abade! - O cozinheiro Teixeirinha, todo eufórico, gritava, à porta do meu abrigo.
- Abade - pensei comigo - , o Puím?

Magro, simples, humilde, o único Capelão que conheci na Guiné, viera de sintex e, antecipando-se, não esperara por ninguém, entrando no Quartel. Logo após o descanso, a missa foi celebrada, mesmo ao lado da Cantina, no local da Escola. Fiéis, sete, dois comungantes e o Padre, de paramentos verdes. (...)



12 de Maio de 2009> Guiné 63/74 - P4326: Estórias cabralianas (49): Cariño mio... Muy cerca de ti, el ultimo subteniente romántico (Jorge Cabral)

(...) Dois dias depois de chegado a Bambadinca em meados de Junho de 69, fui mandado montar segurança no Mato Cão. Periquitíssimo, cumpri todas as regras, vigiando a mata de costas para o rio, sem sequer reparar na beleza da paisagem.Mal sabia então, que ali havia de voltar dezenas de vezes, durante o ano que passei em Missirá. Pelo menos uma ida por semana para ver passar o Barco, no que se transformou numa quase agradável rotina.(...)


(**) Vd. postes de:

10 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2426: Estórias cabralianas (32): Nanque, o investigador (Jorge Cabral)

(...) O Alferes era calmo. Afável, prazenteiro, nunca se irritava. Naquela tarde porém explodiu. É que constatou que as valas estavam a ser utilizadas como retretes.Reuniu o pessoal e, no mais puro vernáculo de caserna, descompôs o Pelotão, furriéis, cabos, soldados, brancos e negros… Que vergonha! Pois não haviam assistido à valente piçada que ele sofrera, na semana passada, quando o Major Eléctrico (2), visitara o Quartel, e criticara tudo, desde a limpeza das panelas ao comprimento do seu bigode!? (...)


3 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P836: Estórias cabralianas (10): O soldado Nanque, meu assessor feiticeiro

(...) Desde que cheguei, e durante o primeiro ano, o Pel Caç Nat 63, foi pluriétnico. Mandingas, Fulas, Balantas, Manjacos, Bigajós, estavam representados. Pluriétnico e plurirreligioso, com um Manjaco, Pastor Evangélico, um Marabú Mandinga Senegalês, vários adoradores de muitos Irãs, e até alguns crentes na Senhora de Fátima, vivendo todos em Paz ecuménica, sob a batuta do Alferes agnóstico com tendências panteístas, que pensava que nada o podia surpreender (...).

Guiné 63/74 - P4937: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (17): Quem nada tinha e tudo deu


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos mais uma mensagem com um texto das suas memórias:

Camaradas,

Hoje envio mais uma das minhas estórias memoriais, que escrevi em Mampatá e descobri no meu baú, dedicada aos meus camaradas do grupo de enfermagem, a que atribui o seguinte título:

QUEM NADA TINHA E TUDO DEU

Como é sabido os recursos de socorros e enfermagem, nalguns locais no mato, eram muito primários, para não dizer inexistentes.

Em Mampatá não existia enfermaria, ou melhor existia uma tenda de campanha, onde eram ministrados os primeiros socorros ao pessoal doente ou ferido.

Uma das primeiras obras da minha CART 2519, foi a construção de um Posto de Enfermagem, onde o nosso Fur Mil Enf Agostinho Duarte Seixas de Magalhães, exercia a sua “magia”, com a colaboração dos seus camaradas enfermeiros Lomba, Alves e Damião.

Magia sim, porque com a escassez de recursos, se não fossem os seus bons conhecimentos e vontade de ajudar o próximo, tenho a certeza que muitas vezes a sua dedicação teria sido um insucesso.

Como não tinham laboratórios para efectuar os tão necessários e indispensáveis diagnósticos, tinham que “adivinhar” todas as mazelas que nos atormentavam.

Vi o nosso Fur Agostinho diagnosticar diversas doenças aos seus “clientes”, que nos deixavam muitas dúvidas, mas que, mais tarde, vieram a confirmar-se como certas.

Este Homem foi parteiro, operador de pequena cirurgia, veterinário, etc.

O Agostinho e a sua formidável equipa foram enormes naquela tabanca, nos confins da Guiné.

Vi a actuação destes nossos enfermeiros, no mato, debaixo de fogo, sempre preocupados com os seus camaradas e, quando havia feridos, os mesmos desdobrarem-se no auxílio a prestar aos sinistrados, procurando na sua parca mala algo que os aliviassem das dores provocadas pelos ferimentos.

Nalguns casos, lá surgia a maldita morfina. Sim digo bem morfina, porque mais não havia, além de algumas ligaduras e tintura de iodo.

Vi o Agostinho a operar e retirar estilhaços do corpo de um camarada ferido em combate à luz dum petromax, porque á noite não havia evacuações.

Vi estes Camaradas enfermeiros no mato, acompanhando-nos nas nossas operações e cuidando dos feridos (amigos e inimigos).

Vi estes meus enfermeiros a serem feridos e estropiados por uma mina, mas, nem assim, deixaram de ser magnânimos, bravos e corajosos.

Vi o Agostinho num parto difícil a auxiliar e amparar uma nativa natural de Mampatá.

Vi o Agostinho tratar e cuidar de todos os animais da tabanca que lhe levavam; cães, vacas, cabritos, etc.

Vi a enfermaria de Mampatá funcionar como um autêntico Centro de Saúde Populacional, graças a este estudioso Homem que levou a peito a sua missão.

Vi os nossos enfermeiros estavam sempre de vela e prontos para qualquer eventualidade.

Sabiam mais que ninguém, que, naquele sítio, eram a última esperança dos seus camaradas.

Além dos cuidados intensivos de enfermagem, ainda tinham a seu cargo o serviço de higiene e sanitário da tabanca, como purificar a água, recolher o lixo e verificar o estado dos géneros alimentícios.

A vida para estes não era fácil. Estavam sempre ocupados e até nas horas de ócio eram chamados a prestar assistência, a este e àquele, pois a fama dos serviços de enfermagem de Mampatá transpôs, muito além, a delimitação do arame farpado da tabanca.

Aos nossos enfermeiros e a todos em geral, que na Guiné exerceram esta especialidade digo: “Nunca tão poucos sem nada, tudo deram”.

Hoje muitos são o que tudo têm e… nada dão!

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Imagem: Wikipédia (2009). Direitos reservados.
___________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...

Guiné > Zona leste > Bajocunda > Março de 1974 > O ex-Fur Mil Mec Auto ao volante de uma ambulância russa, usada no transporte de feridos, capturada pelo grupo do Alferes Graduado Marcelino da Mata, comandado pelo capitão pára-quedista Astérix...

Esta ambulância foi capturada, com a ajuda mecânica do Amílcar Ventura e do seu Mecânico Grou, senão tinha ficado no mesmo sitio, pois após a sua captura o motor não funcionava.

Foto: © Amílcar Vantura (2009). Direitos reservados


1. Mensagem enviada, 28 de Agosto de 2009, pelo Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74 (*):


Amigos e Camaradas Editores, há muito que quero contar um facto real que se passou comigo e o grupo do PAIGC da minha zona de guerra que era Bajocunda, mas como é um facto que pode ser sensível a alguns Camaradas de blogue.

Deixo ao critério dos nossos Editores a publicação ou não deste meu texto assim como tratarem o texto para ficar melhor (**).

Como todas as histórias, começa assim. Era uma vez um mancebo, de nome Amílcar Ventura, que foi cumprir serviço militar. Como na escola só queria era passear os livros, acabou o curso de Formação de Serralheiro e uma semana depois apresentou-se no RI 7 em Leiria para a recruta onde esteve só quinze dias. Enviaram-no a seguir para Escola Prática de Cavalaria em Santarém para acabar a recruta.-

Acabada a recruta e por ter o curso do Ferro, saiu-lhe na rifa a especialidade de Mecânico Auto. Foi enviado para tirar a especialidade, para a Escola Prática de Serviço de Material em Sacavém.

Aí chegados, a boca que havia era que não valia a pena ficarmos bem classificados que toda a gente estava mobilizada para o Ultramar. Foram três meses de Especialidade e três meses de estágio.

Ainda não tinha acabado o estágio, e logo saíram as mobilizações. A minha era para Moçambique. Como um Sargento me disse que a nossa especialidade era melhor na Guiné, lá fui a caminho do então Ministério do Exército mexer os meus cordelinhos para fazer a troca. Tinha um amigo lá, que era Furriel, esse do tempo do atletismo escolar, mas tive uma surpresa, ele não queria fazer a troca, dizia que eu ia para o Inferno da guerra e ainda por cima o meu irmão estava no anexo do hospital da Estrela, tinha sido evacuado da Guiné havia pouco tempo com alguma gravidade…

Bem, lá consegui cantar-lhe a canção do bandido de modo a ele fazer-me a troca.

