sábado, 3 de outubro de 2009

Guiné 63/74 – P5047: Estórias do Fernando Chapouto (Fernando Silvério Chapouto) (7): As minhas memórias da Guiné 1965/67 – Rotinas perigosas


1. Continuamos a publicar as memórias do nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426, que entre 1965 e 1967, esteve em Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda. Este é o 7º poste desta sua série, continuando os postes P4877, P4890, P4924, P4948, P4995 e P5027.

AS MINHAS MEMÓRIAS DA GUINÉ 1965/67

Rotinas perigosas

Passados oito dias, sobre a terrível morte do nosso Camarada Fur Mil Tomé, fomos rendidos pelo 3º. Pelotão e seguimos para Geba. Aí todos nos perguntavam como tinha acontecido a morte do Furriel Tomé, ao que nós respondíamos que não tínhamos visto, e que apenas sabíamos que tinha caído numa armadilha.

O nosso 1º Sargento tinha abordado os Oficiais e Sargentos dos outros destacamentos próximos, para saber se eles colaboravam no pagamento das despesas do envio do seu corpo, para a Metrópole, e todos concordaram em ajudar.

O meu pelotão, como não podia deixar de ser, também concordou unanimemente em participar. Não me lembro quanto me tocou a mim.

Foi pena esta amostra de solidariedade e camaradagem não ter acontecido também com o soldado condutor, que faleceu, por afogamento, num despiste de uma viatura à entrada da ponte sobre o rio Geba. A viatura caiu ao rio tendo o infeliz condutor ficado preso e submerso, resultando ainda deste infeliz acidente vários feridos, com maior ou menor gravidade. Os restos mortais deste nosso Camarada, ficaram enterrados no cemitério de Bafatá.

O tempo em Geba era passado em passeios às voltas pela Tabanca, jogos de futebol e deslocações, de vez em quando, até Bafatá (quando é claro não haviam operações).

Em meados de Julho o IN atacou Sare Banda, por volta das dez horas da noite, já alguns soldados estavam deitados. Tivemos que nos levantar rapidamente, agarrar no equipamento necessário e saltar para cima das viaturas.

A coluna arrancou a grande velocidade e, quando nos aproximamos de Sare Banda, apeamo-nos das viaturas e desligamos os faróis. Com os olhos de “gato” atilados (como vulgarmente lhe chamávamos), avançamos à frente das viaturas com todas as precauções, porque ainda se ouviam alguns disparos.

O nosso capitão mandou então lançar algumas morteiradas nas direcções de onde o IN atacava a população, mas como não se levou o prato de assentamento do morteiro, o 1º Cabo tinha medo de segurar no dito tubo durante os disparos, pelo que, tive de ser eu a pegar-lhe e explicar-lhe como se devia fazer.

Conforme o tubo se ia enterrando com os sucessivos disparos, eu mudava-o de lugar e continuamos a enviar morteiradas, enquanto penetrávamos em Sare Banda. Montamos a segurança necessária em volta do arame farpado, enquanto o nosso capitão se inteirava da situação. Viam-se moranças incendiadas e alguns feridos. Tudo se calou à ordem do capitão.

Ao romper do dia fez-se o reconhecimento em volta do arame farpado, vendo-se apenas uns rastos de sangue nas redondezas e vários cortes no arame farpado.

Além disso, só constatamos alguns feridos ligeiros entre a população.

Findo o reconhecimento regressamos a Geba.

Três ou quatro dias depois de Sara Banda ter sido atacada, o meu Pelotão e uma Secção do 3º Pelotão, sob as ordens do Furriel Vaqueiro, saímos de Geba em diversas viaturas, e seguimos em direcção a Sara Banda, onde nos apeamos e fomos reforçados com uma Secção de Milícia de Sara Banda.

No dia seguinte, ainda cedo, arrancamos na direcção de onde tinham sido detectados rastos do IN. Seguimos até à bolanha e, depois de a atravessarmos em Sare Dembel, viramos para a esquerda. O mato era cada vez mais denso e de alto porte. Uns quilómetros à frente os guias e a milícia pararam.

Como eu ia logo atrás perguntei o que é que se passava, ao que eles me responderam que haviam visto uma armadilha. Depois de se tomarem todas as precauções e medidas de segurança, o capitão incumbiu-me da missão de ser eu a levantar a armadilha, em virtude de o furriel de Minas e Armadilhas do meu Pelotão, ter morrido em Junho.

Mandei distanciar todo o pessoal e fiquei sozinho, a armadilha era constituída por uma granada defensiva, que estava camuflada dentro da vegetação e com acesso difícil. Assim, tive que rastejar de costas, por debaixo dos ramos, até lhe chegar, muito lentamente. Virei-me com cautela, agarrei a granada e, ao mesmo tempo, a respectiva cavilha de segurança saltou. Como eu tinha a alavanca presa com a mão, não houve problema algum. Ainda tive algum receio ao introduzir a cavilha no seu lugar, mas, logo que o consegui, foi só enrolar o fio em volta da granada e metê-la no bolso.

Continuamos a marcha e um quilómetro ou dois adiante, outra armadilha foi avistada numa zona de fraca vegetação, no meio de uma grande clareira e mais uma vez o capitão ordenou que eu a desmontasse. Desta vez tudo foi mais facilitado, em virtude de o local se encontrar desprovido de vegetação e a granada estar instalada numa cova, no meio do capim, que ali era muito rasteiro. O fio encontrava-se elevado por meio de duas ganchetas, dum lado e do outro da picada, tive que agarrar na granada, enrolar o fio em sua volta e metê-la no outro bolso.

Comecei a pensar que estava sempre pronto para todo o serviço.

Continuamos a marcha sem encontrar sinais do IN, até que surgiram pegadas frescas e bocados de fruta deixados na picada. Entramos novamente no mato denso, pelo meio de árvores de grande envergadura. Quando todo o pessoal estava dentro da mata paramos, foi instalada a segurança, e fizemos uma pequena reunião com o capitão, o alferes e os furriéis, sobre as cautelas a tomar em virtude dos rastos avistados, porque sabíamos que o IN deveria estar por perto.