Vou abreviar…. Quando chegámos a Bajocunda e quando me foi entregue a oficina, havia um mecânico Africano que era um assalariado e a quem a Companhia teria que pagar o ordenado pois já vinha de outras companhias… Mas quando chegou o final do mês, os dois Sargentos da Companhia disseram que não havia dinheiro para ele Então eu paguei do meu bolso os respectivos quinhentos escudos que era o que ele ganhava.

Aqui fiquei logo com um grande Amigo, enquanto eu lá estive, ele era a minha sombra, até que um dia me pediu gasóleo. Queria um bidão que, como sabem, era duzentos litros. Disse-lhe que só lhe dava se me dissesse para que fim se destinava…

Depois de muito falarmos, fiquei a saber que o gasóleo era… para o PAIGC. Então eu disse-lhe:
- Vamos os dois levar o gasóleo.

Não tive receio nenhum porque sabia que era respeitado pelo PAIGC e lá fui. Estive perto de falar com eles mas, como era a primeira vez, houve um certo receio das duas partes… Pensei então cá para mim:
- Se houver repetição, da próxima vez só vou dar o gasóleo se eles falarem comigo…- E assim aconteceu, tive o meu primeiro contacto em tempo de guerra com o meu inimigo ( já parecia a guerra do Raul Solnado)…

Só que o meu objectivo era ver o Cubano que lá andava mas saíram-me frustadas todas as tentativas que fiz para o contacto com ele… Mesmo depois do vinte cinco de Abril, o Cubano que lá andava, desapareceu, sempre pensei que ele ia estar no primeiro encontro que tivemos com o PAIGC mas nem rasto dele…

Esta foi mais uma história real na terra do Amílcar Cabral. Um abraço amigo a todos os camaradas do blogue.

[Revisão / fixação de texto: L.G.]

2. Mensagem do nosso co-editor Eduardo Magalhães Ribeiro, de 31 de Agosto de 2009:

Boa tarde Amigos Vinhal, Luís e Briote,

O nosso Camarada Amílcar Ventura enviou-me o seguinte material [ Vd. texto anterior]. Controverso q.b.

Se acharem por bem, eu publico o mesmo, mas como é óbvio terá que se anteceder a publicação com uma nota de introdução, visto que já se prevê a habitual contestação.

Qualquer coisa do género:

Nota de introdução:

Quem é que ainda não ouviu dizer que o soldado condutor 'xis' deixava uma caixa de cervejas na picada, ou qualquer outro alimento e que, os mesmos, passadas umas horas desapareciam como por milagre?

Porque o fazia? Por mórbida curiosidade, ou por estranhos, silenciosos, descomprometidos e raros pactos de 'não agressão', a modos que:
- Deixai-me em paz que eu faço o mesmo em relação a vós e ainda vos deixo uma ‘prendinha’.

São realidades pouco ventiladas pelos seus protagonistas, por motivos evidentes e não eram, como não podiam ser, do conhecimento geral e muito menos daqueles que não admitiam este tipo de ‘traição’, como a malta da PIDE/DGS, alguns Camaradas mais radicais na sua conceito Patriótico e os Comandantes mais severos e conservadores.

Assim, quando estes ‘intercâmbios’ entre alguns elementos das nossas tropas e do PAIGC aconteciam, o segredo da coisa ficava restrito a um pequeníssimo círculo de amigos de extrema e insuspeita confiança.

Já me constou, mais que uma vez, que foi uma realidade da nossa guerra, que foi praticada em alguns pontos da Guiné.

Esta prosa vem a propósito de um texto controverso que publicamos hoje, da autoria do nosso Camarada Amílcar Ventura, que assume uma acção dessas e vem demonstrar bem a outra face escondida da nossa (portuguesa) guerra.

Mensagem enviada, de férias pelo L.G., a 1 de Setembro de 2009, ao Eduardo com conhecimento ao Amílcar Ventura:

Eduardo:

O Amílcar Ventura para que a história tenha credibilidade , tem de acrescentar mais pormenores: (i) em que data é se passou estes episódios ? (ii) em que sítio é que ele deixou os bidões com gasóleo ? (iii) durante quanto tempo; (iv) quem foi (ou era habitualmente) o condutor ? (iv) há testemuenhas ? (v) não lhe passou pela cabeça que corria riscos (de um lado e do outro) ? (vi) qual foi a sua verdadeira motivação: simples curiosidade em ver a "cara do inimigo" ? gosto pelo risco ? simpatia pelo PAIGC ?...

Sem mais estes detalhes, a malta que ler o poste vai ficar na dúvida e pode inclusive pensar que o Amílcar "está a brincar connosco"... Se a história aconteceu, como ele conta, pode e deve ser divulgada no blogue... Mas tem de ser credível... É uma história ou um estória ? Falta-lhe qualquer coisa: o Amílcar deve desenvolver mais o que escreveu, o preâmbulo é maior que o relato do episódio...

Antes de publicares, quero ver... Um abraço matinal...


4. Três mensagens do Amílcar Ventura, do mesmo dia (1 de Setembro de 2009):

(A) Luís Amigo e Camarada de Guiné Luís Graça, não é uma história ou estória, é um Facto Verdadeiro:

(i) A data foi desde que peguei na oficina, em finais de Novembro de 1973 até me vir embora [ Setembro de 1974];

(ii) O sítio onde deixava o bidão com o gasóleo era cinco quilómetros a leste de Bajocunda [, ou seja, no sentido de Copá e da fronteira];

(iii) O o condutor era eu (só podia ser eu);

(iv) As testemunhas eram os miúdos de... Bajocunda;

(v) Os riscos não eram nenhuns (há uma parte que não posso contar...);

(vi) A verdadeira motivação era acabar com a guerra o mais rápido possível…

Vou ser honesto, a minha Pátria era e é Portugal, a Guiné é dos seus habitantes, sempre tive grande admiração pelos grupos de libertação das colónias o quem o Salazar chamava de províncias ultramarinas… Por isso, não pensem os meus Camaradas de Guiné que eu estava a brincar com uma coisa tão séria e de responsabilidade.

Um abraço amigo

(B) Amigo e Camarada Luís Graça:

Estou trabalhando e vou-me lembrando de certas coisas… Quero dizer-te que, se vês que este meu texto é muito polémico, eu não me importo de não o publicarem, mas ao mesmo tempo gostaria de o ver publicado, porque sinto que com a minha ida à Guiné dei um pequeno contributo para que a guerra acabasse mais cedo e que com isto se poupasse muitas vidas de Camaradas nossos.

Um abraço amigo

(C) (...) Quero dizer-te sob PALAVRA DE HONRA que tudo o que fiz na Guiné nunca pus em perigo de vida os meus Camaradas mas que ao contrário salvei alguns por ter antecipadamente a informação que ia haver ataque.


Mais teria a te dizer mas acho que chega para compreenderes as minhas palavras. Quero-te dizer que tenho um irmão que é deficiente das Forças Armadas e, se não lhe acontecesse o acidente, eu juntava-me com ele na Guiné: era o Furriel de Artilharia que estava em Gampará com três obuses 10,5.

A história dele é engraçada: ficou em primeiro lugar no curso de Transmisões, viram o cadastro político da família e já, Furriel, enviaram-no para Vendas Novas e, no mês seguinte, para a Guiné. É, como tu vês, o que o Salazar fez com a minha família [, familiares presos pela PIDE/DGS, etc.]. Amigo Luis Graça, fico-me por aqui.

5. Comentário de L.G. (o mesmo, com as necessárias adaptações, que foi escrito para o P3544, do Santos Oliveira):

Obrigado, camarada, por quereres (e poderes...) partilhar este segredo da Guiné connosco, teus amigos e camaradas. Já com o Mário Dias [, P 3543, ] (**) se passou o mesmo: há pudor e relutância em contar episódios como estes, de alguma maneira insólitos e, muitas vezes, inverosímeis aos olhos dos outros, constrangedores, etc... O Mário fê-lo por razões de coração e amizade... Tu terás tido uma motivação política...

Seria uma pena que tu e o Mário Dias [, e os restantes camaradas que já aqui 'revelaram segredos', ] levassem, para a cova, pequenos/grande segredos como estes... São histórias fabulosas que humanizam a guerra, que engrandecem os seres humanos que as protagonizam, e que nos tocam fundo, que nos fazem sorrir [, à maneira do saudoso e genial Raul Solnado], que mexem connosco, que nos interrogam ou até nos incomodam... Mas segredos são isso mesmo: são segredos, aquilo que em caso algum deve ser revelado... a não ser na hora da morte!

Espero que, a partir desta série, mais camaradas nossos decidam abrír a sua caixinha de Pandora... antes de baterem a bota (passe o humor negro!).

PS - Amílcar, seguindo as regras do jogo do nosso blogue, não faço (nem posso fazer) qualquer juízo de valor sobre o teu comportamento... Mas os nossos leitores quererão saber mais pormenores e perceber o contexto... É claro que à luz do RDM em vigor, poderias ter ido parar a tribunal militar... Dá-me entretanto mais alguma informação factual: (i) afinal, quantos bidões de gasóleo de 200 litros 'dispensaste' ao PAIGC até ao 25 de Abril de 1974 ? (ii) sabias qual era o uso (civil ou militar) que o PAIGC fazia desse combustível 'dispensado' por mim ?, (iii) como se chamava o comandante do PAIGC que já conhecias antes do 25 de Abril ? (iv) como justificavas, na tua subunidade, a quebra de stocks de gasóleo ?, etc. etc.

6. Esclarecimento adicional do A.V, respondendo às nossas últimas perguntas:

Amigo e Camarada de Guiné Luís Graça, do nome do Comandante só me lembro o apelido, Sanhá, mas segundo me diziam o cubano é que comandava o gasóleo que levava, e que era para viaturas civis e militares. Eu justificava o gasóleo nos mapas de combustível nas Berliet que tinha, e que eram duas. A quilometragem era feita por estimativa.

O desvendar do meu segredo... Quero-te dizer que só o meu irmão é que sabia e como já tinha lido alguns postes com coisas parecidas, resolvi dizer só que o meu é um pouco pior que os outros, mas como já disse estou preparado para o que vier. Esclarecerei todos os meus Camaradas sem entrar em polémica, pois fiquei vacinado com o que aconteceu com o Camarada Constantino. Também te quero dizer que o texto com as fotos estão bem. Faltou-me dizer que foram seis as vezes que levei combustível ao PAIGC.

______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 9 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4308: Tabanca Grande (137): Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74

(...) Amilcar José das Neves Ventura:

(i) 57 anos, nascido a 9 de Dezembro de 1951, em Silves, onde vive e trabalha;

(ii) Tem o 9.º ano de escolaridade (Curso de Formação de Serralheiro);

(iii) Foi chefe de armazém da Cooperativa de Retalhistas de Mercearias Alicoop, em Silves (1974/84);

(iv) Foi depois fotógrafo profissional por conta própria, durante 24 anos, tendo trabalhado, nesse período, para vários jornais, nacionais (Record, Correio da Manhã) e regionais;

(v) Tem dois filhos, de 34 e 30 anos;

(vi) Gosta de caçar e pescar;

(vii) É coleccionador de tudo o que tenha o emblema do Sporting;

(viii) Actualmente é fiel de armazém na Câmara Municipal de Silves.

Sobre a sua comissão militar na Guiné, conta:

(...) "Entretanto, veio o 25 de Abril de 1974 e a partir daí foi tudo um mar de rosas.

"Tivemos o primeiro encontro com as tropas do PAIGC da zona dois dias depois. Sinto um grande orgulho por ter liderado esse encontro, onde os guerrilheiros nos contaram com faziam os ataques e as emboscadas. Hoje ainda guardo um gorro que troquei por uma lente com o comandante do PAIGC da nossa zona, que já conhecia há muito tempo.(bold meu)

"No dia 22 Agosto 1974 entregámos Bajocunda ao PAIGC. Foi dos dias mais alegres de todos os que estive na Guiné, ver finalmente aquele país libertado. Depois seguimos para Bissau e no dia 9 Setembro regressei à minha Pátria" (...).


(**) Vd. postes anteriores desta série:

30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações

30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN

6 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3578: O segredo de... (3): Luís Faria: A minha faca de mato

11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3598: O segredo de... (4): José Colaço: Carcereiro por uma noite

4 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4461: O segredo de... (5): Luís Cabral, os comandos africanos, o blogue Tantas Vidas... (Virgínio Briote)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4935: Os Nossos Enfermeiros (4): Valioso trabalho desenvolvido pelo Fur Mil Enf Rui Esteves (CCAÇ 3327) e a sua equipa (José da Câmara)

Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > CCAÇ 3327 (1971/73) > Chulame > O Furriel Mil Enf Esteves com os seus meninos manjacos de Chulame (1971)

Foto: © Rui Esteves (2005). Direitos reservados


José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, deixou este comentário no Poste P4912:

Não era condição essencial que um Furriel Enfermeiro para ser bom tivesse que alinhar nos patrulhamentos, emboscadas e operações.

Não me lembro do Fur Mil Rui Esteves, também tertuliano, da CCaç 3327, alinhar no mato, pelo menos no dia a dia. Contudo era um enfermeiro de excelente qualidade, dedicado ao seu serviço, e que desenvolveu uma acção extraordinária junto das populações dos destacamentos de Teixeira Pinto.

O Furriel Esteves, quando confrontado com a grande quantidade de doentes que acorriam aos postos de socorro, viu-se na necessidade de preparar alguns auxiliares que prestavam os primeiros socorros nas localidades onde viviam. Entre os que foram preparados, o Revoredo terá sido aquele que mais se destacou, pois acabou por se dedicar de alma e coração às suas novas responsabilidades.

Nos casos mais graves, os doentes teriam, quando possível, que se deslocar aos postos sanitário de Bassarel, e mais tarde a Chulame para onde o Furriel havia sido deslocado (**). Aqueles que não podendo deslocar-se pelos seus próprios meios, eram transportados pelos nossos unimogs para os referidos postos de socorro, ou mesmo evacuados para Teixeira Pinto, sempre que o Furriel assim ditasse.

A acção máxima da nossa Companhia, e em particular do nosso Furriel Enfermeiro, era que todos os militares e a população tivessem a assistência médica possível nas circunstâncias de então.

Mais tarde, já em Bissássema, e por ordem do Comandante da Companhia, o Furriel Esteves ainda acarretou com a responsabilidade de ensinar e preparar os soldados sem formação escolar para os exames escolares, obrigatórios na altura.

A memória diz-me que o Furriel Esteves não foi oficialmente louvado (admito estar errado).

No entanto, há um louvor que ninguém lhe pode tirar: O respeito e a apreciação dos seus camaradas.

O Furriel Esteves e a sua equipa de trabalho desenvolveram a sua acção humanitária com muita eficácia, respeito e carinho pelos seus doentes, fossem eles militares ou população em geral.

José Câmara
__________

Notas de CV:

(*) Vd. último poste da série de 9 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4927: Os Nossos Enfermeiros (3): Às vezes até fazíamos o que não sabíamos (Armandino Alves)

(**) Há vários postes do Rui Esteves , na I Série do nosso blogue, e que mereciam ser reeditados... Este foi o seu primeiro:

29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXI: Catotinha, uma bajudinha manjaca (Rui Esteves)

(...) Meu caro Luís, Aqui vai o meu primeiro texto de memórias: falo da minha amiga Catotinha, uma bajuda manjaca, de 2 ou 3 anos, que foi minha convidada durante uns meses.Trinta e quatro anos depois, espero que a minha amiga Catotinha esteja viva e de boa saúde.

Um abraço do Rui Esteves (ex-furriel miliciano enfermeiro, CCAÇ 3327, Teixeira Pinto e Bissássema, 1971/73).

Já em tempos falei com ele ao telefone e fiquei de o encontrar quando fosse à Madalena... Se não me engano, ele mora perto, em Lavadores, concelho de Vila Nova de Gaia...

Vd. também poste de 29 de Novembrod e 2005 > Guiné 63/74 - CCCXIX: Parece que foi ontem (CCAÇ 3327, 1971/73: Teixeira Pinto, Bissássema)

Guiné 63/74 - P4934: João Bacar Djaló. O testemunho de Abdulai Djaló Cula. (V. Briote)

Amadu Bailo Djaló

Comando Guineense




Estamos a chegar ao fim do trabalho das Memórias do Amadu. A data estabelecida para a entrega é em 17Set próximo.

Passámos a português corrente os maços de folhas, os escritos em crioulo, contactámos testemunhas presenciais, gravámos depoimentos, pedimos ao Abreu dos Santos o nome das operações, as datas, os nomes dos mortos, dos feridos. Rigoroso e incansável, o Abreu dos Santos respondeu em tempo, questionou datas, a ordem dos capítulos.

O Amadu não trouxe fotos, as imagens estão-lhe na memória.

Pedimos o apoio a um dos melhores fotógrafos da Guiné, o Humberto Reis (Bambadinca, Bafatá), ao Amílcar Ventura e ao José Manuel Dinis (Bajocunda, Piche, Pirada, Canquelifá), ao Marques Lopes (Amura), ao Torcato Mendonça (Xime), ao Jorge Picado (Cutia), ao Jorge Cabral (Fá), ao Vítor Condeço (Catió), ao Carlos Vinhal (Mansabá), ao Albano Costa (Guidaje), ao Fernando Henriques (Canquelifá), ao Cor Raul Folques (Spínola, Brá...), ao Carlos Silva (Farim, Jumbembem, Cuntima, K3...), ao Benito Neves, ao Colaço, ao Santos Oliveira (Cachil e Tite), ao Fernando Gouveia (Bafatá), ao fotógrafo Ernst Schade ("fanado", "rio Grande de Buba") e vou certamente esquecer-me de algum Camarada.

Todos responderam aos nossos pedidos, facilitaram imagens na melhor qualidade possível e todos concordaram que as suas fotos fossem inseridas nos textos do Amadu.