Estávamos nós ali reunidos em pé, no meio da picada, eu de frente para os restantes e eis que surge um elemento do IN, a uns trinta metros numa curva, em direcção a nós. Farda amarela, chapéu redondo da mesma cor, uma arma a tiracolo e com a cabeça baixa fixando o solo.

Quando eu tentei tomar posição de tiro, para lhe apontar a minha arma, o capitão e os outros como estavam à minha frente, ficaram surpresos e sem reacção, porque não sabiam o porquê da minha atitude. De repente o elemento IN desapareceu no meio do mato, penso que eles nem o viram.

Disse eu então: “Um terrorista”.

O capitão mandou-me disparar uma bazucada.

Continuamos o nosso avanço em direcção de onde ele havia surgido, que era a nossa direcção para Sinchá Jobel, da qual estávamos já muito perto. Quando desfizemos a curva, seguia-se uma grande recta, mas nem sinais do IN. No final da recta o capitão mandou a secção do Furriel Vaqueiro ficar para trás, emboscada no mato, para nos proteger se o IN viesse atrás de nós.

A uns cem metros aproximadamente, haviam umas grandes palmeiras e água corrente, pelo que aproveitamos para matar a sede, encher os cantis e descansar um pouco à sombra das mencionadas árvores.

Em frente havia uma grande clareira e em volta desta muitas bananeiras. O capitão estava a falar com os guias sobre qual a melhor direcção a tomar. Eu desloquei-me mais para a frente.

O IN, sem o sabermos, estava um pouco à frente das nossas posições, num pequeno declive espiando-nos, e ao aperceberem-se de quem era o nosso comandante (porque um guia inadvertidamente pronunciou o seu posto), lançou duas granadas de mão, uma na direcção do capitão e outra na minha, iniciando o ataque com rajadas de metralhadoras.

O nosso pessoal respondeu de imediato com disparos de G3 e morteiradas, durante uns dez minutos aproximadamente e o IN retirou sem deixar rasto.

Do nosso lado registaram-se dois feridos ligeiros, atingidos por estilhaços das granadas, um soldado da Milícia que estava junto ao Capitão, que ficou ferido num braço, e um soldado dos nossos que estava junto a mim. Felizmente, a mim, valeu-me estar a passar junto a uma árvore de grande porte, que me protegeu do rebentamento e dos estilhaços.

Comunicou-se com o Furriel Vaqueiro, para avançar ao nosso encontro e continuamos na direcção de onde vieram os disparos, uma grande clareira onde se viam muitos rastos no capim. Passamos a clareira e entramos numa bolanha profunda, como a água nos dava pelo peito, os mais baixos seguiam agarrados a uma corda, que tínhamos levado connosco. Mais uns quilómetros e avistamos as viaturas à nossa espera.

Regressarmos então a Geba, sem mais nada acontecer.

Mais uns dias de descanso, passeios pela Tabanca, jogos de bola, comer uns petiscos com umas cervejas a acompanhar e ir até Bafatá, visitar os meus conterrâneos - os irmãos Teixeira -, sendo que o mais velho, tinha uma drogaria em frente ao quartel e o mais novo, que tinha sido proprietário do restaurante “A Transmontana”, estava casado com a professora - D. Armanda Chaves -, da minha freguesia.

1 - Tampa Superior
2 - Tampa de Papelão
3 - Tampa da espoleta
4 - Eixo do percursor
5 - Mola
6 - Percussor
7 - Leather circlet
8 - Ranhuras de encaixe
9 - Corpo de conexão
10 - Pavio
11 - Segunda espoleta
12 - Detonador
13 - Primeira espoleta
14 - Parafuso
15 - Pino
16 - Alavanca
17 - Vista interna

(Continua)

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil Op Esp/Ranger da CCAÇ 1426

Imagens: © Wikipédia (2009). Direitos reservados.
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Nota de MR:

Vd. postes anteriores desta série, do mesmo autor, em:

Guiné 63/74 - P5046: Parabéns a você (31): Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF, Piche e Bissau (1970/72) (Editores)

Neste dia 3 de Outubro de 2009, está de parabéns, por somar mais um ano à sua curta vida, o nosso camarada Hélder Sousa (*) (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), a quem, por este meio, toda a tertúlia vem dar o testemunho da sua alegria, associando-se não só ao Hélder, mas a toda a família e amigos mais próximos.

Prometemos marcar encontros sucessivos nos próximos anos, neste mesmo dia e local, assim ele nos continue a considerar seus amigos e camaradas.


O Hélder Sousa, entrou na nossa Caserna virtual em 10 de Abril de 2007, assim:

Sr. Professor e camarada da Guiné:

Peço desculpa de entrar desta maneira no seu (teu) endereço mas penso que é desta forma que se contacta o blogue.

Sou leitor assíduo do Luís Graça & Camaradas da Guiné, desde finais de Fevereiro, altura em que encontrei, comprei e li o livro Diário da Guiné do António Abreu e, através da informação lá disponibilizada, tomei conhecimento do blogue.

A Guiné sempre provocou em mim um misto de atracção e de nostalgia mas não me tinha dado ao trabalho de procurar coisas que afinal estão por aí e já há bastante tempo e com bastante qualidade.

Chamo-me Hélder Valério de Sousa, vivo actualmente em Setúbal, fui Furriel Miliciano de Transmissões, do STM, cumprindo a comissão de serviço na Guiné entre 9 de Novembro de 1970 e 10 de Novembro de 1972, tendo estado cerca 7 meses em Piche (contemporâneo do BCAV 2922) e o resto da comissão ao serviço do Centro de Escuta e de Radiolocalização do Agrupamento de Transmissões da Guiné.

Das minhas leituras do blogue devo começar por dizer que concordo inteiramente com os estatutos do mesmo. Penso até que só mesmo com enquadramentos colectivos com essa abrangência e ao mesmo tempo com esses compromissos, se pode criar e manter uma ampla plataforma de entendimento onde as diferenças se assumam mas se respeitem.

Não estou ainda a fazer um pedido formal para ser aceite como membro da Tertúlia porque não tenho ainda cumprida uma outra condição para ser membro e que se prende com as fotografias. Tenho que resolver essa lacuna pois tenho que procurar as fotos antigas e essas andam guardadas em algures.