Amadu Bailo Djaló nasceu em Bafatá, em 1940, filho de Cherno Iaia Djaló e de Ana Condé. Aos 14 anos, o irmão mais velho levou-o para Boké, para casa de um tio, de onde era natural a mãe. O pai era de Fulamorie, também da República da Guiné-Conakry. Um ano depois regressou a Bafatá. Aos 16 anos conheceu, pela primeira vez, Bissau e um ano depois Bolama.

Desde muito jovem quis ganhar dinheiro e ser independente. Começou por organizar bailes e festas, juntamente com um primo, para a juventude de Bafatá, a quem cobrava as entradas. Era conhecido entre as meninas de então pelo "Mari Velo".

Enquanto não foi incorporado, foi trabalhando na construção civil, primeiro no Gabu, como capataz, um pouco mais tarde em Bafatá. Estávamos em 1958.

Nos princípios de Janeiro do ano seguinte, regressou a Bafatá. Como sabia ler e escrever, foi para a campanha da mancarra. Aos 20 anos quis dar um salto, tornar-se independente. Conseguiu abrir uma banca para negociar no Mercado de Bafatá. Mas a incorporação estava à porta.

Recenseado pelo concelho de Bafatá, sob o nº 21 em 1962, foi alistado em 04Jan62, como voluntário, no Centro de Instrução Militar. Depois da recruta em Bolama, seguiu-se o CICA/BAC, em Bissau, depois Bedanda na 4ª CCaç, a 1ª CCaç em Farim, regressou à CCS/QG, depois os Comandos de 1964 a 1966, a CCS/QG outra vez, Bafatá no BCav 757, conhecido pelo “Sete de Espadas”, e daquele transitou sucessivamente para os BCac1877, BCav1905 e BCac2856 (todos sediados em Bafatá) e, em meados de Jul69, foi transferido para a 15ªCCmds, seguindo-se então a 1ªCCmds da Guiné, o BCmds da Guiné, a CCaç21 com base em Bambadinca, o 25 de Abril.

Foi promovido a 1º Cabo em 01Jan66 e louvado pelas actuações em operações no ano de 1966. Novamente louvado em 1967, em OS do BCaç1877, de 30Set67, pelo seu comportamento em acções de combate durante o ano de 1967 (07Jan-24Set67). Transferido para a 15ªCCmds em 01Jan70, foi graduado em furriel em 06Fev70, transitando em 13Fev do mesmo ano para a 1ªCCmds da Guiné.

Graduado em 2º Sargento em 07Nov71, foi louvado pelas acções em que participou durante o ano de 1972. Condecorado com a Medalha de Cruz de Guerra de 3ª Classe em 1973 (embora o seu nome não conste nos 8 tomos do 5º volume da “Resenha...”).
Em 28Jun73 foi graduado em alferes e novamente louvado pela actuação nas operações durante o ano de 1973.
Passou à disponibilidade em 01Jan75, devido à independência do território da Guiné.


João Bacar Jaló (1) é frequentemente nomeado e citado nos escritos do Amadu. Um dos capítulos é mesmo dedicado à morte do capitão. Faltava encontrar uma testemunha presencial dos acontecimentos. Encontrámo-lo e encontrámos-nos os três para gravar o seu depoimento.

O Tenente João Bacar Djaló rodeado de pessoal da 1ª CCmds Africanos. Entre outros, é possível identificar o Furriel “Dico” Andrade, o 1º da esquerda, o Furriel Orlando da Silva, ajoelhado, no meio e o 1º da direita, em cima, o Soldado Francisco Gomes Nanque, que esteve preso na Libéria após a operação a Conakry.


A morte de João Bacar Jaló

No dia seguinte, de manhã, apanhei o transporte para Brá. Quando lá cheguei estava o capitão Miquelina Simões a mandar proceder às identificações dos instruendos, que iam frequentar o curso para a 2ª Cª. Comandos e vi o furriel Vasconcelos.
- Vamos a isso depressa, pá! Gritei-lhe a brincar.
- Ouvi agora uma coisa, não sei se é verdade.
- O que foi que ouviste?
- Ouvi dizer que o capitão João Bacar morreu!
Corri para o gabinete do capitão e vi o Sisseco.
- Sim, é verdade, o capitão morreu!

Sem demora corremos para o hospital. Quando chegámos, estava a entrar o General Spínola. Fomos atrás dele, até ao local onde repousava o corpo do nosso capitão. Foi o próprio general que levantou o lençol que cobria o cadáver. As lágrimas romperam pelos nossos olhos.
Terminou, neste dia, 16 de Abril de 1971, a história do capitão João Bacar Jaló .

Dirigi-me para a casa do capitão João Bacar (no Cupilon, nota do editor) e fiquei à espera do irmão dele, porque, entre nós, as famílias não podem ficar sem um homem em casa. E quando um dos nossos morre, é costume cada um de nós dar qualquer coisa, mesmo que a pessoa morta seja rica e ainda mais se o falecido tiver sido em vida boa pessoa. Então, cada um estava a dar dentro das suas possibilidades e foi nessa altura que entrou o tal velhote, de que já falei antes, o Mamadu Candé. Vi-o pôr uma nota de 100 escudos no cesto. Ficámos, uns momentos, a olhar um para o outro.

Mais tarde, perguntei-lhe por que razão tinha dado 100 escudos.
- Eu não queria o dinheiro, quando o capitão mo deu! Não aceitou o meu conselho e não é legítimo eu ficar com o dinheiro! Tive que o devolver.
Fiquei assim a compreender por que é o velhote não a queria, quando o João Bacar lhe deu a nota.


Seguem-se extractos do depoimento (gravado) do ex-Soldado Abdulai Djaló Cula (2), da 1ª CCmds, filho do Padre Central Muçulmano e Bissau


...ao amanhecer daquele dia (3), o Capitão João Bacar disse-me que ia morrer nesse dia. Chamei o Alferes Justo e contei-lhe a conversa do capitão.

- Como? Perguntou o alferes.
- Sonhei com a minha morte, respondeu o capitão.
Estávamos juntos, eu, Abdulai Djaló Cula, o Alferes Justo (Nascimento) e o Furriel Braima Bá (Baldé).

Não tinha ainda acabado de contar o sonho, vimos duas mulheres acompanhadas por uma criança. Traziam cestos com arroz à cabeça, que iam vender em Tite. Parámo-las e o capitão perguntou-lhes:
- Onde está o PAIGC?
- Eles dormiram aqui perto, devem estar ali em frente.

Tínhamos passado a noite, nós e eles, PAIGC, bem perto uns dos outros, talvez a pouco mais de duzentos metros. Nós estávamos muito desconfiados que eles andavam por ali e eles tinham a certeza onde nós estávamos. Por isso, durante a noite, tanto nós como eles evitámos fazer ruídos.

João Bacar deixou as mulheres irem à sua vida e decidiu preparar o ataque à zona onde desconfiávamos que eles estivessem. Aproximámo-nos com muito cuidado, chegámos ao local e vimos folhas estendidas no chão, que devem ter servido de camas. Vimos um resto de cigarro no chão, ainda a deitar fumo.
- Justo, procura nessa zona, ordenou o capitão.
O grupo do Alferes Justo, de cerca de vinte homens, começou a movimentar-se até desaparecerem da nossa vista. Soube, horas mais tarde, que, depois de vasculharem a zona, decidiram emboscar-se relativamente perto de nós.

João Bacar disse a um dos furriéis que lançasse sete granadas de morteiro 60 em cima da área, onde julgava estar o grupo do PAIGC. Mas o furriel só lançou uma. Vendo que era muito lento, o capitão preparou ele próprio sete granadas de morteiro e começou rapidamente a lançá-las.

Depois, montada a segurança, o capitão deslocou-se à tabanca com a intenção de avisar a população que devia sair das casas e fugir para a mata.
Entretanto o grupo do PAIGC foi-se aproximando de nós, sem nós nos apercebermos. O capitão pediu granadas de mão defensivas a Bailo Jau, este não tinha, foi o Fassene Sama que lhas passou para a mão.


João Bacar tinha acabado de tirar a cavilha de uma quando o PAIGC abriu fogo sobre as nossas posições. Ouviu-se um grito do Furriel Bacar Sissé, tinha sido atingido por estilhaços de uma granada de RPG, que desfizeram um baga-baga. O capitão e eu corremos para o ferido.
Vi o capitão baixar-se e, com a mão esquerda apanhar a arma do Bacar, enquanto mantinha a granada descavilhada apertada na mão direita. O capitão muito raramente andava com G-3, quase sempre levava a pistola e duas granadas de mão defensivas.


Passou por mim, tinha dado talvez dois ou três passos e avistámos um disparo do RPG. Eu estava bem abrigado, protegido por uma raiz de uma árvore. João Bacar ajoelhou-se instantaneamente, o rebentamento deu-se atrás de nós e depois mais rebentamentos, tudo muito rápido.

O capitão, que estava ajoelhado, a mão esquerda ocupada com a G-3, foi atingido no braço direito cuja mão segurava a granada sem cavilha. Perdeu força, não deve ter conseguido lançá-la e ela rebentou.
Saí da grande raiz que me servia de abrigo, a cerca de cinco metros, e comecei a puxar por ele. Ainda estava vivo. Arrastei-o para uma zona mais segura e ajoelhei-me. A troca de tiros e de granadas prosseguia. Pus a cabeça do capitão em cima das minhas pernas.
- Uai, Nene ! (- Ai, minha Mãe!)

A granada tinha-lhe arrancado a perna direita, a mão direita e esfacelou-lhe a parte direita do tronco. Estava a morrer o meu Capitão João Bacar Jaló.
O Furriel Lalo Bailo gritou em mandinga:
- Uai ‘nte Báma, capitom fata ! (- Ai, minha mãe, o meu capitão morreu!)

O Inimigo sabia o que estava a acontecer e intensificou ainda mais o fogo, enquanto o sentíamos mais perto. Era um grupo numeroso e chegámos a pensar que nos queriam apanhar à mão. Aos gritos chamei o Furriel Vicente Pedro da Silva (4):
- Meu furriel, querem apanhar-nos à mão!
A morte do nosso comandante estava a tocar-nos muito, o nosso moral estava em baixo e o grupo do PAIGC cheirava isso.
- Calma! Ouviu-se a voz do Furriel Vicente.
Agarrou-me e ao Vicente Malefo e a mais dois ou três, lançou uma granada de mão defensiva e gritou bem alto:
- Comandos ao ataque! Cada um dispara dois tiros seguidos de cada vez, tum-tum. Vamos apanhá-los à mão, não façam mais tiros agora!
E foi com os gritos do nosso furriel que começámos a avançar e a vê-los a retirar.

Depois, numa acalmia, pedimos as evacuações, enquanto nos movimentávamos com o corpo do nosso comandante e carregando os feridos mais graves, o Alferes Justo, que se tinha ferido no joelho ao servir-se dele para apoiar o morteiro, e os Furriéis Bacar Sissé e Dabho.
Quando atravessávamos a bolanha ouvimos o silvo de um Fiat, picou sobre nós, largou uma bomba que só estremeceu tudo à volta e levantou outra vez.

O Alferes Justo pegou no banana, o AVP-1, e conseguiu entrar em contacto com a esquadrilha. Que éramos nós e que precisávamos de um heli para evacuar os nossos feridos.
Momentos depois, talvez antes ainda das nove horas, fomos sobrevoados por dois, um armado e outro que pousou com uma enfermeira que os transportou para Bissau, para o Hospital Militar.
Quando regressávamos a Tite vinha ao nosso encontro uma unidade e, em coluna auto fomos transportados para o Inchudé e daqui seguimos numa lancha para Bissau.

Eu vinha com o camuflado empastelado do sangue do meu capitão. No cais, num ambiente de grande tristeza, aguardavam-nos as nossas famílias e muitos amigos nossos.
Três ou quatro dias depois, já não me lembro bem, foi o funeral do nosso comandante, que foi uma manifestação que nunca tinha visto.

Acaba aqui a história dessa grande figura humana, do grande fundador das milícias no sul, na sua terra de Catió. Quando lá estive com os “Fantasmas”, em 1965, com o Alferes Saraiva para operações no Como e em Cufar, o João Bacar escolheu milícias da sua confiança, para aprenderem a ser operacionais. O capitão entrou em dezenas de batalhas até acabar a sua vida numa simples patrulha de combate em Jufá em circunstâncias um pouco estranhas, no dia negro de 16 de Abril de 1971.
__________



Notas de vb:

(1). João Bacar Jaló nasceu em 2 de Outubro de 1929, em Cacine. Foi incorporado no Exército, para o qual se voluntariou, no dia 1 de Março de 1949. Em Junho de 1951 estava ao serviço da 2ª CCaç, em Bolama, quando terminou o seu primeiro período militar.

Nesse mesmo ano começou a trabalhar na Administração Civil, em Bissau. Em 1952 no Palácio do Governo e até 1958, sempre como funcionário da Administração Civil, em Bissalanca, Antula, Prábis e Safim.~

Entre 1958 e 1961 foi fiscal de fronteira no sul e em seguida desempenhou o cargo de comandante de ronda em Catió, que acumulou com as funções de oficial de diligências do Julgado Municipal.

Com o início da actividade militar do PAIGG, João Bacar, já com 33 anos, alistou-se novamente, como comandante de Caçadores Naturais da Guiné.

Foi graduado em alferes de 2ª linha em 8 de Junho de 1965. Depois foi nomeado comandante da Companhia de Milícias nº. 13 e, um ano depois foi promovido a tenente.

Depois de ter frequentado um curso de oficiais, João Bacar foi graduado em capitão e passou a comandar a 1ª CCmds Africanos.

Ao longo da sua vida militar recebeu numerosos louvores. Foram-lhe atribuídas duas Cruzes de Guerra e era Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.

(2). O Soldado Abdulai Djaló Cula é natural de Bissau. Pertencia à equipa do Furriel Bacar Sissé que fazia parte do grupo de cerca de 40 homens que foram a Jufá, comandado pelo Capitão João Bacar.

(3) Havia a informação que um grupo do PAIGC ia passar a noite de 15 para 16 de Abril de 1971 a uma tabanca de balantas, em Jufá, na zona de Tite. O João Bacar estava com um grupo emboscado junto à tabanca. Durante a noite, os cães da tabanca não pararam de ladrar.
Quando amanheceu, João Bacar disse: “nós vamos ali à tabanca, conversamos com a população, mas não passámos dali. Porque num sono muito rápido que tive, sonhei que o PAIGC me prendera.

Amarraram-me, meteram-me num jipe, e eu consegui saltar do jipe em andamento. No chão, com as mãos e os pés atados não podia correr. O jipe fez marcha-atrás, voltaram a apanhar-me e meteram-me outra vez no carro. Quando o carro voltou a andar, seguraram-me, para não me deixarem mexer. O jipe arrancou e acordei".
Este sonho foi contado pelo João Bacar ao Furriel Braima Bá e ao Soldado Abdulai Djaló Cula, na manhã do dia em que morreu.

(4) O Furriel Vicente Pedro da Silva suicidou-se em Lisboa, por volta de 2004, muito devido ás precárias condições em que vivia e cansado da incompreensão que sentia por não ver reconhecido o seu estatuto de guineense, antigo combatente das Forças Armadas Portuguesas.

Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965

1. Sétimo poste da série Cartas, (JUL65 a SET65), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66


2.ª FASE: O MATO

Paúnca, 03 Jul. 1965
As coisas estão a alterar-se bastante, quebrando a rotinas dos últimos tempos. Esta semana foi mesmo muito atribulada, mas não para mim que, nela fui apenas espectador.
A Lili (nome familiar da esposa do Castro) acabou por ter uma zanga terrível com o marido.
No início, já tinha notado uma certa frieza da parte dela para com ele. Vim depois a saber que a vida que os dois aqui levavam não era nenhum mar de rosas e que discutiam frequentemente, inclusivamente durante as refeições, feitas juntamente com os furriéis.

Na passada terça-feira, o Castro saiu de jeep para visitar outro alferes de um destacamento aqui próximo, mas de outra Companhia. Almoçou por lá e só regressou ao fim da tarde, demasiado alegre, parecendo vir até com um grão na asa.
Foram os dois logo para o quarto enquanto nós ficávamos a ouvir uns discos que ele tinha trazido.
Passado pouco tempo, repentinamente, a Lili abre a porta e sai a correr espavorida. Pelo que nos pudemos aperceber, ela ter-lhe-ia dito qualquer coisa sobre o estado eufórico dele, resultando daí uma zanga em que se insultaram mutuamente com os piores nomes, chegando mesmo à agressão física.
Nessa altura já era noite cerrada e eu lá fui atrás da Lili, que dominada por forte estado emocional, com choro, soluços e nem sei que mais, foi sentar-se no chão, no meio da enorme parada do quartel de Paúnca. Acorreram alguns furriéis mas afastei-os e fiquei só eu a acalmá-la, a tentar que desabafasse comigo. Quando finalmente vi que parou de chorar e de tremer convulsivamente, deixei-a e regressei à Messe onde ainda todos estavam reunidos, consternados com toda aquela cena.
Entretanto o Castro fez várias tentativas para chegar junto dela mas foi repelido aos gritos.

O jantar estava na mesa e nem um nem outro se decidia a vir fazer-nos companhia, ele no quarto, ela lá fora.
Foi então que faxina, ao entrar no quarto do Castro para o chamar para vir comer o foi surpreender a cortar as veias do pulso esquerdo com uma lâmina de barba. Acorremos imediatamente, o enfermeiro aplicou-lhe logo uma ligadura e nem chegou a haver perigo. O Castro caiu então num estado de completa prostração física e durante os três dias que se seguiram quase nem se levantou da cama, não comendo nem falando com ninguém.