Sendo assim, então qual o motivo deste contacto? Simples, como está previsto o almoço/convívio em Pombal (e não no, conforme recomendação expressa), a pergunta é se, não sendo membro, se pode participar e, caso sim, se se deve enviar a comunicação para o editor do blogue (para poder testemunhar que embora não sendo tertuliano de facto, já tem contacto preliminar no sentido de se efectivar) ou para o organizador do almoço (Vítor Junqueira).

Saudações e até breve.
Hélder Sousa


É caso para dizer que o nosso camarada Hélder foi atraído pelo estômago e ficou preso pela camaradagem reinante na Tabanca.


Nem sempre temos a oportunidade de neste dia homenagear os nossos progenitores, mas desta feita temos a sorte de possuir uma foto do senhor Ângelo Ferreira de Sousa, pai do Hélder.

Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Ângelo Ferreira de Sousa (1921-2001), natural de Vale da Pinta, Cartaxo, ex-1.º Cabo n.º 816/42/5.

Foto editada por CV

O Helder Sousa no seu quarto em Bissau... Sinais dos tempos: um poster do Che Guevara, um ícone da juventude da época

Hélder Sousa, Fur Mil Trms TSF, algures na Guiné no exercício das suas funções

Bissau > Hélder Sousa, no quarto. Na mesinha de cabeceira, os inseparáveis livros

Na foto, Hélder Sousa com os camaradas Fernando Roque e Nelson Batalha

Fotos: © Hélder Sousa (2008). Direitos reservados.

Nesta foto tirada no III Encontro Nacional, pareço acusar o Helder de algo, apontando-lhe o dedo, mas ele aponta para a sua esquerda indicando talvez o verdadeiro culpado

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

Será o meu companheiro Inácio o verdadeiro culpado? Que estarão os dois a conspirar?

Foto: © José Armando F. Almeida (2008). Direitos reservados.
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

11 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1652: Tertúlia: Três novos candidatos: José Pereira, Hélder Sousa e Jorge Teixeira

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2438: História de vida (10): O Último Adeus ou as peripécias da minha partida no N/M Ambrizete (Helder Sousa)

6 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

19 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2556: Estórias de Bissau (16) : O Furriel Pechincha: apanhado ma non troppo (Hélder Sousa)

9 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2828: Convívios (56): CCS/BCAV 2922, Piche, Buruntuma, Canquelifá (Helder Sousa)

10 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3430: Bibliografia de uma guerra (36): No ocaso da Guerra do Ultramar, de Fernando Sousa Henriques. (Helder Sousa)

28 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3809: Os últimos dias do destacamento de Copá, Janeiro/Fevereiro de 1974 (Helder Sousa / Fernando de Sousa Henriques)

11 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3871: Em busca de... (65): Pessoal de Copá, 1ª Companhia do BCAV 8323/73 (Helder Sousa)

23 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3926: Efemérides (17): Piche, 22 de Fevereiro de 1971 ou... Carnaval, nunca mais! (Helder Sousa)

4 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3981: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (1): Aprender a ser solidário

13 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4025: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (2): "Conta-me como foi" ou há mesmo coincidências

29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4095: O trauma da notícia da mobilização (5): Depoimentos (Magalhães Ribeiro/Hélder Sousa/David Guimarães/Juvenal Amado/César Dias)

22 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4235: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (3): Recordar aos poucos ou circuncisão espectacular

10 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4316: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (4): A bazuca em rajada

29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4436: O poder aéreo no CTIG: uma pesquisa de Matthew M. Hurley, Ten Cor, USAF: tradução de Miguel Pessoa (4): Alguns comentários

7 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4474: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (5): Os meus livros

15 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4531: A Tabanca Grande no 10 de Junho (13): Tertuilianos éramos mais de 30… (Hélder Sousa / Xico Allen)

17 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4544: Blogoterapia (107): Olhar, pensar e sentir a Guiné - Ontem e hoje (Hélder Sousa)

27 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4593: Controvérsias (22): As influências dos grandes mestres (Hélder Silva / José Brás)

11 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4811: Informações adicionais ao Poste 4800 (Hélder Sousa

9 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4926: Meu pai, meu velho, meu camarada (12): 1º cabo Ângelo Ferreira de Sousa, S. Vicente, 1943/44 (Hélder Sousa)

Vd. último poste da série de 29 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5026: Parabéns a você (30): Manuel Moreira, ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746, Ponta do Inglês e Xime, 1967/69 (Editores)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5045: Humor de caserna (12): A Paisanada... e Os Insaciáveis (Vitor Junqueira / Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça, um ser híbrido, meio alentejano, meio algarvio, no campo fortificado de Mansambo, onde se dormia debaixo de terra em bunkers, com paredes cobertas de imagens de estrelas ... de cinema como a Catherine Deneuve, que ajudavam os jovens, cheios de testosterona, nos seus verdíssimos 20 anos, a alimentar e a sublimar o ardente desejo... de viver! Em Mansambo (!), com Lisboa e o Porto, tão longe... e Bissau pelo meio, mas só para alguns privilegiados.... O melhor era mesmo afivelar a máscara do espanta-tentações, como aqui exemplificada na foto...

Foto: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.






Mensagem do nosso camarada Vitor Junqueira, publicada em 10 de Agosto de 2005 (*): "Entre os meus papéis encontrei esta lista com os títulos dos filmes que passavam nos principais cinemas do país nos finais da década de 60. Alguém estabeleceu um elo de ligação, irónico, entre esses títulos e certos momentos importantes da vida de um combatente. Quero partilhar o achado convosco.Vitor Junqueira".


Documento (digitalizado): © Vitor Junqueira (2005). Direitos reservados


1. Uma das coisas que mais aprecio nos seres humanos (e nos extra-terrestres, se um dia porventura os vier a encontrar) é o sentido de humor.

Infelizmente não temos cultivado devidamente esta arte e esta ciência. Convenhamos que o humor não é fácil. E que os tempos não são os mais favoráveis para os seus cultores. A menos que a coisa resvale para a chicana política, o trocadilho fácil, o bota-abaixo, o palavrão, a desbunda ... Mas esse arsenal do baixo humor (ou mau humor) não nos interessa, não faz parte do nosso core buisiness...e é eticamente reprovável, à luz dos nossos 10 mandamentos...