A Lili, essa, nunca mais quis dormir na mesma cama com ele e tem teimado em dormir numa cama de lona na palhota-alpendre que cá fora servia de bar.
À medida que os dias foram passando, investiguei alguns factos passados, na mira de tentar ficar a saber o porquê de se ter chegado àquela situação. No entanto não o fiz apenas com o propósito de bisbilhotar os pormenores escabrosos do escândalo. Precisava de ter em meu poder o conhecimento de todos os factos que me ajudassem à compreensão e possível resolução deste problema.
Sim, porque estava determinado em ajudar estes dois. Ele em primeiro lugar, porque estava a fraquejar de modo lamentável, ela para que não enlouquecesse. E digo, enlouquecer pois é isso mesmo que aqui pode vir a acontecer aos espíritos mais fracos.

Assim constatei que as coisas estariam neste pé: o comportamento da Lili para com o marido era frio e distante já desde a primeira vez que ela cá tinha estado, ainda em Bissau. No entanto, quis vir para Paúnca, com o intuito de animar os soldados e todos os outros que aqui também viviam a sua solidão. Esse impulso levou-a talvez longe demais, pois nem todas as pessoas têm uma boa formação moral e, a maioria, vive dominada pelos mais estranhos e complexos traumas, quase todos de origem sexual.
Começaram logo por surgir os inevitáveis boatos sobre o comportamento dela, que era uma mulher leviana, que atraiçoava o marido, inclusivamente com um dos furriéis, enfim que não passava de uma vulgar libertina.
O Castro, se chegou a suspeitar disso, nunca a soube defender nem resguardar, pois ele tem aquela estranha mentalidade, segundo a qual a verdadeira e única camaradagem leal que existe entre os homens é a que se cria entre os que se embebedam em conjunto. E é também verdade que ele, antes e depois de ter cá a mulher, costumava embebedar-se na companhia dos seus soldados, talvez com a intenção de aumentar a sua popularidade (o que de facto conseguiu). Um dos indícios claros da sua personalidade é ter sempre um desejo incontrolável pelo luxo, o sonho de possuir bons carros, mulheres deslumbrantes, vida de playboy, etc. Mas para além disso tudo, a sua maior obsessão foi e será sempre a de ser popular.

Mas voltemos aos acontecimentos. Todos os dias falo com um ou com o outro, tentando serenar ao ânimos e fazer voltar tudo ao seu lugar.
Ela quer a separação a todo o custo. Ele quer que ela volte para ele e o acarinhe. Ela continua a manifestar total repulsa por ele. Até que ontem (sexta-feira) consegui convencê-lo de que a melhor atitude que poderia tomar, era levantar-se da cama, lavar-se, barbear-se, comer qualquer coisa e deixar de, teimosamente, tentar discutir ou pedir explicações à esposa. Mas logo em seguida, voltou a fazer o mesmo, a pedir que ela voltasse para ele, o perdoasse e contemporizasse com ele.
Mas ela cada vez mais se inteiriçava e se recusava a falar com ele, não querendo nem sequer que ele a tocasse. E o inevitável sucedeu novamente, uma tremenda discussão com um final outra vez grave.

Aproveitando uma distracção nossa, ela cortou-se selvaticamente nos dois pulsos e pelos braços acima em total desespero e descontrolo. Tivemos que a agarrar à força para que deixasse fazer os curativos, pois estava completamente desvairada. E o Castro, sempre de volta dela, massacrando-a insistentemente, perguntando porque é que ela estava assim, o que é que ele tinha feito de mal, numa cegueira tal que tive de empregar a violência para o afastar da mulher.

No fim de muita luta e muita paciência consegui que finalmente, ainda nessa noite, os dois jantassem connosco à mesa. Felizmente agora a crise está a abrandar, mas as coisas nunca voltarão a ser como dantes, nem haverá reconciliação, pois entre eles ficou decidido o divórcio.

Hoje de tarde o Castro não parava de chorar a perda daquilo que ele mais gostava. Pode-se dizer que hoje, tiveram uma recaída psicológica, talvez por cansaço. Ele, num acto de abandono, vagabundeava pela estrada, para baixo e para cima, sob uma enorme chuvada, como para se punir. Ela, não conseguia adormecer, dizendo que o estava constantemente a ouvir gritar e que ouvia também outras vozes a chamarem por ela. Apesar de eu lhe ter cedido por diversas vezes o meu quarto, ela nunca mais quis deixar a palhota-alpendre, teimando sempre em dormir na cadeira de lona. Por lá adormeceu, após o enfermeiro lhe ter administrado uma injecção calmante.

Como se calhar já repararam, a minha actuação aqui tem sido agora como a de um comandante. Por que de facto já o sou. Recebi ontem à noite uma ordem por escrito do nosso capitão a determinar que a partir de hoje (dia 3), o pelotão do Castro regressava a Pirada, vindo o meu para cá, beneficiando já da minha estadia aqui e alegando a tal prometida rotatividade dos destacamentos como teria sido combinado quando viemos para o mato. Aconteceu portanto aquilo que já ninguém esperava, eu vir a ser o comandante de Paúnca, o melhor e o mais cobiçado aquartelamento aqui da zona.

Isto acabou por arrasar ainda mais o Castro. A Lili chegou a pedir-me para a deixar ficar em Paúnca até vir a altura de poder embarcar para a Metrópole, mas por fim decidiu ir também para Pirada na condição de nem ver o marido, nem o capitão, que continua a detestar igualmente.
No entanto continuamos a construir o aquartelamento que querem criar aqui ao lado para um outro pelotão.

Paúnca, 10 Jul. 1965
Agora estou só em Paúnca. O Castro e a mulher foram para Bissau onde arranjou lugar para ela num avião da TAP, segundo contou num aerograma que mandou de lá, para o capitão. Parece também que, depois desta fita toda que aqui fizeram, já se reconciliaram de novo, o que me deixou boquiaberto.
Mesmo no último domingo ainda me deram que fazer, pois ela resolveu fugir, embrenhando-se pelo mato. Um pouco antes da hora do almoço, demos pela falta dela e depois de muito a procurar, soubemos por uns nativos que ela tinha sido vista a correr pela mata já longe do quartel. Fomos todos atrás dela e só a conseguimos agarrar perto das 4 horas da tarde, quando finalmente a encontrámos numa tabanca a 10 km daqui, estafada e cheia de sede. Só com uma grande dose de paciência é que conseguimos convencê-la a voltar para o quartel e tive pelo menos a satisfação que, se não tivesse sido pela minha presença, a crise teria tido contornos muito mais graves, ou vamos lá, até muito mais ridículos.

Mas já nem gosto mais de falar neste assunto, principalmente com quem tanto civis como militares se limitaram a ser simples espectadores, deste caso.
De uma coisa fiquei certo: ninguém está suficientemente autorizado para a poder julgar. Ela era uma pessoa de muito difícil compreensão para esta gente ainda com mentalidade de bichos-do-mato, chamemos-lhes assim.

Mas ainda não vos falei de Paúnca como deve ser.
O quarto que era do Castro, passou agora a ser o meu. Está dividido a meio por uma cortina verde-escura, comprada por ele mas que ma deixou ficar, pois em Pirada não lhe iria servir para nada. O quarto fica assim dividido em escritório e quarto propriamente dito. Já pendurei o meu canhangulo na parede e coloquei os tambores a um canto.
A minha lavadeira continua a ser a Ti Clara e até ver será sempre ela.

O quartel tem apenas dois edifícios cobertos de telha, a caserna e a Messe com os quartos dos sargentos e o meu. Os outros edifícios são simples cobertos, ou então, como no caso do Refeitório, edifícios com paredes de cimento mas cobertos com chapas de zinco ou lusalite, mais baixos que a caserna.
O aquartelamento fica logo à entrada da povoação, dominando a estrada que lhe dá acesso. Andando mais um pouco chega-se a um largo formado por cinco casas comerciais dispostas mais ou menos em quadrado. Aí é o centro do povoado, onde se faz o movimento principal.
Esta gente daqui é mais rica que a de Pirada, pois enquanto lá, os quatro comerciantes existentes, vivem principalmente do comércio que fazem com o Senegal, estes aqui (e são cinco!) vivem do comércio que fazem apenas com os indígenas desta região e com os que vêm do interior para se abastecerem.

Estamos agora na época em que se lavra a mancarra e o trigo e é precisamente nesta altura que os agricultores estão sem dinheiro. Mesmo assim ainda conseguem fazer algum negócio, vendendo arroz e tabaco para poderem comprar o que necessitam. É agora que nós aproveitamos também para lhes comprar os ovos e as galinhas que quisermos, pois deixam tudo muito mais barato.
Resumindo, gosto de estar aqui embora me sinta muito só. Mas por outro lado, fico contente por saber que os meus soldados finalmente estão a descansar das canseiras que tiveram em Pirada, sempre a fazerem obras aqui e ali. Quero mesmo que isto se venha a tornar um autêntico sanatório para eles.

Paúnca, 18 Jul. 1965
Ontem, sábado, organizámos um baile para o qual convidámos as duas filhas e a sobrinha de um comerciante negro de alcunha, o “Passarinhas”, que tem a loja mesmo aqui em frente do quartel do outro lado da estrada.
Elas coitadas, eram só três e nós quase 40, de maneira que acabaram todas derreadas. Mas foi uma noite divertida e alegre, com bebidas à discrição, galinhas à cafreal, batatas fritas, salada de frutas, etc., etc. Foi pelo menos uma coisa inédita aqui na vila, especialmente para os soldados que há muito tempo não davam o seu pezinho de dança…
As raparigas que, por acaso, até não são nada feias, ficaram deslumbradas com as amabilidades de que foram alvo, vestiram as suas melhores roupas e pentearam a carapinha o mais à europeia possível. Os soldados, obriguei-os a apresentarem-se com a farda n.º 1, ou então à civil e, assim, o baile teve um até um aspecto bastante decente.
Devo acrescentar que ninguém se embebedou, embora tivesse havido um soldado, mais emocionado que não resistiu a recitar o “Amor de Mãe”. Um sucesso!
---///---

Recebi hoje as camisolas que me mandaram pelo Correio e já dei a dos quadrados à Ti Clara e a outra, a vermelha, à amiga dela, a Cumba. Quase lhes chegam aos pés, mas assim largas é que lhes ficam bem. Ficaram maravilhadas porque nunca ninguém lhes tinha feito tamanha oferta. Não se cansam de agradecer. As restantes vão ser distribuídas aos poucos por aqueles mais necessitados.
Aqui em Paúnca ainda não arranjei grandes amizades, a não ser com um rapaz, de nome Iaia que é o enfermeiro civil de cá. De raça Fula, muito simpático e muito mais culto que o normal sabe ler e escrever correctamente, tanto em árabe como em português. Como fala ainda vários dialectos locais tem sido muitíssimo útil como intérprete.

Paúnca, 25 Jul. 1965
Hoje fui a Pirada assistir a um jogo de futebol entre a equipa do meu Pelotão e a equipa do Comando da Companhia. Afinal o jogo acabou mal. Foi interrompido porque os jogadores envolveram-se à pancada, quando estavam empatados 0-0.
Mas mesmo assim prometemos vingança!

Paúnca, 01 Ago. 1965
De novo em Pirada agora a comandar a própria Companhia!
O capitão foi de férias e como o Cardoso, que é o alferes mais graduado, ainda se encontra na Metrópole, tive de vir eu para o comando das tropas, pois sou o alferes que se lhe segue quanto a graduação.
Assim fiquei instalado no quarto do capitão, nas novas instalações dentro do quartel, com luz eléctrica e quarto de banho privativo. Não é nada mau, embora o ruído do gerador seja um bocado chato. Mas é quase como estar a bordo de um navio. A gente habitua-se ao barulho e depois até deixa de o ouvir.
O quarto é pequeno, atulhado de armários com roupas, sapatos, botas e papelada, quase tudo do capitão. Também tenho uma ventoinha o que é muito bom pois agora, depois de chover, faz sempre um calor húmido e insuportavelmente abafante. Forneci-me de livros e revistas para me entreter e para não andar por aí feito parvo.

Continuo a ir todas as tardes e principalmente depois de jantar, a casa do M. Santos, onde jogamos umas partidas de xadrez, novo entretenimento que descobrimos. Mas perco sempre pois ele é um jogador muito mais forte que eu.
Agora, costumam juntar-se a nós, dois ou três furriéis, de maneira que os serões são muito mais animados. Discute-se política, cinema, literatura e de tudo um pouco, conforme as preferências de cada um.
Quanto às minhas novas atribuições no comando da Companhia, não me preocupam muito porque são poucas ou quase nenhumas. Daqui a poucos dias deve chegar o Cardoso e então regressarei de novo a Paúnca.

Pirada, 08 Ago. 1965
Amanhã entramos no 16.º mês de comissão. Isto está a andar depressa!
Para comemorar, fui com alguns furriéis almoçar a Paúnca a convite do Castro que, está lá agora a comandar o meu pelotão, enquanto eu estiver deslocado em Pirada. Os meus homens parecem ter ficado satisfeitos por me ver. Ao almoço paguei cerveja a todos para também aumentar a minha popularidade. Sinto que de dia para dia, principalmente nestes dois últimos meses (desde que regressei de férias) se tem vindo a criar um elo de amizade e compreensão entre mim e os soldados do meu pelotão. Já não se sente tanto aquela relação crispada de patrão e escravos, mas sim uma simples camaradagem do chefe com os seus fiéis companheiros.
Agora que estou ausente aqui em Pirada, sei que até têm perguntado bastante por mim, modéstia à parte.

Hoje tivemos também a festa de despedida do Gabriel aquele alferes de Cavalaria meu companheiro em Bajocunda, de quem me tinha tornado amigo e que, foi nada mais, nada menos, nomeado ajudante do Governador!
É claro que delirámos com a notícia e fizemos mais uma grande festa em casa do amigo M. Santos que, coitado, depois do jantar, já abria a boca até às orelhas, cansado e mortinho por se ir deitar.
O nosso médico, o Rafael, continua deslocado lá longe, em Canquelifá, onde está há quase um mês. Apesar das excentricidades dele, já sentimos um pouco de saudades da sua companhia. Mas quem mais sofre são alguns dos nossos soldados que sofrem de paludismo e outras doenças mais graves que, por causa disso não têm o tratamento adequado.

Pirada, 15 Ago. 1965
Continuo a comandar a Companhia e já estou a ficar farto disto!
Os outros alferes, o Carvalho e o Castro começam a evidenciar sinais nítidos de quererem abusar da situação, cientes de que eu, alferes como eles, não lhes poderei exigir uma obediência completa. Julgam que podem fazer tudo o que lhes apetece, dando as ordens que melhor entendem, pensando talvez que eu não ousarei contrariá-los. Claro que poderia e posso mesmo, mas na verdade se o fizesse era só para criar aborrecimentos e chatices.
Quando o capitão cá estava, não eram capazes (como o Carvalho fez anteontem) de pegar num jeep e ir para Nova-Lamego, sem dizer nada a ninguém. Assim vi-me na contingência de proibir todos os condutores de saírem com as viaturas do quartel, sem a minha autorização expressa. Enfim uma série de coisas que só servem para andar quase sempre chateado na maior parte dos dias.

Mas estou a aprender a dominar-me melhor, embora, de vez em quando, surja um dia não, como hoje foi um deles. Esqueci-me de entregar um envelope, com uma grande quantia, ao 1.º sargento e, quando me lembrei de o ir procurar à minha secretária (onde sabia que o tinha deixado) ele tinha desaparecido. Fiquei um bocado intrigado e ao mesmo tempo assustado com as consequências. Felizmente tudo se compôs, pois tinha sido o próprio 1.º sargento que o vira e o guardara.
Hoje entrei várias vezes na Secretaria para assinar uns papéis. Distraía-me depois com um outro assunto qualquer e tornava a sair sem nunca mais me lembrar do que tinha vindo ali fazer. E só muito mais tarde é que me lembrava do que deveria ter feito.

Pirada, 22 Ago. 1965
Imaginem qual não foi o meu espanto, quando ao entrar na Secretaria deparei com um monte de embrulhos que me eram destinados. A vossa encomenda chegou intacta. O tabaco e os fósforos vou guardá-los como relíquias. Um maço terá de durar dois dias pelo menos!
Os livros do Vilhena (um desenhador humorístico de muito renome, naquela época) foram acolhidos com muitos aplausos, pois não se falava noutra coisa e toda a gente os queria ler.

No outro dia aconteceu um desastre. Uma viatura pesada galgou por cima de um jeep quando regressava de Paúnca. Morreu um soldado e outros quatro ficaram feridos, um dos quais com gravidade. Estava de chuva e por motivos que ainda se desconhecem o jeep travou de repente e o camião passou por cima dele, pois os travões partiram-se e a estrada ainda por cima estava escorregadia. Foi uma grande balbúrdia. Os feridos foram logo evacuados de madrugada para Bissau e parece que se safam desta.
Quanto aos nossos amigos, continuam a passar cá por perto (pelo Senegal) e a mandar cumprimentos. A zona que está a ficar mais feia é a de Canquelifá, a mais de 50 kms daqui.
Estou a deixar crescer o bigode para mais tarde tirar umas fotografias. Mas depois, rapo-o, é claro. Aliás fica-me mal.

Pirada, 29 Ago. 1965
Tudo na mesma. Continuo um bocado azedo mas a coisa passa-me.
Só peço que o capitão chegue depressa, para poder regressar a Paúnca. Não fui ensinado para ocupar lugares destes e já estou farto de, quando quero fazer qualquer coisa, ter de andar a perguntar ao 1.º sargento (que também é uma boa bisca) se o posso fazer ou não.