Gosto do humor do camarada que, em comentário a um poste meu (P5021), me diz:
- BAC ?... Bateria de Artilharia de Costa e não anti-costa.

E depois pergunta, com ironia:
- Paisanada?

E como "humor com humor se paga", respondi-lhe:
- É isso, camarada, é mesmo uma paisanada, uma calinada de paisano!... A minha cultura castrense tem lacunas... Fui infante, ninguém é perfeito... Peço desculpa aos leitores e, muito em especial, aos nossos valores artilheiros de costa (BAC)... Obrigado ao leitor anónimo, sempre atento e culto...

Pois, amigos, cá temos mais um termo (jocoso) que vem enriquecer o nosso linguajar de caserna:
paisanada sf > paisano + ada: 1. pej Os paisanos. 2 Grupo de paisanos. 3 gíria militar: Acção de paisano; gafe... (O termo vem do francês, paysan, camponês, pessoa que vive no campo, rústico)...

Outro camarada com humor (às vezes bem cáustico) é o nosso Vitor Junqueira... Creio que o primeiro ou um dos primeiros postes que lhe publiquei, nos primórdios do blogue, na I Série, era sobre o humor (*)...Merece transcrição (já que ninguém visita a I Série do blogue) (*):

Eu já tive ocasião de dizer ao Vitor que este documento era uma maravilha!... De facto, quem disse que nós, os tugas, não tínhamos sentido de humor ? Eu acho que o humor é, além de um sinal de inteligência, uma forma muito nossa de ser e de estar que nos ajuda a enfrentar e aguentar as situações difíceis…

Para um mancebo a tropa sempre constituiu, entre nós, um verdadeiro ritual de passagem. Para os mancebos da nossa geração, a passagem implicava também em 90 e tal por cento dos casos (tirando os filhos de algo, mais os cegos, os surdos e os mudos) um bilhete de ida (e nem sempre de volta) até ao Ultramar, a uma das três frentes da guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique...

O documento que o Vitor nos mandou [, reproduzido acima, ] é constituído por duas imgens, em formato.jpg, de uma lista, dactilografada, que tem por título "A Vida de um Militar na Guiné Atravez (sic) do Cinema".

A qualidade da digitalziação não é boa, pelo que transcrevo as duas partes, corrigidindo alguns erros de ortografia e/ou dactilografia. A segunda parte da lista (continuação) é aqui inserida sob a forma de imagem, a título meramente exemplificativo.

Esta lista, bem humorada, faz sobretudo a equivalência entre as situações do dia-a-dia de uma aquartelamento no mato e os títulos dos filmes que passavam na época nos nossos cinemas... Ainda me lembro de alguns!

Desconhece-se o autor. Possívelmente era alguém de transmissões, que tinha tempo e vagar para estas coisas... Talvez um cabo operador cripto, um especialista que não esconde a sua crítica à hierarquia e aos pequenos privilégios que davam as divisas e os galões:

(i) Clube de Sargentos = Casino Royal (possível referência à tendendência para a jogatana e a batota por parte de furriéis e sargentos);

(ii) Clube de Oficiais = Hotel Internacional (as instalações dos oficiais eram, sempre, apesar de tudo, melhores do que as barracas e os abrigos onde dormia o Zé Soldado);

(iii) Oficiais = Os insaciáveis;

(iv) Especialistas = Milionários sem vintém...


Também transparece aqui que a ideia de que ser sargento de messe (= golpe de mestre à napolitana) era uma forma rápida... e socialmente aceite ou tolerada de aumentar o pé de meia durante a comissão!

O autor é também possivelmente alguém que esteve numa zona quente, junto à fronteira norte ou sul, já que o turra é indentificado com o "perigo que vem da fronteira"... Curiosamente não há tanta referência à vida concreta dos operacionais no mato: a emboscada, a mina, o rocket, a costureirinha, o capim, os feridos, os mortes, o golpe de mão, etc.

Não deixa também de ser interessante a representação da enfermeira (pára-quedista): "o amor desceu em paraquedas"... Durante a comissão toda (= noites sem fim), a enfermeira pára-quedista era a única mulher branca que o Zé Soldado podia ver, ao vivo, embora de camuflado e de relance, em caso de evacuação de um ferido grave, quer no mato, quer no aquartelamento... Era, para muitos, uma visão quase celestial e sobretudo altamente erótica...

Ainda me lembro a perturbação e a excitação que causava, entre os básicos de Bambadinca, a chegada de um helicóptero com uma enfermeira pára-quedista... Em contrapartida, o furriel enfermeiro da unidade era associado a carniceiro e assassino... No caso da CCAÇ 12, o pessoal era mais gentil, embora brincalhão e travesso, pelo que o nosso furriel enfermeiro Martins era simplesmente o Pastilhas (um profissional competentíssimo... mas o que ele sofreu connosco!).

Outra das obsessões do militar na Guiné era a contagem dos dias que faltavam para a chegada dos periquitos e para o fim da comissão...E, por fim, inevitamente, a referência à ida às tabancas (= sarilho de fraldas), o convívio com as bajudas (= amor sem barreiras), o tabaquinho e os copos (= amores clandestinos), o tempo de lazer e de prazer do Zé Soldado...

A vida de um militar na Guiné através do cinema:


Partida de Lisboa = Passaporte para o desconhecido
Chegada à Guiné = As duas faces do perigo
Transmissões = O perigo é a minha profissão
Comissão = Noites sem fim
Apresentações = Eu, eu... e os outros
Alojamento = Este é o meu mundo
Messe = Por favor não comam os malmequeres
Clube de Especialistas = A grande vitória
Clube de Sargentos = Casino Royal
Clube de Oficiais = Hotel Internacional
Enfermaria = As loucuras do dr. Jerry
Secretaria dos TAP = Por favor não incomode
Secção de Fardamento = Pijama para dois
Comunicações = Este difícil amor
Metereologia = E tudo o vento levou
Linha da Frente = Com jeito vai
Grupo Operacional Aéreo = Os gloriosos malucos das máquinas [voadoras]
Companhia de Transportes = A ultrapassagem
Oficiais = Os insaciáveis
Sargentos = Os profissionais
Praças = A família Trapp
Especialistas = Milionários sem vintém
Oficial de Dia = Sua Excelência, o Mordomo
Enfermeiras = O amor desceu em pára-quedas
Enfermeiros = O assassino
Médico = O homem da mala preta