As chuvas ainda não começaram e há já quem diga que este ano vai ser um ano de seca. Reparei que começaram a aparecer uns insectos a que chamam cáusticos por deixarem no sítio da nossa pele onde pousam, autênticas bolhas parecidas com as que são causadas por queimaduras. Segundo dizem os velhos a chegada destes insectos é, precisamente, o prenúncio do fim das chuvas. Mas pode acontecer que sejam só dois exemplares transviados.
De resto, a vida aqui em Pirada tem-se limitado a uma ida todos os dias ao quartel, assinar umas quantas mensagens que vão chegando e dar despacho a outras.
Depois almoça-se, dorme-se a sesta e se ainda há mais alguma coisa a tratar volta-se ao quartel, senão vai-se até ao balcão da loja do M. Santos dar à língua até a hora do jantar. À noite vai-se outra vez para lá, jogar às cartas com as crianças e também com alguns graúdos que já apanharam o vício.

Pirada, 05 Set. 1965
Agora em Setembro parece que entrámos no rigor da época das chuvas. Elas que até aqui tinham abrandado recomeçaram, não com tanta força, mas com mais persistência. Depressa ficaremos com as estradas totalmente impraticáveis com a lama que se vai formando.
E de cada vez temos menos viaturas. Está tudo a rebentar pelas costuras. Até o motor da luz já avariou e ficámos a chuchar no dedo, quando ontem apareceu por aqui uma equipa com uma magnífica máquina de projectar de 16 mm, dos Serviços de Cinema do Exército, para fazerem uma sessão para a malta e a energia eléctrica, só com o Petromax!

Pirada, 11 Set. 1965
Acabo de vir de casa do M. Santos, onde fui jantar juntamente com o capitão que, felizmente já cá está. Chegou ontem e fui eu próprio buscá-lo a Nova Lamego.
Por enquanto parece ainda um pouco abananado com a mudança da Metrópole para aqui e só me deixa voltar para Paúnca segunda-feira (hoje é sábado). Por um lado, isso até me convém, pois terei mais tempo para arrumar convenientemente todas as minhas coisas quando me mudar de vez para Paúnca. Inclusivamente, vou levar o armário guarda-fatos, feito por aquele carpinteiro daqui de que já vos falei, e que me vai ser muito útil.
Além disso ando a elaborar um auto de corpo delito contra um soldado que, num acto de ódio, bebedeira ou pura estupidez, puxou de uma arma contra o 1.º sargento e a disparou dentro da caserna, felizmente sem atingir ninguém, dos que lá se encontravam, quer deitados a descansar ou a fazer qualquer outra coisa. Imediatamente o dominaram e espancaram violentamente, deixando-o quase sem conserto. Se não fôssemos nós, eu e o 1.º sargento, termos interferido, matavam-no à pancada.
E como tudo isto sucedeu antes do regresso do capitão, ainda tive de ser eu a mandá-lo prender e proceder depois ao respectivo auto, o que certamente lhe trará uns anos de prisão em algum presídio militar. Poder-se-á dizer que vou estragar a vida do rapaz, mas nesta situação não se pode transigir com nada que se assemelhe. Se já receamos as balas do IN, só nos faltava recear também as balas dos próprios camaradas.

Quanto ao capitão continua estranho como sempre, querendo agradar a Deus e ao Diabo. Ficou aflito, quando lhe disse ter deixado de fazer a Ronda nocturna à volta da povoação com uma esquadra (meia Secção). Eu tinha simplesmente resolvido acabar com aquilo, por ter chegado à conclusão que afinal era apenas uma inútil sobrecarga de trabalho para os soldados e que, além disso, em caso de um ataque súbito, esses homens correriam o sério risco de ficarem desligados do quartel.
Mas o capitão, sempre receoso daquilo que só existe na cabeça dele, ontem à noite revogou logo a minha ordem em vez de uma Ronda mandou sair duas. Os soldados já começaram a dizer:

- Pronto, chegou o nosso capitão, começaram as guerras!

Ainda bem que segunda-feira me escapo para Paúnca.
---///---

A filha mais nova do M. Santos fez oito anos e houve grande festa lá em casa. Ficámos todos muito alegres como não podia deixar de ser. Eu ainda fiz uma retirada a tempo mas o médico e alguns furriéis teimaram em ficar mais algum tempo. Acabaram a cantar e a gritar desalmadamente no meio da praceta. Tive de os mandar calar à força e o furriel enfermeiro tropeçou e deu um valente tombo. No dia seguinte andava de braço ao peito. Foi uma risota.

Paúnca, 19 Set. 1965
Estou em Paúnca morrendo de tédio, pois isto está cada vez mais monótono. Dois dos furriéis foram de férias e quase não tenho ninguém com quem conversar. Passo os dias metido no quarto a ler ou a ouvir os meus velhos discos de jazz.
Mas anteontem e ontem as coisas aqueceram um pouco e a vida quebrou a rotina.
Depois de ter feito um patrulhamento a pé até uma tabanca desconhecida, metida no meio do matagal mais denso que já conheci, quando regressava ao quartel, recebi pela rádio, uma ordem do capitão para que eu, no dia seguinte, passar também a comandar o pelotão do Castro que, ele me mandaria para aqui. Teríamos como missão fazer o reconhecimento de umas regiões a Sul de Paúnca. Como o combinado, logo de manhã bem cedo estava à espera deles. Fomos até à tabanca de Mansajã, mas as picadas não possibilitaram o trânsito das nossas viaturas (dois camiões pesados) e começámos a ficar atolados de tal maneira que não pudemos prosseguir mais. Ficámos imobilizados de vez.
Para maior azar recomeçou a chuva e quando digo chuva, quero mesmo dizer chuva. Chuva diluviana que transformou tudo no mais vasto, profundo e viscoso lamaçal. Para continuação da desgraça a porcaria do rádio avariou-se e só na manhã do dia seguinte, depois de ter conseguido enviar, por um portador, um bilhete escrito ao nosso capitão, é que finalmente nos foram buscar, pois os nossos carros ficaram de tal maneira enterrados na lama que só foi possível arrancá-los de lá com um guincho.
Tivemos de passar a noite na tabanca, cujo jarga, decerto amedrontado com a presença de tanta tropa, desfez-se em amabilidades connosco. Cedeu até a cama dele para eu dormir. Pôs a palhota à minha disposição e foi dormir para outra. Todos os habitantes tomaram como ponto de honra, acolher em cada uma das suas casas, um dos nossos, pelo menos. Molhados até aos ossos como estávamos, completamente estafados, não demorámos a aceitar.

Logo de manhã apareceram a oferecer laranjas e a mim chegaram a oferecer leite fervido com açúcar e ovos cozidos que, ainda reparti pelos quatro furriéis que me acompanharam. Como só tínhamos levado ração de combate para o almoço, pois contávamos estar de volta, ao princípio da noite, o facto de ficar sem comer, sem rádio, completamente exaustos com o esforço de desatolar as viaturas, completamente encharcados debaixo daquela chuva diluviana estava a deixar-nos numa situação muito precária, agravada ainda mais pela sensação de estarmos a participar numa movimentação totalmente gratuita. Ninguém conseguia descortinar qual o interesse ou o motivo de tão inusitado patrulhamento.
Quando conseguimos regressar, eu a Paúnca e os restantes, a Pirada, já eram 10H00 de hoje.
Portanto imagine-se a sofreguidão com que devorámos as laranjas e os ovos cozidos que aquele pobre, mas acolhedora gente, nos ofertou no meio de tantas vénias e sorrisos Ficámos tão sensibilizados que, na despedida resolvemos retribuir o melhor que podíamos.

Foi um belo e comovente espectáculo, ali no meio de uma clareira, no meio de uma mísera e ignorada aldeia, perdida algures do interior do mato mais negro da Guiné, ver um pequeno grupo de soldados brancos, desgrenhados, enlameados e sujos, alinhar-se com todo o garbo e aprumo para, em formatura e, perante o espanto de toda a população, proceder à cerimónia de apresentar armas, enquanto eu abraçava o régulo que embaraçado agradecia também, extraordinariamente comovido, a oferta que eu lhe fazia da minha camisola interior, um bem que ele considerou como a coisa mais valiosa que já lhe tinham dado.

Após a ordem de destroçar, com um forte batimento do pé esquerdo, com toda a cagança, foi então um correr desenfreado para a única viatura operacional, após termos finalmente recebido socorros de Pirada. Com jeito, coubemos todos e foi quase com aquele alívio que sentíamos quando regressávamos a Bissau, depois de mais uma daquelas operações de triste memória que, nos fizemos de novo à estrada, de regresso a casa, aos nossos aquartelamentos.

A primeira coisa que fiz quando cheguei a Paúnca, foi despir-me, lavar-me e deitar-me a dormir. Dormi quase todo o dia e agora à noite ainda tenho o corpo dorido, efeito também dos outros 15 km a pé de anteontem.

- Que rico fim-de-semana, disseram os soldados.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965