A vida de um militar na Guiné através do cinema (continuação) [Vd. documento acima reproduzido]:

Sargento de messes = Golpe de mestre à napolitana
Formaturas = Eram duzentos irmãos
Saída à porta de armas = Duelo ao pôr do sol
Ordem de serviço = Os Dez Mandamentos
Justiça e disciplina = Arquivo K
Condecorações = A Cruz de Ferro
Castigos = Adeus ilusões
Prisão = Longe da multidão

Dispensas = Uma réstea de azul
Recolher = Servidão humana
Não ir de férias = Restos de um pecado
Ir de férias = O prémio
Avião semanal = A esperança nunca morre
TAP = O último recurso
Bissau = Vida sem rumo
Tabancas = Sarilho de fraldas
Bajudas = Amor sem barreiras
Vinho, tabaco, etc. = Amores clandestinos
Ida ao mato = Um campista em puros

Turras = O perigo vem da fronteira
Ataque ao quartel = A visita
Fim da comissão = Com a felicidade na alma
Louvor = Não sou digno de ti
Substituto = O espião que veio do frio
Último dia da Guiné = O dia mais longo
Partida para Lisboa = África adeus
Chegada a Lisboa = Europa de noite
Primeira noite em Lisboa = Um homem e uma mulher
Passagem à disponibilidade = O adeus às armas



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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 10 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVIII: Humor de caserna: 'A minha vida, contada, dava um filme' (Vitor Junqueira)

Guiné 63/74 – P5044: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (22): A chapa de identificação


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a sua 22ª estória:

Camaradas,

Continuo a vasculhar o meu baú de recordações, onde ainda retenho alguns textos escritos à muito tempo, e vou-os enviando, aos poucos, para eventual divulgação no blogue.

Este tem o título de:

A CHAPA DE IDENTIFICAÇÃO

Todos nós transportámos ao pescoço este precioso colar, contendo a nossa chapa de identificação.

Um colar de metal, sem qualquer valor comercial, que nos tinha sido oferecido pelo nosso Exército. Era o nosso maior bem e riqueza pessoal, pois o mesmo representava a nossa presença entre os seres vivos daquela guerra.

Este foi o método encontrado pelos Serviços Mecanográficos do Exército, para mais facilmente identificarem os mortos, quer em combate, quer pelos mais diversos motivos.

Para qualquer um de nós era sempre um momento doloroso, quando tínhamos de tirar a chapa de identificação a um camarada nosso, porque, como é evidente, era sinónimo que já não regressava vivo connosco, quando regressássemos ao Continente.

Tive a infeliz tristeza, que me marcou indelevelmente e jamais esquecerei até ao resto dos meus dias, de ter realizado esse acto com um dos nossos Camaradas mortos em combate, o Victor Manuel Parreira Caetano, Soldado Atirador de Artilharia, com o Nº Mec. 17618068, segundo os elementos que constavam na sua chapa de identificação.

Para mim, e creio que para totalidade dos meus Camaradas, era a cena mais negra e dolorosa da guerra, tirar e partir a sua chapa de identificação.

Infelizmente, houve casos em que nem esse simples gesto foi possível fazer, devido ao grave estado de mutilação em que ficavam alguns dos corpos.
Um combatente que tivesse a infelicidade de ser atingido pelo sopro e pelos estilhaços de um fornilho, a sua identificação posterior, pela chapa que o mesmo transportava, era quase impossível.

Hoje, todos aqueles a quem tivemos o doloroso dever de retirar a sua chapa de identificação, por terem morrido no conflito do Ultramar, têm a sua memória perpetuada, nas pedras evocativas com os seus nomes no Monumento aos Combatentes do Ultramar, no Forte do Bom Sucesso, em Belém, Lisboa.

Deus permita que repousem eternamente em paz!

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Fotos: Mário Pinto (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5043: Blogues da Nossa Blogosfera (19): Victor Garcia abre na Net uma página sobre a CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71)



1. O nosso Camarada Victor Garcia, ex-1º Cabo Cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga , 1969/71), tem vindo a construir uma bela página pessoal, onde, entre outras, há uma secção dedicada expressamente à sua Companhia e aos seus Camaradas.


No poste P3209, já o Victor havia apresentado as suas credenciais, passando a fazer parte da nossa lista da Tabanca Grande:

Nome: Victor Garcia
Posto/Especialidade: 1.º Cabo Cavalaria
Companhia: CCAV 2639
Grupo de combate: 3.º pelotão (Os Kimbas de Capunga)
Zona de acção: Binar, Bula, Capunga
Comissão: de Outubro de 1969 a Outubro de 1971


No seu sítio ele confessa que é alfacinha, de Marvila, é benfiquista assumido e tem ao dispor dos visitantes excelentes apresentações em power point.

O endereço da sua página consta já da nossa lista de blogues e sítios, dos nossos camaradas e amigos (coluna do lado esquerdo, ao fundo).





Imagem da "primeira página" do sítio do Victor Garcia
Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Vd. primeiro poste sobre o Victor em:


Guiné 63/74 - P5042: (Ex)citações (49): Réplica ao camarada José Belo (António Matos)



1. O nosso camarada António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, enviou-nos em 29 de Setembro de 2009 a seguinte mensagem:


Camaradas,

Aqui fica uma réplica ponderada ao camarada José Belo, hoje que vivemos as consequências
dum dia pós eleitoral, onde alguns conceitos adquiriram estatuto de desactualização ainda que os nossos concidadãos ausentes da realidade nacional deles possam não se aperceber.
Nem mesmo Ruy Belo teria razão nos dias de hoje, pese embora o lindíssimo poema que o Luís Graça nos recorda!

Camarada José Belo,

Estou perfeitamente convicto que dizer-se que Portugal é um país de tolerância e humanismo ou, quiçá, de brandos costumes, é chão que já deu uvas e nem a sua repetição à exaustão consegue hoje disfarçar a falácia que se lhe associa.

Percebo que todos aqueles que engrossam a nossa diáspora exprimam essa ideia, mas atribuo-a a um sentimento de saudade e ao fado que a necessidade intrínseca de se perfilarem ao lado da nação-mãe num misto de patriotismo e falta do seu colo implica.

A falta de tolerância está muito bem patenteada neste dia pós eleições onde, não tendo despontado qualquer maioria absoluta, são constantes as declarações dos vários partidos com assento parlamentar na indisponibilidade de viabilização da governabilidade do país.

Aproximamo-nos inexoravelmente dum precipício social de dimensões incalculáveis e onde os brandos costumes já deixaram de ser paradigma de Portugal.

Estamos um país muito moderno;

Já nos matamos nas ruas em tiroteios de fazer calar um qualquer cowboy do farwest americano;

Já silenciamos uma estação de televisão privada onde um governo mexe (ou é mexido?) pelos cordões das marionetas em mãos hábeis escondidas atrás do biombo ;

Já se escuta clandestinamente, dizem, o gabinete do Presidente da República;

Criam-se inventonas e intentonas ao nível de um qualquer Watergate;

Sustentam-se até ao limite da prescrição, crimes tipo Casa Pia onde a culpa só não morre solteira porque havia um estúpido dum Bibi que serviu de cobaia;

Enfim, até tentamos envolver a figura do Santo Padre nas eleições do bairro!

Não queria deixar este texto ao tratamento de mero e singelo comentário mas antes dar-lhe uma exposição de poste ao nível do que melhor se faz neste blog uma vez que discordo da opinião do José Belo ao se confranger com a crítica irónica a que se sujeitam os brandos costumes.

Meu caro, já lá vai esse tempo, mas agora, a globalização que bem conhecerás aí pelos lados nórdicos dos fleumáticos senhores das neves, também nos trouxe a crua realidade da vida moderna com as suas vantagens, é certo, mas com injustiças pungentes que uma democracia permite na sua qualidade da pior forma de governo exceptuando todas as outras já tentadas (Churchill dixit).

Com amizade,
António Matos
Alf Mil Minas Arm da CCAÇ 2790


Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.

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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P5041: Estórias do Juvenal Amado (23): O velho milícia

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 30 de Setembro de 2009:

Caros Carlos, Luis, Virgínio, Magalhães e restante tabanca.

Esta é uma estória sobre a nossa passagem por Galomaro.
Não consegui confirmar que o nome dele seja efectivamente Mamadú, mas penso que ele é do tempo dos camaradas que estiveram na área antes de mim.

Aproveito para enviar algumas fotos da tabanca.

Na foto aérea que foi tirada no sentido de Bafatá na direcção do Dulombi. Do lado esquerdo vê-se a pista, do lado direito uma fiada mais escura são as grandes árvores que ladeavam o caminho de Cansamba, Duas Fontes, Dulombi, Bangacia, Campata e Saltinho.

Também junto à casa grande com quatro pequenas, à direita destas mal se vê, penso que seja o famosíssimo Regala.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


O VELHO MILICIA

Boina castanha debotada, olhar como quem olha para além de nós, o Mamadu acariciava a espingarda, como quem fazia festa a um neto.

Sentava-se à porta de sua palhota, mascava incessantemente alguma coisa e de tempos a tempos mandava uma daquelas cuspidelas, que velozes atingiam dois ou três metros. A saliva saía com um barulho particular dos seus lábios apertados.

A idade era indefinida, pois para nós miúdos de 22 anos, um homem com 50 ainda por cima africano era um velhote.

Muito magro e alto, caminhava lentamente casaco de camuflado demasiado largo e calções feitos a partir de umas calças da farda n.º3.
Era a indumentária constante do velho milícia de Galomaro.

Às nossas perguntas sobre os anos de guerra, respondia com um sorriso melancólico e indefinido.

Corria a estória que no passado ele tinha abatido 6 guerrilheiros num ataque a Cossé.
Falava-se que por isso tinha a cabeça a prémio.

Às nossas perguntas como tinha sido, respondia fazendo uma espécie de mímica, agachava-se apontava a hipotético inimigo e seis vezes premia o gatilho. O seu pouco vocabulário de português, era assim complementado com os gestos, acabando a sua narração batendo levemente na G3, dando assim a entender que tinha sido com aquela mesmo, que tinha cometido o feito que lhe era atribuído.
Depois disso mais uma cuspidela, a conversa morria ali sem mais demoras.

Não sei o que lhe terá acontecido após a independência, se não fugiu, possivelmente foi morto, o que se lamenta, a ser verdade ter a cabeça a prémio.

Juvenal Amado

Tabanca de Galomaro

Vista aérea de Galomaro

Padre Nuno na tabanca de Galomaro

Fotos: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.
Editadas por CV
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4983: (Ex)citações (47): Sexo e amor em tempo de guerra (Juvenal Amado / S.N.)

Vd. último poste da série de 30 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4884: Estórias do Juvenal Amado (22): O que será na verdade a coragem

Guiné 63/74 - P5040: Historiografia da presença portuguesa em África (21): Bolama, Farim... Álbum fotográfico de 1943 (Beja Santos)




Guiné Portuguesa > Farim e Bolama > 1943 > "Um album fotográfico que é uma raridade para bibliófilos muito exigentes... Imagens de uma Guiné que não conhecemos" (BS)

1. Mensagem enviada pelo nosso camarada Beja Santos, em 16 e 17 de Dezembro de 2008:

Este álbum (que me foi oferecido) tem uma singela dedicatória:

«Desculpe oferecer-lhe, Lourdes, um álbum em tão mau estado exterior. Como tem, porém, curiosas fotografias, deste caleidoscópio que se chama a Guiné, não resisti à tentação de lho mandar. E com ele vão as muitas saudades do Artur, Bissau, 24 de Novembro de 1952.»

O ofertante chamava-se Artur Martins Meireles, era um prestigiado funcionário colonial que se especializara na cultura dos manjacos (trabalhara em Caió, Jeta, Pecixe, ia agora ser nomeado administrador em Farim) e dirigia-se assim a Maria de Lourdes Soares d'Oliveira, com quem casará alguns meses depois.

Ambos viverão 10 anos na Guiné, percorrendo Farim, Teixeira Pinto, Gabu e São Domingos (aqui os dois viverão os ataques promovidos a partir do Senegal, em Julho de 1961).

O álbum data de 1943, está dominado pelo espírito do exotismo, retrata uma África de contrastes e sabores completamente longínquos para esses Europeus atraídos pelo desconhecido desses nativos a quem generosamente exercíamos a nossa acção civilizadora. Fotografias de Amândio Lopes, desenhos e legendas de Ascensão Júnior e Fausto Duarte.[Vd. imagem da bonita capa do álbum, aqui à esquerda]...

Vejam-se os aviões que planaram sobre as águas de Bolama,veja-se a Farim dos anos 40, onde viveu a Lourdes, a protagonista do livro «Mindjer Grandi», que estou a escrever [, e que voltará a casar, em segundas núpcias, com o Comandante Teixeira da Mota].

Não existe nenhum exemplar nas bibliotecas onde seria esperável encontrá-lo. Vou oferecê-lo à Sociedade de Geografia, a seu tempo. Um abraço, Mário

Imagens (editadas): © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2009). Direitos reservados

Guiné 63/74 - P5039: Tabanca Grande (176): José Manuel Pechorro, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19, Guidaje (1971/73)

1. Mensagem de José Manuel Simoa Pechorro, ex- 1.º Cabo Op. Cripto da CCAÇ 19, Guidaje, 1971/73, com data de 28 de Setembro de 2009:

Olá Luís Graça,
Decorreu quase um ano que detectei o v/sítio na Internet.
Estava numa sonolência a respeito da minha presença na Guiné. Ao ler sobre Guidaje, Guileje e Gadamael, etc., a minha visão dos acontecimentos e da guerra no ultramar ficou melhorada.

Solicito a minha inscrição na Tabanca Grande, junto dos Tertulianos, se me quiserem acolher.

Os meus agradecimentos e cumprimentos aos criadores do blog: Luís Graça, Virgínio Briote, Carlos Vinhal, Eduardo Magalhães e colaboradores.

Idem, aos que relataram o cerco a Guidage: o 1.º Tenente AN/FZE Albano Alves de Jesus; o Albano M. Costa, da Ccaç 4150; o Amílcar Mendes, 38.ª CCmds; o Sargento-Mor Pára Manuel Rebocho; o ex-1.º Cabo Pára Victor Tavares (BCP 12) CCP 121; o ex-1.º Cabo Manuel Marinho, BCaç 4512/72; os Pilotos da FAP, etc.

O motivo do contacto é em memória de todos os intervenientes e homenagem aos mortos. Aos soldados da CCaç 19, injustamente maltratados... e às forças militarizadas africanas fuziladas pelo PAIGCV, não esquecendo os que na metrópole lhes recusam os seus direitos.

Escolheram estar do nosso lado, confiando em Portugal e suas promessas. Foram abandonados!

Não foi só pelo dinheiro (soldo), como alguém mencionou, referente aos soldados da CCaç 19.
À noite, o calor no colchão e o sono não vinha, ia ao pé das sentinelas, onde conversando, me diziam estar no exército português por uma Guiné Melhor. Se o PAIGCV vencesse o futuro seria muito mau! Tinham razão.
Os povos simples da Guiné mereciam melhor sorte.

Houve heróis nestas guerras, e recordo o Ten Cor António Correia de Campos. Foi ele que evitou o abandono de Guidaje, e acontecesse uma grande tragédia! O IN derrotado desistiu.

Relembrando o dia 8, pergunto o que terá realmente acontecido à coluna?

O ex-1.º Cabo Marinho respondeu:

GUIDAJE - A PRIMEIRA GRANDE EMBOSCADA em 8/9 Maio 73 - P4957: Tabanca Grande (173): Manuel Marinho, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Farim e Binta (1972/74).

Com humildade remeto em anexo o meu relato, caso ajuízem que se deve publicar, do período de Abril a 9 de Maio de 1973. Deduzindo quem ler o motivo de realizar uma coluna apressada no dia 8 levando auxílio a Guidaje.

No texto seguem duas fotos.

Agradecido, os meus cumprimentos,
José Manuel


2. Comentário de CV:

Caro camarada José Manuel, bem-vindo à Tabanca Grande.

Tenho um esclarecimento a fazer. Quem fundou o Blogue foi o nosso camarada Luís Graça. Eu, o Magalhães Ribeiro e o Virgínio Briote apenas damos uma mãozinha, porque o trabalho é muito. Repara que és o 371.º tertuliano. Não percebo muito de tropa, mas não faltará muito formaremos um Batalhão.

Falando agora de ti. Muito obrigado por te dirigires a nós e por teres a coragem de dizer que nos espias há quase um ano. Sabemos que temos muitos camaradas que nos seguem, mas que por qualquer motivo pessoal não se nos dirige, embora alguns comecem a colaborar connosco, fazendo comentários nos nossos postes.

O trabalho que envias, relativo aos acontecimentos de Guidage em Abril/Maio de 1973, é muito extenso pelo que será publicado num outro poste.

Reparei que não mandaste uma foto do teu tempo de Guiné que sirva fazer uma tipo passe, como aconteceu com a actual. Logo que possas envia-a.

Esperamos que este teu contacto seja o primeiro de muitos, não só para falar dos trágicos acontecimentos de Guidage, mas também participando com outros relatos e experiências vividas no tempo que estiveste pelo Norte da Guiné.

Em nome da tertúlia, deixo-te um abraço de boas-vindas.
CV
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4973: Tabanca Grande (175): Carlos Sousa, ex-Alf Mil Op Esp, CCAÇ 1801, Ingoré/Bissum-Naga/S. Domingos/Cacheu/Antotinha(Ingoré) - 67/69

Guiné 63/74 - P5038: História de vida (23): Maria da Glória, uma saudosa filha com um dom especial para o fado (Cristina Allen)

1. Mensagem de 22 de Julho de 2009, enviada pelo Mário Beja Santos:

Luís, Meu querido amigo, junto o texto que a Cristina me pediu para digitar. Tens aí as 2 fotografias da Glória [, à esquerda], de óculos escuros, uma, com um pano guineense, a outra. A Cristina está muito comovida pelo acolhimento que o blogue deu à sua dor e à memória da nossa adorada Locas. Um abraço muito sentido do Mário



2. Texto de Cristina Allen, mãe da Maria da Glória Allen Revez Beja Santos (1976-2009) (*), que nos deixou vai fazer 3 meses (no próximo dia 2 de Outubro de 2009):


Caro Luís Graça,

Tenho, perante mim, duas fotografias da autora do texto que vai ter a gentileza de publicar, envolvendo o nosso blogue (foi este o seu último trabalho universitário) (**). E um disco de António Chaínho com a seguinte dedicatória: “Para a colega Glória, com um beijinho do António Chainho. 16-08-2003”. É que ele queria ensinar-lhe alguns truques na “Academia do Fado e da Guitarra” e lançá-la, mas ela, já doente, fugiu-lhe.

A Glória cantava quando queria. Iniciara-se no Colégio de S. João de Brito, junto de antigos alunos e teve, por padrinho D. Vicente da Câmara. Numa dessas noites de fado que o Colégio promovia, recordo-a no palco numa fila que começava com António Pinto Basto, praticamente todos os Câmaras e terminava com ela e Tozé Martinho. Recordo-a, esbelta, num longo vestido, preto e justo, envolta num manton de manilla antracite, bordado a seda tom sur tom, nos seus longos dedos os meus anéis mais faiscantes, as mãos juntas no peito, agradecendo, com fervor, os aplausos.

Mas com a nossa filha, o picaresco e o inesperado aconteciam quase sempre, de mãos dadas. Uma professora sua, e minha amiga conterrânea, fez-me um gesto discreto, indicando o fundo escuro do salão, atrás do palco. Escapara-se com um muito jovem (e atrevido!) Zé da Câmara e, receosa, lá foi a mãe que teve de presenciar uma insólita cena. O Zé dizia-lhe que com aquele vestido pouco se via dela e “mostra as pernas”, pediu. E ela, que não se preocupava nada e não era provocadora, levantou cuidadosamente a saia e, devagarinho, rodou e mostrou-lhas. Pu-los na ordem com um valente raspanete.

Recordo-a, ainda, num espectáculo em S. Jorge, nos Açores, cantando com outros amadores, após o espectáculo de Carlos do Carmo, um fado da mãe deste e ele, nos bastidores agarrado aos seus pulsos: “Continue, minha menina, com essa garra só vi a minha mãe”. Tinha então 17 anos.

E perdoe-me, Luís Graça, se narro mais outro episódio dos caprichos de uma inconsciente diva.

Num passeio que fiz com outros colegas meus a Leiria, levei-a e fomos acabar a noite num local onde se cantavam baladas de Coimbra. No intervalo, disse, alto e bom som, que também queria cantar. Que não podia, diziam, que as mulheres não cantam fado coimbrão e no rebuliço que se gerou ouviam-se gritos que diziam: “Canta! Canta!”.

Generoso, o dono da casa, lançou-lhe sobre os ombros uma capa e ela, com um tenor zangado, escolheu a “Samaritana”. O rapaz viu-se aflito, porque era baixote e a voz dela ia do contralto ao mais fino murmúrio. A certa altura, estava o tenor vermelho e em bicos de pés, esticando-se todo, mas lá se aguentaram os dois num belíssimo dueto. A assistência estava entusiasmada, toda a gente em pé. E, depois, sacrilégio dos sacrilégios, entregou a capa e passou o resto da noite a cantar fado de Lisboa.

Ela tinha os ímpetos do seu pai e da sua mãe.

Nas fotografias que lhe enviamos há uma que tem por fundo um pano da Guiné. Adorava-os coloridos, mudava-os, trocava-os, cobrindo paredes, mesas e o topo de uma estante baixa encastrada no vão de uma janela. Nessa foto, estava de partida para a Holanda. Tinha ainda 21 anos. A outra é muito mais recente, talvez de meados de Junho passado. Estava, como sempre, de back-pack, com o seu portátil e roupas atiradas à pressa e ao acaso, lá para dentro. Ao seu rosto de 32 anos voltara a serenidade e a doçura. Estava mais jovem. Encontrara alguém que lhe devolvia a serenidade e a afastara dos riscos. De luxo, só os óculos escuros, que coleccionava.

Quanto ao texto académico que vai ter a amabilidade de publicar, e que diz respeito ao blogue, é possível que haja imprecisões, sobretudo na entrevista que gentilmente lhe concedeu.

Isto porque alguém lhe emprestara um gravador antigo e ela nem sequer o experimentou. Quando se lançou à transcrição, a sua voz e a do Luís vinham de muito longe, abafadas por silvos agudos e equívocos ruídos que nos fizeram, a ambas, rir às gargalhadas. Penosamente, lá se procurou descodificar a sua entrevista e, se imprecisões houver, ela não se importará nada que as corrija. A Glória era humilde, nestas coisas de estudos e estava de regresso à Faculdade, após anos de ausência.

Perdoe se me alonguei sobre os seus fados. Mas ela estava mais lá que nas andanças académicas.

Grata por publicar este seu último trabalho à volta da Guerra Colonial e das memórias dos ex-combatentes. (***)

Cristina Allen


Nota: Também fez com a ajuda do pai um outro trabalho sobre o Islão, outro ainda sobre o filme “O clube dos poetas mortos” e deixou no computador um estudo inspirado por uma intragável obra filosófica sobre Ética e Moral, em que eu colaborei.

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes sobre a Maria da Glória:

6 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4644: In Memoriam (24): Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos: "Morte, onde está a tua vitória ?" (Mário Beja Santos / Luís Graça)

6 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4645: In Memoriam (25): Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos (1976-2009): Missa do 7º dia, 4ª feira, 19h, Igreja do Campo Grande

9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4660: In Memoriam (26): Fazendo o luto pela Maria da Glória e agradecendo a todos a solidariedade (Mário Beja Santos)

10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4664: Blogoterapia (116): Os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são (José Martins)

(**) Entrevista ao Luís Graça, no 1º trimestre de 2009, sobre a criação e o funcionamento do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. A publicar em breve.

(***) Vd. poste anterior da série > 22 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4400: História de Vida (14): Refazendo a vida correndo o mundo (José Eduardo Alves)